Introdução
A comunidade científica dedicada à investigação das relações entre as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) e a Educação iniciou o ano de 2020 como mais um ano em seu longo esforço pela produção de conhecimento científico nesse campo, aliado à militância pela inserção das TDIC na vida da instituição, malgrado as resistências e dificuldades já conhecidas, tanto de natureza cultural quanto de natureza infraestrutural e política.
Contudo, a rápida disseminação global da Síndrome Respiratória Aguda Grave o Coronavírus 2 (SARS-CoV-2)1, patógeno causador da Doença do Coronavírus 20192 (COVID-19), impôs drásticas alterações ao modo de organização de praticamente todos os setores da sociedade em todos os países do globo dada a necessidade restringir ao absolutamente mínimo necessário à manutenção da vida humana todo o contato social presencial.
Em escala global inédita - pela drasticidade, abrangência territorial e velocidade de de sua implementação -, foram impostas regras de distanciamento e, em não poucos casos, isolamento social que inviabilizaram o funcionamento de vários setores da sociedade, dentre eles a Educação em todos os seus níveis, fundada que estava no contato físico presencial entre professores, alunos e demais membros da comunidade escolar como elemento básico para os processos educativos e sociais no contexto escolar. Aqui se toca o ponto fulcral, tensionado pela pandemia e subjacente à resistência de parte da comunidade educacional às TDIC: a presença física como fator sine qua non para a efetivação do processo ensino-aprendizagem.
A Pandemia da COVID-19 encontrou o mundo3, porém, imerso na dinâmica da cultura digital de tal modo que o movimento de migração de atividades tradicionalmente presenciais para o ciberespaço deu-se de modo quase automático: não obstante as graves assimetrias existentes na condição de acesso às Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) pela população mundial, pode-se afirmar que a todos aqueles que possuíam mínimas condições de acesso à Internet pareceu natural o movimento de substituição de encontros presenciais físicos por encontros virtuais, ou encontros presenciais virtuais se se quiser tematizar o conceito de presencialidade para além da dimensão física (SALES, 2013).
Essa condição cultural - a cultura digital - permitiu o desenvolvimento de incontáveis estratégias de reposicionamento dos modos de mediação das relações sociais ao longo de 2020. Esse movimento foi tanto mais fácil quanto maior fora a inserção prévia da cultura digital na realidade em questão. Em linha com todos os setores da sociedade, também a Educação se viu obrigada a lançar mão do potencial das TDIC para reestruturar repentinamente todos processos educativos que, durante a vigência das restrições de proximidade e contato físico entre as pessoas na pandemia da COVID-19, poderia se dar apenas com mediação tecnológica.
Então, o descompasso da escola em relação aos demais setores da sociedade na assimilação da cultura digital em suas práticas cobrou o seu preço e a migração das atividades educacionais dos ambientes presenciais físicos para os ambientes virtuais pôs às claras as dificuldades da escola em seu processo de inserção na cultura digital. Nesse contexto, com o objetivo de lançar luz sobre esse processo, mesmo com as restrições que uma investigação científica de um fenômeno social em curso acarretam, o presente artigo apresenta os resultados da Pesquisa sobre “Mediação Tecnológica na Docência online em Tempos de Pandemia da COVID-19” (Medtec/COVID-19) desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Formação, Tecnologias, Currículo e Educação a Distância - ForTEC4, no bojo do projeto guarda-chuva “Observatório Educacional das Redes e da Cultura Digital”. Através de um Survey (BABBIE, 2003; 2010; GROVES et al., 2004; LAVILLE; DIONNE, 1999) aplicado a quinhentos e dois (502) docentes do Estado da Bahia, o Medtec/COVID-19 permitiu compreender o problema de pesquisa “como se configura o processo de ensino a partir dos recursos pedagógicos digitais (RPD) utilizados pelos docentes no contexto da pandemia da COVID-19”.
A partir do diálogo com Kenski (2006; 2018), Eiterer (2010), Bahrens (2008) e Sebarroja (2003), este artigo se propõe a problematizar o modo como a docência se materializou em ambientes online no contexto das restrições sanitárias da pandemia da COVID-19, oferecendo pistas para a prospecção dos melhores caminhos para articulação das TDIC nos processos educativos, em um genuíno movimento de enculturação digital na escola, a partir do contexto da inserção abrupta da mediação tecnológica digital na vida escolar no ano de 2020, ao tempo em que oferece um panorama das estratégias didático-pedagógicas abraçadas pelos docentes baianos participantes desta investigação.
Cultura digital e o processo de ensino
A dinâmica de uma sociedade globalizada e altamente digitalizada constitui um aspecto importante de como o sistema educacional tem lidado com os desafios apresentados às escolas e às famílias durante a Pandemia da COVID-19. As características mesmas das medidas de combate à pandemia, com seu enfoque no distanciamento social, puseram em relevo a potencialidade de mediação as relações pessoas do digital e representaram uma virada no modo como instituições reticentes às dinâmicas da cultura digital, a escola entre elas, passaram a lidar com o digital e equacionar suas antigas restrições.
Em primeiro plano, importa pontuar com Vani Kenski (2018, p. 139) que
o termo digital, integrado à cultura, define este momento particular da humanidade em que o uso de meios digitais de informação e comunicação se expandiram, a partir do século XX, e permeiam, na atualidade, processos e procedimentos amplos em todos os setores da sociedade.
Essa condição representava per se um desafio à escola muito antes da pandemia: o ponto de tensão residia na necessidade de a escola assumir os valores da cultura digital como modo de se inserir e se legitimar no contexto de seu público-alvo, não obstante o impacto que esse movimento teria na dinâmica da instituição escolar e no papel do professor.
Embora se possa arguir que a repentina transformação de todas as salas de aula presenciais em salas online durante a pandemia tenha acelerado o processo de inserção da cultura digital na vida escolar, é importante considerar que tal aceleração aconteceu segundo o paradigma que os processos anteriores de ‘enculturação digital’ já haviam posto à baila, isto é, a pandemia não estabeleceu um novo padrão, apenas empurrou a escola em direção a processos pedagógicos que já identificados e estabelecidos como abordagens educacionais aceitáveis e, ainda assim, com as restrições e contradições de um processo compreensivelmente aligeirado.
Neste ponto, é importante destacar que, por enculturação digital compreende-se o processo pelo qual a cultura digital é assimilada na vida escolar e se engendra na cultura escolar, pelo qual a escola assimila os aspectos principais da cultura digital, transformando-se, embora esse não seja um processo unilateral: a cultura digital também se deixa ser instrumentalizada de modo a promover os objetivos principais da escola. É um processo de hibridização natural, mais do que a transformação de um pelo outro. Esse processo apresenta dificuldades e paradoxos, visto que a escola é uma tecnologia datada e “tantos seus componentes quanto seus modos de funcionamento já não entram facilmente em sintonia com os jovens do século XXI” (SIBILIA, 2012, p. 13). Isto significa que as escolas têm uma dinâmica cultural conatural a seu contexto originário que não é facilmente adaptável à cultura digital do século XXI: não é um mero problema de inserção de ferramentas digitais na vida escolar, é um processo de transformação cultural de uma instituição altamente conservadora e padronizada.
Contudo, a escola continua a ser fundamental para a inserção dos sujeitos na sociedade e, como tal, é uma instituição cultural importante que não pode renunciar aos movimentos culturais de nosso tempo, sob pena de se descolar da realidade que a legitima como aparelho político-social fundamental na construção da sociedade humana como a conhecemos. Dentre os vários desdobramentos da inserção da cultura digital na vida escolar, a virtualidade é um dos mais significativos porque implica a reorganização do tempo e do espaço escolares, aspectos fundamentais da vida escolar, na medida em que, na cultura digital, “espaço/tempo se reencontram em uma nova dimensão: a virtualidade” (NONATO; SALES, 2017, p. 80). Nesse processo o ser professor se reconfigura: ele deixa de ser o responsável absoluto pelo acesso à informação e pelo processo de construção do conhecimento no processo ensino-aprendizagem.
Esse movimento de enculturação digital é, de certo modo, a consequência natural da compreensão de que esse modo de operar material e simbolicamente é a expressão cultural da sociedade em rede na qual estamos inseridos, “uma sociedade cuja estrutura social é constituída de redes alimentadas por tecnologias da informação e comunicação baseadas em microeletrônica5” (CASTELLS, 2004, p. 3, tradução nossa).
Nesse sentido, a enculturação digital é apenas a materialização da assimilação cultural ínsita à própria natureza da escola, na medida em que “[...] a educação não pode ser pensada em dissonância do contexto cultural em que se insere e para cuja dinâmica prepara os sujeitos em interação constante com o ambiente sociocultural” (NONATO, 2020, p. 540). A escola, que ainda “[...] continua obstinadamente arraigada em seus métodos e linguagens analógicos” (SIBILIA, 2016, p. 181), é demandada a atender às exigências da sociedade do conhecimento, a articular-se com seu modo de produzir conhecimento, assumindo na vida escolar a cultura digital que já se naturalizou nas interações sociais. Isto, por seu turno, leva a um questionamento sobre a configuração do professor e da docência na cultura digital.
O professor, porém, como afirma Kenski (2006, p. 95) é aquele “que persiste, apesar de tudo” e que, em linha com uma compreensão amadurecida sobre o processo de enculturação digital na escola, que supõe a superação da visão tecnicista que reduz o digital ao seu aspecto ferramental, é aquele que busca superar uma visão de que a inserção da cultura digital na escola se dá meramente pela aquisição de equipamento e, na melhor das hipóteses, pelo treinamento6 dos professores para seu uso. No processo de enculturação digital, o professor assume papel fundamental no desenvolvimento das práticas educativas no contexto escolar e, nesse contexto da pandemia, compreendeu de modo abrupto que “[...] o papel transformador não advém das tecnologias em si, mas da intencionalidade de sua utilização, que, em um movimento positivo, favorece a construção de trajetórias para a emancipação dos sujeitos” (PONTES, 2018, p. 56).
Neste ponto, há que se dizer que os primeiros movimentos da inserção da cultura digital na escola, ainda sem uma noção clara de que se tratava de cultura digital como uma categoria pervasiva, julgou-se que a Informática Educacional seria um conteúdo, algo a ser ensinado como conhecimento escolarizado. Isto durou algum tempo, mas logo se percebeu que a inserção das TDIC na escola não significaria um conteúdo de Informática Educacional; antes, implica a articulação profunda entre o modo de operar com as informações e o conhecimento na sociedade em rede e o fazer pedagógico no seio da escola, posto que “a cultura digital na educação pressupõe liberdade de optar, de forma autônoma, pelo que aprender, quando e como” (PONTES, 2018, p. 72). Cultura digital inserida na escola fala mais de um modo de produzir conhecimento atinente à cultura digital do que da inserção de aparatos tecnológicas tais e quais na sala de aula que, ao fim e ao cabo, logo se tornam obsoletos e, a bem da verdade, prestam-se aos usos mais variados, inclusive a usos diretivos e não interativos.
Também se há de reconhecer que, em certa medida, a cultura digital cria processos que precisam ser aprendidos, pois a escola não ensina apenas conteúdos conceituais, mas ensina também conteúdos processuais. Ademais, algumas áreas do conhecimento foram profundamente impactadas pela cultura digital, implicando alterações em sua conformação. Isto permanece um subproduto da enculturação digital, não seu cerne.
A cultura digital como base para processos educativos implica o desenvolvimento daquilo que Jenkins (2006) chama de cultura de convergência, a qual só se efetiva com o exercício da prática sociabilizada dos sujeitos e, na escola, se dá a partir das proposições e intenções didáticas dos professores. Todavia, com clarividência, o próprio teórico já alertara para uma visão reducionista de cultura da convergência:
Eu arguirei contra a ideia de que convergência deva ser entendida prioritariamente como um processo tecnológicos que reúne múltiplas funcionalidades midiáticas em um mesmo aparelho. Ao contrário, convergência representa uma mudança cultural na medida em que consumidores são encorajados a buscar novas informações e construir conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos7 (JENKINS, 2006, p. 3, tradução nossa).
A partir desta abordagem, a ideia de convergência encapsulada pela cultura digital, quando aportada à escola, desestabiliza a didática transmissiva e desafia os sujeitos a operar em bases mais dialógicas, construindo o conhecimento a partir dos vários fragmentos que os vários sujeitos trazem para o processo de ensino-aprendizagem que, sem deixar de ser ensino e aprendizagem como tarefas cujos titulares se distinguem, é também construção coletiva, dialogal e intersubjetiva de conhecimento, construção que se efetiva na ação pedagógica a partir da troca permanente de ideias e comportamentos, através da recuperação de “memórias sociais: atitudes, hábitos e valores respeitados pelo grupo ao qual a escola pertence” (KENSKI, 2006, p. 98). Portanto, a convergência midiática dos aparelhos é apenas facilitadora de uma convergência muito mais profunda e dinâmica: a convergência dos sujeitos mediante o processo colaborativo de construção do conhecimento.
Embora já esteja superado nos melhores círculos do pensamento acadêmico, importa recordar que, não obstante equivocadamente, a cultura digital foi inicialmente associada à cultura juvenil e a ela singularmente vinculada. Freire Filho e Lemos (2008, p. 18) recordam que “a identificação da ‘cultura tecnológica’ como uma ‘cultura juvenil’ remonta à década de 1980, quando surgiram os computadores pessoais, os videogames e a internet”. Essa vinculação é acentuada pelo reconhecimento de que “a primeira relação deles [dos alunos] com a tecnologia digital já não ocorre hoje no contexto escolar - como fora nos anos 1980 e mesmo no início dos 1990 -, pois ela se tornou do domínio da cultura popular” (BUCKINGHAM, 2010, p. 38-39).
Essa vinculação entre cultura juvenil e cultura digital ficou ainda mais forte com a difusão do conceito de nativos e imigrantes digitais formulado por Prensky (2001, p. 1-2):
[...] a designação mais adequada que encontrei para eles é Nativos Digitais. Nossos alunos hoje são todos ‘falantes nativos’ da linguagem digital dos computadores, videogames e da internet. Então, o que isto faz do resto de nós? Aqueles de nós que não nasceram no mundo digital mas foram fascinados, em algum momento de nossas vidas, e adotaram muitos ou a maioria dos aspectos da nova tecnologia são, e em relação a eles sempre serão, Imigrantes Digitais.
Esta conceituação de Prensky (2001) deu forma à compreensão de não poucos pesquisadores no campo das Ciências Humanas e alimentou o mito de que os jovens são ‘naturalmente’ digitais como sinalizam Freire Filho e Lemos (2008, p. 19) ao pontuar que, “ainda hoje, passada a fase inicial da “revolução” dos computadores pessoais, a imagem do jovem que detém uma espécie de talento natural para o computador prevalece, e novos mitos alimentam este imaginário”. Contudo, a equiparação de cultura digital com cultura juvenil, como denuncia Buckingham (2008) é imprecisa e tal reducionismo teve graves implicações em termos de pressupostos educacionais equivocados ao longo dos anos. Aparentemente, o próprio autor reconheceu o equívoco da ideia de que todo jovem é ‘naturalmente’ nativo digital e, como tal, é naturalmente ‘fluente’ na cultura digital ao afirmar que,
ao tempo em que penetramos no séc. XXI no qual todos terão crescido na era da tecnologia digital, a distinção entre nativos digitais e imigrantes digitais se tornará menos relevante. Claramente, ao trabalharmos para criar e aperfeiçoar o futuro, precisamos imaginar um novo conjunto de distinções. Sugiro pensarmos em termos de sabedoria digital (PRENSKY, 2009, p.1).
O grande problema dessa equiparação entre cultura juvenil e cultura digital é a crença de que não se faça necessário dotar a escola de um modus, um fazer pedagógico, capaz de levar os jovens à apropriação da cultura digital para fins da produção de sua formação escolar, porque isto já estaria dado. Tal engano, ao lado das condições objetivas da sociedade da informação que impõem o uso de TDIC no processo pedagógico, alimenta o descaso pela formação para o uso pedagógico das TDIC como política de formação essencial para a escola do século XXI.
Não se pode pensar em uso de TDIC na educação dissociado da formação que o torna possível, pois “ao falar de tecnologia educacional nos referimos ao uso de recursos tecnológicos no processo de ensino-aprendizagem e ao desenvolvimento de outras capacidades humanas no contexto da formação” (SALES, 2018, p. 94). Sem formação, o uso de tecnologia digital em sala de aula, nos processos educativos mediados por tecnologia que enfrentamos atualmente, se traduz, no máximo, como replicação de procedimentos parametrizados no espaço/tempo pedagógico, nunca real prática pedagógica.
Uma abordagem mecanicista das TDIC na educação é, na verdade, reflexo de uma deformação originária na compreensão do processo ensino-aprendizagem como movimento linear de transmissão de conhecimento. A consciência da natureza dialógica do processo pedagógico conduz necessariamente à compreensão de que os recursos didáticos se integram nessa dinâmica interacional que caracteriza a prática pedagógica, mas não têm o condão de operar a aprendizagem que se dá no sujeito aprendiz e a partir das condições que esse sujeito for capaz de produzir. Por isso, impõe-se a necessidade de se repensar os conceitos de ensino e de aprendizagem que, na perspectiva da cultura digital, da prática educativa com/na TDIC, conduz a novos significados para relacionar ensinar e aprender no contexto educativo.
Panorama didáticos dos recursos pedagógicos digitais
A pandemia da COVID-19 é um evento sem precedentes segundo vários ângulos a partir dos quais ela pode ser analisada e, como tal, é um catalizador de processos sociais e culturais cujos fundamentos já estavam latentes antes dela, o que não lhe tira o caráter de mobilizador desses processos no momento histórico dado, mas posiciona-os no bojo dos desdobramentos possíveis a partir das condições dadas. Esta é uma baliza importante a partir da qual se pode pensar o modo como os processos educativos foram implementados na pandemia da COVID-19 e seu impacto sobre o modus operandi da Educação, notadamente pela adoção de abordagens pedagógicas online que representam um importante aspecto desse fenômeno.
O ponto de inflexão da pandemia da COVID-19 na Educação é a radical supressão das aulas presencias, ou, dito de outra forma, a necessidade de reconfigurar a noção de presencialidade (SALES, 2013) de modo a permitir a operacionalização dos processos educativos em uma realidade na qual a presença física é totalmente inviabilizada.
Recorrer à mediação pedagógica através de dispositivos digitais foi o movimento natural, haja visto o grau de apropriação do ciberespaço que as mais diversas dimensões da vida social já possuíam. Nesse contexto, embora possuísse um grau profundamente assimétrico e de viés negativo de enculturação digital em comparação com outros setores da sociedade, a escola pode valer-se da experiência que alunos e professores tinham do modo de construir interações no ciberespaço para construir suas alternativas pedagógicas emergenciais, dado que a formação para uso das tecnologias digitais na educação estava muito aquém do mínimo necessário.
Nesse processo, pouco a pouco vai-se desvelando que a vedação à presença física concomitante dos sujeitos da Educação no espaço físico comum não caracteriza tanto uma não presença, mas uma outra presença. Sales (2013, p. 167) ilumina esta questão ao recordar que
a presencialidade física é uma perspectiva restrita à medida que concebemos a interação humana a partir do potencial de mediação telemática, reconhecendo que o sujeito está presente a cada momento em que age/interage/constrói/destrói através da sua participação nos processos desenvolvidos nos espaços em que o virtual, potencial e atual se alternam continuamente.
É a partir deste pano de fundo que os RPD, concebidos para um contexto no qual a presença física e a presença virtual são complementares e interdependentes, são apropriados para o momento da pandemia da COVID-19, quando o professor é chamado a “colocar-se em estado permanente de aprendizagem” (KENSKI, 2006, p. 98) como condição essencial para o desenvolvimento da ação docente. As normas estritas de supressão da presencialidade física nas escolas radicalizaram na vida escolar uma dinâmica que já perpassava a realidade social em vários campos e mesmo a Educação através da Educação a Distância em seus vários formatos. Isto posto, esses eventos se deram à sombra da compreensão de que
o advento das tecnologias digitais significou o ponto de partida de um complexo processo de reorganização das relações sociais a partir das premissas de uma lógica de interação não mais prioritariamente presencial, garantida pela proximidade física dos interagentes, mas viabilizada por formas de telepresencialidade que, a partir de ferramentas digitais, operam essas novas formas de operar sobre o mundo (NONATO; SALES, 2019, p. 151).
Contudo, não se pode afirmar que o Ensino Remoto de Emergência (ERE) praticado na pandemia possa ser classificado como Educação Online. Mesmo considerando que a “Educação online não é um modelo monolítico de educação nem mesmo uma abordagem homogênea” (HARISIM, 2015, p. 27), a distância entre essas duas perspectivas e práticas é significativa e opções justificáveis no contexto de pandemia não podem se tornar precedentes a justificar escolhas pedagógicas definitivas ou legitimar modelos pedagógicos em flagrante contradição com a literatura. Neste ponto, importa também destacar que a
aprendizagem eletrônica é menos apropriada para estudantes imaturos, para estudantes incapazes ou não preparados para aprender de modo independente e para estudantes necessitados de interação íntima e pessoal com outros estudantes (embora uma introdução ao e-learning em condições controladas seja provavelmente benéfica mesmo para tais grupos de discentes)8 (BATES, 2004, p. 289-290, tradução nossa).
Tal como implementado no contexto da pandemia da COVID-19, o ERE se justifica como a alternativa possível em um contexto de tal modo adverso e inesperado que nenhuma experiência prévia e aparato teórico consolidado na literatura da área de Educação estavam aptos a fornecer as respostas às demandas de professores, alunos e autoridades educacionais sobre como encaminhar os processos educativos com a supressão total da presença física dos sujeitos nos espaços formais de educação. Nesse contexto, o recurso ao digital como única alternativa ganha plausibilidade, mas isto não muda o fato de que
os efeitos do presencial não podem ser recuperados pela tela, porque existe algo que só ocorre na relação direta e os aparelhos em momento algum conseguirão captar, que é a percepção da energia pessoal, da força interna de cada um, de seu élan próprio, que só pode ser sentido pela percepção através da sua emanação direta (MARCONDES FILHO, 2013, p. 33).
Assim, há que se deixar com clareza solar que, do ponto de vista pedagógico, o desafio de articulação das TDIC nos processos educativos não se conforma na redução de todas as experiências pedagógicas à dimensão da Educação Online. Antes, o processo de enculturação digital contém em si a Educação Online como expressão da cultura digital da modalidade Educação a Distância, mas vai muito além dela, não obstante o fato de que o “[...] e-learning tem sofrido muito tanto pelo exagero de seus benefícios quanto pelo medo e resistência à mudança por parte de instituições muito conservadoras”9 (BATES, 2004, p. 290).
Em outros termos, cuida-se de balizar os processos educativos em sintonia com os modos de produzir conhecimento na sociedade em rede, em chave de cultura digital, que não se limita à Educação a Distância como modalidade ou à Educação Online como categoria. O ERE, porém, cujas inconsistências didático-pedagógica são de tal monta que apenas as circunstâncias excepcionais da pandemia da COVID-19 podem justifica-lo, é uma realidade à parte que não representa o modus como a cultura digital deve ser assumida nos processos de mediação pedagógica da construção do conhecimento.
Porém, para além da realidade vivida na pandemia, falar de Educação Online como um subproduto da enculturação digital na escola implica entender que, no bojo da Educação Online, inserem-se os mesmos desafios que estão fora dela, isto é, a busca pela Educação de qualidade contém em si o diálogo produtivo com as tecnologias de nosso tempo, como em qualquer outro tempo, ao lado de todas as outras dimensões que implicam uma Educação de qualidade, dentre as quais destacam-se a formação do professor e a constituição de um projeto pedagógico coletivo. A visão simplista de que “Educação é meramente uma questão tecnológica, uma questão de transmissão de conteúdo” (HARISIM, 2015, p. 27) e de que a inserção das TDIC no contexto escolar é apenas uma escolha didática do docente para trabalhar os conteúdos é um desafio tão grande para a Educação quanto o negacionismo tecnológico que, para defender o valor da interação humana na Educação, descarta a importância da tecnologia no processo ensino-aprendizagem, como se a educação escolar pudesse ser uma ilha analógica em uma sociedade digital, e o processo fosse mero coadjuvante no contexto educativo. Ao contrário,
à medida que a prática pedagógica incorpora as TDIC em seu dia a dia, o caldo de cultura que chamamos de cultura digital se naturaliza na vida escolar, diminuindo a distância entre a vida vivida nas dinâmicas da sociedade conectada e o microcosmos da sala de aula (NONATO, 2020, p. 556).
Nesse sentido, o professor e os estudantes são protagonistas do processo ensino-aprendizagem, pois compartilham experiências vividas na sociedade conectada para, assim, explorarem-nas como possibilidades no contexto educativo e fora dele. A partir dessa vida vivida nisto que chamamos de Sociedade da Aprendizagem (HARGREAVES, 2004), pensar a Educação sem dimensionar a possibilidade do digital é pôr-se na contramão da formação, da educação de qualidade. Por isso, impõe-se reconfigurar a compreensão de recurso pedagógico no contexto do ERE, nos quais os recursos pedagógicos são reduzidos apenas às tecnologias digitais e os recursos multimídia, como os websites.
Os recursos digitais estão disponíveis para a sociedade a partir de várias tecnologias e se configuram em aparatos online e offline. Pode-se afirmar que recurso digital são todo e qualquer dispositivo digital mídia digital que está disponível online, isto é, na rede mundial Internet e, offline a partir de diversos suportes digitais como tablets, celulares, laptops, aparelhos de TV, os quais podem ser acessados independentemente de conexão com a Internet. São recursos digitais programas, plataformas virtuais, aplicativos, jogos, hardwares e softwares, portais e sites da Internet, câmeras, retroprojetores, entre outros. Assim como arquivos, mídias digitais de domínio público ou que possuam licença específica para uso em diversos setores da sociedade, esses recursos também são inseridos no contexto educacional, configurando-se em um recurso pedagógico digital (RPD).
No entanto, recurso pedagógico é muito mais que a materialidade do recurso em si. Recurso é um meio para uma solução, um auxílio, uma ajuda para resolver um problema dado. Para ser caracterizado como recurso pedagógico, é necessário que possua características ou atenda a objetivos educativos de trabalho com conteúdos educativos e situações de formação. Desse modo, pode-se compreender recurso pedagógico como materiais, instrumentos ou soluções utilizados como meios ou facilitadores para o alcance de objetivos educacionais no contexto formativo; é aquele recurso que auxilia diretamente no processo ensino-aprendizagem.
No entanto, há recursos que não são criados com objetivo pedagógico e que adquirem o caráter ou função pedagógica a partir da intenção de sua inserção e uso no processo formativo. Assim, podemos afirmar que recurso pedagógico é “o que auxilia a aprendizagem, de quaisquer conteúdos, intermediando os processos de ensino-aprendizagem intencionalmente organizados por educadores na escola ou fora dela” (EITERER, 2010, online).
Para melhor formalizar o conceito e distinguir um recurso pedagógico de quaisquer outros recursos, deve-se ter como referência a ação do professor ao planejar, ao delimitar objetivos pedagógicos para o trabalho com conteúdos e atitudes educativas.
A partir desse fundamento conceitual, o aporte do adjetivo digital a recursos pedagógicos delimita a inserção e uso das TDIC no contexto da prática educativa. Durante a pandemia da COVID-19, vários recursos digitais foram incorporados ao ERE e ganharam a função de recurso pedagógico no processo ensino-aprendizagem, ao passo que outros RPD, antes esquecidos, foram recuperados para possibilitar o desenvolvimento do ERE.
Assim, são RPD toda e qualquer solução, aparato ou processo tecnológico utilizados em situação de ‘aula’ ou de ‘atividade educativa’ objetivando trabalhar com conteúdos educacionais no processo ensino-aprendizagem. Sales e Moreira (2019, p. 4) afirmam que
para atender aos objetivos pedagógicos, sociais e políticos de formação para o Século XXI e aos objetivos do próprio processo de ensino e de aprendizagem na Sociedade da Aprendizagem, os professores necessitam de alguma forma possuir competências e habilidades que lhes auxilie diretamente no processo de transformação do modo de agir, comunicar, praticar, construir e difundir o conhecimento, tendo o potencial comunicacional e colaborativo das tecnologias (principalmente as conectadas e móveis) como motriz para o exercício da prática pedagógica integrada aos diversos saberes.
A partir de tal perspectiva, para pensar em RPD que possam ser associados ao exercício docente no contexto do ensino remoto emergencial, necessita-se também considerar a formação e/ou experiência tecnopedagógica dos professores para exercer tais escolhas, realizar tais indicações e praticar à docência mediada por tais RPD, pois os RPD são tributários da prática pedagógica dos docentes e não o contrário. É neste sentido que apresentamos a lista de alguns RPD que possibilitam o desenvolvimento de um processo ensino-aprendizagem interativo, integrador, com indicativos comunicacionais para a consecução de atividades e ações pedagógicas críticas, transformativas, a saber:
Fonte: Os autores, 2021.
Além dos RPD online e offline, há outros recursos digitais que, embora não se constituam propriamente em recursos pedagógicos digitais, podem ter um viés pedagógico como o demonstra o uso que deles foi feito no ERE, tais como: conferências web, aplicativos de desenvolvimento de games e editores de vídeo.
Desse modo, os RPD estão disponíveis para o contexto educativo, desde que o professor tenha conhecimento do potencial das TDIC utilizadas como recurso pedagógico, tenha objetivo educacional definido e apresente possibilidade direta para o trabalho pedagógico com os conteúdos atitudinais, conceituais e socioemocionais necessários para formalização da aprendizagem, vinculando o conteúdo escolar com as experiências da vida cotidiana.
Embora incompleta, esta lista de RPD permite-nos vislumbrar o potencial das TDIC como tecnologias voltadas para o campo educacional. A partir desta lista de opções de RPD - sempre em expansão -, nada pode ser encaminhado para melhoria do processo ensino-aprendizagem se os docentes não inserirem em seus planejamentos objetivos específicos para o trabalho pedagógico com tais tecnologias. A emergência de novas metodologias, de outras e diversas possibilidades didáticas, reconfiguram os RPD, uma vez que a dinamicidade do processo educativo só se efetiva com a atuação, o estabelecimento das relações das pessoas entre elas e com os conteúdos educativos e sociais.
Nesse sentido, o contexto do ERE estimulou, ainda que de modo abrupto, a necessária capacidade criativa e inventiva dos docentes, além da capacidade de busca autônoma da formação em serviço, que de modo algum se confunde ou restringe aos cursos formalmente oferecidos como formação continuada, no sentido de poderem atuar sobre áreas cerebrais distintas dos estudantes - visão, audição, paladar e olfato - e, por consequência, influenciar as percepções e emoções desses estudantes, em busca da otimização do trabalho cognitivo e, consequentemente, da aprendizagem em um cenário tão inesperado e tão diverso daquele no qual se efetivaria a ação educativa em ‘sala de aula’.
A inserção e uso dessas tecnologias como RPD abrem espaço para o desenvolvimento de práticas pedagógicas diferenciadas e diversas, para a inovação pedagógica a partir do exercício de metodologias outras, quando o professor lança mão de um “[...] conjunto de intervenções, decisões e processos que possibilitam alterar atitudes, culturas, ideias, conteúdos, modelos e práticas no contexto educacional de acordo com a intenção e a sistematização da ação [educativa]” (SALES, 2018, p. 97).
No contexto da pandemia da COVID-19, tais RPD tomaram forma e conotações pedagógicas diversas, adaptados para situações e segmentos variados, apresentando assim um panorama de possibilidades no qual o professor, mais do que nunca, atua como protagonista do processo de mudança, fazendo as escolhas e/ou usos a partir do que tem à disposição, lançando mão da criatividade pedagógica e da flexibilidade didática como condição sine qua non para se fazer educação em um contexto adverso do mundo contemporâneo. Esse panorama diverso dos RPD institui um “novo modelo formativo [que] requer uma sintonia maior entre o pensar e o sentir, entre o desenvolvimento da abstracção e o dos diversos aspectos da personalidade [do professor]” (SEBARROJA, 2003, p. 13), além de exigir, por parte do docente, uma vivência intensa do “processo de mudança paradigmática [que] atinge todas as instituições, em especial a educação e o ensino nos diversos níveis [...]. O advento dessas mudanças exige da população uma aprendizagem constante. As pessoas precisam estar preparadas para aprender ao longo da vida podendo interver, adaptar-se e criar novos cenários” (BEHRENS, 2008, p. 68).
Vale salientar que a longa tradição epistêmica da Didática, notadamente aquela produzida no Brasil, fornece suporte para o processo de adequação da prática pedagógica ao contexto do ERE na pandemia da COVID-19, desde que os docentes utilizem o conhecimento didático do planejamento a favor de uma aprendizagem significativa, da problematização como motriz para as situações de ensino, da didática das metodologias a favor das escolhas adaptáveis e favoráveis à diversidade e à heterogeneidade das condições de aprendizagem no ERE.
Metodologia
Consoante a compreensão de que “a investigação responde a um problema de pesquisa mediante a alternativa metodológica mais adequada à questão posta, não à preferência do pesquisador” (NONATO, 2020, p. 546), o Projeto de Pesquisa “Mediação Tecnológica na Docência online em Tempos de Pandemia da COVID-19” (Medtec/COVID-19) empreendeu a aplicação de uma Pesquisa de Levantamento ou Survey para acompanhar os desdobramentos da pandemia da COVID-19 na docência, no bojo do “Observatório Educacional das Redes e da Cultura Digital”, projeto longitudinal do Grupo de Pesquisa Formação, Tecnologias, Currículo e Educação a Distância - ForTEC da Universidade do Estado da Bahia.
O Survey do Medtec/COVID-19 alcançou 618 (seiscentos e dezoito) docentes em território nacional que responderam a um questionário misto (LAVILLE; DIONNE, 1999) com 41 questões. Contudo, a partir da abordagem desenhada pelo problema de pesquisa retromencionado, apresenta-se um recorte dos 502 (quinhentos) sujeitos que exercem a docência nas várias regiões do Estado da Bahia. O instrumento foi aplicado online através da plataforma Google Forms e difundido pelas redes sociais. Trata-se por tanto de amostragem aleatória não probabilista (LAVILLE; DIONNE, 1999) que tem sua “[...] própria lógica e pode prover amostras úteis para a pesquisa social10” (BABBIE, 2010, p. 189) e cujos resultados não aspiram a projeções estatísticas e generalizações sobre a população alvo, dadas “[...] as limitações da amostragem não probabilísta, especialmente em relação a representações acuradas e precisas de populações11” (BABBIE, 2010, p. 196). Isto não se constitui em um problema, mas é uma contingência da realidade de que
Surveys são conduzidos em ambientes não controlados do mundo real e podem ser afetados por essas ambiências. Surveys recebem seu poder inferencial de sua habilidade de mensurar grupos de pessoas que forma um microcosmo de grandes populações, mas raramente atingem a perfeição nessa dimensão 12” (GROVES et al., 2004, p. 33, tradução nossa).
Consoante o problema de pesquisa “como se configura o processo de ensino a partir dos recursos pedagógicos digitais utilizados pelos docentes no contexto da pandemia da COVID-19”, foram recortas questões cujo escopo atendia ao enfoque da utilização de RPD no ERE.
Por sua índole exploratória, a presente pesquisa optou pelo Survey de natureza exploratória (BABBIE, 1999) posto que “os dados dos surveys atingem um nível de mensuração que a observação participante não pode atingir” (GOLDENBERG, 2004, p. 64). Por outro lado, a característica do Survey de ser um modo preliminar de “[...] compreender um problema social13” (GROVES et al., 2004, p. 4, tradução nossa) tornou-o método mais adequado, aliado a sua perfeita adaptação à aplicação online em um contexto de distanciamento social.
O instrumento utilizado para a produção dos dados permitiu articular questões aptas a produzir dados analisáveis quantitativamente, ao passo em que outras questões se abrem a uma análise qualitativa, o que contribui para a importância da contribuição que se pretende com esta pesquisa. As questões recortadas para este estudo trataram das escolhas pedagógicas feitas pelos docentes no contexto do ERE e seus condicionantes a partir da relação desses sujeitos com as TDIC em sua história de prática pedagógica.
Resultados
Embora não tenha o condão de desvelar toda a complexa rede de condicionamentos e implicações que explica o modo como a educação se comportou no Estado da Bahia no primeiro ano da pandemia da COVID-19, os resultados alcançados pela pesquisa de levantamento aqui comunicada desvelam um quadro geral preocupante.
Em um primeiro movimento de análise, para caracterizar os sujeitos de pesquisa, importa conhecer como os sujeitos de pesquisa se apresentam em relação ao local de trabalho, rede de ensino e nível de educação de sua atuação:
Nível de atuação | Região de atuação | ||||
Educação Básica | Educação Superior | Capital | Interior | ||
Público | Federal | 66 | 68 | 31 | 62 |
Estadual | 126 | 79 | 67 | 65 | |
Municipal | 143 | - | 54 | 101 | |
Privado | 40 | 9 | 48 | 67 |
Fonte: Os autores, 2021.
Por se tratar de amostra não probabilista, não houve preocupação com uma parametrização da amostra por critérios estatísticos, contudo há representatividade na amostra capaz de demostrar o quanto os dados refletem uma realidade dada.
Em primeira linha, há que se considerar que o estudo apresenta um retrato distintivo da Educação Pública com 76,9% (setenta e seis vírgula nove por cento) dos pesquisados, a saber:
Por outro lado, a pesquisa refletiu a realidade de todo o Estado da Bahia, embora com maior destaque para a Cidade do Salvador como descrito no gráfico a seguir:
Pode-se também afirmar que todos as fases da vida profissional do docente estão representadas no estudo, a saber:
Dos 502 (quinhentos e dois) docentes alvo da pesquisa, 185 (cento e oitenta e cinco) não desenvolveram atividades de aulas com mediação tecnológica durante o período pesquisado, perfazendo 36,85% (trinta e seis vírgula oitenta e cinco por cento), enquanto 317 (trezentos e dezessete) sujeitos o fizeram, 63,14% (sessenta e três vírgula quatorze por cento) do total.
No que concerne às motivações dos docentes, apesar de conduzirem à mesma consequência, foram apresentadas diversas fundamentações para o não desenvolvimento de atividades de aulas com mediação tecnológica. Aqui queremos tensionar as mais expressivas e que possibilitam um maior espaço para a reflexão.
Vários docentes informaram que não realizaram em função de ausência de formação para o uso das tecnologias digitais na educação, outros apontaram a indisponibilidade de RPD - no formato de aplicativos e ambientes virtuais de aprendizagem - necessários ao desenvolvimento das atividades online. Neste ponto, repropõe-se a centralidade da formação como elemento potencializador da enculturação digital. Ao denunciar a falta de formação, denuncia-se que sem reflexão crítica não se chegará a uma real e efetiva inserção das TDIC na prática pedagógica. A alegada falta de RPD, embora reflita em certa medida a falta de infraestrutura tecnológica - tomada aqui em seu aspecto material e imaterial - que limita gravemente a enculturação digital principalmente na escola pública, demonstra como não haverá enculturação digital sem formação, pois o reconhecimento do potencial pedagógico de artefatos digitais depende da adequada formação no uso pedagógico das TDIC, fora do que se fica à espera de uma infraestrutura ideal imaginária.
Uma outra linha de argumentação aponta, por parte dos docentes e discentes, a indisponibilidade de acesso à Internet e de equipamentos para acesso à Internet. Aqui o problema infraestrutura é candente em seu aspecto material: não há que se falar em enculturação digital sem o mínimo de investimento infraestrutural em TDIC. Isto significa disponibilidade de hardware e software e acesso à Internet de qualidade nas instituições de educação, mas também sob a posse de professores e estudantes dessas instituições. A necessidade de mudança abrupta do ensino em sala de aula presencial para o ERE pôs às claras aquilo que os pesquisadores do campo de Educação e Tecnologias já denunciam há anos: a escola e os sujeitos que a constituem permanecem analógicos em um mundo crescentemente digital. Toda formação e criatividade do mundo são incapazes de transpor este ponto: para trazer a cultura digital para a escola é preciso dotá-la, e aos professores e alunos, da tecnologia digital capaz de inseri-los nesse caldo de cultura. Do mesmo modo que o Programa Nacional do Livro Didático14 assumiu corajosamente o enfrentamento do problema do livro didático na Educação Básica, urge um esforço de igual o maior monta para enfrentar o problema crônico da falta de infraestrutura tecnológica para parte considerável de docentes e discentes no Brasil.
Um último bloco de justificativas da não execução de atividades letivas com mediação tecnológica dão conta da ausência de suporte pedagógico da rede ou instituição de ensino para a concepção e desenvolvimento das ações pedagógicas envolvendo o uso das tecnologias digitais na educação, notadamente durante a pandemia; inexistência de plataformas online institucionais que possibilitassem o desenvolvimento das atividades pedagógicas online; inexistência de clara definição institucional para o desenvolvimento das atividades do ERE e, por fim, mesmo quando tais definições institucionais estavam postas, inexistência de orientações que possibilitassem a sua implementação.
Isto dá conta da imprescindibilidade de um projeto político-pedagógico que dê conta da enculturação digital como estratégia institucional validada pela comunidade, operacionalizado por profissionais preparados para apoiar pedagogicamente as iniciativas docentes. Um corpo técnico-pedagógico capaz de orientar, apoiar e coordenar o uso pedagógico das TDIC é tão importante quanto infraestrutura tecnológica. Trata-se de infraestrutura pedagógica para a enculturação digital, que abarca todo o corpo anto docentes quanto coordenadores pedagógicos preparados para os desafios da inserção das TDIC nos processos educativos.
Desvelados, de maneira geral, por diversos motivos, 37,3% (trinta e sete vírgula três por cento) dos docentes investigados não desenvolveram atividades de aulas com mediação tecnológica durante o período investigado, ao passo que 62,7% (sessenta e dois vírgula sete) restante dos docentes que realizaram atividades durante esse período marcado pelo distanciamento social e pela supressão das atividades presenciais das instituições educacionais.
Considerando tais estratégias, há um equilíbrio entre os sistemas público e privado de Educação, onde 166 pesquisados, perfazendo 50,5% (cinquenta vírgula cinco por cento) foram adotadas no sistema público de educação contra 163 (49,5%) do sistema privado - tendo o total ultrapassado as 315 respostas previstas em razão de alguns respondentes atuarem tanto no sistema público quanto no privado. Analisando o sistema público, há um equilíbrio entre as estratégias adotadas nas redes municipais (64 estratégias representando 36,2%) e estaduais (71 correspondendo a 40,1%), porém um descompasso ao comparar a esfera estadual com a esfera federal (42 representando 23,7%), quase o dobro de intervenções na esfera estadual.
No que concerne às etapas, fases e programas educacionais nas quais os professores utilizaram estratégias pedagógicas durante a pandemia, apresentamos o sumário a seguir:
Fonte: Os autores, 2021.
Percebe-se que as maiores intervenções estão concentradas entre os anos finais do Ensino Fundamental, o Ensino Médio e a Graduação. Isto está em linha com maior quantitativo de discentes nesses segmentos quando comparado aos outros segmentos de ensino. Contudo, o quantitativo de intervenções realizadas na Creche e na Pré-escola chama a atenção em razão da idade escolar dos seus alunos da Educação Infantil: 0 a 3 anos na Creche e 4 a 5 anos na Pré-Escola, faixas etárias em que o desenvolvimento cognitivo, emocional e atitudinal está muito relacionado ao contato entre as crianças e os diversos contextos e situações sociais, ao mesmo tempo em que é uma faixa etária em que as ações pedagógicas com o digital não são muito exploradas por professores e instituições educativas.
O contexto da pandemia mobilizou a categoria docente em nome do compromisso com a manutenção dos processos formativos, ainda que em condições muito adversas.
Não | Sim | ||||
Público | Federal | 54 | 58,06% | 39 | 41,93% |
Estadual | 56 | 42,42% | 76 | 57,57% | |
Municipal | 75 | 48,38% | 80 | 51,61% | |
Privado | 0 | 0% | 122 | 100% | |
Total | 185 | 317 |
Fonte: Os autores, 2021.
Isto, porém, não minimiza as graves dificuldades enfrentadas pelos docentes no ERE. Ausência de conexão de Internet adequada, ausência de suporte técnico e de formação para o uso das TDIC estiveram entre as rações mais sinalizadas para a não utilização de RPD.
Um aspecto importante a se destacar é o baixo índice de escolha autônoma de RPD que os professores pesquisados informam: apenas 9,96% (nove vírgula noventa e seis porcento) afirmou ter selecionado os próprios RPD utilizados no ERE.
Escolheram RPD | RPD disponibilizado pela rede | ||
Público | Federal | 8 | 13 |
Estadual | 17 | 59 | |
Municipal | 17 | 28 | |
Privado | 9 | 36 |
Fonte: Os autores, 2021.
Este aspecto é bastante relevante, no sentido de que releva baixa autonomia docente na definição das estratégias pedagógicas do ERE. de construção. Isto se deveu às escolhas institucionais das redes de ensino e não à formação dos pesquisados, pois 70,63% (setenta vírgula sessenta e três por cento) dos pesquisados afirmou ter formação continuada na área de TDIC, o que é consistente com as políticas de formação desenvolvidas nos últimos vinte anos e na medida em que 80,87% (oitenta vírgula oitenta e sete por cento) dos docentes investigados afirmou ter pesquisado possibilidades tecnológicas digitais disponíveis para auxiliar no planejamento das suas atividades pedagógicas de aula.
Por fim, é significativo trazer à baila que, dentre os pesquisados, apenas 1,39% (um vírgula trinta e nove por cento) dos docentes sinalizou que a experiência de docência no ERE levaria a rejeitar o uso de TDIC no futuro como recurso pedagógico, ao passo que 61,35% dos pesquisados afirmou a experiência da docência com mediação durante a pandemia leva-os a buscar formação e utilizar as TDIC como RPD em sua prática pedagógica no pós-pandemia e 71,71% (setenta e um vírgula setenta e um por cento) dos pesquisados afirmam que, depois dessa experiência no ERE, utilizarão TDIC em sua prática docente, o que aponta para uma nova dinâmica no processo de enculturação digital nos próximos anos.
Conclusão
Como toda a humanidade, a escola pós-pandemia trará as marcas da experiência traumática da Pandemia da COVID-19, nem todas, porém, necessariamente negativas (DANIEL, 2020). Um novo lugar para a cultura digital na vida escolar, um novo modo de compreender o potencial das TDIC para a otimização dos processos educativos e uma nova compreensão de presencialidade e de virtualidade no que tange aos processos pedagógicos parecem se insinuar no horizonte da escola, embora isto não seja uma garantia de que o árduo e complexo trabalho de articulação entre essas dimensões e os processos educativos será bem sucedido. Neste ponto, ergue-se o desafio da construção da escola pós-pandemia.
As estratégias assumidas pelos professores para desempenhar a docência no contexto da pandemia da COVID-19 servem como marcadores da natureza que tomou o ERE na prática desses professores e, a partir da emergência de padrões identificáveis de práticas pedagógicas comuns, a caracterização mesma do ERE no contexto pesquisado. Contudo, tais estratégias permitem desvelar o potencial de desdobramento das TDIC na vida da escola pós-pandemia, identificando lacunas a serem preenchidas pelas políticas de formação e pelo investimento institucional infraestrutural, bem como a capacidade instalada nessas comunidades escolares através do conhecimento produzido pelos docentes no intuito de atender à necessidade imperativa de fazer educação no contexto da pandemia da COVID-19.
Os resultados recolhidos por esta pesquisa permitem afirmar que, embora ainda haja muito a ser feito no sentido de garantir uma efetiva enculturação digital na escola na Bahia, o saldo das aprendizagens dos docentes em relação ao uso das TDIC em sua prática é bastante positivo e cria um caldo de cultura que, se bem aproveitado, poderá acelerar a marcha da enculturação digital da escola.
Por fim, os resultados apresentados demonstram a capacidade e o compromisso do professor com o fazer pedagógico. Um trabalho sistemático de formação que leve a uma releitura das experiências de docência na pandemia com mediação pedagógica digital poderá ser a chave para virar o jogo do desencaixe escola/sociedade na cultura digital, não obstante a necessidade de investimento em infraestrutura tecnológica sem a qual os melhores esforços formativos redundam inócuos na realidade concreta da sala de aula.