Prólogo necessário
Marta e eu nos conhecemos no ano de 2010, na Universidade de Sorocaba (UNISO), no Programa de Pós-Graduação em Educação. Logo que nos encontramos fizemos amizade, pois gostávamos de falar da vida e de uma outra educação, bem diferente da escola apática, voltada apena aos conteúdos dos vestibulares, a qual vivemos como estudantes, pesquisadores, professores... Nossa conexão foi espontânea, fraterna, cheia de sonhos e devires para nossa educação.
Escrevemos artigos sobre memórias da escola, violência, ecosofia e música. Escrevemos um livro chamado “Ensaios do quadro negro: conexões sensíveis, possíveis da educação...”. Andamos pelas ruas de São Paulo, por congressos sobre educação e bancas de pós-graduação. Marta estava sempre calma, não importava o caos que a circundasse. Um jeito sereno de ser e estar no mundo. Poeta, compositora, cantora. Amante dos pássaros, da natureza e dos sons. Educadora ambiental e apaixonada pelo mundo.
O texto em tela está inconcluso. Começamos o diálogo, mas as obrigações do cotidiano foram deixando as ideias para depois, naquela certeza de que haveria outros encontros, outras conversas, outros cafés. Infelizmente, não houve mais encontros e conversas... no aplicativo de mensagens o registro de “precisamos marcar um café” que nunca mais houve.
A incompletude do texto não é suficiente para deixá-lo calado. Que os caminhos do coração sejam semeados. Quem sabe cresçam e floresçam.
À Marta Bastos Catunda, minha gratidão por ter tido a oportunidade de encontrá-la e de nos conectarmos afetivamente nesse mundo tão árido.
Caminhos do coração...
Quem um dia irá dizer que não existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem me irá dizer que não existe razão?
(Renato Russo, 1986)
Vivemos em um país que recusa nossos mais profundos sentimentos e conhecimentos docentes quando nos impinge uma Escola Sem Partido1; onde uma ideologia divide nossos melhores presságios; ou uma conjugação vazia transformando o futuro em um verbo vago, future-se2, tirando de tudo que nos é presente3. Ao invés de garantir a todos e a todas ensino público de qualidade, sempre independentemente de qualquer eleição, tira-se a educação de seu rumo conquistado a duras penas e diminuem-se seus recursos tão necessários à transformação social, tornando o projeto coletivo de educar um projeto individual de captar bens e capital, catapultando-nos de nossa própria realidade, deslocando-nos de nossas prioridades, que deveria ter a vida em primeiro lugar, sempre. Mas não é assim: índices, números, Produto Interno Bruto (o famoso PIB), lucros... tudo isso faz pouco caso da própria humanidade que vive se debatendo contra si mesma, em busca dessas coisas que nada tem a ver com viver.
Paulo Freire (1997) nos fala de amorosidade como algo indispensável ao contexto contemporâneo que estamos vivendo. Amor à vida, ao mundo, à humanidade. Pergunta contundente e ressoante nos deixa como legado: “Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte?” (FREIRE, 1997, p. 75).
Estaria Paulo Freire falando de uma educação que acontece a partir do coração e não do cérebro? Uma educação da emoção e dos afetos ao invés da razão e da cognição? Se for isso mesmo, como imaginamos ser, como é possível promover empatia entre educadores e educandos com o objetivo de educar com o coração? Aliás, porque é importante educar com o coração diante de um mundo desumano?
Desde quando iniciamos nosso trajeto educacional guardamos apreço ou revolta da nossas vivencias no cotidiano da educação, essas vivencias nos constituem enquanto tal4. Quando chegamos à docência carregamos já um bocado de experiência, que não tem espaço, ou um escaninho para nossos mais inquietantes sentimentos. E o que acaba acontecendo é que esses sentimentos permanecem marginalizados das grades curriculares e de nós mesmos; se não nos empenhemos em enfrentá-los, conhecê-los, compreendê-los e decifrá-los, permanecerão esquecidos, de nós mesmos. E ao invés de deixá-los lá, vamos buscá-los, tentando identificar o que é nosso que deixamos de lado, pois já não queremos mais permanecer apáticos diante o mundo insensível que vai tomando conta de tudo.
E acreditamos que já não há mais espaço para apatia. Estamos num mundo em que vale mais elevar o PIB do que a qualidade de vida das pessoas que aqui habitam, ou produzir armamentos com maior poder de fogo que acabar com as guerras, ou mesmo aumentar as notas nos exames que os interesses das pessoas pela aprendizagem. Precisamos dar voz aos sentimentos que foram enclausurados por esse mundo. Alexander Neill (1978), saudoso educador, responsável por fundar no ano de 1921 a escola de Summerhill, havia escrito que tudo o que conseguimos, ao soterrar nossos sentimentos e deixar apenas a racionalidade nos guiar, foi tornar o mundo um “gigante cortiço”. Quando deixamos de escutar os gritos de socorro da fauna e da flora que há séculos padecem com sua exploração? Quando optamos por ignorar mais de 800 milhões de pessoas que agudizam com a fome5?
Felix Guattari (2001), no seu livro “As três ecologias”, nos fala que há uma ecologia relacional que atravessa as relações humanas. Essa ecologia pode servir para melhor compreender o aspecto subjetivo que permeia o mundo das relações humanas que inclui a relação docente e discente também. A ecologia relacional seria uma dessas três ecologias, que nos permite compreender e valorizar o caráter subjetivo das relações humanas na vida contemporânea; ao que parece, relações cada vez mais voláteis, distantes, segregadas pelas telas, pelas máscaras, pela falta de afeto. As redes sociais (que não são sociáveis) estão repletas de pedidos de mais empatia ou mais amor, por favor. Ao que parece, trocamos sentimentos profundos da ecologia racional por hashtags6 e clickbaits7, pois ao mundo falta muita empatia e amor, talvez até mesmo porque tais sentimentos ficam na superfície, naquilo que é palpável, mensurável, concreto...
Por isso, precisamos falar dos sentimentos que tanto comovem, provocam inquietações incomensuráveis, cuidados, descobertas e das intuições que nos aproximam como seres humanos. Como pessoas, como educadores, entendemos que não podemos abrir mão dos caminhos do coração, da sensibilidade, do afeto, do acolhimento e de todos os sentimentos que permeiam o mundo da educação, tantas vezes calados e ocultados sob a justificativa que nada disso serve para ensinar ou aprender. Nossos sofridos corações de educadores que também educam as dores, sofrendo-as, dilacerando-se por elas e tantas vezes enfrentando-as mesmo nas condições mais desfavoráveis, na tarefa cotidiana de educar. E não podemos jamais esquecer da lição fundamental de Paulo Freire: a educação não muda o mundo, muda pessoas; essas, sim, mudam o mundo que precisa ser mudado.
Christopher Lasch (1991) escreveu um livro fundamental sobre esse sentido afetuoso de dar voz e vez aos sentimentos, sob o título “Refúgio num mundo sem coração”. A obra é um tratado sociológico sobre a família, na qual o autor assume que vivemos em um mundo sem coração. Essa busca torna legítima uma educação pelos afetos, evocando um mundo que se afete com nossos mais caros sentimentos, por tanto que entenda a escola como um espaço, um lugar familiar, que desafia cotidianamente nossos sentimentos, junto com eles as atitudes, decisões que nos levam às práticas docentes que espelhem nossas dores, dificuldades para nos relacionarmos com nossos educandos ou discentes, sejam as pedagógicas (de cognição e recognição, ou técnicas) ou sensíveis (éticas, estéticas de expressão) que nos falam ao coração! Será que é errado, por isso não falamos mais sobre o que palpita em nosso coração? Como docentes somos todos e todas, hoje, do “partido do coração partido” (parafraseando o exagerado Cazuza).
Educar com o coração só parece ser possível a partir de práticas pedagógicas sensíveis que aparecem nas relações educador-educandos e provocam empatia; não a comovente hashtag, mas o poderoso impulso de sentir-se como a outra pessoa sente a partir dos referenciais da outra pessoa e não dos nossos (BLOOM, 2014). Daí outra contundente pergunta: a educação estaria promovendo relação ou simplesmente interação entre pessoas na condição de estudantes com uma pessoa na posição de professor? Embora a interação não omita o jogo relacional de um para o outro e vice versa, trata-se mais de uma relação mediada não por afetos ou sentimentos, mas por conteúdos curriculares, quase sempre inertes, listados como importantes, sem de fato levar em conta a quem ou porque são importantes.
Não obstante, a educação parece insistir nesse modelo em que é suficiente retransmitir o conhecimento acumulado e estabelecido, (quase) sempre tratado como algo imutável e permanente, mesmo sendo dinâmico e altamente volátil. Vale ressaltar que, amiúde, encontramos na literatura referências à ideia de “aprendizagem significativa” cunhada nos anos 1960 por David Ausubel; um “[...] processo pelo qual uma nova informação se relaciona com um aspecto relevante da estrutura do conhecimento do indivíduo” (MOREIRA; MASINI, 1982, p. 7). Nesse processo basta, então, localizar esse aspecto relevante já instalado para que as pessoas aprendam coisas novas. Eis a solução mágica encontrada para os problemas de aprendizagem: bastam os professores tornarem o ensino um processo significativo!
E tal ideia (mesmo abordando apenas a estrutura cognitiva!) foi sendo popularizada, tornando-se parte integrante e fundamental do imaginário a respeito da educação escolar. Afinal, algo tão simples e eficaz não tem como dar errado. A partir da ideação de ensinar e aprender significativamente, torna-se possível que todo mundo aprenda tudo. Usando de célebre frase de Nelson Rodrigues, é óbvio ululante que isso não é assim. E como vamos tendo problemas de aprendizagem nas escolas, logo os professores são reconhecidos como os culpados (BICUDO, 2003) e/ou as crianças e os jovens são chamados de preguiçosos e desinteressados com o próprio futuro. Não se identifica o problema da escola como um problema de sistema, que se volta à égide dos exames e ao controle de tudo (horário para entrar, sair, comer, usar o banheiro, brincar etc. etc.). Poucos, como Paulo Freire, são os que consideram que as dificuldades da escola resultam da falta de envolvimento do seu modus operandi com a própria vida. Não obstante, como bem anotou Neill (1976, p. 58): “Frequência às aulas é compulsória. Alunos indiferentes à Matemática são forçados a sentar-se ali e fazer o que podem”.
Como, então, produzir significado em algo que não tem sentido? Espera-se que o professorado tenha a capacidade de fazer com que um coletivo de dezenas de crianças, jovens e/ou adultos se encantem por algo que, na maioria, são indiferentes. Criam-se jogos e brincadeiras para “atrair à atenção” do alunado, novas metodologias de ensinar, dizem. Há que se usar a tecnologia, pois a escola é do século passado, também dizem. Célestin Freinet (1998) havia registrado que, quando começou a lecionar pouco mais de um centenário atrás, não se via como um professor, mas como um “palhaço sem talento”, fazendo estripulias para conseguir algumas migalhas de atenção de seus pequenos estudantes para as coisas que precisa ensiná-los.
Na escola, não somos palhaços. Somos educadores, seguindo a concepção de Rubem Alves (1980), de educar por vocação, amor e esperança, contrariando o tempo e as regras das instituições que exigem que se cumpram créditos, horas, currículos... Como educadores, percebemos que não há fórmula alguma, malabarismo algum, castigo algum... que faça com que as matérias escolares se transformem em conteúdos significativos. Às vezes acontece de os estudantes se encantarem pela Matemática, ou pela Química, ou pela Geografia etc. Talvez por uma inclinação natural, talvez pela forma com que o professor, encantado pela matéria que leciona, fala com paixão sobre esses assuntos que lhes são significativos. Talvez, inclusive, por encontrar utilidade naquilo que estuda como forma de ser no mundo...
Isso nos lembrem o afecto de Spinoza (2009), pois não se trata do sentimento puro e simples, mas daqueles sentimentos que nos afetam e nos movem. Não é um sentir que nos faz padecer, mas um sentir que nos faz ver, nos faz agir, nos faz querer a alegria das descobertas da vida docente gradativamente, cumulativamente. A partir desse afecto é que podemos ir pensando em outra educação, que afetivamente faça sentido.
Para Deleuze (2007), a lógica aí implícita é outra, é a lógica da sensação que não funciona como a razão mais linear como é, por exemplo, a práxis pedagógica tão bem delineada por Paulo Freire. A sensação antes de ser uma lógica permanece em um limbo, sem sentido, uma cintilação, um insight, uma vibração dentro do peito. Em outras palavras o que sentimos não vira um raciocínio de pronto. Ela não é dada de pronto no ato, ela precisa de um sentir/pensar, um sentir/ver, um sentir avaliar, que leva em consideração as diferentes representações sociais e modos relacionais em educação que nos tocam, movem ou sensibilizam.
Quanto mais deixamos de lado os sentimentos que nos afetam optando pelas obrigações que nos são impostas como docentes, mas apáticos permanecemos. Quanto mais apáticos nos tornamos, menos afectados somos pelos desafetos que vão ruindo o planeta. As tragédias, as barbáries, a vida tratada como banalidade... nada disso parece nos abalar, pois se tornaram lugar comum. Isso não parece certo.
Por isso almejamos encontrar meios que nos levem a outra forma de habitar o mundo, o que incitamos a chamar de caminhos do coração, que é uma abordagem qualitativa de tudo que nos afeta. Esses caminhos - no plural - nos levam a outra educação. Uma educação que tem menos a ver com o que e como se ensina, mas com o quanto se consegue sensibilizar a humanidade em cada um, inclusive a própria. Uma educação que se importa com o que se sente, com o que aflige, angustia, mas também com o que move, comove, promove, desenvolve... Uma educação que remove a apatia e desperta paixão. Uma educação que sensibilize, pelos afetos, aquilo que nos afeta.
Parafraseando Renato Russo: há que se encontrar a razão nas coisas feitas pelo coração, e a emoção nas coisas feitas pela razão. Sem isso, somos apenas metade do que podemos ser. E temos visto o que fazer as coisas pela metade tem nos feito. Quem sabe, se tentarmos educar mais com o coração do que com a razão não encontraremos a humanidade que deixamos para trás? Quem sabe, assim, possamos nos ocupar com a vida, antes dos índices que tanto nos (pre)ocupam e organizam a vida social, política e econômica?
Quem sabe...