Torna-se cada vez mais conhecido, no mundo acadêmico constituído pelas ciências humanas e sociais (CHSs), o verdadeiro imbróglio que envolve a revisão ética em nossas pesquisas. Fundamentalmente, na área da educação, visto que outras áreas, como a antropologia, por exemplo, não é de hoje, já estão envolvidas em tamanha confusão, tendo já produzido, inclusive, considerável bibliografia sobre o tema. No entanto, para nós da educação, de certa maneira, isso parece ser uma novidade, principalmente se atentarmos ao fato de que existem, em nosso meio específico, poucas pesquisas e publicações sobre o assunto;1 o que, evidentemente, não significa que a ética não seja uma questão do nosso interesse. Pelo contrário, podemos dizer que todas as nossas pesquisas são, por princípio, sobretudo éticas, na medida em que se debruçam essencialmente sobre o éthos (hábito) propriamente humano. Afinal, é por meio dos processos educacionais que nós, seres humanos, nos tornamos aquilo que somos, produtores e habitantes de um mundo.
O caso é que, mesmo sabendo que desde 1996 existe uma Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a n. 196, que foi exarada com o intuito de regulamentar todas as pesquisas com seres humanos, suplantada em 2012 pela Resolução 466, nunca demos muita atenção a elas, na prática ignoramo-las. Até mesmo porque elas não pareciam ter sido feitas para nós, pois, dificilmente, o nosso modo de ser e, portanto, de pesquisar, conformava-se às suas determinações. Sentíamos que aquilo não era nosso, pois efetivamente não é.
Como já podemos ver, tais resoluções surgiram no âmbito do CNS, vinculado ao Ministério da Saúde, que foi, então, quem criou e mantém o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Não que não tenhamos nada a ver com a saúde. Como diria Platão, e ainda podemos entender muito bem o que isso significa, temos sim, fundamentalmente, com a saúde da psykhé. Cremos, inclusive, que a grande maioria dos educadores está sempre comprometida com a possibilidade de construir um país menos doentio e, portanto, mais justo.
Contudo, pelo próprio imbróglio criado pelo Sistema CEP/Conep, podemos perceber, claramente, que nosso modo de compreender a pesquisa e os processos cognitivos, em suma, a nossa concepção do que seja ciência é bem diferente daquela professada pela área biomédica2 que, além de capitanear a fundação da Conep, procura mantê-la, regiamente, sob seu poder, forçando-nos a ser aquilo que não somos e nem podemos ser: uma ciência positivo-naturalista.3
Se é que desejamos estar à altura da contemporaneidade, em sintonia com o grau de consciência epistemológica, que conquistamos com o passar do tempo, não podemos nos submeter aos preconceitos de um cientificismo que se arroga a capacidade de julgar tanto o mundo quanto a si mesmo, a partir de uma espécie de visão profética,4 que revela, ao fim e ao cabo, “a prevalência de um misto de ignorância e arrogância extremamente penoso”. (DUARTE, 2014, p. 21). Afinal, sabemos que “a idéia de cientificidade comporta um pólo de unidade e um pólo de diversidade, não apresentando uma forma absolutamente geral de auto-regulação dos processos de aquisição dos conhecimentos”. (JAPIASSU, 1982, p. 160). E mais, “diferentemente das ciências da natureza, que nos orientam para uma concepção determinista do mundo, as ciências humanas nos revelam um mundo poético, um mundo feito pelo homem”. (JAPIASSU, 1982, p. 130). Esse é preciso compreender, inclusive, conjuntamente, as suas inerentes indeterminações. É por isso que não podemos nos identificar “pura e simplesmente com uma forma determinada de ciência”. (JAPIASSU, 1982, p. 160) e menos ainda com uma concepção que “faz uma idéia a priori e dogmática do que vem a ser ciência” (JAPIASSU, 1982, p. 127, grifos do autor) e que, mui democraticamente, pretende tolerar as diferenças desde que elas estejam sob sua tutela. Em última instância, como diz Duarte, “a diferença entre as ciências biomédicas e as CHSs é, assim, a espinha dorsal do nosso problema e das eventuais e esperadas soluções”. (DUARTE, 2014, p. 19).
Ao que tudo indica, muito pouco, ou nada ajuda a nos livrar dessa apropriação indébita da nossa área que a Conep, agora, vem estabelecer uma Resolução, a 510, de 7 de abril de 2016, que não suplanta a anterior, a 466, de 2012, sendo-lhe, antes, tão somente um complemento, uma espécie de apêndice, supostamente reconhecendo as nossas idiossincrasias. Isso se dá na medida em que tal resolução parece ser, apenas, uma estratégia política à manutenção do poder. Pois, se a Conep diz, a partir da referida resolução, que nos reconhece, é claro que, em contrapartida, espera que forçosamente a reconheçamos também, já que, havendo uma resolução específica para o nosso caso, não haveria mais motivos para nos queixarmos tanto, restando, consequentemente, nossa plena adesão ao sistema.
Contudo, basta acompanhar o exarado na Resolução 510 para perceber, apesar de todo o palavrório, que diz reconhecer “a liberdade e autonomia de todos os envolvidos no processo de pesquisa, inclusive da liberdade científica e acadêmica” (BRASIL, 2016, p. 45), que a coisa não é bem assim. Até mesmo porque, em caso de dúvidas, ou seja, de questionamentos em relação à referida resolução, prevalecerão os princípios éticos contidos na anterior, a 466, de 2012, conforme o parágrafo único do art. 32 da 510. (BRASIL, 2016). Princípios éticos esses que, ao fim e ao cabo, estão inexoravelmente vinculados aos princípios epistemológicos oriundos da área biomédica, como não poderia deixar de ser. Não há como fazer uma distinção radical entre o horizonte ético e o horizonte epistemológico, sendo tais horizontes como duas faces da mesma moeda; afinal de contas, agimos sempre em consonância com nosso conhecimento do mundo. Fica claro, portanto, que a Conep nos reconhece desde que nos submetamos aos seus princípios eks arkhés (desde o princípio).
É por essas e outras que os “pesquisadores das ciências humanas e sociais (CHS) vêm afirmando a inadequação das normas sobre ética em pesquisa, inspiradas nas ciências biomédicas e aplicadas indevidamente em outros domínios”. (GUERRIERO; BOSI, 2015, p. 2.616). Tal atitude tem nos causado enormes dificuldades, decorrendo daí a “humilhante e desastrosa experiência dos pesquisadores das CHSs de verem seus projetos julgados negativamente nos CEPs em nome de padrões de cientificidade alheios à sua formação e competência”. (DUARTE, 2014, p. 14).
De onde a área biomédica julga poder justificar essa sua atitude de querer colonizar todas as áreas do saber, tomando para si aquilo que pertence ao outro? Por que, em se tratando de ética, a Conep julga que deve manter a “hegemonia biomédica, positivista, sobre as demais vertentes de pesquisa”? (GUERRIERO; BOSI, 2015, p. 2.620). Haverá um fundamento para tanto?
Ora, é claro que, como boa colonizadora, a biomedicina bem que poderia alegar que, tendo sido a primeira a conquistar tal território, tem todo o direito de querer dominá-lo. Esquecendo-se, porém, como sói acontecer nesses casos, que o referido território há muito já era habitado. O caso é que, “nas CHSs não se impôs, compreensivelmente, a mesma formalização dos procedimentos éticos, por ser intrínseca à sua prática a reflexividade sobre a condução das pesquisas”. (DUARTE, 2015, p. 34, grifos do autor).5 Afinal, a ética, não de hoje, é o campo próprio desde o qual as CHSs se organizam, não sendo por mero acaso que, dentre tantas possibilidades de nomeá-la, quando da sua emersão, sciences morales foi um dos nomes escolhidos.6 Já a área biomédica parece ter descoberto a ética, e, ao que tudo indica, se deslumbrado com sua suposta descoberta, há não muito tempo, mostrando, inclusive, pela maneira como vem agindo, um profundo desconhecimento sobre a questão justamente porque as questões éticas revelaram-se extrínsecas às suas práticas,7 fundamentalmente, durante a Segunda Guerra Mundial, mas não apenas.8
Para corroborar o dito, como bem observam Guerriero e Minayo (2013), basta olhar os documentos internacionais nos quais o CNS se inspirou quando começou a regulamentar a pesquisa científica no Brasil, como, por exemplo, o Código de Nuremberg. (GUERRIERO; MINAYO, 2013). É por essas e outras que, sempre que tal modelo de racionalidade, compartilhado pela área biomédica, “se manifesta sobre questões éticas e políticas, só faz aumentar nossas ansiedades e provocar novas divergências” (JAPIASSU, 1996, p. 64), exatamente como está acontecendo no caso presente da revisão ética nas pesquisas no Brasil.
Contudo, é claro que ter saído na frente para burocratizar os procedimentos éticos nas pesquisas que envolvem seres humanos não fundamenta direito algum de se querer universalizar suas demandas específicas, impondo aos outros aquilo que, mal e parcamente, possa servir para si mesmo. Assim, para tentarmos minimamente compreender o porquê dessa presunção da área biomédica – tentar impor seus modos de ser a outras áreas – visto que ela não a engendra ex nihilo, possuindo lá suas razões para tanto, talvez nos ajude um pouco se olharmos à própria história da epistéme, quando, então, poderemos averiguar que tal presunção é, no mínimo, extemporânea, e que, portanto, já não nos serve mais, servindo, antes, apenas e tão somente, à jogatina política inerente à disputa e à manutenção de um poder.
Ciência e naturalismo
Foi com o surgimento da filosofia na Grécia antiga que o ser humano passou a desenvolver um tipo de conhecimento que confluiria, decisivamente, para a estruturação e a consolidação do mundo ocidental, a epistéme, ou, dito em português, o conhecimento científico. Antes mesmo de possuírem propriamente o nome de filósofos,9 foi nas colônias gregas da Ásia Menor, no começo do século VI a.C., que uma série de homens, como Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito de Éfeso, dentre outros, deu originariamente, a forma ao que hoje, mutatis mutandis, é designado pelo nome de ciência. Fundamentalmente, uma explicação interna do mundo, ou seja, tais homens buscavam explicar o mundo “a partir de dentro, em termos das próprias características que o constituem, sem apelar para intervenções arbitrárias oriundas de fora” (BARNES, 1997, p. 19), como faziam os mitos até então.
É dentro desse contexto que buscavam determinar qual a arkhé que sustentava a persistência da physis, ou seja, qual era o princípio material que ensejava a constituição constante da materialidade do mundo fenomênico. Por isso, Aristóteles chamava esses primeiros filósofos, que geralmente conhecemos pela alcunha de pré-socráticos, de physiológoi (ARISTÓTELES, 1982) ou physikói (ARISTÓTELES, 1982; 1999), em nosso idioma, fisiólogos ou físicos. Dessa maneira, a ciência revela, desde seu princípio, sua vocação naturalista e, não esqueçamos, sua relação com a matemática também. Visto que, para não falarmos dos pitagóricos, muitos desses primeiros filósofos mantinham uma relação estreita com a matemática, como, por exemplo, já o primeiro dentre eles, Tales de Mileto.10
Para o nosso presente estudo interessa, sobretudo, percebermos que tanto quanto este primeiro modelo científico, inaugurado pelos physikói, que certamente fez escola no decorrer da história, a medicina, ainda hoje, também se debruça sobre os corpos a partir da materialidade que lhes é própria, havendo, assim, um compartilhamento dos seus pressupostos epistemológicos. Não sendo apenas por uma feliz coincidência que, em inglês, uma das palavras por meio das quais podemos designar o profissional da medicina é physician e, mesmo em português, outrora o médico também era chamado de fisico, porque, vejam só, se considerava que “deve ser perfeito, e consumado em o conhecimento da natureza, começando a sua arte, onde a Fysica remata a sua”. (VITERBO, 1865, p. 330).
Assim, ainda hoje, a medicina costuma ser vista como uma ciência natural, pois, ao fim e ao cabo, as ciências biomédicas “consideram que os seres humanos devem ser conhecidos no mesmo registro do resto da natureza ou da realidade. Por serem matéria como todo o restante do universo, devem ter todas as características e manifestações conhecidas pelo viés da materialidade”. (DUARTE, 2014, p. 21). Ao que tudo indica, isso conflui sobremaneira para a visão altaneira que possuem de si mesmas, a partir das possibilidades de calculabilidade da matéria, acabando por acreditar fielmente que suas pesquisas proporcionam “possibilidades concretas de responder a incertezas”. (BRASIL, 2012, p. 60). E, assim, ao extremo, parecem confundir “a eficácia de um método (científico) com a aptidão para enunciar regras morais” (JAPIASSU, 1996, p. 11), que, dificilmente, podem ser apreendidas por intermédio de um cálculo more geometrico.
Tal presunção de certitudo das ciências fisicistas sempre impressionou o ser humano, transformando-as, no transcorrer da história, no paradigma hegemônico do conhecimento científico, diante do qual, esquecendo a lição aristotélica,11 não poucas vezes, outros tipos de conhecimento sentiram-se inferiores, almejando a mesma certeza auferida pelas referidas ciências, inclusive as humanas.12 Portanto, se tem razão Japiassu ao dizer que as ciências humanas, “uma vez separando-se da mãe filosofia, não estavam habituadas a viver sem tutela” (JAPIASSU, 1982, p. 97), pelo que passaram a acreditar que poderiam “introduzir nelas os métodos precisos e quantitativos das ciências naturais” (JAPIASSU, 1982, p. 247), também é certo que, por isso mesmo, historicamente, somos nós mesmos os responsáveis por nos encontrar nessa situação de menoridade, que a questão da revisão ética na pesquisa científica nos revela. Até mesmo porque pode ser o caso, que muitos pesquisadores na área da educação ainda se apeguem, de uma maneira ou de outra, à segurança tutelar oriunda de um modelo científico que já não nos serve mais, principalmente aqueles que ainda estão vinculados ao projeto da modernidade, para os quais o seu modelo científico é a “forma superior do conhecimento” (PINTO, 1969, p. 63), averiguável por uma “ciência real e positiva”. (MARX; ENGELS, 2007, p. 49).
Aliás, é na modernidade, logo no seu início, que podemos encontrar aquilo que pode ser o exemplo paradigmático justificador das pretensões da área biomédica em, ainda hoje, ou melhor, sobretudo hoje, querer regulamentar a revisão ética de todas as pesquisas feitas no nosso País. É o pensamento de Descartes, aquele que é considerado o precursor da dita modernidade, que nos faz levantar essa suspeita. Inclusive, confirmando tal suspeita, ao que tudo indica, ainda hoje, o pensamento do filósofo parece ser aquele que está na base da nossa medicina. Pelo menos é isso que afirmam alguns médicos não comprometidos com o paradigma hegemônico, pois, ao nomearem Descartes, afirmam:
O ensino médico vem sofrendo e sofre as consequências dessa visão dualista, mecanicista e reducionista. E ainda que tal fato seja negado pelos médicos em geral, professores ou não, a sua realidade permeia os planos de ensino, os currículos e a própria prática médica. (LOBATO; LOBATO, 2011, p. 208).
Contudo, não é só isso, pois tais médicos e pesquisadores da área ainda afirmam a necessidade de superar o modelo cartesiano, para que a medicina possa ampliar não apenas sua visão de mundo, mas, sobretudo, sua visão daquele que, inserido no mundo, é o responsável pela sua produção, ou seja, nós mesmos, os seres humanos. Escutando aquilo que dizem, o modelo de ciência hegemônico entre os médicos não é capaz de abarcar o éthos propriamente humano. Ouçamo-los: “O ensino médico, livre assim das amarras da conceituação cartesiana, levaria à formação de profissionais com uma visão mais integral do homem doente, médicos menos cientistas, mas, sem dúvida, muito mais humanos”. (LOBATO; LOBATO, 2011, p. 208).
Vejamos, então, no que Descartes pode nos ajudar a compreender as origens das pretensões dos nossos antagonistas, aptos que se acham para controlar não apenas seus domínios, mas também o espaço pertencente ao outro. Para tanto, é preciso alertar que não se pretende fazer, aqui, um estudo propriamente dito da filosofia de Descartes, que já, ao seu tempo, percebia os mal-entendidos aos quais o seu pensamento poderia levar.13 Até mesmo porque aquilo que se coloca sob o epíteto de cartesiano pode muito bem ter pouco a ver com aquilo que o filósofo realmente nos deixou,14 dependendo muito dos textos que resolvemos privilegiar e daqueles que negligenciamos, inclusive porque, pelo fato de ter deixado sua obra, podemos fazer dela muito mais, ou até mesmo menos, do que ela própria pode fazer de si mesma.15 Dessa maneira, queremos apenas mostrar de onde é que a área biomédica pode ter retirado as possibilidades de suas pretensões, pois, talvez, ela própria, conscientemente, não saiba.
Descartes e o sistema CEP/Conep
Lá no começo da modernidade, encontramos Descartes buscando atingir com a filosofia o mesmo grau de exatidão obtido pelo conhecimento oriundo da matemática e da física. Para o filósofo, não se encontrava na filosofia “ainda uma só coisa sobre a qual não se pudesse disputar” (DESCARTES, 1973a, p. 40), sendo, assim, extremamente duvidosa – o que, aos seus olhos, parecia ser um tanto quanto constrangedor. Afinal, diante da clarividência matemática, “nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito”. (DESCARTES, 1973a, p. 44). É por isso que Descartes firma seu propósito: “não acolher coisa alguma por verdadeira que não me parecesse mais clara e mais certa do que me haviam parecido anteriormente as demonstrações dos geômetras”. (DESCARTES, 1973a, p. 59).
É tendo isso em vista que o filósofo procura uma fundamentação última da realidade, da qual não possa restar dúvida alguma. A possibilidade do seu intento retira da própria exatidão da lógica, da geometria e da álgebra, pois não seria possível que tais ciências, tão sólidas, não possuíssem um fundamento tão certo e seguro quanto o conhecimento oriundo delas mesmas – fundamento que só a filosofia poderia fornecer.16 E, para tanto, seria preciso achar o caminho (methodós) adequado para se chegar a tal fundamento. Para Descartes, “vale mais nunca pensar em procurar a verdade de alguma coisa que fazê-lo sem método”. (DESCARTES, 1985, p. 23). Assim, se por meio da eficácia do método tal fundamento fosse cognoscível, como parecem indicar as três ciências citadas, todo o resto do mundo seria, dedutivamente,17 passível do mesmo conhecimento também,18 “posto que, uma vez estabelecidos os princípios, basta continuar a raciocinar por ordem”. (GRANGER, 1973, p. 13).
Dessa maneira, Descartes não apenas toma as matemáticas como modelo à constituição do seu método, como também, antes de utilizá-lo, para resolver a questão filosófica (metafísica) da fundamentação última da realidade, testa-o na resolução de problemas oriundos tanto da geometria quanto da álgebra e, pelo que nos diz, com pleno sucesso.19 Diante do qual, apoiado nessa sua metodologia matemática, sente-se seguro o suficiente para chegar não apenas à certeza de si mesmo, mas também à de Deus e, assim, à indubitável certeza de que o mundo fenomênico é tão real quanto o divino.20 Provada a existência do totalmente outro, torna-se fácil a dedução das alteridades particulares que constituem o mundo no qual o próprio eu existe como um fato.21
Dessa forma, se podemos reconhecer o filósofo como o grande metafísico que certamente foi, contudo, não podemos reduzir sua filosofia à metafísica. Para Descartes, se a questão metafísica, ou seja, a questão do fundamento último da realidade é de vital importância para sua filosofia, também é certo que ela não se limita a tal questão, sendo, antes, o primeiro passo à efetivação de todas as outras ciências que vão constituir a sabedoria propriamente filosófica. Sabedoria que está, inexoravelmente, ligada às coisas que interessam sobretudo à prática da vida.22 Podemos dizer, portanto, que, se o filósofo busca a determinação dos princípios ontológicos da realidade, é para, a partir deles, fundamentar uma filosofia voltada especialmente às questões de ordem prática. Antes de propagar um racionalismo meramente especulativo, do qual, inclusive, é um crítico rigoroso,23 a filosofia de Descartes, com todas as ciências que engloba, procura, acima de tudo, “o bem geral de todos os homens”. (DESCARTES, 1973a, p. 71). Para o filósofo, cujo pensamento confluiu de maneira decisiva para instaurar nova mentalidade entre nós, superando, assim, a tradicional escolástica:
É possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza. (DESCARTES, 1973a, p. 71).
Podemos afirmar, portanto, que o alvo do filósofo “é construir uma doutrina que baste à prática da vida terrestre e, como ele o afirma em muitas passagens, que nos permita atingir a felicidade”. (GRANGER, 1973, p. 13). Assim sendo, para Descartes “filosofar bem consiste, pois, em efetuar um percurso que parte do fundamental (a metafísica) e vai até o útil” (MOREAU, 2003, p. XXI). Podemos fazer uma imagem de Descartes bem diferente daquela que Aristófanes fazia dos homens que se dedicavam à filosofia em seu tempo, vivendo suspensos nas nuvens (ARISTÓFANES, 2000), ou daquela que Platão nos conta jocosamente no seu Teeteto, do filósofo que de tanto olhar para as estrelas acaba caindo em um buraco (PLATÃO, 2001), ou ainda, até mesmo daquela oriunda de Marx, para quem, até o seu tempo, os filósofos tinham apenas interpretado o mundo, cada qual a seu modo, sem a preocupação de transformá-lo. (MARX; ENGELS, 2007). Pois é certo que, pelo que já foi possível ver, a filosofia de Descartes “visava a fins práticos” (TEIXEIRA, 1990, p. 69) que pudessem, efetivamente, operar na produção material da existência humana. Assim sendo, podemos dizer que “sua reflexão filosófica e a construção toda do seu sistema foram como que afetadas por este interesse prático e utilitário, que era sem dúvida uma feição de seu temperamento, da sua maneira de ser e sentir as coisas”. (TEIXEIRA, 1990, p. 69). Em última instância, a sagesse do nosso filósofo “une indissociavelmente teoria e prática” (MOREAU, 2003, p. XXI), não buscando algo assim como o conhecimento apenas pelo conhecimento, como se esse fosse uma espécie de fim em si mesmo, mas antes, colher seus frutos, evidentemente, para com eles se alimentar.
Para corroborar o dito, é o próprio Descartes que nos apresenta sua filosofia como uma árvore: “Assim, toda a Filosofia é como uma árvore cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física e os galhos que saem do tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a Medicina, a Mecânica e a Moral”. (DESCARTES, 2003, p. 21). Entretanto, não é só isso, pois o filósofo ainda acrescenta: “Ora, como não é das raízes que se colhem os frutos, mas somente das extremidades de seus galhos, assim a principal utilidade da Filosofia depende de suas partes que só podem ser aprendidas por último”. (DESCARTES, 2003, p. 22). Como podemos ver, para Descartes a filosofia compõe uma unidade, cujas partes estão inexoravelmente interligadas, “unidas entre si e dependentes umas das outras” (DESCARTES, 1985, p. 13), desde suas raízes até a ponta dos seus galhos, de onde se colhem os frutos, quando, então, o conhecimento se volta inteiramente às ciências em prol da vida humana. Por isso, “podemos seguir o raciocínio de que sua obra médica e moral se complementam e se adaptam coerentemente ao sistema”. (PIMENTA, 2008, p. 14). A nós interessa, especialmente, a interligação estabelecida entre a medicina e a moral, pela qual o sistema CEP/Conep parece querer justificar a legitimidade dos seus atos.
Vejamos. Para Descartes, o ser humano é um composto de corpo e alma, e as substâncias encontram-se unidas no ser vivente. No entanto, assim como para compreender um composto químico é preciso distinguir os elementos que o compõem, para compreender o ser humano também é preciso distinguir seus elementos, compreendendo-os naquilo que eles têm de distintos, para, então, depois, compreendê-los em sua união.24 Não esqueçamos que essa divisão ou análise é a segunda regra do método.25
É tendo tal distinção em vista, bem como o papel que a substância corpórea tem em sua correlação com a substância pensante, que o filósofo busca desenvolver, em correlação com a ética, sua medicina, na qual, ao que tudo indica, depositava grandes esperanças, visto que considera a conservação da saúde:
O primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar um meio que torne comumente os homens mais avisados e mais hábeis do que foram até aqui, creio que é na Medicina que se deve procurá-lo. (DESCARTES, 1973a, p. 71).
Essa passagem do Discurso do método deixa em evidência a relação entre ética e medicina. Afinal, como ser plenamente feliz, livre ou, ainda, efetivar a dimensão da vontade, se nossa alma estiver unida a um corpo irremediavelmente enfermo? Certamente é por isso que Descartes critica “aqueles que desenvolvem uma Moral independentemente de uma medicina” (FRAGA-SILVEIRA, 1985, p. 41), pois “a alma não pode engendrar movimento algum no corpo, a não ser que todos os órgãos corporais, requeridos para esse movimento, estejam bem-dispostos”. (DESCARTES, 1996, p. 129, tradução nossa – A. T. XI). Assim, em última instância, para o filósofo, “uma moral não pode ser vista sem uma medicina”. (FRAGA-SILVEIRA, 1985, p. 42).
Tal lição cartesiana, que atrela de maneira inexorável a ética à medicina e, portanto, aos ideais de cientificidade de sua física-matemática, quer o filósofo tenha, de fato, definitivamente, a realizado ou não,26 ainda que realmente tenha pensado em algum momento de sua vida nessa possibilidade, ao que tudo indica, foi assumida plenamente pelos membros da área biomédica no Brasil, fundamentalmente por aqueles que detêm o poder do sistema CEP/Conep. Como já tivemos oportunidade de alertar, os meandros hermenêuticos que levam às possíveis interpretações da obra de um autor, certamente, dependem de vários fatores, sendo um deles, evidentemente, os interesses políticos inerentes a tais processos interpretativos. Lembrando sempre que, aqui, não nos interessa saber, propriamente, o que Descartes pensou (ou não), mas, antes, desvelar as bases filosóficas, no caso, cartesianas, sobre as quais a área biomédica insiste em manter suas prerrogativas em relação a questões referentes à ética na pesquisa científica em nosso país, sufocando as idiossincrasias do pensamento das CHSs, pois a biomedicina, respaldada pelo Estado, possui fundamentos cartesianos, dos quais não consegue, ou não quer, se desvencilhar, apesar dos tempos, é algo amplamente conhecido por todos nós. (LOBATO; LOBATO, 2011).27
Dessa maneira, se a medicina de Descartes, ao considerar o corpo humano como uma máquina,28 é essencialmente mecanicista, não pode nos causar espanto que o sistema CEP/Conep, cartesianamente, pareça acreditar que as questões da ética na pesquisa científica se resolvam também mecanicamente pelo preenchimento correto de um formulário cujas peças já se encontram cada qual no seu devido lugar e pronto, ratificando, assim, a ligação estabelecida por Descartes entre mecânica, medicina e moral.
Dúvidas finais
Ainda que tal concepção cartesiano-mecanicista, mantendo sua hegemonia, possa funcionar nos campos axiomatizados pelos conhecimentos oriundos da área biomédica, o que, ao que tudo indica, na contemporaneidade, já não é mais tão evidente assim,29 restam muitas dúvidas a respeito da adequação de tal concepção a toda e qualquer pesquisa, mormente àquelas realizadas pelas CHSs.
Ora, mas se a dúvida permanece entre nós, deveríamos exigir que os cartesianos da área biomédica fossem, pelo menos, coerentes com a filosofia que os inspira, não mutilando tanto assim o pensamento de Descartes. Não esqueçamos que, para o filósofo, a dúvida é primordial para o estabelecimento do seu método, pois é ela que servirá de padrão para distinguir o falso do verdadeiro. Na busca da verdade, cartesianamente, devemos sempre descartar aquelas proposições sobre as quais possa restar a mínima dúvida, acolhendo apenas as que se mostrarem, indubitavelmente, claras e evidentes. O que, evidentemente, não é o que acontece com a questão da ética na pesquisa em nosso país.
Desse modo, ainda que possamos identificar um tom nitidamente cartesiano que poderia ser tomando como fundamento às pretensões éticas da área biomédica, como podemos ver, esse não é o caso. A dita área, ainda que possa se servir de Descartes conforme suas conveniências, ao que tudo indica, não compreendeu nem ao menos o primeiro passo do método estabelecido pelo filósofo, que consiste em
jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. (DESCARTES, 1973a, p. 45).
Contudo, é bem provável que alguém ainda possa alegar que a área biomédica, em momento algum, duvida da legitimidade das suas pretensões, considerando-as, antes, uma verdade absoluta. Mas então, de fato, nada podemos fazer a não ser apontar veementemente para o modo precipitado com o qual pretende impor sua vontade, tal qual uma criança mimada que procura, a todo custo, submeter os outros aos seus caprichos,30 beirando, assim, a arrogância.
Isso posto, podemos concluir que, para nós das CHSs, nem é preciso recorrer a algo exterior às estruturas do pensamento da área biomédica para mostrar suas contradições, mas apenas alertar que a dita área está em contradição com seus próprios fundamentos. Com o que, é claro e evidente que suas pretensões não possuem fundamento algum, mantendo-se, antes, pura e simplesmente, no âmbito político em vista da ganância pelo poder – o que, do ponto de vista epistemológico e, sobretudo ético, é algo extremamente duvidoso.