“Não existe cultura, nem vínculo social, sem um princípio de hospitalidade. Este comanda, faz mesmo desejar uma acolhida sem reserva e sem cálculo, uma exposição sem limite àquele que chega.”
(Jacques Derrida)
A questão dos refugiados não compõe, de forma aleatória, a pauta do debate sobre a crise político-contemporânea; não é mais um entre outros pontos de pauta. Quando se discute o tema no contexto do impasse político global, a questão dos refugiados aprofunda e centraliza o debate político, muito provavelmente, porque, como nenhum outro ponto, explicita o aspecto ético da dita crise. O refugiado, que é hoje a figura mais emblemática da alteridade, é a própria concretude ética do conceito de política, a sua negatividade dialética. Tratar o tema como problema técnico pretensamente resolvível, na forma de novos acordos de tolerância e da velha estratégia policial, que inclui a criminalização da hospitalidade, como na França, ou do socorro às vítimas, como na Itália, é o mesmo que suspender a questão e recusar o debate, e, como consequência, compromete-se a própria ideia de política, se entendemos por política a abertura do espaço discursivo em prol da pluralidade humana, como pensa Hannah Arendt. E aqui não se pretende pôr em pauta as razões,1 em geral bélicas, que respondem atualmente pelo absurdo incremento no volume de pessoas forçado a se deslocar. O que se pretende é levar adiante a ideia de política como pluralidade.2 A questão dos refugiados não pode ser tratada de forma circunstancial. Se quisermos falar em crise, é preciso admitir uma crise permanente.
Se a política é o esforço coletivo em prol da pluralidade, então não é possível conceber a política sem o elemento problemático da alteridade. E, aqui, alteridade tem o sentido levinasiano de uma infinitude ética: a condição de ser outro é a de uma estranheza que se produz e se reproduz constantemente, a condição de frustrar a expectativa racionalista, de maneira tal que a sua compreensão, em estruturas intelectuais, exige um processo permanente de ruptura; é outro tudo o que escapa da síntese conceitual, tudo o que não pode ser resolvido numa equação dialética. Uma racionalidade estritamente intelectual, ou teórica, que pretendesse resolver a questão da alteridade seria pura violência. Por isso, a questão assume, em Levinas, a dimensão de uma radicalidade ética. Se a alteridade como condição da ética desafia constantemente nossas estruturas formais de entendimento, se a produção de sua diferença, ou de sua negatividade, antecede e extrapola suas categorias conceituais, a ética só pode ser pensada como condição mesma do pensamento, ou, assumindo mais ainda sua radicalidade, a incondição do pensamento. Se a política é a condição da pluralidade, então ela comportará a mesma dimensão de radicalidade da ética.
Assumindo uma expressão de Hannah Arendt, a alteridade pode ser interpretada como o influxo permanente3 de uma incondicionalidade ética que investe a política de condicionalidade em prol da pluralidade. Essa ideia leva, necessariamente, a política a se converter em campo de problematização permanente, pois a pluralidade tende a não ter limites, e a condicionalidade é justamente a imposição de limites. De maneira que, para dar conta da tendência crescente de pluralidade social, a política deverá desacomodar suas condições e expandir seus limites. Ou a política torna a revisão de suas condições uma constante, que deverá agir em prol da pluralidade, ou ela vai precarizar seu próprio significado, podendo torná-lo caricato e falso.
Se a dimensão formal-material da política passa pela pluralidade, a inteligência política, a autêntica habilidade racional da política, será o arranjo das condições, não só para não interromper, mas para dignificar o influxo permanente das alteridades. O entendimento da política não pode ser o de se sentir ameaçada pela pluralidade ética, como a dos refugiados de toda procedência, mas o de se sentir desafiada por essa inevitável e constante demanda. Se a política se sente desafiada e não ameaçada em face da pluralidade, é porque ela respeita e confirma algo fundamental de sua identidade formal-material.
Admitir que o drama dos refugiados exige mais tolerância, ou que a extensão da tolerância vai resolver o conflito é, no fundo, negar a dimensão problemática da política. Outra lógica precisa entrar em operação, pois a tolerância jamais deixará de conviver com a intolerância, de tal modo que uma política baseada no paradigma da tolerância permanecerá assombrada pela ameaça de conflito belicoso. Não se tolera senão o que, no fundo, permanece intolerável. A tolerância embrutece o conceito de política, pois o que consegue fazer é, no máximo, afrouxar sua brutalidade ou retardar um pouco mais seu efeito, porque não consegue admitir que o influxo de alteridades seja permanente, e não vai estancar nem estabilizar pelo fato de que o cinturão da tolerância aumentou. Se o rearranjo das condições políticas redunda em mais tolerância, se não há outra natureza de resposta na mobilização da racionalidade política, nenhum esforço é feito para desativar o dispositivo belicoso, a tolerância vai apenas adiar o recurso à guerra, mas para isso terá que mobilizar todo um complexo de razões que, no fim das contas, servirá para mascarar a intolerância que é a verdade mais elementar da política vista como arte de fazer a guerra. Nessa arte, a competência consistirá em tornar “moralmente digna” a pura violência e a indignidade ética. Em síntese, se a pluralidade é um estorvo e não a condição da política, a habilidade da inteligência política será a dissimulação de suas verdadeiras intenções, a criação de si mesma como pura ideologia.
E quando falamos de influxo permanente, é preciso compreender que a produção e reprodução de alteridades é, antes de mais nada, uma condição da vida, de seu aspecto biológico mesmo. A categoria mais importante do pensamento político arendtiano, a natalidade, esclarece esse fato como nenhuma outra: é porque pessoas estão nascendo constantemente que devemos nos ocupar da construção do mundo, da permanência das coisas, como quem cuida de uma casa comum, e o fato de que pessoas nascem significa a constante inscrição da imponderabilidade no mundo, em síntese, a pluralidade, a mesma que indica o sentido de nossa atividade política. O que estaria para Arendt no fundo do significado de político é o que se encontra na natalidade, a capacidade de gerar o improvável, o inesperado, pois esse é o significado de alteridade. Ocupar-se de política é mostrar a capacidade de se distinguir pela via do discurso, ou ainda, de ser capaz de produzir alteridade. De certa maneira, é como nascer, no sentido de iniciar algo novo, um tempo novo. Isso significa investir na pluralidade ou produzir algo em prol de garantir pluralidade.
Nesse sentido, a política só pode ser uma permanente tensão: de um lado, o que lhe dá significado é sua dimensão ética, a da pluralidade, a da alteridade; de outro, ela é pragmática, já que o que lhe dá significado é a criação concreta das condições. Ela é permanentemente tensa e mal resolvida porque tem que responder ao Como fazer para garantir a pluralidade? E é evidente que em sendo a própria pluralidade a condição da política, a resposta está condenada a poder variar constantemente. O mundo sempre pode ser melhor. O influxo permanente de alteridade, pela via da arena discursiva, é a condição da ação política, e a primeira consequência dessa ação é justamente incrementar a pluralidade, ou seja, tensionar e desacomodar as próprias condições. Porque, o que se pressupõe com a pluralidade política, é a produção constante de alteridade, um processo, portanto, interminável.
Para que as coisas tenham continuidade, para que o mundo permaneça, é preciso garantir natalidade, nos sentidos estrito e lato, no sentido elementar da condição biológica, ou seja, no primeiro sentido da condição orgânica da sociedade, e no sentido da possibilidade de romper as fronteiras que definem quem são os de dentro e quem são os de fora. É evidente que a natalidade deve ser controlada, que o influxo de “recém-chegados”, como diz Arendt, é uma questão que deve entrar nos cálculos de qualquer organização social. Mas é também evidente que um mundo que não espera por mais ninguém é um mundo que começa a desaparecer.
Numa velha fórmula do judaísmo, recolhida dos estudos talmúdicos de Levinas (2002), a incondição da natalidade poderia ainda ser interpretada como aquilo que não tem começo nem fim, e que, portanto, está sempre começando de novo, uma intuição da própria temporalidade, se quisermos. Na filosofia de Levinas, a ideia de infinito é o dispositivo fundamental da ética e, consequentemente, da política. O filósofo, em geral, faz referência ao pensamento cartesiano, precisamente ao esquema da III meditação em que Descartes prova a existência de Deus. Levinas se apropria formalmente, como é sabido, do argumento cartesiano para fundamentar sua ética da alteridade. O infinito, que não tem começo nem fim, ultrapassa sua ideia, portanto, não é da ordem do pensamento teorético ou do saber, mas condiciona, inclusive, a possibilidade de conhecimento: é porque o infinito transcende sua ideia que a ética é a filosofia primeira, ou seja, a condição de toda filosofia. Mas, no comentário talmúdico,4 a questão do infinito parece revelar melhor sua dimensão ético-política. Acolher a ideia de infinito não significa possuir um pensamento coerente sobre o infinito, isso seria impossível, uma vez que o conteúdo ultrapassa a ideia, mas significa renovar interminavelmente e, de certa maneira, impossivelmente, a tarefa ético-política da responsabilidade. Essa tarefa pela qual significamos nossa vida ética e politicamente é uma forma de nascer de novo e, nesse sentido exato, de incrementar a pluralidade do mundo.5
O que não tem começo nem fim é incondicional, nenhum fundamento suporta. Mas é justamente isto (oferecer fundamento) o que é cobrado primeiramente da política. Portanto, a política deve carregar o fardo de sua própria equivocidade: dar aquilo que ela não pode oferecer, ou como diria Derrida, realizar o impossível. Isso não é chamar o político de mentiroso, a não ser que se caia na ingenuidade de querer apresentar a verdade da política. O que se quer dizer com a expressão derridiana realizar o impossível (DERRIDA, 2004, p. 315) é algo que deve denotar o caráter surpreendente do gesto político, o caráter inesperado. Portanto, estamos novamente convergindo com as ideias da filosofia política de Hannah Arendt. O que se espera da ação política é da ordem do extraordinário, do milagroso.6 Parafraseando Derrida, diríamos: se algo como iniciar algo novo existe, se algo como uma iniciativa existe, isso só pode estar além do horizonte do possível, exatamente porque se for da ordem do possível, é algo previsível e, portanto, não pode merecer o caráter de uma autêntica novidade. Nem verdade, nem mentira, em política, mais do que em qualquer outra forma discursiva, é preciso admitir a ficcionalidade do próprio discurso. Isso seria uma forma de devolver à política sua dimensão criadora e produtiva.
Criar as condições de pluralidade é comprometer-se a não interromper o influxo de pluralidade, o que não significa que não se possa e não se deva controlar, calcular, negociar a produção de alteridades, a admissão, por assim dizer, dos recém-chegados, porque a ética, no sentido aqui defendido, tem uma exigência infinita, não quer dizer que, no plano dos acontecimentos, nos variados contextos históricos de nossas decisões, possamos alcançar essa demanda. E controlar, calcular, negociar não precisam significar, necessariamente, interromper, interditar, impedir, mas devem significar o horizonte da tarefa ética, da demanda ética interminável da política. A questão reproduz o mesmo dilema que configura a diferença entre Justiça e Direito, conforme Derrida apresenta em seu Força de lei (2007). Nos termos derridianos, a Justiça é essencialmente indesconstruível. Ele chega a dizer que ela é a própria desconstrução, e exatamente porque o Direito existe em função da Justiça, ele só pode ser desconstruível. Se o Direito não puder ser feito e refeito constantemente, não há como falar em Justiça através das leis. “O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável.”7 (DERRIDA, 2007, p. 30). Segundo Derrida, o fato de o direito dever ser desconstruído não atesta nenhum fracasso ou infelicidade, justo o contrário; o que se deve reconhecer, aqui, é “a chance política de todo progresso histórico.” (DERRIDA, 2007, p. 26). Toda equivocidade atribuída à política recai no Direito, pois lhe é exigido que seja capaz de calcular o incalculável. É exigido do Direito que estabeleça as condições da Justiça, que é infinita e, portanto, incondicional, porque o mundo não é uma pluralidade estável, mas em estado crescente, no mínimo pelo fato de que continuamos nos reproduzindo, porque as novas gerações ainda continuam substituindo as velhas.
Mas é evidente que o influxo permanece independentemente de continuarem nascendo pessoas; pelo fato de que pessoas se deslocam e irrompem em lugares novos, exatamente como pessoas novas que acabam de nascer. A ideia que se quer defender é a de que estrangeiros também realizam a imponderabilidade que é a marca do nascituro. A estrangeiridade sinaliza aquilo que a natalidade, segundo Arendt, significa para a condição política. Dessa forma, o recém-chegado pode ser um estrangeiro que acaba de nascer e que, portanto, irrompe de dentro, ou um estrangeiro que acaba de chegar e que, portanto, interrompe de fora. Se a pluralidade política for assim articulada, a nacionalidade se revela uma ficção indesejável, exatamente porque engessa e enfraquece o conceito de política. O nacionalismo é uma espécie de trincheira política, e um limite muito estreito à realização efetiva da ideia de pluralidade, na verdade, ela é um obstáculo. Na melhor das hipóteses, os de dentro, os nacionais, serão acolhidos, e os de fora, os estrangeiros, serão tolerados, sendo que a tolerância só pode ser um modo de receber fechado de antemão, e assentado no pressuposto da posse, na mitologia da identidade nacional.
A tolerância diminui o próprio conceito de cultura, pois, para se contentar com a política da tolerancia, é preciso pressupor uma condição cultural a tal ponto identificada consigo mesma que a estrangeiridade só pode ser concebida como ameaça e, na melhor das hipóteses, como uma questão de tolerância, para que se possa garantir, minimamente, as condições da identidade cultural. Evidentemente, a cultura condiciona e limita. Por exemplo, o fato de que falamos uma língua que não é a do estrangeiro a quem devemos acolher, o fato de que exigimos que ele fale nossa língua significa a imposição de limites e condições. Todo lugar é um lugar cultural, e, como tal, tem suas limitações. Mas a cultura é, também (e talvez por excelência), o lugar da liberdade.8 Certamente a cultura elabora e reivindica uma identidade, mas temos todo direito de esperar que o trabalho de elaboração cultural não tenha chegado ao fim, ou seja, que há uma dinâmica essencial no conceito de cultura. A tolerância supõe um conceito fechado e estereotipado de cultura, sendo que a condição cultural é justamente a da liberdade de criar as condições do mundo. A tolerância dá por encerrada a tarefa da cultura e, dessa forma, faz decair a cultura que é justamente o aspecto dinâmico e produtivo de uma sociedade, aquilo que expressa a vitalidade mesma da condição social.
Jacques Derrida, no texto Cosmopolites de tous les pays, encore un effort! destinado ao primeiro congresso das cidades-refúgio, promovido pelo Parlamento Internacional dos Escritores, se pergunta se cultivar a ética da hospitalidade não seria uma forma tautológica de falar, uma vez que a “hospitalidade é a cultura mesma e não uma ética entre outras.” (DERRIDA, 1997, p. 42). A cultura não é o conjunto das condições dadas, mas as condições dadas em condições de se oferecer, o que significa em condições de estar já além delas mesmas, ou seja, precisamente o estado de hospitalidade. Semelhante ao modo como Levinas concebe a própria linguagem em termos de dito e dizer em seu Autrement qu’être ou au-delà de l’essence: o dito são as condições dadas da linguagem, o diz er, que é para ele a própria responsabilidade, são essas mesmas condições em estado de oferta e abertura ao outro. É a cultura o lugar móvel do acolhimento. A sentença derridiana permite ressaltar o aspecto criador da cultura, que é mais essencial que seu aspecto de coisa feita e passível de ser descrita. A cultura, como sinônimo de hospitalidade, é também uma forma de tornar visível o comércio entre o influxo permanente da alteridade, essa incondicionalidade, e as condições de acolhida, pois a tarefa da ação política de garantir a pluralidade se realiza concretamente no movimento criador e expansivo da cultura: elaborar constantemente as condições do mundo, reescrever suas leis porque de todos os lados estão chegando os recém-chegados.
É nesse mesmo sentido e contexto que Derrida ainda se pergunta: que sobra de uma cultura que concebe a hospitalidade como delito? - a questão se refere ao debate sobre as leis francesas de criminalização da hospitalidade, criadas na década de 90 do século XX. A criminalização da hospitalidade é uma espécie de apagamento da cultura de um lugar. Normalmente dizemos que os sem-teto são invisíveis, porque naturalizamos tanto a visão de pessoas morando na rua que deixamos de percebê-las. Os invisíveis proliferam-se nas ruas das cidades com seus carrinhos, tralhas e molambos, compondo a paisagem. A criminalização da hospitalidade é uma maneira de produzir, inversamente, o fenômeno da invisibilidade, porque quem desaparece é quem está protegido dentro de suas casas, protegido por lei de ter que prestar solidariedade, portanto não apenas indiferentes à vulnerabilidade do outro, porque a indiferença supõe, ainda, a franqueza da presença, mas verdadeiramente ausentes.
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A questão dos refugiados não é uma entre outras questões de política: é a grande questão política de nosso tempo, da mesma forma como a hospitalidade não é uma entre outras éticas, mas a ética, porque refugiado não é apenas a condição oficial do expatriado, é também uma espécie de exposição da condição humana no século XXI. Por isso o tema hospitalidade importa tanto para o discurso político hoje, porque expõe seu conteúdo ético: a necessidade de acolher não decorre de uma livre-decisão do sujeito autônomo, ela é um imperativo de natureza heteronômica e, por isso, dá significado ao discurso político como ação pela pluralidade. Aquele que chega, tendo nascido ou vindo de fora, não solicita acolhimento, sua situação é incondicional e por ela opera uma ordem que instaura um estado de hospitalidade.
Evidentemente que isso não garante coisa nenhuma, porque uma lei pode fazer desaparecer todas as condições para concretizar o imperativo incondicional. Ele não deixará, no entanto, de permanecer, silencioso, imperceptível, pronto para acontecer, como um milagre que vai dar, de novo, início a algo e adiar, mais uma vez, o fim do tempo e do mundo.