Introdução
O livro A arqueologia do saber foi lançado por Michel Foucault em 1969, na França. É a partir dele que o filósofo procura explicar, mais detalhadamente, a Análise Arqueológica do Discurso (AAD) como uma possibilidade metodológica de se descreverem os discursos.
Uma das marcas desse livro é a estreita relação que estabelece com três obras que lhe são anteriores: A história da loucura na Idade Clássica, publicado em 1961, cujo objeto loucura é descrito discursivamente, a partir das condições de possibilidade que permitiram o seu aparecimento e sua construção em determinado tempo histórico (FOUCAULT, 2010); O nascimento da clínica, em 1963, no qual Foucault dá continuidade às suas análises arqueológicas, porém deslocando o seu objeto de interesse: “Não mais a doença mental, mas a própria doença; não mais a psiquiatria, mas a própria medicina moderna, a partir do século XIX” (GIACOMONI; VARGAS, 2010, p. 2); e As palavras e as coisas, publicado em 1966, cujo interesse do autor recai sobre o nascimento das Ciências Humanas. Nessa obra, Foucault ressalta alguns deslocamentos que sucederam entre a época clássica, marcada por análises ao nível da representação, cujo espaço é construído em termos de igualdades e diferenças – no qual o signo assume
o lugar da coisa em si, em estado de imagem e semelhança, e as novas ciências empíricas como a Biologia, a Economia e a Filologia que, não estando centradas sob a lógica da representação, concebem o homem como objeto a ser estudado e construtor de suas próprias representações (sobre a vida, o trabalho, a linguagem, etc.) (FOUCAULT, 2000).
Em linhas gerais, essas três obras preparam o terreno para uma compreensão mais aprimorada do livro A arqueologia do saber, porquanto permitem entender como a arqueologia do discurso, apresentada como estratégia investigativa de análise, compromete-se com a descrição de determinadas ordens discursivas, cujos saberes lhes são intrínsecos.
Em A arqueologia do saber, Foucault (2012) trabalha com duas categorias principais: discurso e enunciado. A partir delas, possibilita a reflexão sobre: epistemologia, formação discursiva, função enunciativa, sujeito, campo associado, materialidade e referencial.
No presente texto, procuramos sistematizar o modo como Michel Foucault tratou as noções de materialidade e referencial no livro A arqueologia do saber. De modo mais específico, nosso foco será identificar as séries de signos, isto é, frases ou palavras efetivamente escritas e registradas por Foucault, na referida obra, sobre materialidade e referencial. Antes, contudo, dedicamos, na primeira parte deste texto, uma reflexão sobre o discurso e o enunciado em Foucault.
O discurso e o enunciado em Foucault
Para Foucault o discurso é constituído por “um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (FOUCAULT, 2012, p. 143). Sua descrição deve ser realizada na perspectiva de tornar evidentes relações enunciativas e suas regras de funcionamento. Visa a explicitar um conjunto de enunciados como uma “figura lacunar e retalhada” (2012, p. 153), pois não está comprometida com a descrição total e fechada de enunciados; tampouco busca tornar explícitos intenções e pensamentos de determinados sujeitos, descobrir um fundamento ou revelar uma interpretação a partir dele.
Não se trata de buscar, na opacidade oportuna do discurso, de elementos enunciativos que não aparecem claramente na ordem do discurso investigado. Diferentemente das análises interpretativas que buscam encontrar, na descrição de determinado discurso um sentido, um valor de verdade que o valide e legitime socialmente, busca-se encontrar, na formação de um discurso, uma “lei de raridade” (2012, p. 146) que institui nos enunciados suas regras de aparecimento, suas condições de apropriação e de sua utilização.
Essa lei de raridade para a qual os discursos se sujeitam, rege-se pelo princípio de que nem tudo é dito, registrado e constituído. Por mais numerosos que sejam os enunciados, eles estão sempre em deficit, apresentam-se de maneira lacunar no discurso; razão pela qual os enunciados são descritos no limite da exclusão de outros, o que não significa que devem ser tratados como se estivessem encobrindo outros enunciados ou como se, por trás deles, existisse um discurso não formulado ou contradizente.
A descrição do discurso, na perspectiva arqueológico-foucaultiana, não procura encontrar “a gênese psicológica a partir de uma descoberta que, pouco a pouco, desenvolveria suas consequências e ampliaria suas possibilidades. Ela é diferente de todos esses percursos e deve ser descrita em sua autonomia” (2012, p. 180). Ao contrário disso, compromete-se com a descrição em nível de “homogeneidade enunciativa” (2012, p. 181), em que seu próprio recorte temporal estabelece
[um] ordenamento, hierarquias e todo um florescimento que excluem uma sincronia maciça, amorfa, apresentada global e definitivamente. Nas tão confusas unidades chamadas “épocas”, ela faz surgir, com sua especificidade, “períodos enunciativos” que se articulam no tempo dos conceitos, nas fases teóricas, nos estágios de formalização e nas etapas de evolução linguística, mas sem se confundir com eles
(2012, p. 181-182).
Com isso, não se pode afirmar que a descrição arqueológica do discurso, na forma como é apresentada por Foucault, busca reconstruir determinado discurso a partir de uma descoberta enigmática ou mediante a formulação de um princípio geral enunciativo. A arqueologia não situa sua análise na descrição das relações causais, assinaladas em um nível situacional, a partir da qual determinado sujeito falante pode, de algum modo, pôr em circulação um conjunto de enunciados dando origem a determinado discurso.
Se um discurso existe “não é porque houve, um dia, alguém para proferir ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório” (2012, p. 116). O discurso é constituído por um conjunto de enunciados, mas o sujeito do enunciado não deve ser confundido com o autor da formulação, conforme explica Foucault:
Ele não é, na verdade, causa, origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase; não é, tampouco, a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena como o corpo visível de sua intuição. [...]. É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia – ou melhor, é variável o bastante para continuar, idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma
(2012, p. 115-116).
Assim sendo, a constituição do discurso não está centrada na individualidade do sujeito falante, de como esse fala e faz circular uma série de informações mediante o que diz. Na perspectiva arqueológico-foucaultiana, o discurso não deve ser entendido como sinônimo de fala, língua/texto, formulação ou proposição, mas como prática discursiva, entendida como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço” (2012, p. 144) e que determinam as condições de exercício de uma função enunciativa na ordem do discurso analisado.
A função enunciativa da qual trata Foucault pressupõe a existência de certas correlações estabelecidas em nível enunciativo, isto é, entre enunciados. Logo, as correlações entre o que se diz e a ação posta em prática na realidade concreta ou entre o que se diz e o seu significado, ou, ainda, entre o que se diz e sua referência, não são critérios válidos para identificar as funções que ocupa cada enunciado na ordem do discurso analisado.
Ao se analisar um discurso na perspectiva arqueológico-foucaultiana, deve-se lembrar que o enunciado pode aparecer uma única vez sem, contudo, deixar de exercer sua função, desempenhando, no meio de outros enunciados, seu papel, ao mesmo tempo neles se apoiando e deles se distinguindo. Isso porque a existência do enunciado está sujeita a um princípio: o da diferenciação, que, na concepção de Foucault (2012), diz respeito ao referencial que todo enunciado requer para se realizar. Tal referencial, segundo Foucault,
não é constituído de “coisas”, de “fatos”, de “realidades”, ou de “seres”, mas de leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas
(2012, p. 110).
Ademais, todo enunciado deve ser entendido como um acontecimento irrepetível na ordem do discurso analisado, estar sob o regime de materialidade repetível. Assim, por mais que tenhamos o mesmo enunciado sendo proferido por diversos autores no espaço e no tempo, independentemente do percentual de vezes em que ele se repete, haverá igual número de enunciações distintas, visto que, embora os enunciados tenham uma singularidade própria, eles aparecem na ordem discursiva com um status, entra em redes, coloca-se em campos de utilização, oferece-se a modificações possíveis, integra-se em estratégias nas qais sua identidade se mantém ou se apaga.
Desse modo, o que pode indicar o aparecimento de um mesmo enunciado ou de um enunciado distinto, em uma determinada ordem discursiva, não é sua localização no espaço e no tempo, tampouco os suportes materiais ou as equivalências entre eles (texto-escrito, textoimagem, gravação, etc.) e, sim, o esquema de utilização, de regras de emprego que são colocadas em jogo para que se possa reconhecer a correspondência ou a diferenciação entre os enunciados.
Mapeamento das noções de materialidade e referencial em A arqueologia do saber
Como anunciamos, ao se analisar um discurso na perspectiva arqueológica, deve-se lembrar de algumas questões, dentre elas a de que um discurso só pode ser descrito uma vez explicitadas as regras de seu funcionamento e a rede de relações nas quais os enunciados aparecem na ordem discursiva, de forma interdependente: um enunciado que remete a outro, de modo que essa condição de possibilidade, potencializada pelas regras do próprio discurso, constitui o referencial do enunciado.
Em sua obra A arqueologia do saber, Foucault (2012) explica, mais detalhadamente, que a relação entre enunciados ocorre de maneira muito singular e que se refere a ela mesma “e não à sua causa, nem a seus elementos” (2012, p. 107).
Ao problematizar a linguagem como o terreno sob o qual os discursos são constituídos, Foucault (2012) desconstrói a ideia de que a relação entre enunciados possa ocorrer sob o mesmo regime sígnico, materializado na relação “do significante com o significado, e do nome com o que designa; da relação da frase com seu sentido; ou da relação da proposição com seu referente” (2012, p. 107).
Segundo Carlos, ao dizer que a relação enunciativa não pode ser superposta a nenhuma dessas relações,
Foucault diferenciou o discurso-enunciado do que ele não é, ao explicar suas condições de existir no terreno da linguagem, quer como artefato discursivo próprio, quer como camada da linguagem peculiar às ocupadas, por exemplo, pelos pares significantesignificado, frase-sentido e proposição-referente, cujas singularidades coexistem com a singularidade do discursoenunciado
(2017, p. 187).
Sendo a relação enunciativa aquela que se recusa a estabelecer qualquer tipo de identificação com os elementos sígnicos (significado, significante e referência) e suas causas (uma lembrança, uma motivação ou mesmo algo ao qual ele se refere), orienta-se pelo pressuposto de que uma série de signos possa ser identificada como enunciado na medida em que não deixa de ser signo e ter um objeto ao qual se referir. Contudo, diferentemente do signo, o enunciado é autorreferente, liga-se a um complexo de relações, cujo referencial “não é constituído de ‘coisas’, de ‘fatos’, de ‘realidades’, ou de ‘seres’, mas de leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos” (2017, p. 110).
Posto isso, o que institui o referencial do enunciado é o conjunto de relações, tecidas a partir das condições de possibilidade e de regras específicas relativas à ordem do discurso analisada: relações entre enunciados, entre temas, posições de sujeito e materialidades distintas. Desse modo,
o referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado
(2017, p. 110-111).
Nessa perspectiva, a descrição de determinado discurso, na perspectiva arqueológica de Michel Foucault, deve-se levar em consideração a natureza das relações enunciativas que subjazem às relações tecidas em nível gramatical ou lógico. O referencial do enunciado “define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade” (2012, p. 111). Com isso, descrevem-se os discursos, explicitando as relações enunciativas que emergem no terreno da linguagem, sempre de maneira lacunar e dispersa. São fragmentos: frases, palavras, símbolos, proposições, atos de fala, etc. que assumem a condição de enunciados ao ocupar, na rede discursiva analisada, uma função determinada sujeita a leis de possibilidade e a regras próprias de existência.
Tais fragmentos podem evidenciar um complexo de relações enunciativas que aparece no campo da linguagem sob a forma sígnica. Não interessa à análise arqueológica do discurso a identificação de uma unidade como um nome, uma palavra, uma frase, uma proposição, mas a função que esses ocupam na rede discursiva analisada.
A análise dos discursos está comprometida com a descrição de um conjunto de enunciados, explicitados no terreno da linguagem “através de uma espessura material” (2012, p. 122). Assim, podemos nos deparar com um número ilimitado de enunciados que se encontra registrado em diferentes suportes materiais, como: livros, textos, narrações, regulamentos, leis, etc. Por outro lado, não basta que tenhamos um conjunto de signos vinculados a um suporte material (uma frase, uma proposição ou um ato de fala, por exemplo) para afirmarmos que estamos diante de um enunciado.
De acordo com Foucault,
para que se trate de um enunciado é preciso relacioná-lo com todo um campo adjacente. Ou antes, visto que não se trata de uma relação suplementar que vem se imprimir sobre as outras, não se pode dizer uma frase, não se pode fazer com que ela chegue a uma existência de enunciado sem que seja utilizado um espaço colateral; um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados
(2012, p. 118).
O campo adjacente sobre o qual os enunciados se encontram articulados não deve ser confundido com o contexto situacional de uma trama histórica, visto que a descrição dos enunciados se distingue da descrição de um contexto histórico a partir do qual se pode emitir um sentido ou uma opinião. Sendo assim, não é explorando, no terreno da linguagem, frases, proposições, atos de fala ou uma situação determinada, que iremos nos deparar com o enunciado, pois ele não se projeta diretamente sobre o que diz um autor; antes, se delineia em um campo enunciativo no qual assume uma posição e exerce um status estabelecido pelas relações possíveis com os enunciados que integram a formação discursiva.
Tais relações enunciativas estão sujeitas a um regime de materialidade repetível, uma vez que, não sendo reduzido a simples enunciação, o enunciado “pode ser repetido apesar de sua materialidade” (2012, p. 124). Como temos dito, ainda que tenhamos o mesmo enunciado proferido por diferentes autores no espaço e no tempo, independentemente do percentual de vezes que ele se repete, haverá igual número de enunciações distintas. Isso porque, embora os enunciados possuam uma singularidade própria, eles aparecem na ordem discursiva com um status, entra em redes, colocase em campos de utilização, oferece-se a modificações possíveis, integra-se em estratégias em que sua identidade se mantém ou se apaga. Desse modo, o que pode indicar o aparecimento de um mesmo enunciado ou de enunciados distintos, em uma dada ordem discursiva, não é sua localização no espaço e no tempo, tampouco os suportes materiais ou as equivalências entre eles (texto escrito, texto-imagem, gravação, etc.) e, sim, o esquema de utilização de regras de emprego que são colocadas em jogo, para que se possa reconhecer a correspondência ou diferenciação entre enunciados.
Reconhece-se, assim, que, embora a materialidade do enunciado não seja de natureza sensível, “apresentada sob a forma de cor, do som ou da solidez e esquadrinhada pela mesma demarcação espaço-temporal que o espaço perceptivo” (2012, p. 124), ela é parte constitutiva do próprio enunciado. Permite reiterar-se em sua identidade, apesar das diferenças de enunciação, ou se distinguir, mesmo que sob a existência de expressões semânticas, gramaticais ou formais idênticas.
Considerações finais
Com este texto, procuramos expor o entendimento de Foucault sobre a noção de materialidade e referencial, registrado em seu livro A arqueologia do saber (FOUCAULT, 2012). Iniciamos a discussão com uma reflexão a respeito do discurso e do enunciado, categorias centrais problematizadas por Foucault, para embasar a Análise Arqueológica do Discurso (AAD) como uma ferramenta orientada à descrição de regras específicas implicadas na produção dos discursos.
Esta abordagem, como vimos, não se aproxima das análises interpretativas que buscam encontrar, no discurso, um sentido ou um valor de verdade que o legitime ou colabore para sua configuração; tampouco, preocupa-se em descrever um discurso enigmático, implicado na revelação de uma descoberta. Na perspectiva arqueológica, a análise dos discursos é indiferente a todos esses percursos. Interessa-se pela descrição de um conjunto de enunciados articulados a determinada ordem discursiva. Busca explicitar as regras específicas e as condições de possibilidade atreladas à formação de um discurso. Desse modo, compromete-se com a explicitação das relações entre enunciados e do sistema de regras que teve de ser empregado em determinada ordem discursiva para que houvesse uma mudança em outros discursos, constituindo, assim, novos objetos e estratégias, dando lugar a novas enunciações e novos conceitos.
Através da análise dos discursos, Foucault nos convida a descrever um discurso cujo referencial é constituído por “leis de possibilidade [e] regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos” (2012, p. 110). Assim, o conjunto de relações (entre enunciados, entre temas, posições de sujeito e materialidades distintas), determinado pelas leis de possibilidade e regras de existência, constitui o referencial do próprio enunciado.
Tais relações (enunciativas), como assinalamos, estão sujeitas a um regime de materialidade repetível, não sendo reduzido a simples enunciação, uma vez que o enunciado “pode ser repetido apesar de sua materialidade” (2012, p. 114), a qual não é de natureza sensível, mas enunciativa: está posta no jogo de relações entre enunciados, tecida a partir das condições de possibilidade e de regras específicas relativas à ordem do discurso analisada.