Introdução
As discussões mais atuais acerca do ensino de Arte2, bem como sobre a formação docente em Arte no Brasil têm provocado diferentes questionamentos entre os estudiosos desse campo do saber, levando-os a pensar, por exemplo, sobre os percursos formativos docentes. Isso implica, inexoravelmente, inferir reflexões sobre as tendências de ensino e aprendizagem em Arte dos cursos de formação inicial docente neste campo do conhecimento, principalmente aqueles que têm como objetivo a formação para a educação formal, ou seja, as licenciaturas em linguagens artísticas (Artes Visuais, Artes Cênicas, Dança e Música).
O universo de pesquisa que se apresenta nesse trabalho possui uma delimitação geográfica e institucional/formativa. Com relação á delimitação geográfica, a pesquisa possui como locus de investigação o Estado de Mato Grosso do Sul que é composto de 27 unidades federativas situadas na região Centro-Oeste do Brasil. Faz limite com cinco estados brasileiros (Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Goiás) e com dois países sul - americanos (Bolívia e Paraguai) tendo como Capital a cidade de Campo Grande. Como delimitação institucional e formativa, encontra-se delimitado pelos cursos de formação inicial docente em Arte, em instituições públicas e presenciais de nível superior do Estado do Mato Grosso do Sul. Não se enquadram, nessa totalidade, nem os cursos de pedagogia - porque por formação, são licenciados em pedagogia e não em Arte - e, nem os cursos à distância. Desse modo, os cursos elencados a seguir são os que compõem o quadro completo de cursos por nós investigados: 1. Licenciatura em Artes Cênicas e Dança, na UEMS - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, campus Campo Grande; 2. Licenciatura em Artes Cênicas, na UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados, campus Dourados; 3. Licenciatura em Artes Visuais - Habilitação em Artes Plásticas na UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, campus Campo Grande e, por fim, 4. Licenciatura em Música - Habilitação em Educação Musical na UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande.
Para Adorno (1995), a educação não deve objetivar a modelagem de pessoas realizada unicamente pela perpetuação de saberes universalizantes, mas sim, um processo educativo com um importante viés político e, consequentemente, emancipatório do educando. Dessa forma, Adorno alinhava educação, emancipação e democracia ao afirmar que:
A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua ideia se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado (Adorno, 1995, p. 141-142).
Transpondo essa premissa para a formação docente em Arte, ao se renderem a essa modelagem do sujeito, as linguagens artísticas que compõem o universo da arte na educação formal acabam por se tornar mais um instrumento de alienação das massas no contexto do sistema educacional.
Com relação, especificamente ao ensino de Arte, Penna (1999) identificou três tendências. Elas estão ligadas a contextos históricos e tendências pedagógicas no Brasil, no entanto, conforme a própria autora e concordamos com ela, ainda há a presença dessas três tendências coexistindo atualmente, incluindo aí, não somente a materialização dessas tendências nas escolas, mas também incidindo sobre a formação docente:
De forma bastante esquemática, podemos caracterizar o ensino de arte por três tendências centrais: a primeira, marcada pelo enfoque ‘técnico-profissionalizante’; a segunda, que propõe ‘a arte na escola tendo em vista a formação plena do indivíduo’; a terceira, que busca ‘o resgate dos conteúdos de linguagem’. Estas tendências marcam o percurso histórico do ensino da arte, e convivem, em nossos dias, influenciando as práticas pedagógicas (Penna, 1999, p. 59, grifos do autor).
Nesse sentido, buscamos mapear as tendências de ensino segundo Penna, observando a formação inicial do professor de Arte em instituições públicas de ensino superior no Estado do Mato Grosso do Sul, presentes nos Projetos Pedagógicos dos cursos de licenciatura e tecer algumas considerações teórico-críticas à cerca de tal mapeamento.
No entendimento de Adorno, a concepção de educação e ensino se contrapõe à ideia de moldar o sujeito para o sistema de produção capitalista - formando os “[…] indivíduos para se submeterem passivamente ao processo de competitividade do mercado [...]” (Correia, 2016, p. 112) -, ou seja, a formação dos sujeitos deve incidir sobre todo o processo educacional, como uma construção contínua de esclarecimento mediado pela experiência formativa, ou seja, da ação pedagógica que permita libertar o estudante para além da reprodução do meio social vigente.
O conteúdo da experiência formativa não se esgota na relação formal do conhecimento - das ciências naturais, por exemplo - mas implica uma transformação do sujeito no curso do seu contato transformador com o objeto na realidade. Para isto se exige tempo de mediação e continuidade, em oposição ao imediatismo e fragmentação da racionalidade formal coisificada, da identidade nos termos da indústria cultural. Assim, a experiência formativa pressupõe uma aptidão cuja ausência caracterizaria a atualidade ainda mais do que a própria falta de conteúdo formativo (Adorno, 1995, p. 25).
Para que a ressignificação dialética resultante da ação pedagógica entre a conformação e a crítica aconteça, Adorno ainda defende que essa relação, inerente ao processo formativo, aconteça de forma mediada dentro do binômio - adaptação e autonomia - que representa, respectivamente, a conformação do sujeito às ditas leis sociais vigentes e a capacidade do sujeito em fazer a crítica livre da própria sociedade, ao mesmo tempo em que se autocritica enquanto sujeito. Nesse sentido, a formação para Adorno possui sempre uma dimensão cultural, pois está ligada, dentre outros aspectos, à perspectiva histórica na qual o sujeito está imerso. Segundo Adorno (2005, p. 2):
Os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar por toda parte, mesmo no estrato das pessoas cultas, não se esgotam com as insuficiências do sistema e dos métodos da educação, sob a crítica de sucessivas gerações. Reformas pedagógicas isoladas, indispensáveis, não trazem contribuições substanciais. Poderiam até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação frente ao poder que a realidade extra pedagógica exerce sobre eles. [...] A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da socialização. Nada fica intocado na natureza, mas, sua rusticidade - a velha ficção - preserva a vida e se reproduz de maneira ampliada. Símbolo de uma consciência que renunciou à autodeterminação prende-se, de maneira obstinada, a elementos culturais aprovados. Sob seu malefício gravitam como algo decomposto que se orienta à barbárie.
Quando a educação não possibilita ao sujeito uma real emancipação, podemos considerar que, segundo os preceitos adornianos, existe uma crise na formação que passa a sobrepor uma dimensão (adaptação ou autonomia) em detrimento de outra, de modo que uma delas se torne um modelo único, impositivo e dominante. De acordo com Bandeira e Oliveira (2012), o desenvolvimento do capitalismo monopolista característico dos anos 1900 e o acesso às novas tecnologias criadas nas décadas finais do século XX favoreceram o aparecimento do que chamam de ‘nova cultura’3 - um universo no qual os produtos culturais vão deixando de possuir valor cultural (simbólico) e passam a ser difundidos para a população como mero valor de troca (mercadológico), como simples artefatos de desejo de consumo para adequação ao meio social instituído. A formação neste cenário “[…] passa a ser vista e entendida unicamente como conformação com a realidade, privilegiando apenas o aspecto adaptativo, excluindo a liberdade do sujeito - espírito” (Correia, 2016, p. 118-119).
A esse processo regressivo que impede o sujeito de ter uma real experiência formativa emancipatória, e que o limita a possuir uma ‘visão’ mercadológica da cultura imposta pelo modo de produção capitalista - que ainda explora o indivíduo como objeto de reprodução desse mesmo mundo que o limita -, Adorno denomina de ‘semiformação’ ou ‘semicultura’. Para ele “[…] a semiformação é o espírito tomado pelo caráter de fetiche da mercadoria” (Adorno, 2005, p. 11). “Na semiformação os conteúdos objetivos são coisificados e a própria formação é reificada, ou seja, transformada em mercadoria” (Correia, 2016, p. 12).
A experiência formativa, caracterizada pela difícil mediação entre o condicionamento social, o momento de adaptação, e o sentido autônomo da subjetividade, o momento de resistência, rompe - se com Auschwitz, que simboliza a dominação do coletivo objetivado sobre o individual e do abstrato formal sobre o concreto empírico. [...] A perda da capacidade de fazer experiências formativas não é um problema imposto de fora à sociedade, acidental, e nem é provocado por intenções subjetivas, mas corresponde a uma tendência objetiva da sociedade, ao próprio modo de produzir-se e reproduzir-se da mesma. [...] Rompe-se a relação entre objeto e sujeito vivo. Ou seja: mundo sensível e mundo intelectual já não se articulam mais no processo do trabalho, separando-se como trabalho manual e intelectual; portanto são travados também na experiência formativa, que não vem a termo, naufragando como ‘semiformação’ (Adorno, 1995, p. 26, grifo do autor).
Destacamos também que a semiformação não se caracteriza por uma falta ou ausência de formação. O sujeito semiformado passa por todo um processo sistematicamente ‘educativo’, no entanto, essa formação é mercantilizada, administrada de acordo com os interesses do capital, fragmentada e com o propósito de acomodar ainda mais o indivíduo em sua condição de sujeição numa sociedade dominada, ou seja, semiformada. “A semiformação constitui o resultado de um processo sistemático de dominação da formação cultural pelos mecanismos político-econômicos dominantes” (Bandeira & Oliveira, 2012, p. 230).
Outro aspecto levantado por Adorno com relação à semiformação - e que se constitui como um entrave para a formação cultural -, é que essas discussões e problematizações pouco atingem a literatura pedagógica, não se internalizando na formação do professor, semiformando-o e, consequentemente, afastando-o do universo da crítica contínua em sua vida laboral. Adorno ainda reitera que a própria literatura pedagógica possui em seus processos e constituições marcas bastante evidentes de autoritarismo e uniformização, características estas que podem ser classificadas como semiformativas, por apresentar aspectos inibidores ou que impossibilitam a experiência emancipatória.
Contudo, o que é peculiar no problema da emancipação, na medida em que esteja efetivamente centrado no complexo pedagógico, e que mesmo na literatura pedagógica não se encontre esta tomada de posição decisiva pela educação para a emancipação, como seria de se pressupor - o que constitui algo verdadeiramente assustador e muito nítido. [...] Com o auxílio de amigos acompanhei um pouco a literatura pedagógica acerca da temática da emancipação. Mas, no lugar de emancipação, encontramos um conceito guarnecido nos termos de uma ontologia existencial de autoridade, de compromisso, ou outras abominações que sabotam o conceito de emancipação atuando assim não só de modo implícito, mas explicitamente contra os pressupostos de uma democracia (Adorno, 1995, p. 172).
Após essa breve contextualização, procedemos com o mapeamento das tendências de ensino de Arte nos PPPs de formação inicial em Arte, na modalidade presencial, em instituições públicas, ofertados no Estado Mato Grosso do Sul, tendo como referência as definições apresentadas por Maura Penna (1999) e partindo dessas, teceremos considerações teórico-críticas por meio dos conceitos de formação e semiformação desenvolvidos por Theodor W. Adorno.
Desenvolvimento
Um Projeto Político Pedagógico é um documento institucional que carrega informações sobre toda a organização e funcionamento de um curso de graduação, norteia o cotidiano pedagógico, inclui pesquisa e cursos de extensão expressando a necessidade de oferta-los, e registra um perfil de egresso específico desta formação acadêmica. Essa orientação encontra-se expressa no Parecer CES/CNE 0146/2002, de 3/04/2002, quando estabelece que:
As instituições de ensino superior deverão, na composição dos seus projetos pedagógicos, definir, com clareza, os elementos que lastreiam a própria concepção do curso, o seu currículo pleno e sua operacionalização, destacando-se os seguintes elementos, sem prejuízo de outros: - objetivos gerais do curso, contextualizados em relação às suas inserções institucional, política, geográfica e social; - condições objetivas de oferta e a vocação do curso; - cargas horárias das atividades didáticas e da integralização do curso; - formas de realização da interdisciplinaridade; - modos de integração entre teoria e prática; - formas de avaliação do ensino e da aprendizagem; - modos da integração entre graduação e pós-graduação, quando houver; - cursos de pós-graduação lato sensu, nas modalidades especialização, integradas e/ou subsequentes à graduação, e de aperfeiçoamento, de acordo com a evolução das ciências, das tecnologias e das efetivas demandas do desempenho profissional, observadas as peculiaridades de cada área do conhecimento e de atuação, por curso; - incentivo à pesquisa, como necessário prolongamento da atividade de ensino e como instrumento para a iniciação científica; - concepção e composição das atividades de estágio, por curso; - concepção e composição das atividades complementares; - oferta de curso sequenciais e de tecnologia, quando for o caso (Brasil, 2002).
Podemos também apontar que o Projeto Político Pedagógico pode ser entendido “[…] como o próprio curso em movimento, que constrói, a cada dia, um trabalho educativo, discute, de forma participativa, os problemas, as possibilidades de solução, e define as responsabilidades pessoais e coletivas a serem assumidas para realização dos objetivos” (Borba & Luz, 2002, p. 38). Ainda, segundo Vasconcellos (2009, p. 169):
O Projeto Político-Pedagógico (ou Projeto Educativo) é o plano global da instituição. Pode ser entendido como a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição nesse processo de transformação. [...].
Construído participativamente, é uma tentativa, no âmbito da educação, de resgatar o sentido humano, científico e libertador do planejamento.
Em relação a outras nomenclaturas correlatas, temos a dizer que preferimos Projeto Político-Pedagógico a Proposta Pedagógica por entender que a primeira é mais abrangente, qual seja, contempla desde as dimensões mais específicas da escola (comunitárias e administrativas, além da pedagógica), até as mais gerais (políticas, culturais, econômicas, etc.
Conforme anteriormente destacado, estamos utilizando neste estudo, as tendências do ensino de Arte descritas por Penna (1999). A referida autora trata de caracterizar essas tendências em três principais correntes, até então: uma primeira, que ela chama de ‘técnico-profissionalizante’, uma segunda chamada de ‘formação plena do indivíduo ou psicologizante’ e, por fim, uma terceira, chamada ‘resgate de conteúdos de linguagem’.
Seguindo as ideias de Penna, a primeira tendência - técnico-profissionalizante -, está ligada às proposições metodológicas das Escolas de Belas Artes, no caso das Artes Visuais; e do Conservatório, para com a Música. Quanto às Artes Cênicas, por exemplo, podemos citar os cursos de interpretação para TV e cinema espalhados pelo país. Em todas, existem conteúdos bastante característicos de cada linguagem artística, mais voltadas ao aprimoramento técnico, e cuja ação pedagógica tem enfoque profissionalizante, ou seja, objetiva a formação do artista para sua atuação no mercado.
A primeira tendência, voltada ao domínio técnico e a formação profissional, caracteriza o ensino das Escolas de Belas Artes e dos Conservatórios de Música. Dentro dessa tendência, os conteúdos específicos de cada linguagem artística são aparentemente preservados. No entanto, as práticas pedagógicas apresentam os mesmos problemas já tantas vezes apontados em relação ao modo como o método tradicional costuma ser aplicado em sala de aula: são práticas repetitivas e mecânicas claramente reprodutivistas, que adotam conteúdos fragmentados, fixos, abstratos e formais. E o que é mais problemático: tais práticas pedagógicas voltadas ao domínio técnico pressupõem uma familiarização prévia com as linguagens artísticas, desconsiderando as condições sociais que as tornam possíveis (Penna, 1999, p. 59).
Para executar nossa investigação, passamos então a observar os PPP’s que compõem o rol formativo inicial do docente em Arte, em instituições públicas, no Estado do mato Grosso do Sul4.
Na grade curricular, destacamos a carga horária e o ementário de cada disciplina, no intuito de detectar quais componentes curriculares apontam de maneira mais direta para esta tendência. Foram então classificadas como tal, aquelas que apresentam, como disposto no projeto, conteúdos e bibliografia que mais se aproximam da formação técnica do artista.
O maior índice de disciplinas e carga horária de caráter técnico profissionalizante encontrado foi no projeto do curso de Licenciatura em Artes Cênicas da UEMS - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (38,95%), seguido do projeto do curso de Artes Cênicas da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados (37,23). Logo após temos o projeto da Licenciatura em Música (34,90%) e o projeto da Licenciatura em Artes Visuais (34,12%), ambos da UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Os dados nos revelam, inicialmente, que não há muita disparidade entre as formações do docente em Arte quando se faz um quadro comparativo entre essas linguagens. Todos os projetos encontram-se, portanto, entre 34,12 a 38,95%.
A segunda tendência - formação plena do indivíduo ou psicologizante -, procura aproximar as práticas artísticas do universo da educação, no sentido da formação humana, da expressividade e da sensibilidade do sujeito. Segundo Maura Penna (1999), essa tendência está relacionada à corrente da chamada ‘arte-educação’, fortemente relacionada ao escolanovismo e que - dominante entre as décadas de 1970 a 1990 -, possuíam um aspecto bastante polivalente e psicologizante do ensino de arte, contribuindo para um enfraquecimento da disciplina e por uma desvalorização da Arte como área de conhecimento.
A segunda tendência, de bases psicológicas, que busca dar a arte funções educacionais mais amplas, colocando-a serviço da educação global do indivíduo. Enfatiza-se então a liberdade criativa e a expressão pessoal os estados psicológicos e a revelação de emoções valorizando-se o processo de trabalho em detrimento do produto. [...] Muitas das orientações pedagógicas da arte-educação sofrem influência direta das propostas da Nova Escola: relegando-se a transmissão/aquisição de conhecimentos e a formação cultural, o aluno pesquisador da Nova Escola é o aluno produtor de trabalhos artísticos, que aprende fazendo. [...] No entanto, a questão é que tais propostas acarretam a popularização de práticas pedagógicas que enfatizam o espontaneísmo expressivo caindo muitas vezes no mais puro laisser-faire, trazendo como consequência o esvaziamento dos conteúdos próprios da cada linguagem artística (Penna, 1999, p. 60).
Ainda segundo a autora, essa tendência também é bastante caracterizada pela promulgação da Lei 5692/71 (Brasil, 1971), que instituiu a arte como atividade obrigatória nas escolas no antigo viés da Educação Artística. Essa visão de ensino de Arte possui aspectos polivalentes em sua ação pedagógica contribuindo diretamente para a diluição de conhecimentos específicos sobre Arte e também sobre as linguagens artísticas.
Não é apenas a concepção de arte e de educação desta tendência que conduz ao esvaziamento de conteúdos, mas também a própria política educacional na medida em que a ampla difusão das propostas da arte-educação articula-se a entrada da Educação Artística (E.A.) nas escolas, através da Lei 5691/71. A ampliação da E.A. e marcada pela proposta polivalente, que concebe uma abordagem integrada das linguagens artísticas e é prevista nos termos normativos tanto para o 1º e 2º graus, quanto para a formação do professor - sendo exacerbada no modelo da licenciatura curta, que pretende formar, até mesmo em um ano e meio, um professor capaz de atuar no 1º grau em todas as linguagens artísticas (Penna, 1999, p. 60-61).
Na análise dos PPPs que procedemos, consideramos como carga horária ligada mais diretamente a essa segunda tendência, as disciplinas que tratam da formação do sujeito de forma ampla, dos aspectos culturais da sociedade, e também as que têm como enfoque conhecimentos pedagógicos, excetuando-se as que correlacionam com o ensino da linguagem artística propriamente dita.
No que tange a essa segunda tendência do ensino de Arte, podemos observar que em relação à linguagem específica, os dados indicam uma diferença maior que 50% na oferta de carga horária entre o curso de Licenciatura em Artes Cênicas da UEMS e o curso de Licenciatura em Música da UFMS. Os números também mostram que a Licenciatura em Música da UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, apresenta menor índice de carga horária destinada ao enfoque psicologizante. Na UFMS, o curso de Música possui 13,09% e o curso em Artes Visuais 21,84%. Logo após, temos a Licenciatura em Arte Cênicas da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados com 21,90% e apresentando o maior índice e a Licenciatura em Artes Cênicas da UEMS - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, com 27,37%.
A terceira tendência descrita por Maura Penna - resgate de conteúdos de linguagem -, é marcada pela retomada dos conhecimentos específicos de cada linguagem artística (Artes Cênicas, Dança, Música e Artes Visuais). Essa tendência aparece como resposta contrária à polivalência das décadas de 1970, 1980 e início de 1990 e busca instituir o ensino de Arte pautado nos conteúdos específicos de cada linguagem artística, mas sem a preocupação da destreza técnica da abordagem profissionalizante nem o ideário inócuo da livre expressão da tendência psicologizante. Exemplo de construção a partir desta tendência encontra-se na ‘Abordagem Triangular’, enquanto proposição para o ensino de Arte baseado na tríade: fazer, conhecer e apreciar.
A terceira tendência, que busca resgatar os conteúdos de linguagem, encontra-se em fase de construção. Em decorrência das críticas a polivalência e ao esvaziamento da prática da E.A., difunde-se a necessidade de se recuperar os conhecimentos específicos de cada área artística, o que se reflete, inclusive, no repúdio a denominação educação artística, em prol de ensino de arte - ou melhor, ensino de música, de artes plásticas, etc. Originada na área de artes plásticas, a proposta pedagógica mais conhecida nesse sentido é a chamada metodologia triangular, divulgada pela Profª Ana Mae Barbosa. [...] As experiências de aplicação da proposta triangular mais divulgadas, inclusive pelo Projeto Arte na Escola, partem da apresentação da obra de arte, que é contextualizada historicamente e apreciada, sendo o trabalho criativo proposto a partir dessa obra, como uma releitura. Desta forma, as obras artísticas - que tinham sido expulsas da sala de aula pelas práticas espontaneístas em nome da pureza criativa - estão de volta em sua materialidade, e são centrais para o trabalho (Penna, 1999, p. 61-62).
Desta forma, procuramos encontrar nos Projetos Políticos Pedagógicos quais são as disciplinas e suas respectivas cargas horárias que se enquadram dentro desta terceira tendência. Elencamos dentro deste recorte, as disciplinas e suas respectivas cargas horárias que estão ligadas ao ensino da linguagem propriamente dita, incluindo a carga horária destinada ao estágio obrigatório e aos conteúdos específicos da linguagem artística, bem como da história da Arte.
Observando os dados, podemos perceber que a licenciatura em Música da UFMS atingiu o maior índice, com 52,01%, sendo o único projeto a ultrapassar a marca de 50% nesta tendência. Em ordem decrescente, além do já citado, vem o PPP da licenciatura em Artes Visuais da UFMS com 44,04%. Em seguida, aparece a Licenciatura em Artes Cênicas da UFGD com 40,87% e, por fim, a licenciatura em Artes Cênicas da UEMS atingindo o índice de 33,68%.
A partir deste levantamento podemos expor como está configurado cada curso em relação à carga horária destinada a cada tendência do ensino de Arte mapeada nas Tabelas 1, 2, 3 e 4.
Para podermos ter uma visão mais diretiva sobre esse panorama, observamos um comparativo gráfico dos PPP´s sobre as tendências (Figura 1): técnico/profissionalizante, formação humana/psicologizante e resgate de conteúdos elucidados nos quadros anteriores.
Ao observarmos esse resultado panorâmico presente no gráfico da Figura 1, podemos considerar que os PPP’s em análise apresentam certa similaridade quando vistos através das tendências pedagógicas em Arte. Em todos os casos analisados encontramos as três tendências do ensino de Arte descritas por Maura Penna. “Todas elas estão presentes, em maior ou menor grau, na formação dos futuros professores da educação básica” (Penna, 1999, p. 62).
Universidade | Curso | Carga horária C/H obrigatória + estágio | Tendência | Carga horária C/H (hora) | % em relação C/H obrigatória |
UFMS | Artes visuais | 2491 | Técnico/profissionalizante | 850 | 34,12 |
Formação humana/psicologizante | 544 | 21,84 | |||
Resgate de conteúdos | 1097 | 44,04 | |||
Total | 2491 | 100 |
Fonte: PPP Licenciatura em Artes Visuais - UFMS. Elaborada pelos autores.
Universidade | Linguagem | Carga horária C/H obrigatória + estágio | Tendência | Carga horária C/H (hora) | % em relação C/H obrigatória |
UFMS | Música | 2338 | Técnico/profissionalizante | 816 | 34,90 |
Formação humana/psicologizante | 306 | 13,09 | |||
Resgate de conteúdos | 1216 | 52,01 | |||
TOTAL | 2338 | 100 |
Fonte: PPP Licenciatura em Música - UFMS. Elaborada pelos autores.
Universidade | Linguagem | Carga horária C/H obrigatória + estágio | Tendência | Carga horária C/H (hora) | % em relação C/H obrigatória |
UFGD | Artes cênicas | 3288 | Técnico/profissionalizante | 1224 | 37,23 |
Formação humana/psicologizante | 720 | 21,90 | |||
Resgate de conteúdos | 1344 | 40,87 | |||
TOTAL | 3288 | 100 |
Fonte: PPP Licenciatura em Artes Cênicas - UFGD. Elaborada pelos autores.
Universidade | Linguagem | Carga horária C/H obrigatória + estágio | Tendência | Carga horária C/H (hora) | % em relação C/H obrigatória |
UEMS | Artes cênicas | 3230 | Técnico/profissionalizante | 1258 | 38,95 |
Formação humana/psicologizante | 884 | 27,37 | |||
Resgate de conteúdos | 1088 | 33,68 | |||
TOTAL | 3230 | 100 |
Fonte: PPP Licenciatura em Artes Cênicas - UEMS. Elaborada pelos autores.
Destacou-se o projeto do curso de Licenciatura em Música da UFMS, por possuir forte predominância de disciplinas ligadas à tendência de resgate de conteúdos e índice baixo ligado a disciplinas com enfoque de formação humana/psicologizante, o que pode indiciar uma formação mais isolada dentro do contexto da Arte, tendo como foco único o ensino da linguagem artística do curso menos centrada nos processos pedagógicos mais amplos da educação básica e na formação do indivíduo.
A tendência de resgatar as linguagens artísticas em sua especificidade já se reflete nas propostas de cursos - bacharelados e licenciaturas - em cada área. [...] Se é necessário reorganizar os cursos atendendo às necessidades de cada área, acreditamos ser também indispensável manter o intercâmbio entre elas, pois as experiências pedagógicas nas diversas linguagens artísticas - que apresentam direcionamentos comuns, assim como diferenciações - podem ser enriquecedoras em seu entrecruzamento. [...] Acreditamos, contudo, que o resgate de conteúdo precisa estar articulado a uma formação que tome como objetivo central e constante habilitar para a complexidade e as dificuldades da prática pedagógica concreta, em cada linguagem artística, caso contrário não seremos capazes de responder a contento ao desafio que se coloca para o ensino de arte (Penna, 1999, p. 64).
A citação anterior nos indica que, em relação à formação do docente em Arte, esta deve estar articulada para além da linguagem específica - entre os possíveis encontros que possui -, às outras linguagens imersas no universo da educação formal, e também a conhecimentos pedagógicos que venham de encontro aos desafios do cotidiano profissional docente nesta área do saber. O cenário de um Projeto Político Pedagógico que não articule esse prisma não favorece o desenvolvimento de uma formação emancipatória no sentido que poderá possibilitar ao egresso do curso, uma visão limitada e isolada da arte quando inserida no contexto da educação formal. Um projeto de formação inicial docente em Arte que contenha uma predominância de disciplinas que objetivam somente o ensino de uma linguagem artística, sem considerar o aspecto interdisciplinar e intersemiótico da arte, principalmente quando ligada à educação, acaba também por desconsiderar aspectos importantes contemporâneos do ensino de Arte em relação à diversidade cultural, direitos humanos e gênero, por exemplo.
Desse modo, um PPP pautado predominantemente na tendência de resgate de conteúdos possui um risco de semiformação, porque quando privilegia, por exemplo, a formação para o ensino de uma linguagem artística em detrimento de conhecimentos pedagógicos mais gerais da educação - como planejamento, avaliação e tendências pedagógicas -, compromete a própria formação docente em si, uma vez que esta é baseada na relação entre teoria e prática pedagógica. Além disso, esse cenário de dominância de uma tendência deixa escasso o acesso a conteúdos mais ligados à formação humana, e também a conhecimentos que discutem as relações sociais contemporâneas.
Em outro vértice, constatamos que o Projeto Político Pedagógico do curso de Artes Cênicas da UEMS (38,95%) possui a maior carga horária destinada à formação do artista, ou seja, a tendência técnico/profissionalizante. Se por um lado, a destreza artística contribui significativamente para a ampliação das possibilidades criativas do futuro professor, por outro oferece riscos à semiformação quando predominante na formação docente em Arte, pois fragmenta sua aplicação se esquecendo do ponto principal dos cursos de licenciatura: a formação profissional docente em detrimento da formação do artista, que se encontra mais centrada nos cursos técnicos em linguagens artísticas ou nos cursos superiores de bacharelado.
Nesse sentido, a formação predominantemente técnica, em uma análise teórico-crítica, se remete a adaptação do sujeito a um conhecimento já existente e quando dominante, pode incorrer em um cenário no qual a possibilidade de experiência torna-se inviável, impossibilitando o futuro egresso ao exercício da autonomia. “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 100), e esse é justamente o risco que se produz em um PPP com vistas a uma formação muito técnica do docente em Arte: que na busca pela destreza da técnica perde a possibilidade de experimentar, e consequentemente fomentar nos educandos, outras opções criativas de experiências sensitivas, inerentes ao processo de criação artística, levando-os a serem mais instrumentos de reprodução da sociedade dominante.
Conclusão
Refletindo sobre o Projeto Político Pedagógico como um documento que manifesta, além do disposto na legislação, subjetividades em diálogo que são inerentes a todo processo educativo/formativo, e que, portanto, possuem em si mesmos um posicionamento político presentes no registro do perfil profissional ou perfil do egresso, como também na grade curricular, cargas horárias e ementas, foi que objetivamos identificar se as tendências de ensino de Arte e a identidade profissional docente definida nesses PPPs colaboram, ou não, para o que Adorno denominava de formação cultural e semiformação, com a finalidade de identificarmos em que aspectos o documento nega a si mesmo.
Ao analisarmos os Projetos Políticos Pedagógicos alvos desta pesquisa, podemos perceber que grande parte da carga horária dos mesmos têm fortes ligações com a tendência técnica/profissional do artista, e essa característica ainda é bastante presente no percurso formativo das licenciaturas. No caso dos PPP´s analisados, em todos os projetos, podemos também indicar que as disciplinas voltadas ao aprimoramento/aprendizado de técnicas artísticas, apresentam pouca ligação com a educação, ou seja, apresentam-se como formação técnica do artista, dados os currículos e as ementas analisadas.
Nesse sentido, diante do cenário que se apresenta neste trabalho, também podemos pontuar que os projetos dos cursos de licenciatura em Artes Cênicas da UEMS, seguido do projeto do curso de licenciatura em Artes Cênicas da UFGD, apresentam maior similaridade no que tange às três tendências de ensino de Arte. E estes projetos, mesmo que de forma não intencional, apresentam também um maior equilíbrio entre as tendências, na distribuição de carga horária em relação aos projetos da licenciatura em Artes Visuais e licenciatura em Música da UFMS.
Podemos também inferir que, na medida em que se considere também que o desenvolvimento da formação docente em Arte é algo recente no Brasil, os cursos vêm contemplando as três dimensões do ensino de Arte descritas por Maura Penna (1999), e que esse fato contribui para uma experiência formativa emancipadora, uma vez que articula conhecimentos já instituídos, como os da formação técnica do artista a conhecimentos que exploram aspectos ligados à criticidade, como os que conduzem a pesquisa e a criatividade na exploração prática de uma linguagem artística.
No que tange especificamente às tendências do ensino de Arte, destacamos que os projetos analisados possuem certa similaridade e contemplam todas as tendências descritas por Maura Penna. Destacamos para possíveis excessos de carga horária em alguns projetos para a formação técnica do artista, esta que pode distanciar o futuro docente do universo da educação, haja vista que se mantém mais ligada à aprimoramento técnico. Podemos também alertar para a predominância da tendência de resgate de conteúdos, que pode se configurar como um isolamento da área, frente a todo o contexto educacional quando se fecha em uma só visão de arte. Além disso, quando centrada somente no ensino de determinada linguagem artística, a formação docente pode precarizar os conhecimentos específicos inerentes à ação profissional docente como planejamento educacional, organização do espaço pedagógico e avaliação, por exemplo.
Por outro lado, detectamos que existem alguns riscos ao desequilíbrio da relação adaptação versus autonomia quando o projeto passa a ter certa dominância de uma tendência em detrimento de outra. Um exemplo disso se revela quando a formação técnica do artista passa a ser dominante na proposta do curso. Além disso, conforme dados encontrados, a formação exclusiva para o ensino da linguagem artística se apresenta como majoritária e, com isso, deixando de lado conteúdos e conhecimentos inerentes à teoria e práticas pedagógicas fundamentais na formação docente. Esses aspectos podem conduzir à semiformação do professor de Arte, levando a uma prática pedagógica que irá se tornar mais um elemento de afirmação da realidade social imposta.
Ao longo deste artigo podemos notar que os PPP’s analisados vêm de maneira, maior ou menor, reformulando-se na tentativa de atender às mudanças de paradigmas que vêm ocorrendo no ensino de Arte, no âmbito da educação básica. Nesse sentido, destacamos que essas mudanças são bastante recentes e que a concretização dessas reformas no ensino de Arte e, consequentemente, na formação docente nesta área, ainda demandará tempo e estudos para que possamos observar de que maneira esses novos pressupostos irão ou não estar inseridos, tanto nas propostas de formação inicial docente em Arte, quanto nos consequentes processos educacionais advindos da prática docente dos egressos destes cursos.
Por fim, destacamos a importância da realização de estudos posteriores a este para que investiguem como os aspectos levantados neste trabalho estão adentrando no cotidiano da formação docente em Arte. Assim, as pesquisas de campo e os estudos de caso podem contribuir ainda mais para ampliar os questionamentos e a compreensão acerca da formação inicial docente em Arte, de modo a possibilitar a formação de um docente emancipado, capaz de construir processos pedagógicos em Arte que estejam compromissados com uma educação emancipatória do indivíduo.