Introdução
Não obstante ter tido uma vida breve, o rei D. Pedro V (1837-1861) ficou conhecido por dedicar atenção à causa pública, manifestando especial interesse pelo tema da educação. Culto1, de grande capacidade intelectual e, além do mais, viajado - realizou, em 1854-1855, o grand tour (uma prática de educação comum entre a nobreza europeia), visitando então Itália, Suíça, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha e França -, foi capaz de concretizar, justamente no campo educativo, alguns projetos de inegável mérito. Para isso concorreu, também, a circunstância de o seu reinado ter sido um dos mais consensuais da centúria de Oitocentos. (TORGAL, 1993). Citem-se, tão-somente, duas realizações: a criação da Escola Real de Mafra2, em 1855, ano em que D. Pedro V começou a governar; e, seis anos mais tarde, a inauguração do Curso Superior de Letras, que esteve na origem da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, fundada em 1911. (COUVANEIRO, 2012). De resto, o soberano deixou boa impressão no seio da instrução pública. Em novembro de 1864, por exemplo, celebrou-se na capela da Escola Normal de Lisboa uma missa em sua memória; algo que parece ter-se institucionalizado durante alguns anos. (SILVA, 2003). Por outro lado, um dos vultos da Pedagogia portuguesa, António Feliciano de Castilho, dedicou a segunda edição do “Método Português” ao infausto monarca. O próprio D. António da Costa, que ocupou a primeira pasta da Instrução Pública existente em Portugal, teceu-lhe encómios vários. (COSTA, 1871).
Com a divulgação de um conjunto de discursos escritos por D. Pedro V, pretende-se, no fundamental, contribuir para o conhecimento do seu pensamento pedagógico. Refiro-me a três discursos redigidos pelo próprio punho do rei nos anos de 1858 e de 1860, todos autógrafos, destinados a ser lidos num contexto muito particular: as sessões solenes de entrega de prémios aos alunos da Escola Real de Mafra3. De certo modo estamos perante documentos epistolares, no sentido em que encerram um face-a-face: entre quem lê um texto, dando-se a conhecer, e os destinatários (alunos e pais), os quais se sentem “olhados”; uma perspetiva que, no caso em questão, se afasta, forçosamente, da metáfora da carta como “conversa entre ausentes”. (PEIXINHO, 2013).
Há algumas ideias e princípios que emergem do conjunto de cartas agora publicado. Parece-me importante destacá-los, deixando, depois, ao leitor a possibilidade de as ler atentamente e de fazer a sua própria análise. Um dos pensamentos estruturantes da ação educativa de D. Pedro V é o de que as classes populares precisam de ser instruídas (crença na “regeneração do povo” através da escola). Expressa-o, implicitamente, na sessão de entrega de prémios realizada na Escola Real de Mafra, no dia 26 de agosto de 1858, ao afirmar: “tenho a simplicidade de acreditar que as escolas […] hão de formar a sociedade em que eu espero viver os meus últimos dias”4. Uma ideia de sociedade que é alimentada pela seguinte visão: “julguei que a Escola devia ensinar aos homens a união, ensinando-lhes a necessidade, que eles, qualquer que seja a sua posição recíproca, têm uns dos outros”5. Nesse pressuposto o monarca vai mais longe, ao ver na escola a forma de esbater as diferenças de nascimento (condição social). De facto, considera “as inteligências dos alunos como páginas brancas entre as quais se distinguiriam aquelas em que mais rapidamente ou melhor pudesse escrever o mestre”6. Perspetiva, assim, a escola como “uma pequena democracia, do seio da qual a cada momento nasce uma aristocracia”7. É essa, aliás, a filosofia que preside à fundação da Escola Real de Mafra; instituição educativa sob proteção régia, mas que, efetivamente, faz as vezes de escola pública - não dirigida, portanto, a um estrato social específico. (SILVA, 2003).
Outra linha de força do pensamento pedagógico de D. Pedro V prende-se com a emulação. Trata-se de um aspeto muito valorizado, conforme transmite ao príncipe Alberto, em carta datada de 7 de março de 1859, na referência à Escola Real de Mafra: “Sou eu próprio quem distribui todos os anos os prémios aos melhores alunos, e noto que se está a começar a revelar um verdadeiro espírito de competição entre as crianças relativamente a estas distinções”. (LEITÃO, 1954, p. 224). Do seu ponto de vista, é o princípio da emulação (e não outro qualquer) que deve presidir à distinção entre alunos. Porém, não deixa de ser paradoxal que um sistema de ensino alicerçado na ideia de competição, conforme sucedeu com a Escola Real de Mafra, seja capaz de criar valores de unidade e de inequívoca coesão de grupo. (SILVA, 2003). Mas é bom que se entenda que o reconhecimento público aos melhores alunos nas sessões de entrega de prémios pressupõe a valorização de todo o processo educativo (e não apenas esse ato solene). Disso mesmo dá conta D. Pedro V, ao dirigir-se, especificamente, aos pais dos alunos:
Aos pais dos alunos pediria eu que concorressem menos às festividades escolares, nas quais se expõem a dissabores que na sua mão estaria muitas vezes evitar, e frequentassem mais a aula nos dias ordinários; que não contassem só os prémios concedidos ou recusados no fim do ano, mas os títulos que, durante ele, dão direito a essas distinções8.
Por outro lado, interessa dizer que o soberano conhece bem os debates pedagógicos da época. Por exemplo, tem perfeita noção dos modos de ensino (individual, simultâneo, mútuo e misto) e das implicações resultantes da aplicação de cada um deles. Apresenta, de resto, justificações a respeito da organização pedagógica seguida na Escola Real de Mafra. Com efeito, no último discurso que proferiu no mencionado instituto de ensino, corria o mês de agosto de 1860, revela ter sido impossível adotar em exclusivo o ensino simultâneo. O óbice, o excessivo número de alunos. A solução adotada passa pela utilização de alunos mais adiantados (decuriões) no processo de ensino, traduzindo, na prática, a conjugação dos modos simultâneo e mútuo (modo misto). Note-se que o recurso aos decuriões tem por objetivo dar maior eficiência ao ensino, encerrando, ao mesmo tempo, uma visão de sociedade meritocrática. Atente-se na seguinte passagem: “fazer dos decuriões […] um elemento de decomposição do ensino e uma aristocracia amovível completando o sistema disciplinar, são necessidades que, de algum modo, se prejudicam”9.
No seu conjunto, os três discursos do monarca elucidam bem o vanguardismo do seu pensamento pedagógico, o qual se traduz, para além do que foi sendo referido, em algumas ideias ousadas. Cite-se apenas a seguinte: a vontade de conceder ao ensino público a seleção dos docentes (cf. Documento 3).
A sua ação - que toma forma na criação de instituições de referência (nomeadamente, a Escola Real de Mafra e o Curso Superior de Letras) - contrasta, ao mesmo tempo, com a extrema dificuldade em propagar a modernidade no panorama nacional10.