Introdução
O objetivo deste artigo é discutir sobre os espaços de formação do trabalhador no Estado de Minas Gerais, problematizando o sentido conferido às iniciativas de escolarização1 propostas pelos legisladores, proprietários de fábricas e representantes do incipiente movimento operário, nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX, quando se estabeleceu íntima relação entre as propostas educativas e os anseios de constituição de uma nação ordeira, civilizada e moderna. Nesse contexto, a educação escolar era reivindicada pelos diferentes grupos sociais como requisito primordial para a modernização, o progresso e a civilização, em discursos nos quais se anunciava a necessidade de se sintonizar o projeto educacional brasileiro com as ideias de modernidade que circulavam pelo Ocidente2.
O recorte temporal tem início no ano de 18913, quando tramitou, no Congresso Legislativo mineiro, o projeto que deu origem à primeira reforma do ensino republicano contendo uma proposição específica para o ensino profissional, em Minas Gerais, e finaliza no ano de 1920, quando este assumiu a forma de ensino complementar ao curso primário.
A análise toma como referência elementos presentes nas abordagens renovadas da História Política, corrente abrigada, de acordo com Veiga (2003), na perspectiva da História Cultural. Segundo Barros (2011, p. 39), a “[...] grande parte dos objetos historiográficos e das temáticas mais visitados pelos historiadores, nas décadas recentes, têm apresentado em sua rede de confluências, a presença da Cultura e a Política [...]”, ancoradas na Nova História Cultural e na História Política, na perspectiva renovada. A primeira é compreendida como um “[...] campo do saber historiográfico atravessado pela noção de ‘cultura’[...]”, assim como “[...] a História Política é o campo atravessado pela noção de ‘poder’” (Barros, 2003, p. 145, grifo do autor). Segundo o autor, fazem parte do universo de abrangência da história cultural as noções de linguagem, as representações e as práticas discursivas, partilhadas por diversos grupos sociais, interessando, assim, os sujeitos que as produzem e os seus receptores, bem como as agências de produção e difusão cultural dentre as quais se encontram instituições - como a escola, os partidos, as associações etc.-, e organizações socioculturais e religiosas, como os clubes, a sociedades etc. Interessam, ainda, os códigos de valores de uma época, representados pelos sistemas normativos que constrangem os indivíduos, tais como as leis, as normas, os regulamentos.
Desse modo, tomamos como fontes a legislação educacional, os relatórios dos inspetores de ensino, os Anais e os jornais mineiros. Sobre tais fontes, vale a consideração de que a compreensão da lei, por si só, não nos permite apreender todo o jogo político, de disputa e negociação em meio ao qual a legislação é engendrada e, em função disso, fundamental foi a análise dos Anais do Congresso Mineiro para a compreensão da gênese das leis. Como diz Saviani, “[...] a única maneira eficaz de esclarecer o significado do produto é examinar o modo como foi produzido e, por isso, examiná-lo nos permite compreender o seu significado político” (2002, p. 2). Buscando diversificar as fontes, lançamos mão, também, da imprensa periódica, por meio dos jornais que circulavam à época em Minas Gerais4. Consideramos que essa “[...] fonte por excelência é o testemunho de época, escrito se possível no momento do acontecimento, o que protege contra o anacronismo psicológico” (Becker, 2003, p. 197). O nosso corpus documental encontra-se disponível nos acervos físico e virtual do Arquivo Público Mineiro, na Biblioteca da Assembleia Legislativa e na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Estruturamos este artigo em quatro seções. Na primeira, situamos o debate educacional no projeto de construção do Estado republicano. Na segunda, a análise recai sobre os debates em torno das reformas do ensino, buscando compreender como as escolas primárias foram se constituindo como espaço privilegiado de formação profissional. Na sequência, recuamos no tempo para entender um pouco mais acerca do processo de formação dos trabalhadores que veio se desenvolvendo no interior das primeiras fábricas têxteis mineiras. Tomamos as escolas e as fábricas como espaço de instrução elementar e de construção de uma nova ética para o trabalho. Por fim, no enredo do desenvolvimento industrial de final do Oitocentos, buscamos conhecer os espaços de formação da nova classe trabalhadora na pauta do nascente movimento operário mineiro.
A reinvenção da escola na república
Nos tempos iniciais da República, novas demandas educativas foram postas pelas mudanças advindas da necessidade de integração do povo à nova ordem republicana, e, dentre elas, destacamos a formação da criança, do jovem e do adulto, pela via escolar. Isso demandou a necessidade de se reinventar a escola, como imperativo de atendimento ao projeto de modernização5 em curso e, ainda, como forma de elevar esses sujeitos ao status de cidadãos. Uma cidadania que tinha, nos valores da República que se almejava construir, o seu avatar. Para isso, por um lado, era preciso superar o arcaísmo que a escola vinha representando, especialmente pelas suas manifestações de atraso e precariedade e, por outro, pelo que ela passaria a representar como alternativa de construção de um projeto de sociedade civilizada, republicana, portanto, que atendesse aos novos reclames de controle e de homogeneização social e política.
A perspectiva de reinvenção da escola, por meio das políticas educacionais, evidenciava a contribuição que essa instituição poderia dar ao projeto de homogeneização social, pelo menos na intenção de seus construtores. A esse respeito, tomando a defesa da criação dos grupos escolares como referência, Luciano Mendes de Faria Filho assim se expressou:
A criação dos grupos escolares era defendida não apenas para ‘organizar’ o ensino, mas, principalmente, como forma de ‘reinventar’ a escola, objetivando tornar mais efetiva a sua contribuição aos projetos de homogeneização cultural e política da sociedade (e dos sujeitos sociais), pretendidos pelas elites mineiras. Reinventar a escola significa, dentre outras coisas, organizar o ensino, suas metodologias e conteúdo; formar, controlar e fiscalizar a professora; adequar espaços e tempos ao ensino; repensar a relação com as crianças, famílias e com a própria cidade (Faria Filho, 2000, p. 31, grifo do autor).
Produzir uma nova escola, mediante o desafio de produzir, e, consequentemente, uma nova forma de organização da sociedade e do Estado foi o desafio enfrentado pelos sujeitos que ocuparam os lugares de gestão e de controle da vida da população mineira, tanto no setor público, nos espaços do Poder Executivo e do Legislativo, quanto no privado, por empresários, proprietários de terra, líderes operários, dentre outros.
Fazendo uso dos referenciais da cultura política, é possível percebermos que, mediante os investimentos envidados para reformar a instrução, ensejando melhorias na funcionalidade da escola, havia a crença depositada na eficácia da escola como viabilizadora da produção e reprodução das formas sociais de vida e de inclusão da população na sociedade requerida, por meio da divulgação da instrução intelectual, física e moral.
Essa crença na escola, denotada pelo entrelaçamento entre projetos de sociedade e projetos de educação, tem relação direta com o que é denominado, por Serge Berstein, de vetores. Isso porque tais vetores são os meios pelo quais passa a integração de múltiplas referências culturais, responsáveis pelo estabelecimento de normas e valores determinantes da representação que determinada sociedade produz de si mesma (Berstein, 1998). No caso da República brasileira, o estabelecimento daquelas referências desempenhou papel dominante, criando os espaços férteis para a geração de uma cultura que se desejava implantar por meio da escola. Portanto, pode ser afirmado que era a República se fazendo pela via da escola.
Assim, para os intelectuais, políticos, legisladores, empresários e representantes do operariado, havia íntima relação entre as propostas educativas e de instrução com as propostas de constituição de uma nação civilizada, moderna. De igual modo, a necessidade de educar e instruir o povo para a garantia da ordem social e a formação técnica foi o meio utilizado para a consecução do projeto de incorporação do povo à nação6.
Em Minas, assim como em outras unidades da federação brasileira, não era raro encontrar essa ideia de que a educação era instrumento transformador da sociedade, mesmo porque essa correlação estava presente nos discursos dos políticos desde o início do século XIX. Os discursos revelavam esse entendimento, como pode ser constatado nos debates por ocasião da tramitação da primeira lei republicana sobre a instrução, nos anos de 1891 e 18927. O senador Virgílio Martins de Mello Franco mobilizou argumentos que corroboram essa correlação ao destacar que “[...] a instrução pública é o fator mais direto e mais poderoso na obra progressiva da civilização” (Mello Franco, 1892, p. 1039). Já o senador Joaquim Cândido da Costa Senna complementou essa ideia destacando o papel da educação na construção da cidadania do povo mineiro:
[...] a instrução que chamamos primária, deve e deve sempre correr por conta do Estado, porque é essa instrução que abre aos meninos as portas de seus direitos, deveres e interesses; é esta instrução que é a destinada a fazer do menino um cidadão (Senna, 1892, p. 188).
Em outro âmbito da Casa Legislativa, o deputado Manuel Teixeira da Costa expressou o que a reforma da instrução representava para o Estado:
A nobre comissão apresentou um projeto que a honra, porque vai inaugurar uma nova era para o nosso Estado que precisa deveras da instrução; eu não compreendo como se possa entrar em um sistema novo como o atual, em que se dá o direito de voto só a quem sabe ler e escrever, sem que haja a instrução, e esta regular e compatível com nossas circunstâncias (Costa, 1891, p. 365).
O que está expresso na fala do deputado quanto ao fato de a proposição inaugurar uma nova era dizia respeito à necessária adequação do projeto ao modelo de república que se estava concebendo no Estado. Nesse sentido, é pertinente o exame de como essa questão apareceu no debate da Câmara e do Senado. Primeiramente, vale o registro de que, para os legisladores, a relação instrução e forma de governo era bastante estreita. Isso pode ser visto, por exemplo, na afirmação do deputado Gomes Henrique Freire de Andrade quando afirmou que “[...] foi a instrução pública em todos os tempos uma arma política de que serviam os grupos que se revezavam no poder” (Andrade, 1891, p. 384). Segundo ele, não foi diferente no império e não o seria, portanto, na república. Por isso, os esforços envidados deveriam ser desdobrados, principalmente quanto ao trato dos investimentos financeiros para construção de prédios escolares, melhoria da remuneração do professorado e alternativas de busca de recursos para o financiamento da instrução, como o estabelecimento do Fundo Escolar, por exemplo. Aliou-se a isso o investimento de uma proposta de instrução que garantisse o preparo do cidadão para o serviço de sua pátria, com a efetivação da obrigatoriedade. O cidadão, em referência, era a criança matriculada na escola primária e profissional onde receberia formação cidadã. Entretanto não era somente a criança que requereria a atenção dos legisladores e da elite letrada do Estado, mas também o jovem e o adulto trabalhadores.
Pensando no entrelaçamento da produção da república e da produção da escola, em concomitância, as discussões do projeto de lei da instrução giraram em torno de uma conformação que visava adequá-lo ao modelo de sociedade que se aspirava. Nesse sentido, o que disse o senador Mello Franco, anteriormente, sobre a instrução pública como fator direto e poderoso ‘na obra progressiva da civilização’ reforça-se na sua própria afirmação de que a formação de professores e a criação de escolas seriam prevenções contra a criminalidade. A esse respeito, disse o senador:
[...] a instrução pública é tão essencial que se pode ter como um axioma que, a criação de um mestre é a supressão de um carrasco e a criação de uma escola, a supressão de uma cadeia, que a estatística da criminalidade anda paralelo com a instrução generalizada (Mello Franco, 1892, p. 1039).
Nessa afirmação, Mello Franco chamou a atenção do Senado para o papel que os legisladores teriam na produção de leis que visassem difundir a instrução, entendida como forma de profilaxia criminal, representação forte que perpassa o imaginário político e social sobre o papel da educação, até os dias atuais. Ainda, para ele, não era suficiente o legislador produzir leis somente com a finalidade de disseminar a instrução e iluminar a consciência do povo, mas, teria que se preocupar com a fortificação do caráter do povo e, também, com os meios de “[...] melhorar as suas condições econômicas” (Mello Franco, 1892, p. 1039)
Essa argumentação do senador relacionava-se com a tese, por ele defendida, de que a primeira lei republicana não deveria se preocupar somente com a instrução, mas também com a educação. A instrução, referida pelo senador Mello Franco, consistia no ensino da leitura, da escrita e da aritmética, além de algumas noções de Ciências Naturais, de Física, de Química, de Geografia e de História. Para ele, o projeto de lei cogitava ‘mais da instrução do que da educação’. Assim, chamou a atenção dos colegas para a função educativa da escola na ‘formação do caráter’ da criança, pois era essa a formação que tinha ‘importância na sociedade’, naquele momento histórico de construção do novo (Mello Franco, 1892). Ao ressaltar isso, reafirmava a necessidade de se associar a proposta para a instrução pública ao princípio republicano que se iniciava e que demandava a formação de um espírito de civismo nacional.
Essa posição, assumida pelos políticos que ocupavam o espaço do Congresso Legislativo Mineiro, de educar o caráter da criança fez coro com as posições de outros intelectuais brasileiros e mineiros, principalmente advogados, médicos e empresários. Nesse sentido, como afirmado por Marcos César Alvarez, houve, nos tempos iniciais da República, preocupação com a crescente pobreza urbana e com o aumento significativo do número de crianças e jovens pobres, abandonados e delinquentes, o que motivava uma mobilização na busca de estratégias “[...] que visavam não apenas criar novos instrumentos de controle social [...]”, mas também adequar as condutas “[...] às exigências colocadas pela marcha da civilização e do progresso”. Assim, surgiram ações efetivas, nos vários campos da vida social, que visavam, também, “[...] promover uma moralização dos modos de vida das populações urbanas” (Alvarez, 2003, p. 158).
Nesse contexto, a educação ganhou lugar de proeminência, principalmente, a educação moral e a educação pelo e para o trabalho. No interior das discussões da criminologia, pensava-se, principalmente, numa educação moral para as crianças que ainda não haviam se delinquido, mas que representavam riscos potenciais à delinquência, e a educação pelo trabalho, para aquelas crianças já consideradas delinquentes, nos espaços das oficinas, nos cursos de formação profissional, nas escolas públicas e privadas.
De fato, essa é uma questão que perpassava o discurso da elite política e intelectual, dentre outros, que estiveram imbuídos do pensar a educação republicana. Nesse momento, em que ocorria no país forte desenvolvimento urbano e industrial, crescia entre os republicanos a preocupação em torno da necessidade de formação do trabalhador nacional, papel que deveria ser desempenhado pelas escolas. Essa formação deveria contemplar tanto as primeiras letras, condição de usufruto da cidadania, quanto o ensino técnico, condição de progresso material e de inserção do Brasil na modernidade, representada pela indústria e pelas relações livres de trabalho. O que temos constatado em nossas pesquisas, ainda, é que a escolarização dos sujeitos trabalhadores, criança, jovem ou adulto, nos primórdios da república, cumpriria também outra função, de natureza política, de modo a concretizar um processo de formação de um código de condutas específico e de construção de valores indispensáveis ao trabalho industrial moderno. Essa formação ocorria em variados espaços, tais como no interior das escolas isoladas das fábricas, das escolas, das associações operárias e dos grupos escolares.
A escola primária como espaço para a formação de uma ética para o trabalho
A escola primária e a escola profissional foram pensadas e produzidas para serem instrumentos de formação de crianças, sobretudo das camadas pobres e trabalhadoras, tanto no aspecto da instrução escolar - onde recebiam a instrumentalização dos conteúdos ministrados nas salas de aula - quanto no da educação, que contemplava a formação das sensibilidades e de uma moral requerida pela cidadania republicana. Essa é uma situação visualizada e constatada nos discursos das leis e daqueles que se ocuparam da sua criação e implementação, como os deputados e senadores, responsáveis diretos pelos trâmites legislativos, e os que fizeram parte dos governos, no Executivo. Assim, podemos afirmar que a produção da escola se deu no rigor e no império das leis, como veremos.
A lei nº 203, de 1896, pode ser considerada a expressão mais incisiva entre as inciativas de criação do ensino profissional primário no Estado, ao propor a criação do Instituto de Educandos e Artífices, com a função de formar operários e contramestres, ministrando-se a destreza manual e os conhecimentos técnicos. Essa proposição previa que o ensino seria realizado em institutos oficiais sob a forma de internato e se destinaria, principalmente, às crianças ‘desvalidas da fortuna e da sorte’, com idade entre nove e 13 anos. Previa a aprendizagem dos ofícios de armeiro, abridor, alfaiate, chapeleiro, carpinteiro, ferreiro, cuteleiro, dourador, litógrafo, pedreiro, oleiro, ourives, sapateiro, fundidor, dentre outros. Seu funcionamento se daria sob a orientação de um profissional com a competência do exercício da profissão. A intenção era a de oferecer ao operariado a inserção na sociedade moderna por meio do conhecimento das técnicas e das primeiras letras, e o ensino profissional cumpriria o papel de atender ao novo mundo do trabalho que surgia.
Essa modalidade de formação escolar, ainda que não tivesse alcançado êxito no curto prazo, veio a ser implantada em diferentes locais do Estado, a partir de 1906, com o objetivo de tornar a escola primária um centro de preparação para a inserção da criança no mundo do trabalho, pela via de uma formação ética. E foi em 1906, estando na presidência do Estado João Pinheiro da Silva, que houve uma reformulação mais contundente do ensino, tendo na criação dos grupos escolares a vinculação efetiva do ensino profissional ao primário. Pela lei nº 444, de 1906, criou-se o Ensino Técnico Prático e Profissional, como complementar ao grupo escolar, criado pela lei nº 439, do mesmo ano.
Sancionadas tais leis, começaram a ser implantadas, anexas aos grupos escolares, várias escolas técnicas primárias pelo território mineiro8. A organização das escolas não se deu de forma linear, visto que não havia um padrão de horários a serem cumpridos, ou seja, em algumas escolas o ensino profissional funcionava em intervalos de aulas do ensino primário, ou para suprir a ausência de algum professor. Mesmo havendo uma lei a ser seguida, cada instituição de ensino escolarizou os ofícios com características distintas, sobretudo adequando-os às demandas locais.
É importante considerar que a criação de grupos escolares e escolas profissionais foi acompanhada de uma política de governo mais ampla, com vistas ao atendimento do desenvolvimento econômico do Estado, que priorizou a produção agrícola sob a égide de que Minas Gerais poderia se tornar o celeiro do Brasil. A indústria agrícola, considerada a base da economia mineira, incentivou significativos investimentos na infraestrutura do ensino agrícola e nas modalidades de instrução elementar e prática. Resultante das ações do Estado, foi inaugurado em Belo Horizonte, em 1909, o Instituto João Pinheiro, acoplado à fazenda-modelo da Gameleira, com o intuito de transformar crianças e jovens ‘desvalidos da sorte’ em futuros lavradores. Tal iniciativa foi parte de uma proposição de criação das fazendas-modelo e fazenda-escola9.
Em 1910, o decreto nº 2.836 autorizou o presidente do Estado, Wenceslau Brás Pereira Gomes, a promover outra reforma do ensino, o que, por meio do decreto nº 3.191, de 1911, ocorreu, trazendo modificações relacionadas ao ensino profissional. Nele, o curso técnico primário passou a ser tratado como ensino complementar, funcionando como acessório dos grupos escolares, cujas finalidades eram ampliar e integrar o primário, com o ‘caráter acentuadamente profissional’. Com a reforma, essa modalidade de instrução ganhou nova forma e ampliou seu âmbito de atuação na formação para a atividade na agricultura e industrial, nos grandes centros populosos. Quanto ao ensino, compreendia um conjunto de estudos que iam desde a física e a química, passando pela agronomia, trabalhos manuais, desenho, até a escrituração mercantil. Assim, o ensino técnico passou a ser visto como um espaço de formação do trabalhador jovem, ou seja, ocuparia o espaço de um instituto de iniciação profissional e de uma cultura operária que poderia ser eficaz. Ressaltamos que, até então, a formação do trabalhador vinculava-se à educação primária e estava voltada para a formação de uma ética para o trabalho.
A partir de 1920, a formação do trabalhador foi se deslocando para o ensino secundário e superior e, por conseguinte, alterou-se do sujeito criança para os sujeitos jovens e adultos. Esse deslocamento, no caso de Minas Gerais, já se encontrava presente na discussão da lei nº 800, de 1920, quando o ensino profissional passou a se referir ao ensino complementar que se dava após a conclusão do ensino primário, ou seja, passou a ser caracterizado como um tipo de ensino pós-primário, diferentemente do que vinha se dando até então, de vinculação do ensino profissional ao primário. A referida lei previa o ensino complementar nos âmbitos agrícola, comercial e industrial. Essa assertiva encontra respaldo na fala do deputado Mário Brant, relator da Comissão de Instrução Pública da Câmara de Deputados, quando afirmou que
[...] a experiência de todos os países já demonstrou que o menor não deve passar da escola primária diretamente para a oficina ou para a escola profissional, porque não colherá muito proveito dessa transição brusca. É necessário entre a escola e a oficina, em estágio de educação manual, que não é, propriamente, o de educação profissional especializada. Em todos os países, depois de se haver adotado a escola profissional para o recebimento direto dos alunos das escolas primárias, chegou-se à conclusão de que esse sistema não é conveniente, de sorte que trataram de modificá-lo criando escolas médias ou superiores, ou escolas complementares propriamente ditas (Brant, 1920, p. 705).
Toda discussão em torno da readequação do ensino profissional, compreendida como fator-chave do desenvolvimento social e base da construção do homem moderno, voltava-se para a necessidade de mudar a organização da educação pública no Estado, com vistas ao atendimento mais imediato da formação requerida ao trabalhador pela industrialização nascente e em pleno crescimento.
No entanto, embora adquirisse acentuada importância nos discursos dos legisladores republicanos, as iniciativas voltadas para a educação dos trabalhadores mineiros já vinham sendo desenvolvidas desde as últimas décadas do século XIX quando os empresários mineiros do setor fabril assumiram a responsabilidade pela instrução elementar e pela formação profissional dos seus operários, no interior das fábricas e nas escolas a elas contíguas.
A escolarização dos operários nas fábricas mineiras
O setor industrial fabril10 demarcou a sua atuação no âmbito da educação do operariado a partir dos anos 70 do Oitocentos quando se instalou em Minas Gerais a Fábrica do Cedro11. Pioneira no ramo têxtil, a Cedro também foi a pioneira na criação e manutenção de escolas primárias para os seus operários. Normalmente, as escolas funcionavam no interior das vilas operárias ou nas dependências da própria fábrica, como foi o caso da Cedro que, a partir de 1874, passou a oferecer, gratuitamente, moradia, alimentação e educação para os seus operários, em duas escolas, uma noturna e outra diurna. Essa iniciativa acabou influenciando outras fábricas que também passaram a oferecer aulas de instrução primária para os seus operários12.
De modo geral, podemos afirmar que a preocupação com a educação dos operários esteve presente na agenda dos empresários do setor têxtil, desde a gênese das próprias indústrias, em Minas Gerais. Mas, o que estaria mobilizando esse segmento? A que público as escolas das fábricas estariam atendendo? Por que investir no ensino dos operários? Essas questões remetem a, pelo menos, dois aspectos presentes no processo de constituição da classe de operários, um que guarda semelhança com que ocorreu na Europa, nos primórdios da industrialização inglesa, e o outro peculiar do contexto brasileiro, a composição do operariado e a consequente necessidade de sua formação.
Segundo Edward Palmer Thompson (2001), na constituição da classe operária inglesa, as mulheres, juntamente com as crianças, formavam o maior contingente dos trabalhadores. Entretanto o trabalho infantil não era novidade naquele contexto, tendo sempre existido sob a forma de sistema doméstico ou praticado no seio da economia familiar. A presença majoritária desses sujeitos na produção industrial de tecidos, nos primórdios do capitalismo, também foi destacada por Eric Hobsbawm (1979), Luzia Margareth Rago (1985, 1997) e Michele Perrot (1988). A criança inglesa “[...] era parte intrínseca da economia industrial e agrícola antes de 1870 e continuou da mesma forma até ser resgatada pela escola [...]”, o que ocorreu após a criação da Lei das Fábricas13, em 1833 (Thompson, 2001, p. 203). Tal como ocorreu na Inglaterra, a força de trabalho feminina e a infantil representavam a maior parte do operariado mineiro e, no caso do trabalho infantil e adolescente, nas fábricas têxteis do Estado de Minas Gerais, eram utilizados muitos órfãos, principalmente, com idades abaixo de 14 anos. Às vésperas da República, os números indicavam que, aproximadamente, 90% da mão de obra infantil eram compostos de crianças expostas ou abandonadas.
O segundo aspecto se relaciona à composição social do operariado mineiro. Além de trabalhadores livres ou libertos, integravam o conjunto do operariado mineiro os escravos, pertencentes aos donos das fábricas ou alugados, notadamente para o trabalho no entorno das fábricas. De acordo com Domingos Antonio Giroletti (1988), segmentando o operariado fabril podiam se encontrar crianças, órfãos e desvalidos, mulheres (viúvas e órfãs), homens livres e escravos, camponeses autônomos ou indivíduos pobres e sem profissão definida. Foi dessa ‘amálgama social’ que se formou o operariado industrial de Minas Gerais (Giroletti, 1988). Somava-se a essa situação o fato de o maquinário das fábricas ser importado da Europa, o que impunha novos requisitos de qualificação aos trabalhadores. Nesse caso, a fábrica introduziu, além de uma nova segmentação no processo de produção, também novas funções, algumas exigindo dos operários maior especialização técnica, e outras mais simplificadas que, por não exigirem qualquer preparação prévia, teriam levado à incorporação massiva das mulheres e das crianças na realização das atividades.
Tarefa complexa, a transformação desses trabalhadores em operários fabris exigiu um investimento de longo prazo que mobilizou o Legislativo e o Executivo mineiros, como já vimos, que empreenderam esforços no sentindo de reformar a escola para formar o cidadão e trabalhador republicano. E, tomando parte desse processo de formação, com uma mão de obra bastante jovem (cerca de 40% em idade escolar), os empresários investiram na instalação de escolas, movidos, por um lado, pelas exigências impostas pela fábrica moderna e, por outro, pela imposição da obrigatoriedade escolar, vigente naquele momento14.
O processo de transformação do trabalhador em operário, ou a formação do operário para a indústria moderna, demandava três tipos de exigências: uma de natureza técnica e as outras duas de natureza mais subjetiva. A primeira, decorrente da necessidade de se aprender a operar as máquinas, requeria a aprendizagem das habilidades técnicas e mecânicas. A outra exigência, de natureza ideológica, remetia à necessidade da internalização de novas posturas, novas atitudes e disposições, ou da criação de um novo habitus, caracterizado pela disciplina, assiduidade, frugalidade de vida, morigeração sexual e alcoólica etc. A necessidade, portanto, de transformação dos trabalhadores implicava na imposição da ordem e da disciplina como comentou Geraldo Mascarenhas:
Imaginemos, agora, há um século, em pleno sertão de Minas, onde ninguém poderia sequer vislumbrar o que significava o trabalho industrial, a transformação que se deveria operar em cada trabalhador para dotá-lo dos conhecimentos necessários ao exercício de sua função, à proteção das máquinas, a de sua própria pessoa contra acidentes; fazê-lo compreender e aceitar a disciplina. Transformá-lo em trabalhador da indústria, disciplinado, diligente, cônscio de seus deveres e apto a cumpri-los, eis o grande trabalho a ser executado daí por diante, pelos dirigentes da Fábrica do Cedro. Dessa transformação dependia a utilização do maquinismo e a eficiência com que os trabalhadores desempenhariam suas funções (Mascarenhas, 1972, p. 66).
Faziam parte desse processo de transformação, portanto, os empresários donos das fábricas, os operários que vinham acompanhando o maquinário importado e que ensinavam os nacionais a operá-las e, por fim, as agências da formação, constituídas pela própria fábrica, associada às vilas operárias, e as escolas que ali funcionavam. As escolas das fábricas cumpriam, assim, importante papel no processo de transformação dos operários, por meio de suas normas, seus regulamentos, das rotinas fundadas na racionalização do uso dos tempos, da exigência da atenção, da contenção de gestos, da fala, enfim, do seu próprio corpo.
Embora não existissem em grande proporção, as escolas mantinham um número relativamente elevado de matrículas e atendiam nas aulas diurnas, no geral, aos filhos dos operários e às crianças da comunidade do entorno das fábricas, e, nas escolas noturnas, aos próprios operários, homens e mulheres que, muitas vezes, revezavam o turno de trabalho com as aulas. Essas escolas poderiam receber subsídios do governo tanto na forma de materialidade (livros didáticos, de escrituração e utensílios pedagógicos) quanto na de recursos pecuniários, além de, em alguns casos, serem regidas por professoras remuneradas pelo governo. A única exigência que havia para o recebimento de subsídio era o cumprimento dos Regulamentos da Instrução, especificamente, no que se referia ao programa oficial, que previa o ensino de leitura elementar, de doutrina, de escrita e aritmética, verificado durante as visitas dos inspetores escolares.
Uma das fábricas mais longevas na manutenção de escolas, a Fábrica do Cedro, mostrou, no seu livro de matrículas do ano de 1918, a presença de 100 crianças. No ano de 1929, esse número subiu para 195, dos quais 98 pertenciam ao sexo feminino. Já a Fábrica da Cachoeira contava, em 1899, com 33 alunos na escola diurna e 30 na noturna particular do sexo masculino, número que aumentou consideravelmente a partir do final da década de 1910.
O relato da visita do inspetor regional, Arthur Queiroga, à escola noturna da Fábrica Cedro & Cachoeira, no ano de 1917, nos permite conhecer um pouco mais dessa realidade:
Continua a funcionar na fábrica a escola noturna para operários, regida pela professora D. Bernardina Alves de Assis. Tem esta aula 61 alunos matriculados, estando presente 55, divididos em classes correspondentes mais ou menos aos dois anos do programa oficial. Há progresso lento em tal escola, não podendo ser por menos, visto a sua natureza, tratando-se de alunos duros pela passagem da idade escolar e cansados pelo serviço mecânico durante o dia. Certo é que a professora algo faz, prestando o alto serviço de integrar ao alfabetismo seres já perdidos para ela, mediante a gratificação de 60 mil réis (Queiroga, 1917).
O inspetor corrobora a exigência de utilização do programa de ensino oficial, destacando, porém, a lentidão do aprendizado dos alunos, operários adultos que trabalhavam nas fábricas durante o dia. Por outro lado, enaltece o trabalho da professora, permitindo-nos inferir que ela também ministrava aulas em escolas diurnas, visto receber por esse trabalho uma gratificação.
A iniciativa dos proprietários de fábricas, de investir na escolarização de seus operários e familiares pode ser compreendida como parte de um projeto mais amplo de educação que estaria desempenhando um duplo propósito: por um lado, cumprir com as exigências legais relativas à obrigatoriedade escolar e, por outro, formar os trabalhadores no sentido do disciplinamento para a cultura do trabalho fabril por meio da inculcação dos valores e da ética indispensáveis ao trabalho.
A formação dos trabalhadores nas escolas operárias
O incipiente desenvolvimento industrial do final do XIX, representado principalmente pelas fábricas têxteis, fomentou o processo de constituição de uma nova classe cuja organização em associações, inicialmente mutualistas, possibilitou a criação de diversas escolas noturnas para atendimento à nascente classe operária mineira. A mobilização operária, embora bastante localizada, concentrou-se nas regiões centrais e na mata mineira, em decorrência da presença dos centros industriais, principalmente em Juiz de Fora, onde o movimento operário alcançou sua maior vitalidade em termos de atuação e de resistência15. As dificuldades de constituição da classe operária foram muitas, pois, como vimos na seção anterior, o proletariado emergente conviveu, lado a lado, com o trabalhador cativo, com o liberto, com o trabalhador não remunerado e com crianças e mulheres, em sua grande maioria.
Foi no início do século XX que, em Minas Gerais, se realizou o 1° Congresso Operário Mineiro16 que congregou as diversas agremiações operárias existentes no Estado para discutir, entre suas teses, a questão da educação e da instrução dos trabalhadores. Para os congressistas, a instrução era a condição primordial da cidadania e da atuação como força política, devendo, para isso, ‘fazer guerra ao analfabetismo’. Como orientação, nesse sentido, deveriam as associações fundar escolas noturnas em suas sedes e, especialmente, nos grandes centros fabris. Essa era uma demanda urgente, visto que as escolas diurnas, definitivamente, não atendiam às necessidades dos operários, o que se comprovaria com uma série de argumentos, como bem se destacou durante o evento: a presença de um “[...] grande número de moços sem recursos para frequentar escolas diurnas [...]” nos centros industriais; a incompatibilidade de horários entre “[...] os diversos estabelecimentos de instrução pública [...]” e o trabalho da “[...] mocidade laboriosa, inteligente e amante da instrução [...]”, que não podia se instruir “[...] devido a mil dificuldades [...]”, isto é, à incompatibilidade entre o tempo escolar e o tempo de trabalho (Primeiro congresso..., 1907, p. 3).
Acrescentada a todas essas situações, os congressistas destacaram, conforme já vimos anteriormente, a enorme quantidade de crianças trabalhando nas fábricas:
[…] por falta de recurso de seus pais para os alimentar, tratar e mantê-los em escolas onde ao menos concluir o curso primário, são obrigados à força imperiosa da necessidade, a empregá-los nas fábricas ficando essas crianças ipso facto condenados ao analfabetismo humilhante e contristador em que vivem, sem que até agora tenham a regalia de ver seus cérebros iluminados pelos raios da instrução que a Lei lhes promete (O Confederal, 01 jul. 1907, p. 2).
Tem início, dessa forma, a partir do início do século XX, uma grande preocupação dos líderes das organizações operárias com a presença das inúmeras crianças nas fábricas. No entanto, pelos discursos desses sujeitos, não era o fato de haver crianças trabalhando o que se questionava, mas, sim, o impedimento delas de frequentarem a escola primária. A instrução primária dos operários adultos e das crianças tornou-se, assim, uma das principais pautas do nascente movimento operário mineiro. Para os líderes, tratava-se de uma questão ‘vital’:
A aspiração basilar não podia ser mais nobre, mais dignificadora. A ignorância do homem de trabalho é o seu pior inimigo. A cegueira espiritual é o grande fator das rebeldias injustas e perniciosas aos próprios operários. Para que chegue o operário à clarividência do seu destino e saiba de que modo deve agir na consecução de seu bem-estar, é preciso difundir pelas oficinas a instrução, movendo a campanha exterminadora ao analfabetismo. Foi isto que bem compreendeu o Centro Confederativo do Estado, quando em sua aludida exposição ao governo e aos operários, tratou larga e cuidadosamente da necessidade da instrução operária, como a ‘questão mais importante, mais vital’ para a sorte do proletário (O Confederal, 01 jul. 1907, p. 1, grifo do autor).
Embora a decisão do I Congresso Operário tenha sido a de estimular a criação de escolas noturnas para os operários mineiros, constatamos que essa já era uma prática no Estado desde finais do século XIX, favorecida pela legislação que assegurava aos particulares ou às associações e às municipalidades a liberdade de ministrar o ensino. Não nos foi possível identificar o momento de surgimento dessas escolas nas associações, embora tenhamos localizado vários documentos mencionando-as, como relatórios de inspetores, correspondências encaminhadas à Secretaria do Interior e representações enviadas ao Congresso Mineiro. As primeiras menções datam do ano de 1901 (Escola Operária, do sexo masculino, de Guanhães) indo até por volta do final da década de 1920, quando o jornal O Operário, da Confederação Católica do Trabalho, ainda anunciava os cursos noturnos que funcionavam nas sedes dos diversos sindicatos mineiros, tais como Sindicato dos Carroceiros, dos Marceneiros, dos Carpinteiros, dos Mecânicos e Eletricistas, além do Sindicato dos Empregados em Fábricas de Tecidos etc. (Grossi & Faria, 1982).
As escolas operárias também se submetiam à fiscalização do governo, principalmente se subsidiadas. Nas visitas, os inspetores verificavam não somente o aprendizado dos alunos como também se havia ‘ordem e disciplina’, elementos fundamentais na formação dos operários, como podemos ver nas palavras do inspetor municipal, José Luiz da Cunha Horta, publicadas em um jornal local:
Gentilmente fomos recebidos pelo hábil professor, penetramos no edifício, onde está instalada a escola, o qual é bastante arejado. Notamos para logo a ordem e o mais severo respeito dos alunos. […] examinamos a diversos alunos em aritmética, leitura, caligrafia, etc., apresentando alguns deles muito aproveitamento (Jornal do Comércio, 1901, p. 1).
Se as escolas operárias se dedicavam ao ensino das primeiras letras, onde, então, se daria a formação política do trabalhador mineiro? O Regimento Interno da Escola noturna da Confederação Auxiliadora dos Operários do Estado de Minas Gerais17, datado de 1912, nos fornece alguns indícios, logo no seu primeiro artigo:
É expressamente proibido aos alunos: (a) toda e qualquer palestra dentro da Escola (b) cuspirem no assoalho; (c) saírem dos seus lugares, sem permissão do professor (d) retirarem-se da aula sem permissão do professor (f) fazerem inscrições nos móveis, nas paredes e nas portas do edifício, danificarem os mesmos e os utensílios escolares; podendo o professor responsabilizar ou fazer reparar o estrago ou dano causado. (Confederação... 1912).
Refletindo com Angela Alonso (2012), podemos compreender as palestras como parte do repertório de ação do incipiente movimento operário mineiro e, bem assim, como algo que deveria acontecer no lugar considerado apropriado, o que não era, definitivamente, aquele espaço escolar. A instrução primária não se confundiria, dessa forma, com a formação política, pois tinha-se, explicitamente, a escola como um espaço destinado exclusivamente à instrução, o que significava que não ela assumiria a função de espaço de lutas e de reivindicações políticas, o que seria realizado, provavelmente, nas assembleias de classe na sede operária. O regimento expressava ainda a preocupação com o uso e a preservação do espaço escolar, bem como com os utensílios e objetos, com o asseio pessoal de cada aluno e ainda com as relações estabelecidas entre alunos e professores. Nesse espaço, o professor assumia a figura central de autoridade que detinha não somente os conhecimentos a serem transmitidos, como também o controle dos usos dos espaços, dos comportamentos e dos corpos.
Considerações finais
Finalizando, é oportuno ressaltarmos que, a partir dos anos finais do Oitocentos, as questões relacionadas à construção de uma nova ordem social e política, baseada no modelo de uma sociedade que se queria moderna, ocuparam os discursos de políticos, intelectuais, empresários e líderes operários. Por isso, quando estes pensavam em reformar a sociedade, incluíam não somente o desenvolvimento do progresso material, mas também o progresso da mentalidade da população trabalhadora. Nesse viés, o interesse pela construção da nova ordem social e política evidenciava o processo de formação do trabalhador pela via da escolarização, especialmente, como forma de produzir e fazer ver o Estado republicano. Em Minas Gerais, os legisladores investiram na viabilidade das condições para implementar uma educação e uma instrução que produzissem a ordem e o progresso18.
No caso específico da escolarização, o esforço envidado pelas políticas públicas não somente visou qualificar o trabalhador nacional, mas, sobretudo, produzir uma escola que tivesse como finalidade a inculcação de uma ética do trabalho, como forma de superação da atividade aviltante, representada pelo trabalho, herança de muitos séculos de escravização, que demarcou o tratamento dado ao trabalho manual como uma marca da desonra. Dessa forma, a escola primária mineira e a escola profissional constituíram um instrumento de formação e disciplinamento das camadas pobres e trabalhadoras do Brasil, contribuindo tanto para unificar possíveis dissonâncias e fazer frente à desordem das ruas, transformando o seu público em participantes ordeiros do corpo social, quanto para a valorização do trabalho. Além disso, da formação e qualificação da força de trabalho esperavam-se também o progresso econômico e a constituição de uma sociedade civilizada e moderna.
Concomitantemente ao processo de formação da classe operária, acentuou-se o processo de industrialização, especialmente com o desenvolvimento do setor têxtil, onde as dificuldades de constituição dessa classe foram muitas, principalmente se considerarmos que o proletariado emergente conviveu, lado a lado, com o trabalhador cativo, com o liberto, com o trabalhador não remunerado e com crianças e mulheres, em sua grande maioria. Essa composição heterogênea impôs tanto aos proprietários fabris quanto às associações operárias a necessidade premente de investir num projeto amplo de educação que extrapolou o interior dos espaços de trabalho e das sedes operárias, encontrando, nas escolas primárias, o locus de transformação dos sentidos do trabalho e de formação do trabalhador assalariado. Desse modo, a escola assumiu centralidade por sua função, única e exclusiva, de alfabetizar os operários, não sendo, portanto, espaço do doutrinamento político, conforme explicitou o Regimento Interno da Confederação Auxiliadora dos Operários. Em especial, a instrução era requerida como meio de luta pelos direitos dos trabalhadores e, nesse sentido, como instrumento pacífico de ação política, em detrimento, inclusive, de outras formas de ação condenadas pelo movimento mineiro.
Por motivos distintos dos legisladores republicanos, proprietários de fábricas têxteis e líderes das associações operárias demandaram e assumiram a formação dos trabalhadores mineiros, fosse numa perspectiva disciplinadora, por meio da introjeção de normas, da educação dos corpos e das sensibilidades, fosse por meio da formação política entendida como elemento fundante da cidadania dos trabalhadores e como instrumento da luta e das conquistas políticas.