Introdução
Apesar da facilidade de se encontrar informações, mesmo que dispersas, sobre o passado das universidades mato-grossenses, poucas são as publicações que versam diretamente sobre a temática, e algumas obras de referência seguem um modelo explicativo mais memorialístico, no sentido de ter sido escrito por alguém que vivenciou os acontecimentos a partir de um local institucional privilegiado, como, por exemplo, reitores das universidades ou diretores dos institutos que as precederam (Moura, 2002; Dorileo, 2005; Maymone, 1989; Rosa, 1993). Já os trabalhos acadêmicos são encontrados ainda em número reduzido, embora a tendência seja de se destacar nessa temática os trabalhos provenientes dos programas de pós-graduação em História ou em Educação de instituições tanto de Mato Grosso quanto de Mato Grosso do Sul1.
Ao se abordar o tema da história da educação em Mato Grosso na perspectiva da longa duração, faz-se necessário visualizar as sucessivas transformações dessa unidade administrativa brasileira; tal movimento inicia-se coma criação da província, no ano de 1748, após ser desmembrada da capitania de São Paulo. O primeiro esforço de oficialização da posse do território fora acertado com a Coroa espanhola por meio do Tratado de Madri em 1750, o que correspondia aos atuais Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. A primeira divisão do Estado, com a criação de outra unidade administrativa duradoura, ocorreu em 1943 com a criação do Território Federal do Guaporé, atual Estado de Rondônia. Até esse momento, a região sul do Estado manifestava a vontade de ter autonomia política, mas a reivindicação não foi aceita pelo governo central.
A última divisão de Mato Grosso ocorreu no ano de 1977, pelo pensamento geoestratégico do governo militar. Esse fato trouxe consequências para o sistema de ensino do Estado como, por exemplo, a denominação da atual Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, quase homônima à Universidade Estadual de Mato Grosso/UEMT, que se concentrava no sul do antigo Estado de Mato Grosso e foi federalizada após a criação de Mato Grosso do Sul e incorporada à Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS. Óbvio que a UEMT e a UNEMAT são siglas diferentes para instituições diferentes, mas que trazem na denominação a mesma mantenedora: o Estado de Mato Grosso.
As instituições de ensino superior começaram a ser desenhadas nesse estado a partir da década de 1930, na capital do Estado, Cuiabá, e na cidade de Campo Grande. Na década de 1960, assistiu-se à criação de institutos isolados de ensino superior que culminariam, no início da década seguinte, na consolidação de um sistema de ensino superior, com o prevalecimento do setor público. Quando houve a divisão do Estado, em 1977, o sistema já estava operacional e serviu de base para a continuidade das atividades e expansão do sistema educacional, nas duas unidades da federação.
A seguir, expõe-se uma leitura acerca dos esforços para a criação de escolas de ensino superior em Mato Grosso, processo esse que se concentrou nas décadas de 1960 e 1970. Para isso, prestou-se atenção ao movimento do campo educacional nacional, pois muitas das iniciativas do Estado buscavam acompanhar as mudanças ‘de fora’, ou mesmo tirar a região do estigmado ‘atraso’. O trabalho se encerra com observações referentes ao contexto educacional mato-grossense, após sua última divisão territorial, e oferece uma análise sobre o papel das universidades mato-grossenses.
A criação de um sistema educacional brasileiro
A história do ensino superior brasileiro começa com a criação, não de universidades, mas, sim, de cursos de ensino superior, a partir da fuga da família real portuguesa, em 1808, que abandonou a sede do reino para escapar de Napoleão e se refugiou na principal colônia do Império Português. A América Portuguesa, antes podada de iniciativas mais arrojadas na educação e na indústria, tornava-se sede da Corte do reino português, e, assim, transformações estruturais tornaram-se necessárias, sobretudo, nessa nova sede. Nesse momento foram criadas as escolas de Medicina e de Direito, duas na atual região Sudeste - Direito em São Paulo e Medicina no Rio de Janeiro - e duas na região Nordeste - Direito em Olinda, curso este que, alguns anos depois, foi transferido para Recife, e Medicina, em Salvador. Cabe ainda lembrar que as antigas escolas de Medicina, as escolas de Cirurgia, foram criadas quando o príncipe regente d. João VI aportou na colônia, já as de Direito foram criadas após a independência de Portugal (Schwarcz, 1993).
Durante o império, o ensino superior permaneceu limitado às tímidas iniciativas - as escolas de Direito e Medicina. Para os níveis primário e secundário, a fixação de um currículo ficou concentrada nas normas que partiam do Colégio Pedro II. Durante a República Velha, houve tentativas de alguns Estados de criar escolas de nível superior ou mesmo de universidades, mas todas elas sofreriam reveses, seriam descontinuadas, ao menos formalmente; já o ensino secundário ficaria a cargo dos próprios Estados.
O sistema de ensino brasileiro era dividido pelos níveis primário, secundário e superior. Até no governo de Getúlio Vargas, uma vez concluídos os estudos do nível primário, não havia uma sistemática bem definida para o ingressante no nível secundário: a presença na escola não era obrigatória, e o ensino era uma espécie de preparatório para os cursos de nível superior, sobretudo, o segundo ciclo do ensino secundário ou ciclo complementar (Romanelli, 1986; Abud, 2009). A dispersão do ensino no Brasil foi alterada quando o discurso liberal, que pregava a livre iniciativa do indivíduo e a uma política de Estado descentralizada, foi substituído pela política de centralização do poder, a partir do golpe de Estado encabeçado por Getúlio Vargas, em 1930 (Nadai, 1991). No Brasil, parece haver um imperativo centralizador para tornar os projetos viáveis ou mesmo estimular outros.
A montagem do sistema educacional brasileiro, que convergiria para centralizar as decisões, começou com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em novembro de 1930. Ao longo do ano seguinte, uma série de decretos estruturou o sistema de ensino, que ficou conhecida como Reforma Francisco Campos; esta criou o Conselho Nacional de Educação, órgão que seria responsável por pareceres técnicos e a estruturação de currículos mínimos para a organização do ensino superior e do ensino secundário. O sistema de ensino oficial começava no nível primário, de quatro séries, no qual a criança adentrava por volta dos sete anos de idade; o primário seria responsável pela alfabetização na língua pátria, elementos de aritmética, informações e valores para a formação básica e da cultura geral do cidadão brasileiro. Poucos seriam aqueles que prosseguiriam os estudos, por causa das dificuldades financeiras que impeliam a juventude das classes não abastadas a se dedicar apenas ao trabalho e pelo gargalo que a própria reforma criou, para selecionar os alunos com o nível de conhecimento desejado por meio do ‘exame de admissão’, conforme o oferecimento das vagas disponíveis para os alunos do ensino secundário. O caso é que o ensino secundário foi dividido pela Reforma Francisco Campos em dois ciclos: o ‘ciclo fundamental’, com cinco anos de duração, obrigatório para o ingresso em qualquer escola de ensino superior, e o ‘ciclo complementar’, com currículo voltado para as áreas de direito, medicina e engenharia (Romanelli, 1986). A estrutura básica do sistema de ensino foi a seguinte: primário: ‘quatro anos’ (exame de admissão); secundário - ciclo fundamental: ‘cinco anos’, e ciclo complementar (2 anos).
A primeira grande reforma educacional do governo Vargas normatizou a implantação das duas primeiras universidades brasileiras, que, de fato, funcionaram ininterruptamente: a Universidade de São Paulo/USP, implantada em 1934, e a Universidade do Distrito Federal/UDF, que iniciou as atividades em 1935. Em 1939, quando a UDF foi extinta, seus cursos foram incorporados pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (Roiz, 2012; Ferreira, 2013).
O ensino secundário foi modificado por meio da Reforma Capanema, de 1943. Os níveis de ensino estabelecidos foram os seguintes: primário: ‘quatro anos’ (exame de admissão); secundário - primeiro ciclo: ‘quatro anos’, e segundo ciclo (3 anos). A partir de então, tornou-se obrigatória a realização de todo o curso secundário para poder acessar o ensino superior (Oliveira, 2014). A lei nº 4.024 (Brasil, 1961), que estabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB, manteve a divisão do ensino secundário; ela apenas modificou a denominação do primeiro ciclo para ciclo ‘ginasial’ e o segundo ciclo para ciclo ‘colegial’ - que abrangia, também, os ensinos técnico industrial, agrícola, comercial e de formação de professores e as Escolas Normais. Com essa estrutura, a escola brasileira pública atingiu o que Emery Gusmão (2004) considerou de a ‘idade de ouro’ dela. O sistema educacional era bastante elitista, e a ‘qualidade’ do ensino secundário estava protegida pelo exame de admissão, símbolo do papel que a escola desempenhava para selecionar os melhores alunos, e era tão importante quanto o exame vestibular na trajetória do aspirante ao ensino superior.
A estrutura do sistema de ensino educacional seria alterada no governo militar, incorporando algumas das demandas consideradas progressistas no campo educacional. Para expandir a obrigatoriedade do ensino, houve a fusão do ciclo ginasial com o primário e a extinção dos exames de admissão. Tal estrutura foi consagrada por meio da lei 5.692 (Brasil, 1971) e permanece com poucas alterações até os dias atuais. A partir de então, tem-se a seguinte estrutura: primeiro grau (8 anos); segundo grau (3 anos). No campo universitário, iniciou-se uma série de reformas em 1965, sendo a lei mais famosa a de nº 5.540 (Brasil, 1968b), conhecida pela denominação de Reforma Universitária. Após essa legislação, a década de 1970 conheceria a implantação do sistema de pós-graduação e a estruturação das agências de fomento de pesquisa.
Nos últimos dias do governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas/CNPq, e, no segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), a Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES. Essas agências do Estado foram criadas para estimular a pesquisa e a formação de professores universitários na década de 1950, o que indica certo grau de amadurecimento do campo universitário e aponta para a tendência de expansão do sistema. Durante a ditadura militar, aquelas agências criadas no contexto do segundo governo de Getúlio Vargas seriam revigoradas e de extrema importância para impulsionar o avanço da pesquisa nas universidades (Motta, 2014).
As escolas de ensino superior em Mato Grosso antes da existência de um sistema universitário
Com o fim do pacto colonial, em Mato Grosso, buscou-se viabilizar aulas de cirurgia em hospitais militares, cuja instalação foi, inicialmente, proposta para a então capital da província, Vila Bela da Santíssima Trindade, já no ano de 1808; porém, as atividades didáticas, efetivamente, ocorreram na cidade de Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em 1816. As informações sobre as aulas são escassas, mas tudo indica que o tempo de duração das atividades foi efêmero. É possível afirmar que os alunos “[...] aprendiam a lidar com a arte por meio do saber empírico, sendo acompanhados por um cirurgião aprovado que os examinava” (Jesus, 2004, p. 99).
Desde a época dos reis, para ser didático, jovens de boa família, os futuros ‘homens bons’ a receber este tratamento, eram enviados para estudar nos grandes centros do império, cuja preferência dava-se à capital, Rio de Janeiro, que mantinha comunicação com a província de Mato Grosso por meio da navegação do rio Paraguai. No final do século XIX, após a recuperação dos impactos daguerra com o Paraguai, a região voltou a atrair moradores para esta fronteira econômica. Com o surgimento de outras cidades, que se tornariam polos econômicos e de serviços, é possível verificar discursos sobre o valor simbólico de uma escola de ensino superior, utilizados como mostra do empreendedorismo e da modernização da localidade, material para a representação política positiva do Estado, que já foi maculado pelo ‘estigma da barbárie’2. As mostras da rivalidade das regiões norte e sul do Estado transpareciam no campo educacional.
A primeira instituição de ensino superior em Mato Grosso tentou ser instalada em Cuiabá, na década de 1930. Em 18 de setembro de 1936, por meio do decreto-lei nº 87, no segundo governo de Mário Corrêa da Costa, criou-se a Faculdade de Direito de Mato Grosso3, subsidiada pelo Estado. Contudo, a faculdade esmoreceu com a promulgação da Constituição Federal de 1937, na esteira do golpe do Estado Novo, perfilado por Getúlio Vargas, mediante as restrições do artigo 159, o qual vedava o acúmulo de cargos públicos remunerados para servidores públicos. Os professores da faculdade eram magistrados ou jurisconsultos e, após a restrição legal de acúmulo de cargos, optaram “[...] pela magistratura, pela promotoria, de vez que o salário estadual de professor era minguado” (Dorileo, 2005, p. 28-29). Com essa lei, a faculdade que ensinava as leis em Cuiabá fechou suas portas. A Faculdade de Direito foi reinstalada em Cuiabá no ano de 1954 e fechada novamente em 1955, por determinação do Ministério da Educação/MEC; foi reaberta novamente em 1956, pelo governador João Ponce de Arruda e recebeu o aval do “[...] presidente da República, Juscelino Kubitscheck de Oliveira […] que [autorizou] o funcionamento da Faculdade de Direito de Mato Grosso” (Dorileo, 2005, p. 32). Conforme as informações de Dorileo (2005), a faculdade foi oficializada por meio do decreto nº 47.339, de 3 dezembro de 1959 e, em dezembro de 1961, foi federalizada e em seguida sua denominação alterou-se para Faculdade Federal de Direito de Mato Grosso.
Na disputa por marcar a antiguidade do ensino superior em Mato Grosso, Hércules Maymone cita que esteve em atividade, entre 1929 e 1933, a Faculdade Matogrossense de Odontologia e Farmácia de Campo Grande “[...] e que, mesmo não tendo sido oficializada, formou uma turma de Farmacêuticos e uma de Cirurgiões Dentistas” (Maymone, 1989, p. 24). Naquele momento, tal iniciativa, mesmo se fracassasse, não geraria tantas dores de cabeça aos egressos, como hoje, uma vez que naquele tempo não existiam os Conselhos de Educação - o nacional e o estadual - e os conselhos profissionais daquelas áreas, o Conselho Federal de Farmácia e o Conselho Federal de Odontologia. Da Faculdade de Farmácia e Odontologia não há mais informações, mas sua memória serviu para justificar o projeto de instalação de outra instituição, ou seja, para se barganhar projetos futuros.
Fora da esfera oficial, observa-se a ação da Missão Salesiana de Mato Grosso, na cidade de Campo Grande, que fundou o Instituto Pedagógico São Vicente, que funcionou de 1948 a 1968. A instituição era um seminário maior, onde foi ministrado, inicialmente, o curso de Filosofia, e há, também, registros de que o instituto ofereceu o curso de Pedagogia. Em 1968, os estudantes da Inspetoria de Campo Grande transferiram-se para a cidade de Lorena, Estado de São Paulo. Antes desse momento, em 1962, os salesianos iniciaram as atividades da Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras/FADAFI, que deu origem à Universidade Católica Dom Bosco (Benfica, 2016).
Após estar solidificada a Faculdade de Direito em Cuiabá, assistiu-se, no sul do Estado, um movimento mais enérgico de expansão de escolas de ensino superior. Isso teve início com a criação da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Mato Grosso - FFOMT -, na cidade de Campo Grande, em 1962. A criação dessa faculdade teve como protagonistas as mesmas pessoas que compuseram o seu primeiro quadro docente, dentre elas, o tenente do Exército, Hércules Maymone, figura preponderante na FFOMT. A ‘Autorização de Funcionamento Provisório da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Mato Grosso’ foi concluída pelo Conselho Estadual de Educação4 em 09 de junho de 1964, na cidade de Campo Grande, local em que foi assinado o documento de autorização. A resolução para ‘o funcionamento levou o nº 03/64’ e foi publicada em 11 de junho de 1964. No mesmo mês realizou-se o primeiro vestibular, cujas datas das provas eram 22, 24, 26 e 28 de junho.
Hércules Maymone (1989) argumentou, em seu livro de memórias, sobre a sincronia do projeto de implantação do ensino superior em Campo Grande - gestado pelos membros que criaram o Conselho Regional de Farmácia de Mato Grosso, em 1964, Seccional de Campo Grande - com os projetos da então Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Capes. A institucionalização do ensino superior pressionou a criação de um aparato burocrático que a legislação nacional exigia. Para isso, além do Conselho de Farmácia, conforme a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 preconizava, faltava a criação do Conselho Estadual de Educação, o que foi rapidamente executado para viabilizar o funcionamento da FFOMT (Maymone, 1989).
Até a divisão do Estado de Mato Grosso, o Conselho Estadual de Educação era o órgão com maior poder no sistema educacional. Ele era apresentado como um órgão normativo, que acompanhava as deliberações da Secretaria de Educação, mas que também participava de ações deliberativas da confecção de legislações. Por vezes, portava-se como um órgão administrativo, pois fazia o reconhecimento dos estabelecimentos de ensino em todos os níveis e intervenções administrativas, quando detectava problemas refletidos na burocracia das escolas. O presidente do conselho que mais se destacou, reeleito inúmeras vezes, foi o salesiano Pe. Raimundo Conceição Pombo Moreira Da Cruz 5, que chegou a concorrer ao Senado Federal após a divisão do Estado; findadas as eleições e seu nome descartado nas urnas, Pe. Pombo foi reconduzido ao cargo.
A pressa para colocar a faculdade em funcionamento, decorrente de procedimentos então não rotineiros, foi demonstrada pelo edital do vestibular, uma vez que o período de inscrição estipulava o prazo de 5 a 20 de junho de 1964, ou seja, seis dias antes da publicação da autorização do CEE-MT (Maymone, 1989). O edital apontava que não haveria segunda chamada para os candidatos, o que motivou alguns protestos. Muitos candidatos souberam que a faculdade havia sido oficialmente criada no período de nove dias antes do encerramento das inscrições. Passada a fase das provas, que certamente causara ansiedade aos candidatos, as comemorações em torno da criação da faculdade e da aprovação dos calouros no vestibular contaram com missa, festa e um diploma de distinção, conforme a Figura 1:
O acesso ao ensino superior, como um privilégio social, estava estampado nas informações do ‘Diploma de Burro’. O sentido metafórico de ‘burro’ ressaltava a hierarquia existente entre alunos e professores, assim como transmitia a ideia de ascensão social assegurada pelo privilégio da educação de ‘nível superior’ que, consequentemente, garantiria status de diferenciação social, em uma sociedade em rápida urbanização. Sendo ‘doutores’ ou portadores do ‘diploma de burro’, a distinção social era a tônica do discurso; mesmo cômica, essa diferenciação estaria assegurada pelo privilégio da educação. A tonalidade ficcional do ‘diploma de burro’ também é sinalizada pela data de assinatura do diploma: 32 de junho de 1964. Este ainda era uma espécie de certificado de ingresso ao calouro: não apenas acenava com a distinção entre o universitário e o não universitário, como afirmava e lembrava ao calouro que este estava sendo agraciado com sua entrada num espaço egrégio. Em outras palavras: acatando sua ‘burrice’, ele confirmava seu privilégio de perdê-la, assim que se tornasse um veterano, isto é, um verdadeiro universitário.
O próximo passo para a expansão do ensino superior foi a criação, em Campo Grande, do Instituto de Ciências Biológicas de Campo Grande/ICBCG, que incorporou os cursos da FFOMT. O instituto foi criado pela lei nº 2.629, de 26 de julho de 1966, concomitante à criação do Instituto de Ciências e Letras de Cuiabá (Rosa, 1993). Segundo Dorileo (2005), ex-reitor da UFMT, a formação dos institutos em Mato Grosso seguia o ritmo das mudanças educacionais que culminaram com a Reforma Universitária, posto que a estrutura daqueles “[...] preconizava projetos em andamento; para instituir o sistema departamental” (Dorileo, 2005, p. 42). O Instituto de Ciência e Letras de Cuiabá/ICLC teve “[...] 13 cursos superiores no ICLC, criados pelo Estado, porém 11 em funcionamento, sendo sete na Faculdade de Educação, dois na Faculdade de Economia, um na Faculdade de Engenharia Civil, um na Faculdade de Serviço Social” (Dorileo, 2005, p. 46). Essas duas instituições seriam os embriões da Universidade Federal de Mato Grosso.
Data de 1967 a autorização do CEE-MT para o funcionamento do ICBCG6. O curso de Medicina, grande aspiração dos profissionais liberais da cidade, começou a funcionar em 1968, no mesmo ano de início do funcionamento do Instituto Superior de Pedagogia de Corumbá/ISPC, uma instituição privada, embora inclinada à estatização. Cuiabá, Campo Grande e Corumbá foram as localidades que saíram na frente na corrida para o estabelecimento de escolas de ensino superior, que receberam o nome de institutos. O conselho administrativo do ICBCG nomeou João Pereira da Rosa como diretor executivo, principal cargo administrativo da instituição. Esta figura tornar-se-ia reitor da Universidade Estadual de Mato Grosso/UEMT.
Os institutos, mesmos os públicos, cobravam mensalidades dos alunos a fim de complementar seus custos, o que era aceito sem resistência pela maioria dos discentes, e elas eram entendidas como uma maneira de viabilizar a operacionalidade dos cursos ou mesmo melhorar a qualidade das atividades. Por exemplo, em reunião com os alunos do ICBCG, para contornar os problemas financeiros, teria sido decidida a necessidade do pagamento de mensalidades, estipulada a quantia de Cr$ 30.000,00 (trinta mil cruzeiros)7. Argumentos com relação às dificuldades financeiras da instituição pública de ensino foram recorrentes, desde a FFOMT até a UEMT e, por esse motivo, taxas eram cobradas sobre as matrículas das disciplinas, mesmo nos primeiros anos da UFMS (Rosa, 1993).
Mais ao norte do Estado, o instituto cuiabano exerceu suas atividades até 30 de dezembro de 1971 e, a partir dessa data, foi oficialmente absorvido pela Fundação Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT, que reuniu os cursos do ICLC e os da Faculdade Federal de Direito, na Cidade Universitária. A inauguração do campus ocorreu em 12 de março de 1971, na presença de autoridades estaduais e federais (Dorileo, 2005). O ICGCG foi absorvido pela UEMT, após as disputas pela sede da Universidade Federal, que ficou com Cuiabá, embora Campo Grande, com a Universidade Estadual, não tivesse saído derrotada no jogo político.
A implantação do sistema universitário público em Mato Grosso
As primeiras universidades de Mato Grosso foram a Universidade Federal de Mato Grosso, com sede em Cuiabá, e a Universidade Estadual de Mato Grosso, com sede em Campo Grande. Com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, a UEMT foi federalizada, tornando-se a Universidade Federal de Mato Groso do Sul. Mato Grosso ficou por alguns anos sem uma universidade estadual, embora ela começasse a ser gestada logo após a divisão do Estado, por meio da criação do Instituto de Ensino Superior de Cáceres/IESC, o embrião da Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT (Zattar, 2008).
A literatura memorialística aponta interesses políticos para a forma em que se efetivou a construção das universidades - em Cuiabá e em Campo Grande -, que se concentrou na figura do governador do Estado, o engenheiro Pedro Pedrossian (1966-1971), como, por exemplo, o início da construção da cidade universitária pela região sul do Estado. O governador do Estado teria dito para o diretor do Instituto de Ciências Biológicas de Campo Grande: “[...] deixe de pensar em Instituto, vamos pensar grande - agora, ao invés de um instituto, é Universidade”. Portanto, antes de Cuiabá, Campo Grande saiu na frente na construção própria da Cidade Universitária, uma vez que negociações de bastidores estavam mais adiantadas (Rosa, 1993, p. 49).
A política macro do ensino superior público estadual - cujas rivalidades regionais não descaracterizam o movimento nacional - estava correlacionada às diretrizes do governo federal. De acordo com Sanfelice (1986), em dezembro de 1968, o presidente da República, marechal Artur Costa e Silva, publicou o decreto nº 63.422, que instituía o Grupo de Trabalho para estudar o incremento de matrículas no ensino superior, base para a elaboração do decreto-lei nº 405, de 31 de dezembro de 1968, como desdobramento da Lei da Reforma Universitária. O grupo baseou-se na documentação enviada por universidades para tratamento estatístico e tomou como paradigma as universidades federais e as paulistas8. Os esforços resultaram na identificação de “[...] cursos considerados prioritários para o desenvolvimento sócio-econômico do país [...]”, as áreas ligadas ao setor primário, ao setor secundário e às profissões da saúde (Brasil, 1968a, p. 50). Os cursos que funcionariam na sede da UEMT contemplavam as áreas indicadas como prioritárias pelo Grupo de Trabalho da Reforma Universitária/GTRU, com destaque para a área da saúde. A única ausência era o curso de Enfermagem, embora, em 1971, tivesse começado a funcionar o curso de Educação Física, ligado à área de saúde.
Para o discurso oficial, proferido por lideranças mato-grossenses, o objetivo da universidade era a formação de mão de obra qualificada; já a pesquisa, talvez uma atividade de maior envergadura, tinha uma finalidade secundária. Certo é que havia uma pragmática para a racionalidade de Estado: a criação de instituições de nível superior que atuariam na modernização das esferas socioeconômicas da própria região e do Estado. Nesse ponto, observa-se a rede discursiva em torno do poder o qual representava a qualificação da mão de obra local por meio de instituições também ‘da região’ e do empoderamento dos agentes do Estado, os executores das políticas públicas, neste caso, os próprios professores da universidade. São esses agentes que articulavam o papel de conversão do capital simbólico do campo educacional para os campos político e econômico. Paralela a isso, estava a representação política da universidade, feita pelos próprios agentes, chegando a conferir a esta um papel social quase redentor, quando apareciam o“[...] interesse e a ação de todos os envolvidos ou comprometidos com a generalizada ideia de progresso” (Neves, 2010, p. 38).
Cabe notar que os ‘cursos de pequena duração’, ou cursos de curta duração, não se restringiram ao magistério, as malfadadas licenciaturas curtas. O relatório do GTRU indicava a criação desse tipo de curso, especialmente nas áreas de saúde, com o intuito de formar profissionais especializados, com uma formação mais pontual, de modo a serem rapidamente disponibilizados para o mercado de trabalho. A condição era a de que as “[...] novas profissões sejam aceitas no mercado de trabalho, legalmente regulamentadas quando couber, e que dêem aos diplomados o 'status' universitário que os habilite ao exercício profissional e à atividade docente universitária” (Brasil, 1968a, p. 69, grifo do autor).
No âmbito estadual, Cuiabá, que chegou a contar, no final da década de 1960, com duas escolas públicas de ensino superior, incomodava-se com o fato de o cenário político educacional ser mais favorável a Campo Grande. Isso não ocorreu por simples manobra política, pois o sul do Estado concentrava a maior parte dos eleitores, uma vez que era essa região a mais populosa naquela década. O fato de o início da construção da Cidade Universitária ocorrer primeiramente em Campo Grande despertou setores da sociedade cuiabana para um movimento que reivindicava a instalação da Universidade Federal em Cuiabá. A vantagem de Campo Grande percebia-se também pela extensão e planejamento da construção da Cidade Universitária, em comparação àquela construída em Cuiabá.
Segundo Hércules Maymone, pedidos sobre a criação da Universidade Federal de Mato Grosso foram feitos a políticos e chegaram aos ouvidos do presidente João Goulart, o qual assinou “[...] a Mensagem nº 335, objeto da Exposição de Motivos do Ministério da Educação e Cultura, que se converteu no Projeto de Lei 1198/63, autorizando o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso [...]”, na cidade de Campo Grande (Maymone, 1989, p. 126). Com o golpe militar de 1964, o projeto deixou de tramitar. A criação da Universidade Federal voltaria a ser discutida no final dos anos 1960 e, desta vez, com amplo apoio do governo do Estado, na gestão de Pedro Pedrossian (Pedrossian, 2006).
A pesquisadora Renata Freitas, em sua dissertação de mestrado que estudou a criação da Universidade Federal de Mato Grosso, partiu da “[...] hipótese de que teria havido um movimento estudantil na gestão da UFMT [...]”, ou seja, mobilização popular para a instalação da UFMT em Cuiabá (Freitas, 2004, p. 18). A análise de Freitas teve como fonte privilegiada as entrevistas orais. Um dos entrevistados, o ex-deputado e ex-governador José Garcia Neto, citou a participação de “[...] estudantes, empresários, Associações de Classe, imprensa, Igrejas, Rotary, Lions, Maçonarias e até membros do Poder Judiciário [...]” na defesa da implantação da UFMT em Cuiabá, na esteira da rivalidade com Campo Grande (Freitas, 2004, p. 67). Existem notícias de que o Instituto Histórico de Mato Grosso participou da coleta de informações em prol da instalação da Universidade Federal em Cuiabá, assim como participaram o Clube de Engenharia e a Academia de Letras9.
Politicamente, a cidade de Campo Grande tinha a preferência do governador do Estado para que lá fosse instalada a Universidade Federal. Contudo, Cuiabá foi a escolhida, após articulações de bastidores e pressão da sociedade cuiabana, em uma situação que lembra um movimento estudantil. João Rosa (1993) cita o momento do desfecho das negociações e pressões políticas sobre a escolha do local de implantação da Universidade Federal de Mato Grosso, momento que ele teria presenciado:
Essa campanha provocou a oposição dos estudantes cuiabanos que, estimulados por alguns políticos, tomaram as seguintes atitudes: os estudantes reuniram-se na praça Alencastro em frente ao Palácio do Governo, em Cuiabá, montaram uma barraca e nesta colocaram um alto-falante que atazanava os ouvidos do Governador com um jingle que dizia: ‘Senhor Governador, não permita que uma Universidade saia numa cidade do interior’. Finda a frase colocava-se uma música tão enfadonha, que era impossível ouví-la pela segunda vez. Isso era das 7 às 22 horas e haja paciência para ouví-la pela segunda vez. O Governador nos chamou em Cuiabá e disse: - ‘Não aguento mais, vou dizer que a Universidade Federal será em Cuiabá e criamos uma Estadual em Campo Grande’. Respondemos: É discutível porque estamos fazendo uma grande articulação de bastidores, até doméstica, para levar ao Presidente Arthur Costa e Silva o decreto pronto. Ao que o Governador concordou: - ‘Não me oponho, mas preciso trabalhar e esta meninada não pára com esta zoeira que perturba a vida administrativa dos servidores do Palácio também’. Deixamos o Alencastro e ainda a ‘musiquinha’, de tantos efeitos, continuava [sic] (Rosa, 1993, p. 47, grifo do autor).
Curiosamente, João Rosa não indica disposição para reprimir a manifestação, considerando-se os tempos de ditadura militar10. Note-se ainda, a possível origem do movimento estudantil: ‘estimulados por alguns políticos’. Ou seja, os discursos de poder, emanados da sociedade cuiabana sobre a defesa da ideia de que a Universidade Federal deveria ser implantada na capital do Estado, configuravam-se como um grande tabuleiro político.
Renata Freitas (2004) parece ser a favor dos argumentos de uma ‘cuiabanidade’ nessa trama. Em dado momento, a autora sugere: “[...] estaria aqui o governador dando mostras de seu sangue sulista? Sim, porque até as vésperas de ser criada a UFMT em Cuiabá, a Capital não tinha ainda a sua cidade universitária construída, enquanto que Campo Grande [...]” (Freitas, 2004, p. 74). O posicionamento da autora a favor da instalação da sede da Universidade Federal em Cuiabá é claramente tendencioso, pois, nas palavras daquela, seriam “[...] direitos constitucionais de Cuiabá, enquanto Capital do Estado” (Freitas, 2004, p. 78).
A autora supracitada, em suas análises, pode ter exagerado quando personaliza as decisões políticas na figura do governador, minimizando a importância das configurações político-econômicas que a porção sul do Estado manifestava. Por exemplo, em 1968, a região sul exibia sua força política na criação de escolas de ensino superior, ao menos na forma da lei, nas cidades de Campo Grande, Corumbá, Três Lagoas e Dourados, enquanto a porção central de Mato Grosso expunha, claramente, esse tipo de projeto apenas para Cuiabá. De toda essa trama, as obras de Maymone (1989) e Rosa (1993) sinalizam uma movimentação maior de professores em Campo Grande para a criação da universidade do que a que se manifestou em Cuiabá. As duas localidades utilizaram-se de pressão popular e de articulação política de bastidores, nas esferas local, estadual e federal, mesmo em tempos de ditadura militar.
O discurso da ‘cuiabanidade’, em prol da instalação da sede da Universidade Federal de Mato Grosso na capital do Estado, foi vitorioso, e a construção da Cidade Universitária de Cuiabá foi financiada com recursos do governo de Mato Grosso. No entanto, a UEMT nascia maior do que a UFMT e seu poder político era bem expressivo quando se observa a existência de quatro Centros Pedagógicos na região sul do Estado e mais a sede da reitoria. Conforme mencionado pelos ex-reitores das universidades (Rosa, 1993; Dorileo, 2005) a Universidade Estadual de Mato Grosso foi criada pela lei estadual nº 2.947, em setembro de 1969, e a UFMT, em dezembro de 1970, por meio da lei federal nº 5.647.
A criação da Universidade Estadual de Mato Grosso, no governo Pedrossian (1966-1971)11, tornou-se mais um elemento que ampliou o poder político e simbólico da cidade de Campo Grande. As decisões sobre a expansão da universidade, assim como a maior parte do seu custeio, ficavam sob responsabilidade do governo estadual, e os agentes universitários viram elevadas suas posições políticas no Estado.
Os discursos acerca das propostas de construção dos prédios da UFMT e da UEMT representavam as estratégias modernizadoras do Estado. As universidades eram um dos ‘elementos civilizadores’ (Mato Grosso, 1971) no contexto do projeto desenvolvimentista do governo. O período da construção das cidades universitárias teve importante papel para dar legitimidade política ao regime militar em escala local e para aproximar o Estado do contexto do ‘milagre econômico’12.
Na documentação consultada, escrita por contemporâneos da instalação das escolas de ensino superior, o projeto de educação por eles arquitetado, que se representava como voltado ao melhoramento da sociedade, demonstrava afinidade com certos propósitos do regime militar. Além de se voltar ao campo econômico, o projeto de universidade apresentava interesses no campo cultural, instituindo ‘reservas de moralidade’ por um viés racionalista: “[...] a coordenação perfeita entre planejamento, execução e avaliação, fará do processo educativo o elemento estimulante e orientador que atenderá, paralelamente, camadas sociais e faixas etárias diversas, antes não contempladas na distribuição dos bens do saber” (Jacques, 1971, p. 6).
O governo de Pedro Pedrossian expôs com orgulho a aplicação de mais de 30% de sua receita em educação. Além das universidades, escolas primárias e secundárias foram inclusas na política do último governador eleito pelo voto direto em Mato Grosso, antes da divisão do Estado, em 1977. Uma vez criadas as universidades, autorizado o funcionamento dos cursos e encaminhada a contratação de funcionários, o papel de dinamização e de manutenção das atividades universitárias deslocava-se, em boa medida, dos agentes do poder político para os agentes institucionais, sobretudo, para os professores, que dinamizavam o próprio campo de conhecimento e a instituição.
A inserção das universidades no emaranhado legislativo do campo institucional, com suas instituições de controle e de fomento, torna a universidade parte de um sistema que tem como objetivo responder às necessidades de funcionamento do próprio Estado, que normatiza a grade curricular dos cursos e disponibiliza recursos financeiros, e em contrapartida, exige a prestação de contas. O produto final, tanto das universidades quanto dos institutos ou faculdades isoladas, era a formação de mão de obra, regulamentada e legitimada pelo Estado, que conferia o status de formação de nível superior. A pesquisa era uma atividade-fim garantida e exigida pela Reforma Universitária de 1968 para uma instituição de ensino superior ser considerada uma universidade, contudo, em Mato Grosso, na década de 1970, ela representava muito mais uma estratégia propedêutica para os professores e para os alunos13.
A institucionalização da UEMT centralizou as iniciativas de criação das escolas de ensino superior que se espraiavam no Estado. O já citado ISPC, que estava com as portas abertas em Corumbá, desde 1968, foi incorporado à UEMT e teve sua denominação alterada para Centro Pedagógico de Corumbá/CPC. No mesmo contexto, articulava-se a criação do Instituto de Ciências Humanas e Letras de Três Lagoas, criado em 1968, embora suas atividades tivessem começado em 1970, quando estava certa a criação da UEMT, após isso, a denominação foi alterada para Centro Pedagógico de Três Lagoas/CPL. Em 1971, outras duas cidades da região sul do antigo Mato Grosso passariam a contar com escolas desse tipo: o Centro Pedagógico de Dourados/CPC e o Centro Pedagógico de Aquidauana/CPA. Como atesta a denominação dessas escolas, a finalidade principal era a formação de professores que atuariam nas escolas do Estado, contribuindo para formar a base necessária para a instalação de cursos com maior impacto econômico na região (Benfica, 2016).
Ainda na primeira metade da década de 1970, foram oferecidos os cursos de licenciaturas curtas parceladas, na época de férias escolares, para a formação emergencial de professores. Desse movimento surgiu o projeto de criação do Centro Pedagógico de Rondonópolis/CPR, ato realizado pelo reitor da UEMT no final do ano de 1975. O CPR funcionou em prédios improvisados, de 1976 a 1981, mesmo após a UFMT ter se responsabilizado pela instituição, em decorrência da divisão do Estado (Alves, 2006).
A partir da instalação das unidades de ensino superior, começavam as disputas internas de poder e a aprovação de normas relativas aos cursos. Desse momento em diante, as conquistas no campo político viabilizavam as disputas institucionais, próprias do campo universitário, tendo-se em vista os princípios de hierarquização e diferenciação, conforme as análises de Pierre Bourdieu sobre o campo intelectual (Bourdieu, 2009, 2013).
Considerações finais
O ensino superior em Mato Grosso foi pensado, desde a época colonial, a partir das necessidades de formação de mão de obra, ressaltando-se as especificidades técnicas das áreas de conhecimento, da reprodução da ciência, o ‘saber-fazer’, ao invés de assumir a tarefa de exploração da diversidade natural da região ou da reflexão sobre a sociedade e sobre a cultura do próprio povo. Tal situação, especula-se, passou por alterações a partir do final do século XX, quando as universidades começam a investir em uma sistemática de pesquisa, capitaneada pelos programas de pós-graduação.
O ensino superior teve iniciativas isoladas fracassadas, no início do século XIX e na primeira metade do XX. Até meados do século XX, as universidades existentes em São Paulo e no Rio de Janeiro supriam a necessidade de mão de obra especializada em Mato Grosso. Seria após o início de uma política massiva de colonização do Estado, com o aumento da população, que setores da sociedade pleiteariam a instalação de cursos superiores até se chegar à condição de criar duas universidades públicas.
A expansão do ensino superior, antes da LDB/61, era assunto que estava diretamente ligado ao Poder Executivo, na esfera estadual. Nesse contexto, ocorreu maior formalização do sistema de ensino superior com a criação dos conselhos profissionais/corporativos e do Conselho Estadual de Educação. Portanto, foi a partir das mudanças da própria sociedade mato-grossense que se acompanhou a tendência de expansão do ensino superior no Brasil. Assistiu-se também ao interesse político e perspicácia ao se aproveitar um contexto favorável, ocorrido no governo de Pedro Pedrossian. Onde houvesse articulação política e uma justificativa que se fizesse plausível sobre a demanda de cursos superiores, uma unidade da Universidade Estadual poderia ser criada, uma vez que “[...] todo o ensino deve produzir, em grande parte, a necessidade de seu próprio produto” (Bourdieu, 2009, p. 218).
Antes da divisão do Estado, a UFMT circunscreveu sua atuação a Cuiabá; a UEMT concentrou os cursos de maior reconhecimento socioeconômico em Campo Grande, sede da reitoria, e instalou alguns campi nas cidades ‘mais ao interior’, menores no quantitativo populacional, mas com potencial de crescimento econômico ou com importante força política local; nessa instituição destacaram-se atividades de formação de professores in loco, aprofundada pelos projetos que habilitavam mão de obra por meio dos cursos de licenciatura curta parcelada.
A porção sul do antigo Mato Grosso foi bastante dinâmica na criação e expansão das primeiras escolas de ensino superior. Além de Campo Grande, a cidade de Corumbá também deu mostras de arrojo, posteriormente, outras cidades do Estado suplantariam a importância econômica e política da ‘cidade branca’14.
Há ainda de se pesquisar a atuação da Igreja Católica no ensino superior em Mato Grosso/Mato Grosso do Sul. As ordens religiosas poderiam criar seminários maiores que oferecessem cursos de ensino superior, reconhecidos ou não pelo MEC, tal como ocorreu com o Instituto Pedagógico São Vicente, em Campo Grande. Padres e ex-seminaristas poderiam assumir postos nas escolas do Estado ou mesmo exercer cargos de mando, como foi o caso do presidente do CEE-MT, Pe. Raimundo Pombo, e do diretor do Centro Pedagógico de Três Lagoas, Pe. Jair Gonçalves, ambos salesianos.
Como, então, pode ser resumido o processo de criação do sistema de ensino superior de Mato Grosso? O processo dialogou com o cenário nacional e começou com o efetivo exercício da Faculdade de Direito de Cuiabá, no final da década de 1950. A seguir, viu-se a criação do Conselho Estadual de Educação, o pivô burocrático para a criação da Faculdade de Farmácia e Odontologia de Campo Grande. A rivalidade entre Campo Grande e Cuiabá pode ser observada na criação dos institutos que correspondiam à primeira expansão do ensino nessas cidades, que foi feita por meio da mesma lei, emergindo o Instituto de Ciência e Letras de Cuiabá e o Instituto de Ciências Biológicas de Campo Grande. O sistema de ensino superior tomou forma com a criação das duas universidades: a federal, em Cuiabá, e a estadual, em Campo Grande. A UEMT chegou a ter unidades em Corumbá, Três Lagoas, Dourados, Aquidauana e Rondonópolis. A UFMT fez sua expansão de modo mais lento, quando comparada à UEMT/UFMS.