Introdução
Durante o século XIX, Portugal partilhava com diversos países um problema social grave: elevados índices de criminalidade, tanto do público adulto, quanto infantil, como expõe Martins (2014). Para este flagelo social contribuíam, nos países de maior industrialização, as condições de vida degradantes do operariado e suas crianças e as guerras, que no caso português, geraram crises alimentares e um número elevado de crianças abandonadas. A situação destas era agravada pelas parcas respostas sociais e institucionais e pela escassa capacidade jurídica para tratar do problema. Os congressos penitenciários no século XIX identificaram o problema e procuraram analisá-lo ao mesmo tempo que diversas forças sociais orientadas por ideias filantrópicas tomam medidas para minorar esta situação, para o que contaram com o apoio de decisores políticos. Tendo por centro o direito, os Congressos Penitenciários agregaram intelectuais de diferentes áreas (medicina, antropologia, filosofia, pedagogia, entre outras) e deram origem a um movimento de Congressos Penitenciários Internacionais. Segundo Martins (2014), Santos (2012) e Tomé (2012), este esforço conjunto impulsionou mudanças na área da antropologia, criminologia, reeducação, assistência e integração dos indivíduos na sociedade. A realização dos Congressos Penitenciários Internacionais, como fóruns de debate e partilha de ideias, contribuiu para um intenso movimento cultural de abertura a novas conceções jurídicas, de assistência e educacionais. Na opinião de Tomé (2012), também se ampliou o conhecimento acerca das instituições de acolhimento de crianças e jovens delinquentes, dando origem à sua tipificação em tipologias: carcerárias, de correção e de reeducação.
A partir de 1872, a organização dos Congressos Penitenciários Internacionais torna-se um movimento internacional organizado, que teve impacto na recolha de dados sobre as instituições carcerárias em diferentes países, na mudança de conceções e práticas penitenciárias e de regeneração a nível internacional. Portugal participou neste movimento, embora o impacto não se tenha feito sentir de imediato. Traduziu-se na concretização progressiva de dispositivos de assistência à infância e juventude marginalizada e a um maior incremento do campo jurídico, como o atesta a criação das Tutorias da Infância, em Lisboa e seguidamente no Porto, e a Lei de Proteção à Infância, de 1911.
Para este trabalho mobilizámos legislação e um conjunto de publicações, nomeadamente, o relatório de Manuel Thomaz de Sousa Azevedo, apresentado ao Ministério da Justiça, em 1958, as obras de Manuel Ferreira Deusdado, O ensino carcerário e o Congresso de Penitenciário Internacional de S. Pertsburgo, de 1891, e A anthropologia criminal e o Congresso de Bruxellas, de 1894, as considerações efetuadas por Negley Teeters, de 1949ª, sobre os Congressos Penitenciários Internacionais realizados entre 1872 e 1935 e, ainda, o relatório do delegado do governo português, J. J. Henriques Silva1, ao XI Congresso Penitenciário de Londres, de 1925. A Lei de proteção à infância, de 1911, foi um diploma jurídico inovador da I República, face aos problemas sociais relativos à infância marginalizada, com que a sociedade portuguesa se debatia. As alterações que foi sofrendo informam tanto sobre a preocupação com o seu aperfeiçoamento, como sobre as dificuldades da sua implementação. Todas estas fontes permitem conhecer a emergência de um pensamento e de perspetivas sobre a proteção e inclusão da infância e juventude marginalizada e delinquente. No que se reporta às correntes da pedagogia correcional, dá a conhecer a circulação de atores e ideias a nível internacional e em Portugal, no final do século XIX e início do século XX.
A revisão da literatura que efetuámos revela que os Congressos Penitenciários nunca constituíram um objeto de estudo no campo da História da Educação, existindo apenas referências à sua existência, efetuadas por Martins (2014), Santos (2012) e Tomé (2012).
A origem e a importância dos congressos penitenciários internacionais
Os índices de criminalidade, a agitação social que se fez sentir na Europa em meados do século XIX e a desadequação do sistema penitenciário impulsionaram a realização dos Congressos Penitenciários de Frankfurt, em 1846, de Bruxelas em 1847 e uma vez mais em Frankfurt, em 1857. As visitas de estudo e as missões, em voga nesta época, levaram Manuel Thomaz Azevedo, juiz e ajudante do Procurador régio, a visitar, por iniciativa sua, prisões em França, Inglaterra, Bélgica e Suíça, de que terá feito um primeiro relatório em abril de 1857. Essa iniciativa deve ter estado na origem da missão, de que foi encarregue pelo Ministério da Justiça, em julho do mesmo ano, para visitar as prisões da Alemanha e Itália, o que lhe terá permitido participar no Congresso de Frankfurt de 1857. O relatório que fez dessa missão foi apresentado ao Ministério da Justiça e publicado pelo seu autor em 1859. Esse trabalho incidiu não só sobre as prisões que visitou na Alemanha e Itália, que eram consideradas as mais bem organizadas, como também nas da Holanda, Inglaterra, Bélgica e sobre as deliberações do Congresso Penitenciário de Frankfurt. O mesmo relatório refletiu sobre a carência generalizada, em matéria de regime penitenciário, e a necessidade de se tomarem medidas enérgicas e eficazes para suspender os progressos da criminalidade nas gerações mais novas e “[...] interromper a transmissão hereditária da degradação e dos vícios de pães a filhos” (Azevedo, 1859, p. 246). Para esse efeito, Manuel Azevedo (1859) propôs ao Governo português que se criassem, multiplicassem e aperfeiçoassem os estabelecimentos especiais “[...] destinados a presos moços, mendigos, vagabundos, creanças abandonadas, viciosas e desprezadas. […] É próprio destes estabelecimentos o caracter agrícola ou industrial” (Azevedo, 1859, p. 246).
A afirmação da ciência positiva foi acompanhada da convicção de que ela podia prever e corrigir o desenvolvimento social, criando bem-estar e elevando a moral social. O crime surge como fenómeno desestabilizador, que sempre existiu e para o qual as sociedades procuraram soluções baseadas na repressão e na punição. O positivismo, ao naturalizar a moral, opera uma transformação ideológica que leva quer ao estudo do crime como problema biossocial (hereditariedade, condições económicas e sociais), quer à exigência de medidas de ‘profilaxia social’, com repercussões no campo jurídico, social e educativo. No sentido da compreensão deste fenómeno social produziram-se estudos sobre o tema, tanto a nível internacional, destacando-se o contributo de Lombroso (1871); Laurent (1891), como a nível nacional, Basílio Freire (1886); Ferreira Deusdado (1891, 1894); Mattos (1902, 1916). Contudo, cabia ao Estado o conhecimento da extensão deste fenómeno social e a promoção de medidas de controlo (preventivas, repressivas e punitivas), que protegessem os cidadãos.
Segundo Martins (2014, p. 66), o pensamento criminal positivista, influenciado pelas teorias de Darwin, seguiu dois rumos:
[...] a Escola Antropológica Criminal Italiana (César Lombroso, E. Ferri, R. Garofalo), para a qual o delito é um fenómeno essencialmente biológico ou anatómico; e a Escola Sociológica Criminal Francesa (Lacassagne, G. Tarde), para quem o delito é um fenómeno social.
As teorias sociológicas apresentaram-se mais complexas, uma vez que acusavam a influência de elementos biológicos e sociais. Esta corrente de pensamento foi defendida por vários investigadores e pensadores portugueses, nomeadamente por Basílio Freire (1886), Ferreira Deusdado (1891), Afonso Costa (1895) Mendes Corrêa (1913, 1915) e Pe. António de Oliveira (1920). Estes intelectuais defendiam a tese de que o crime e a criminalidade se deviam “[...] à má organização da sociedade, cujos fatores sociais (miséria, pobreza, álcool, geografia, desorganização familiar, etc)” (Martins, 2014, p. 72), muito contribuíam para este flagelo social.
Entre 1846 e 1872 realizaram-se três Congressos Penitenciários Internacionais, mas a nível europeu. Uma vez que a partir de 1872 se imprimiu uma maior organização, e a participação foi alargada a países de fora da Europa, os Congressos Penitenciários Internacionais iniciam a contagem com o Congresso Penitenciário de Londres em 1872. O Congresso realizado em Londres abriu caminho a um conjunto de edições, mas as I e II Guerras Mundiais obrigaram a dois interregnos (entre 1910 - 1925 e entre 1935 - 1950), o que quebrou o intervalo habitual de cinco anos entre congressos. Ainda foi convocado para Roma em 1940, mas não se concretizou, como referem Teeters (1949a) e Pears (1872).
Eis a sequência dos Congressos Penitenciários Internacionais realizados: I Congresso Penitenciário Internacional, Londres (1872); II Congresso Penitenciário, Estocolmo (1878); III Congresso Penitenciário, Roma (1885); IV Congresso Penitenciário, St. Petersburgo (1890); V Congresso Penitenciário, Paris (1895); VI Congresso Penitenciário, Bruxelas (1900); VII Congresso Penitenciário, Budapeste (1905); VIII Congresso Penitenciário, Washington (1910); sendo depois mais espaçados no tempo. O IX Congresso Penitenciário, Londres (1925); X Congresso Penitenciário, Praga (1930); XI Congresso Penitenciário, Berlin (1935); XII Congresso Penitenciário, Haia (1950).
A presença de Portugal está documentada nos dois períodos. Fez parte das mesas de discussão dos congressos em Frankfurt (1857), como refere Azevedo (1859); em São Petersburgo (1890), Paris (1895) e Bruxelas (1900), como é documentado por Teeters (1949a). A última participação portuguesa aconteceu em 1925, no Congresso de Londres. A nossa análise incide nos nove congressos realizados a partir de 1872, nas secções que à infância e juventude dizem respeito.
A ideia dos Congressos Penitenciários Internacionais partiu, segundo Negley Teeters, de Enoch Cobb Wines, dos Estados Unidos, numa troca de correspondência com o conde Wladimir Alexandrowitsch Sollohub, diretor da prisão de Moscovo. Enoch Cobb Wines salientou a necessidade de se estudar o regime penitenciário. Desta inquietação surgiu a ideia de convocar os governos dos diferentes países, tendo alcançado maior sucesso do que o que era esperado, (Teeters, 1949a). O principal objetivo dos Congressos consistiu no debate de ideias sobre os serviços penitenciários, os modelos carcerários e educativos, as medidas preventivas, a legislação e a disseminação dos temas tratados junto das populações. Para esse efeito usaram como instrumento os relatórios oficiais, elaborados pelos representantes de cada país, conforme é salientado pelo representante inglês, Charles Lucas, no discurso de abertura do Congresso de Londres, em 1872:
Assume-se que todos os delegados oficiais farão relatórios aos governos pelos quais foram comissionados e que todos os relatórios serão, sem dúvida, publicados pelos respetivos governos e por isso não só circularão entre as pessoas de todos os países civilizados, mas tornar-se-ão informação especial para os decisores e executores das leis desses países (Wines, 1872, p. 1)2.
Os Congressos fomentavam a partilha de estratégias e de boas práticas que apontassem a redução da criminalidade, instituindo como principal objetivo “[...] o estudo scientifico da criminalidade no homem, nas suas relações com a biologia e a sociologia” (Ferreira Deusdado, 1894, p. 2). Os temas apresentados aos Congressos chamavam a si “[...] homens d’estado, como também dos criminalistas e dos homens da sciencia positiva” (Ferreira Deusdado, 1891, p. 13). Como salienta o autor, os Congressos contribuíram fortemente para um conhecimento comparado do regime penitenciário na Europa e no mundo. A realização dos Congressos propunha a disseminação do conhecimento, tendo tido vigorosas repercussões nas práticas e políticas sociais portuguesas, porque, segundo Ferreira Deusdado (1891, p. 272), deram “[...] conta ao seu governo e aos seus concidadãos, do que lá fóra se pôde examinar, e aprender de útil e aproveitável”3.
Os debates ocorridos nos Congressos procuraram induzir bons resultados nos sistemas penitenciários de cada país através da reconfiguração das práticas, ocupando-se, sobretudo, com o regime penitenciário, com as instituições e com as políticas sociais. Tratou-se, ainda, de acautelar a construção de um futuro providente para a sociedade em risco. Como refere Ferreira Deusdado (1891, p. 10), “[...] a idéa dos congressos scientificos pertence ao seculo XIX [...]”, assegurando o autor que estes foram importantes espaços de discussão, de onde resultaram “[...] os fundamentos das leis para as nações” (Ferreira Deusdado, 1891, p. 10).
O mesmo autor, salientou que
[...] os congressos penitenciários são uma batalha travada contra o mal, […] a existência de um crime não deve fazer-nos pessimistas. A vida não é em si nem um bem, nem um mal, mas apenas o logar em que o homem pratica o bem ou o mal. Melhoraremos as condições d’esse logar, e o mal enfraquecer-se-há progressivamente (Ferreira Deusdado, 1891, p. 10).
Victor Ribeiro (1907) reforçou também a importância da participação portuguesa nos congressos internacionais, salientando ser este o caminho a seguir, uma vez que “[...] não se improvisam facilmente organizações novas e originais. É indispensável estudar de visu […]” (Ribeiro, 1907, p. 249).
Os congressos penitenciários internacionais e a participação de Portugal
Segundo o relatório de Wines (1872), o Congresso de Londres ocorreu no great hall of the Middle Temple, entre 3 e 13 de julho de 1872, e teve cerca de 400 pessoas, entre membros oficiais e pessoas individuais. Verifica-se a ausência intermitente de países, como é o caso da Inglaterra, ausente no IV e VI congressos. Por sua vez, Portugal esteve presente no de Frankfurt, em 1857, fruto de circunstâncias particulares, só participando posteriormente em quatro outros, três no período anterior à República e à Grande Guerra, e no de Londres, em 1925, no pós-guerra, que corresponde também à fase final da I República. Pelos dados disponíveis o congresso de Londres, de 1925, foi o que registou o maior número de países representados.
Neste intervalo de tempo também ocorreram outras iniciativas que merecem destaque, uma vez que concorreram para um maior conhecimento das temáticas relacionadas com a infância. São elas o Congresso Internacional para a Infância de Florença, em 1894, e o Congresso Internacional do Patronato de Anvers, realizado em 1898, cuja primeira sessão versou a proteção da infância (Santos, 2012).
Organização dos trabalhos nos Congressos Penitenciários Internacionais
O I Congresso Internacional de Londres organizou-se em três grupos temáticos, ‘Legislação Criminal, Punição de Criminosos e Tratamento’. O debate destes temas ocorreu sob a forma de questão/resposta, tendo sido colocadas trinta e duas questões sobre as quais houve resoluções. Tal como refere Wines (1872), um dos pontos altos do Congresso foi a criação de um Comité Internacional Permanente4 constituído por membros dos Estados Unidos, Itália, Inglaterra, França, Suíça, Bélgica, Países Baixos, Áustria, Rússia e Alemanha. Esta organização tinha como finalidade convocar e organizar encontros internacionais sempre que houvesse matéria relevante a tratar, assim como impulsionar a promoção de estudos sobre os regimes prisionais. O primeiro encontro deste Comité teve lugar em Bruxelas, em setembro de 1873.
A organização dos trabalhos no II Congresso, de Estocolmo e seguintes, seguiu um rumo diferente, dividindo-se em três secções: ‘Secção I-Legislação Penal, a Secção II- Estabelecimentos Penitenciários e Secção III-Instituições de Prevenção’ (Teeters, 1949a). No III Congresso, de Roma, esta organização manteve-se (Teeters, 1949a). O IV Congresso realizado em S. Petersburgo teve um regulamento extenso, com vinte e cinco artigos, especificando as regras de participação, os temas e a ordem dos trabalhos (Ferreira Deusdado, 1891). Manuel Ferreira Deusdado5 foi o representante português, ocupando o cargo de vice-presidente da ‘III Secção’, que passou a denominar-se ‘Medidas preventivas’. Para o delegado português, o objetivo do Congresso era “[...] minorar as imperfeições da sociedade, difundindo a brilhante luz da verdade, e combatendo a ignorância, o vício e toda a miséria” (Ferreira Deusdado, 1891, p. 6).
No V Congresso de Paris, a organização dos trabalhos alargou-se a mais uma secção e a João da Silva-Matos, representante de Portugal, foi-lhe atribuído o cargo de Vice-Presidente desta ‘Secção IV’, tendo versado sobre temáticas relacionadas com a infância (Teeters, 1949a). A denominação das secções também se altera, ‘Secção I-Legislação penal, Secção II-Administração prisional, Secção III-Medidas preventivas’ e, por último, ‘Secção IV-Crianças e Menores’, assumindo a infância ‘e menores’ um lugar de destaque (Teeters, 1949a). Esta organização manteve-se no VI Congresso de Bruxelas (Teeters, 1949a), onde António Ferreira Cabral Paes do Amaral representou Portugal, continuando com o cargo de Vice-presidente da ‘Secção IV’. No VII Congresso de Budapeste, em 1905, os trabalhos preliminares foram efetuados pela ‘Comissão Prisional Internacional’, em Berna, em 1902 e em Budapeste, em 1904. A divisão dos trabalhos manteve as quatro secções e a mesma denominação. Esta organização repetiu-se no VIII Congresso de Washington, em 1910.
No IX Congresso de Londres, em 1925, o inglês surge como língua oficial, contrariando o que se verificara nos congressos anteriores, onde a língua oficial dos Congressos foi o francês. A organização dos trabalhos no congresso sofre também uma alteração, pois só houve lugar a três secções: ‘Secção I-Legislação, Secção II-Administração Prisional e a Secção III-Prevenção’, deixando de haver uma secção exclusiva para os problemas da ‘criança e menores’, verificando-se um recuo relativamente aos congressos anteriormente realizados. Os trabalhos decorreram conforme o programa organizado pela Comissão Internacional, para esse efeito reunida em Berna em 1922 e em Londres em 1924 (Silva, 1925).
Os temas debatidos e as principais deliberações
Existem temas que atravessaram todos os congressos, entre eles o combate à criminalidade, a preocupação com a infância pobre, desvalida e delinquente e a necessidade de encontrar respostas sociais para estes casos. No primeiro congresso, em 1872, esta preocupação sobressai uma vez que são colocadas várias questões sobre as problemáticas associadas à infância marginalizada, contudo não houve deliberações acerca do tema. Esta situação é justificada pelo facto da sociedade ainda não se encontrar estruturada para fazer face aos problemas relacionados com a infância marginalizada, nos diferentes rostos que assumia, pobre, marginalizada, exposta, abandonada, desvalida, ociosa, pervertida, vadia, mendiga ou delinquente. Acrescia a pouca informação que existia acerca das instituições de assistência e de correção, como é referido. Confirma-se que na maioria dos países o apoio à infância marginalizada era assegurado por instituições de cariz religioso e privado, apoiadas pela caridade e filantropia. Na maioria dos casos o Estado inibia-se de apoiar estas instituições, contudo supervisionava, tal como sucedeu em Portugal. Verificou-se a necessidade de se criarem mais instituições de acolhimento, assistência e proteção à infância marginalizada, mais estudos e um enquadramento jurídico adequado a este grupo social. Acerca das preocupações debatidas no Congresso de Londres, Ferreira Deusdado (1891, p. 14) dava conta, cerca de vinte anos mais tarde, que
[...] já em 1872, no congresso de Londres, se elevaram vozes muito auctorisadas para reclamarem toda a solicitude possível com as creanças moral e physicamente abandonadas, assim como também com aquellas que se encontrem já pervertidas na escola do vicio e do crime.
A necessidade de extinguir a vadiagem e de se criarem estruturas sociais, que protegessem e educassem a infância marginalizada, era um assunto recorrente entre os intelectuais portugueses. Confirmou-se que, na época, Portugal apresentava um atraso considerável em matéria de legislação, instituições e estudos acerca das mesmas. Ferreira-Deusdado (1894) assinalava esse atraso relativamente a alguns países, como a Alemanha, França, Inglaterra, Holanda e Áustria-Hungria. O autor referia, ainda, a existência de falta de consenso em relação aos termos e conceitos usados para definir os criminosos. Para ele, o crime não era apenas um fenómeno fisiológico, como alguns antropólogos da época advogavam, tratava-se antes de um fenómeno social. O autor refere a importância de se criarem em Portugal “[...] asylos para alienados e criminosos, onde sejam detidos até à cura” (Ferreira-Deusdado, 1894, p. 38).
Em Portugal, autores como Ferreira-Deusdado (1894) e Costa (1895) apontavam a educação desde tenra idade como solução para o problema da criminalidade infantil. Segundo Ferreira-Deusdado (1891, p. 32), “[...] o mal persiste, precisa-se combatê-lo, só uma educação racional e sentimental bem dirigida das novas gerações conseguirá dissipar esta crise […]”. Para Afonso Costa (1895) a existência do crime e da criminalidade devia-se à desorganização da sociedade, nomeadamente aos fatores sociais como a miséria, a pobreza, a destruturação familiar, o consumo de álcool, entre outros. Para este criminologista, estes fatores seriam os principais causadores da delinquência infantil.
A existência de famílias de acolhimento foi uma das primeiras medidas apontada como solução. Decorreu da escassez de instituições e, ainda, como forma de proporcionar à criança um ambiente ‘mais natural’ e saudável. Foi defendido que um ambiente familiar estruturado poderia contribuir para o desenvolvimento integral da criança. A implementação desta medida foi apontada e debatida em vários congressos: Estocolmo, em 1878, Budapeste, em 1905, Washington, em 1910, e no de Londres, em 1925.
A necessidade de separar as crianças dos adultos criminosos, a carência de estabelecimentos diferenciados que possibilitassem esta separação e, ainda, a separação de crianças e jovens consoante o sexo, idade e crime praticado ganham expressão nos Congressos. Foi no congresso de Estocolmo que este problema foi levantado pela primeira vez, sendo esta ideia reforçada nos Congressos de Budapeste e no de Washington.
Desde o Congresso de Estocolmo, em 1878, que os debates manifestam uma aposta na instrução da infância marginalizada em estabelecimentos próprios, dentro das instituições de acolhimento, ganhando destaque nas instituições a implementação da instrução e educação. A educação religiosa prevalecia nas instituições de assistência à infância marginalizada, tendo sido considerada uma mais valia para a sua formação. As instituições de acolhimento funcionaram como complemento ao sistema prisional, destacando-se as ‘Associações de Ajuda’, ‘Casas de Trabalho’ e ‘Colónias Agrícolas’ ou outros meios de assistência e proteção que pudessem contribuir para o fim indicado. As ‘Associações de Ajuda’ eram privadas, com cariz religioso e ação orientada no sentido do acolhimento e assistência de menores. As ‘Casas de Trabalho’ e ‘Colónias Agrícolas’ tinham uma organização diferente e eram tuteladas pelo Estado. Surgiram da necessidade de separar as crianças delinquentes dos adultos e promoviam a instrução elementar e a educação pelo trabalho. Estes sistemas de acolhimento, assistência e correção de menores foram implementados em alguns países como a Alemanha, França, Bélgica, Suíça e Inglaterra, tal como deu conta Manuel de Azevedo (1859). O procurador referia que as ‘Colónias Agrícolas’ eram “[...] o epílogo neste século da reforma penitenciária. O seu espírito humanitário e religioso, a sua tendência moralizadora, o auxílio à agricultura, tem adquirido para estes estabelecimentos o alto conceito que merecem” (Azevedo, 1859, p. 133). Em Portugal, a sua implementação aconteceu mais tarde, resultado da apropriação dessas medidas debatidas nos Congressos Penitenciários Internacionais. Foram promulgados diplomas que determinavam a criação de Colónias Penais Agrícolas e as Casas Correcionais de Trabalho. A Lei de 22 de junho de 1880 autorizou a criação da ‘Colónia Agrícola de Vila Fernando’, destinada a acolher e educar menores delinquentes. Com o mesmo fim foi criada, em 1902, a ‘Casa de Detenção e Correção de Vila do Conde’6.
Anos mais tarde, relativamente à situação de Portugal, Ferreira-Deusdado (1891, 1894) afirmou que havia uma tendência para medidas extremas e apontou como solução para o problema da criminalidade infantil um regime carcerário, que privilegiasse a educação moral e profissional.
Em matéria de legislação é imperativo referir que, em 1884, a reforma de 14 de junho regulamentou a situação dos menores criminosos, sendo referido que, quando estes tivessem idade inferior a catorze anos, seriam entregues aos seus pais ou tutores “[...] ou a um qualquer estabelecimento de correção, ou colónia penitenciaria, se a houver no continente”7. Os artigos 38º e 39º reportam-se especialmente à situação dos menores criminosos, sendo referida a necessidade de serem acolhidos em estabelecimentos especializados8.
Outro contributo foi o do médico e filósofo Basílio Freire (1886, p. 276-277), uma vez que este desvalorizava o fator hereditário, referindo que “[...] a hereditariedade não é fatal [...]”, pois o filho de um doente mental, podia não vir a sê-lo. Júlio de Mattos (1902), médico psiquiatra, destacou também o papel da educação, evidenciando a sua forte influência nos primeiros anos de vida da criança. Apontava a hereditariedade e a tradição como fatores que contribuíam para a génese do caráter. Na obra Criminologia: estudo sobre o delito e a repressão penal (Mattos,1916, p. 161) destacou os modelos de educação familiar, referindo que “[...] muito mais que o ensino, atuam sobre o espírito e o coração infantis”.
A instrução elementar e a aprendizagem pelo trabalho, no sentido de preparar a criança para ganhar o seu próprio sustento, ganha expressão nos Congressos de Estocolmo, 1878, Paris, 1895, Bruxelas, 1900, e Budapeste, 1905. Nestes congressos ficou decidido que a permanência dos menores nas instituições poderia prolongar-se até aos dezoito anos (Teeters,1949a). Nos Congressos de Bruxelas e Washington fala-se na possibilidade de dar a escolher a área de formação, conforme as aptidões da criança. Em Budapeste foi referido que, para além do trabalho em oficina, as crianças deveriam ter atividades práticas ao ar livre, como jardinagem e atividades agrícolas. As atividades físicas deveriam constar nas rotinas diárias das crianças e jovens internados. Não era comum referirem-se especificamente à educação de meninas, porém, no Congresso de Estocolmo, este tema foi abordado pela primeira vez, sendo referido que estas deveriam ter instrução elementar e aprender um ofício útil à sociedade, nomeadamente o de ‘criadas domésticas’ ou ‘criadas de quintas’. Todas estas propostas evidenciam a presença de um discurso pedagógico marcado pelas novas experiências educativas designadas de Escola Nova e que incorporavam progressivamente os contributos da psicologia. Segundo Henriques da Silva (1925), no IX Congresso de Londres, uma das decisões do Congresso foi diligenciar nas instituições correcionais uma nova pedagogia, que passasse pela promoção de comportamentos que o delinquente deveria adquirir
[...] o gosto artístico, dando-lhe hábitos de conforto, de higiene, e sobretudo de trabalho, procura-se crear nele uma nova mentalidade, uma nova consciência, que o fará aborrecer do crime. Tenta-se, em resumo, regenerar o delinquente pela persuasão, pela doçura, e não pela coacção e pelo terror (Silva, 1925, p. 489).
No Congresso de Paris foi deliberado que a custódia de menores ficaria a cargo dos tribunais civis, contudo foi salvaguardada a hipótese das decisões serem revistas pelos tribunais criminais. No mesmo congresso também foi decidido que as crianças com idade inferior a doze anos teriam que ser enviadas para instituições de proteção.
A inibição do poder parental foi um assunto discutido no Congresso de Roma (1885), Paris (1895), e Washington (1910). Os pais que ministrassem educação amoral, negligentes, vagabundos deveriam ser punidos e caso estes incentivassem a vagabundagem seriam proibidos de contactar os seus filhos. As grandes cidades debatiam-se com o problema da vagabundagem e ociosidade infantil. Este tema ganha expressão no Congresso de Washington, em 1910. Uma das medidas propostas para o minimizar passava pela implementação de formação para pais, visando a promoção de ambientes familiares saudáveis; outra propunha a criação de mais espaços públicos com divertimentos para crianças, como parques, centros de recriação e ginásios.
Relativamente a Portugal, Basílio Freire (1886), na obra Os degenerados, aponta as condições de vida deploráveis em que viviam a maioria das famílias pobres da época, tanto dos meios rurais quanto dos urbanos, evidenciando que as crianças eram as mais afetadas. Na sua opinião, os maus hábitos adotados pelas famílias geravam patologias e contribuíam para o desenvolvimento de comportamentos criminosos ou moralmente condenados pela sociedade.
Em 1905, no Congresso de Budapeste, foi exigido que os estabelecimentos de acolhimento tivessem recursos humanos com competências técnicas para proceder à observação de crianças e jovens moralmente negligenciados ou delinquentes. Foi recomendada a obrigatoriedade de existirem médicos e educadores nas instituições de correção: os primeiros para efetuarem o exame médico e os segundos para os educar. No processo de recuperação da criança foi destacado o papel da psicologia. A Théophil Roussel School, de Paris, foi apontada como exemplo a seguir. Passa também a ser exigido aos juízes conhecimento na área das ciências sociais e humanas, para que houvesse um maior entendimento das problemáticas relacionadas com a infância marginalizada. Esta exigência voltou a ser reformulada no Congresso de Washington, em 1910, e no de Londres, em 1925. Também neste último congresso há um alerta para que fosse limitado à infância e juventude o visionamento de determinadas ‘fitas’ nos animatógrafos uma vez que, segundo Henriques da Silva (1925, p. 481), “[...] o perigo daí resultante toma proporções alarmantes e requer a maior vigilância e medidas de defesa por parte dos estados […] um grande numero de fitas são um perigo para a moral e até para a mentalidade dos espectadores de tenra idade”. Uma das resoluções do Congresso foi a criação de sessões especiais para crianças.
A situação das crianças ‘anormais e degeneradas’ mereceu um alerta dos congressos, embora tardiamente. O congresso de Bruxelas, em 1900, foi pioneiro ao chamar à atenção para este grupo social e para a necessidade de se criarem instituições médico-pedagógicas capazes de responder às suas necessidades. No congresso seguinte, em Budapeste, em 1905, foi indicado como imperativo que o Governo de cada país efetuasse um estudo sobre a organização judicial, de forma a que esta fosse especialmente adaptada às especificidades das crianças e jovens.
O problema da prostituição infantil foi abordado, pela primeira vez, no congresso de Paris, em 1895. Ficou decidido que qualquer criança ou jovem que se prostituísse seria presente a tribunal e posteriormente internada numa casa de correção ou ficaria à guarda de uma família idónea, até atingir a maior idade. As pessoas que forçassem a prostituição de crianças e jovens seriam duramente punidas. Contudo, ficou decidido que esta matéria só seria regulamentada no congresso seguinte. No congresso de Bruxelas, em 1900, o tema volta a estar nas mesas, porém, mais uma vez, não foi regulamentado. O problema da prostituição infantil mereceu, mais uma vez, destaque no Congresso de Washington, em 1910. A necessidade de diminuir o número de crianças vagabundas, abandonadas e das que eram entregues à prostituição pelos pais foram pontos indicados para explorar e acautelar. Os problemas associados à gravidez na adolescência também sobressaíram neste congresso, uma vez que o número de menores grávidas era expressivo, verificando-se o subsequente abandono de crianças filhas de adolescentes. Neste sentido, ficou decidido que se fariam ações de sensibilização sobre a sexualidade, assim como campanhas para minimizar este problema social. A realização de conferências e cursos que versassem o tema ‘crianças delinquentes’ e ‘pais adotivos’, foi deliberado, uma vez que se verificava essa necessidade e este problema estava longe de encontrar solução.
Algumas notas sobre a lei de proteção da infância de 1911 no contexto dos Congressos Penitenciários Internacionais
As questões relacionadas com infância significaram, para os governantes republicanos, um objeto de investimento, nomeadamente no que tange à dimensão sociopedagógica. A preocupação com a assistência à infância pobre, abandonada e delinquente aflorou na Monarquia e ganhou maior expressão na República, pelo peso que este flagelo social representava para a sociedade. Os Governos da República foram generosos na promulgação de legislação relacionada com a assistência, proteção e educação da infância9. A criação e a publicação de um diploma profundamente inovador, a Lei de Proteção à Infância10, de 1911, colocou Portugal entre os primeiros países da Europa a legislar uma área do direito ainda pouco desenvolvida.11
A promulgação deste diploma obedeceu ao desejo do Governo provisório de cumprir o compromisso formal tomado pelo Decreto de 1 de janeiro de 1911 e acudir, tanto quanto possível, a um mal social cuja previdência ou cuja cura não se devia protelar, uma vez que representava um risco de graves consequências. Estas medidas preconizavam a reeducação de crianças e jovens e a atenuação das causas que perturbavam o bom funcionamento da sociedade portuguesa. O Governo comprometeu-se a “[...] proporcionar educação e instrução, preparatória e profissional, respetivamente às crianças e aos adolescentes que se encontrassem em condições de as suas famílias lhes não poderem subministrar taes benefícios”12. Se o Decreto de 1 de janeiro de 1911 abriu o caminho no sentido de acautelar a proteção e educação de crianças em risco, a Lei de Proteção à Infância de 1911 respondeu, de forma mais abrangente, à necessidade de se definirem com celeridade meios jurídicos e institucionais, que acautelassem a situação das infâncias à margem. Pretendeu retirar a criança desprovida, de ambientes viciados, que a impediam de um desenvolvimento integral e a excluíam da sociedade.
Este diploma fundamentou-se em três princípios: proteger, regenerar e tornar útil a criança. O Governo português pretendia prevenir e recuperar os efeitos dos males sociais, que levavam menores, de ambos os sexos, com menos de dezasseis anos completos, à perversão ou ao crime. Para isso foram criadas as Tutorias da Infância e a Federação Nacional dos Amigos e Defensores das Crianças. O preâmbulo do Decreto clarifica o objeto das Tutorias da Infância: “[...] um tribunal colectivo especial, essencialmente de equidade, que se destina a defender e proteger as crianças em perigo moral, desamparadas ou delinquentes, sob a divisa: educação e trabalho”13. As Tutorias prescreviam um processo de terapia moral, de higiene preventiva contra o crime e de higiene curativa quando o crime já tivesse sido consumado, evitando a sua repetição. Com este diploma, os menores de dezasseis anos não eram considerados criminosos vulgares e os julgamentos eram ditados pelo espírito ponderado dos julgadores e não tanto pela rigidez dos códigos, procurando despertar o menor para o cumprimento do bem, afastando-o do meio que contribuiu para a sua incursão nos caminhos do crime e miséria humana. Competia às Tutorias, centrais ou comarcãs, investigar e julgar os crimes dos menores em perigo moral, abandonados, pobres, maltratados, desamparados, indisciplinados, pervertidos ou delinquentes e estabelecer as medidas adequadas para a sua reabilitação. Qualquer que fosse a medida, esta visava uma ação educativa e moralizadora. As causas da inibição do ‘poder paternal’ foram revistas e alargadas, até aos pais simplesmente pobres. As inibições eram empregues para salvaguardar a educação e/ou correção dos jovens até aos dezoito anos e não apresentavam carater punitivo ou difamante14.
Relativamente à ‘Federação Nacional dos Amigos e Defensores das Crianças’, esta tinha como objeto a “[...] união jurídica, moral e facultativa de várias instituições, quer oficiais, quer particulares, de propaganda, educação e patronato que deverão formar um verdadeiro sistema de higiene moral e social”15. Encontravam-se divididas em circunscrições - sul, centro e norte; e em secções - pedagógica, jurídica e financeira16. As instituições que as constituíram podiam ser de propaganda17, quando efetuavam ações de sensibilização junto dos cidadãos alertando para as consequências de determinadas doenças, como o alcoolismo, a sífilis e a epilepsia. Tinham ainda como objetivo divulgar “[...] os preceitos da higiene e da puericultura”18. Tinham também como finalidade promover a educação preventiva, reformadora ou correcional que se operacionalizava através de instituições extra ou pós-escolares, como os semi-internatos, internatos preparatórios ou profissionais, colónias agrícolas para o sexo masculino e casas de correção. As instituições de patronato ou beneficência, que se destinavam a auxiliar a ação da Tutoria, também integravam as Federações19.
Não conseguimos aferir a correspondência direta de um congresso específico com as medidas adotadas no diploma. Conquanto, seis anos antes, no Congresso de Budapeste, onde Portugal não participou, havia sido recomendado aos Governos de cada país um estudo sobre a organização judicial relacionada com as especificidades das crianças e jovens. É também relevante assinalar que os princípios defendidos pela Lei de Proteção à Infância, de 1911, já tinham sido debatidos e defendidos no congresso Estocolmo, 1878. No Congresso de Paris, em que Portugal participou em 1895, fora reforçada a necessidade de se investir na educação de crianças e adolescentes delinquentes e em perigo moral e de se promoverem meios jurídicos sobre este tema. Estas preocupações voltaram a ganhar expressão nos congressos de Bruxelas, 1900, e em Budapeste, 1905.
Durante o período da República, a Lei de Proteção à Infância, de 1911, sofreu ligeiras alterações, implementadas através de legislação avulsa. Da legislação publicada destaca-se o Decreto de 13 de maio de 191120, que determina a criação de colónias agrícolas para alienados, necessidade assinalada por Ferreira-Deusdado (1894), tema também levantado no Congresso de Bruxelas (1900). Os serviços de semi-internato foram previstos e regulados com certa minúcia pelo Decreto nº 2.053, de 18 de novembro de 1915, e posteriormente aprofundado pelo Decreto nº 10.767, de 15 de maio de 1925. Em 1919 foi criado pelo Ministério da Justiça o primeiro serviço central Inspeção-geral dos Serviços de Proteção a Menores, como organismo coordenador das atividades tutelares da infância, através do Decreto nº 5.611, de 10 de maio de 1919, reorganizado mais tarde pelo Decreto nº 9.152, de 27 de setembro de 1923 21. Em 1925, o Decreto nº 10.767, que em grande parte o completou e regulamentou a Lei de Proteção à Infância, de 1911, introduzindo mudanças mais profundas, ao organizar e regulamentar os serviços jurídicos e tutelares de menores, destacando que “[...] a ação educadora é o primeiro meio preventivo da delinquência infantil”22.
Considerações finais
Portugal ao longo do século XIX, em particular no período da Regeneração, manifestou uma atenção especial à questão da infância. Como refere Maria Rosa Tomé (2010, p. 484) a sua assistência, proteção e educação foram entendidas como investimento e como forma de desenvolver o país, assim, “[...] a criança tornou-se um alvo de diferentes áreas da ciência e de políticas sociais e judiciais”. O problema social que constituía a infância pobre, mendiga, vadia, anormal, pervertida, indisciplinada e delinquente impunha-se como uma afronta à ordem social. Este facto levou a que diversos países tomassem consciência de que a defesa da ordem social exigia medidas de prevenção criminal e de assistência social. O conjunto das preocupações relacionadas com o problema das infâncias à margem é bem evidente nos Congressos Penitenciários Internacionais realizados na segunda metade do século XIX e início do século XX. Durante esse período emergiram novas conceções de assistência, regeneração e educação, que foram sendo conhecidas pelos intelectuais portugueses. A legislação produzida em prol da proteção da infância em Portugal surgiu, sobretudo, a partir do início do século XX, no contexto das políticas afirmativas da República e é indicativa da procura de soluções para este problema social. Sónia Câmara (2010, p. 213) salienta que os vários congressos, que tiveram lugar a partir de 1872, constituíram “[...] espaços privilegiados para apresentação, circulação, apropriação e universalização das mais modernas e inovadoras concepções na área da criminologia em geral”. A intencionalidade destes Congressos era produzir consensos, que se pudessem apresentar aos respetivos governos como propostas fundamentadas na ciência positiva, resultado do estudo de especialistas, apoiados nos respetivos governos, como exigências de caráter imperativo. Neste registo, os representantes de cada país debatiam e apropriavam-se de ideias que, segundo Roger Chartier (2002, p. 169, grifo do autor), visavam
[...] reconhecer uma identidade social, a exibir uma identidade própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto, uma ordem, um poder; enfim, as formas institucionalizadas através das quais ‘representantes’ encarnam de modo visível, ‘presentificam’, a coerência de uma dada comunidade, a força de uma identidade, ou a permanência de um poder.
É imperativo salientar que, apesar da presença de Portugal nos Congressos Internacionais Penitenciários ter sido pouco expressiva, quando a mesma se verificou teve impacto, originando apreciações e críticas muito positivas, nomeadamente no que se reporta às posturas doutrinárias e às produções científicas portuguesas, designadamente na obra Estudos sobre criminalidade e educação23, de Ferreira Deusdado (1889). O professor de psicologia criminal foi muito aplaudido pela comunidade internacional, surgindo uma série de artigos críticos acerca das suas teses, assim como publicações na imprensa, nacional e internacional, que exaltavam a qualidade científica do seu trabalho.
Igualmente, exemplo deste reconhecimento é a apreciação do jurista italiano, Cesar Lombroso, na obra L’Anthropologie criminelle et ses recentes progrès, publicada em 1890, na qual louvava os feitos portugueses na área jurídica, mencionando que o primeiro congresso jurídico que verdadeiramente discutiu os problemas propostos pela nova escola jurídica tinha sido o congresso de Lisboa24. Contudo, as ideias do representante de Portugal nem sempre colheram a anuência de outros juristas nacionais, sendo apontadas críticas à defesa do regime de isolamento carcerário em cela.25
Os Congressos Penitenciários foram instigados pelos problemas sociais relacionados com a criminalidade, quer dos adultos, quer da infância e juventude. Destes resultou um maior conhecimento acerca dos problemas relacionados com a criminalidade, com o regime penitenciário, com a consciencialização da situação da infância e juventude marginalizada, tendo sido apontadas medidas no sentido da sua resolução. Houve lugar a uma maior produção científica sobre a temática da criminalidade, levantamento de dados sobre a situação das prisões e das instituições de proteção, com subsequente alteração das políticas penitenciárias, nomeadamente no que tange à aplicação das penas e modelos de reeducação. Todos estes estudos se enquadravam na corrente positivista que vigorava na época, sendo regida pelos princípios penais clássicos, ou seja, “[...] o positivismo penal, cientificamente ‘avançado’ pelos padrões da época, constituiu-se uma rigorosa forma de controle social e justificação da repressão desencadeada contra as massas” (Ferrajoli, 2002, p. 302, grifo do autor).
Assiste-se a uma maior produção no campo jurídico, que veicula as ideias mais consensuais a nível internacional, e à restruturação e ampliação da rede de instituições de reeducação. A existência de mais conhecimento acerca da criminalidade infantil fomentou a necessidade de criação de estruturas sociais mais bem preparadas e com um corpo técnico multidisciplinar, constituído por médico, professores, auxiliares, entre outros, visando proteger, assistir, corrigir e reeducar a infância delinquente.
A Lei de Proteção à Infância de 1911 foi um marco na história da proteção da infância e juventude, uma vez que preconizou o acolhimento, assistência e educação da infância pobre e delinquente. O Padre António Oliveira foi quem arquitetou este normativo, que para além de se destacar como pensador, era também conhecedor da área e um homem de ação, que implementou um novo modelo de educação nas casas de correção, introduzindo a pedagogia da Escola Nova. Como refere Carlos Poiares (2010, p. 5), era uma pessoa “[...] experimentada nos problemas que trabalhou no diploma: desde a colocação, em 1889, como capelão, da Casa de Correcção de Lisboa - as Mónicas - até à instalação da Casa de Correcção do Porto, em 1902”.
Este normativo e a sua regulamentação impulsionaram um modelo de pedagogia de reeducação, onde imperava a educação pelo trabalho. Era importante que as crianças fossem educadas para ganhar o próprio sustento e se afastassem dos caminhos que levavam à delinquência, e que deixassem de ser ‘infratoras e problemáticas’. Para isso foram feitos melhoramentos, quer nas instituições de acolhimento, como reformatórios, internatos e colónias correcionais, quer ao nível dos modelos de intervenção, nomeadamente os educativos e correcionais. No início do século XX, no que à proteção e assistência à infância diz respeito, deram-se passos significativos no âmbito judicial, jurídico, assistencial e educativo.
A nível internacional, as preocupações com a infância ganham significativo relevo, sendo elaborada a primeira Declaração dos direitos das crianças, em 1924, mais conhecida por Declaração de Genebra, constituindo este documento um testemunho inegável no campo da proteção da infância, onde estão consignados os princípios básicos de proteção à infância.