Introdução
Émile Jaques-Dalcroze tem sido celebrado internacionalmente como criador da Rítmica, um modelo ativo de educação musical baseado na integração entre escuta e movimento, corpo e ritmo musical, no qual a experiência sensorial precede o intelecto ou qualquer análise conceitual ou analítica.
No Brasil, as provocadoras ideias de Dalcroze apareceram pela primeira vez no texto A Menina e o Conservatório, traduzido por Sá Pereira e publicado em 1924 na revista modernista Ariel (Toni, 2015). Mário de Andrade, editor da revista ao lado de Sá Pereira, demonstrou grande interesse pela Rítmica, considerando-a como “[...] um dos progressos técnicos mais importantes do ensino musical da atualidade” (Andrade, 1987, p. 192).
As inovações presentes na proposta de Dalcroze inspiraram práticas de universalização do ensino de música nas escolas, um movimento semelhante ao projeto idealizado por Villa-Lobos junto ao Plano de Educação Musical da Superintendência Educacional e Artística (SEMA) do governo Vargas.
A disciplina Canto Orfeônico foi criada e encaixava-se perfeitamente ao espírito cívico-militar nacionalista e ao manifesto escolanovista. A proposta foi aplicada inicialmente no Rio de Janeiro (antiga capital da República), mas em pouco tempo, através do Decreto nº 24.794 (1934, Art. 11), o ensino do Canto Orfeônico se tornaria extensivo “[...] a todos os estabelecimentos de ensino dependentes do Ministério da Educação e Saúde Pública”.
A promulgação da 1ª Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 4.024, 1961) deu início ao enfraquecimento do ensino do Canto Orfeônico, da Filosofia e das línguas antigas (latim e grego), que passou a ser facultativo no ensino clássico.
Com a aprovação da Lei nº 5.692 (1971), o Canto Orfeônico foi definitivamente extinto do ensino de música das escolas públicas brasileiras em substituição à Educação Artística, configurada como atividade obrigatória (não mais disciplina) ao lado da Educação Física e da Educação Moral e Cívica.
Do ensino pautado da linguagem musical (canto coral) passou-se ao ensino genérico da Educação Artística, de formação curta, polivalente e com foco no desenho técnico-industrial. A indagação de Viñao (2012, p. 201) sobre o sistema francês de ensino (primário) revela origens e permanências dessa mesma problemática: “O canto é uma disciplina ou é somente uma atividade ou exercício da música que sim, seria hoje, pela nossa perspectiva, a disciplina?”
Depois de 25 anos, a Lei nº 9.394 (1996) determinou a substituição da Educação Artística pela Arte, disciplina curricular obrigatória destinada a contemplar as quatro linguagens artísticas, quais sejam a Música, a Dança, o Teatro e as Artes Visuais. Conforme Vieira (2011), a iniciativa do Poder Legislativo foi louvável, mas não resolveu o problema do ensino de Arte, pois as escolas públicas brasileiras não tinham a menor condição de abarcar o ensino de todas essas linguagens. Os Parâmetros Curriculares Nacionais ou PCNs (Brasil, 1997) trouxeram questionamentos importantes em relação às teorias não críticas de educação, mas as orientações didáticas disponibilizadas não ultrapassaram 3 ou 5 páginas em cada caderno/linguagem.
O contínuo e progressivo enfraquecimento do ensino de Música gerou um debate político intenso entre os educadores partidários dos métodos ativos de educação musical para os quais a Rítmica Dalcroze era uma grande fonte de inspiração. Esse movimento deu sanção à Lei 11.769 (2008), não implementada, que deliberou sobre a obrigatoriedade do ensino de Música na educação básica.
A constituição histórica de uma disciplina escolar possui uma dinâmica intensa e igualmente perversa. Na República idealizada por Platão, a música - ao lado da ginástica - tinha um lugar central na formação do homem livre. A música também ocupou nas Artes Liberais (Idade Média) o seleto grupo de disciplinas do Quadrivium.
Depois de muitas voltas, somadas à precarização do ensino e à desqualificação dos professores, o ensino de Arte/Música, no contexto da cultura escolar, se tornou insipiente e esvaziado de sentido, uma forma de distração e compensação do trabalho realizado pelas disciplinas sérias.
Dalcroze também registrou uma preocupação legítima com a reforma do ensino de música nas escolas, indicando que “[...] a música exerce, na escola, um papel desbotado e secundário” (Jaques-Dalcroze, 1920, p. 13).
Viñao (2012, p. 198) aponta os “[...] diferentes status disciplinares [...]”, enquanto Júnior e Galvão (2005) investigam a valorização de certas disciplinas em detrimento de outras. De fato, o professor de Matemática ou Língua Portuguesa goza um status muito mais elevado do que o professor de Arte/Música. Mesmo tendo recuperado a condição de disciplina, a Arte/Música não exerce o mesmo poder real (e simbólico) de reprovação, uma configuração bastante positiva do ponto de vista libertário, embora mantenha a área da Arte em uma busca eterna - consciente ou não - de legitimidade (Silva, 2003).
Dalcroze tinha o sonho de implementar a Rítmica como disciplina obrigatória em todas as escolas públicas da Suíça, um ousado projeto (malogrado) que despertou a fúria e o desprezo da alta sociedade genebrina em fins do século XIX, afinal: como um jovem da classe média, a despeito de seu grande talento como instrumentista e compositor, poderia questionar o ensino tradicional de música e propor uma abordagem considerada diabólica pelos calvinistas?
Seus experimentos foram violentamente rechaçados, considerados nocivos à saúde das crianças e à moral nacional. Retirar os sapatos e movimentar o corpo pelo espaço da sala de aula ainda era - e ainda é - um grande tabu no ambiente escolar. Muitos educadores musicais brasileiros, ao aplicarem a metodologia da Rítmica, sofrem o mesmo tipo de bullying vivenciado por Dalcroze: risos de deboche, interjeições de espanto e insinuações maldosas (“Isso é coisa de menina!”).
A constituição dos saberes escolares específicos de uma disciplina, assim como a prescrição de um currículo, não é inequívoca e resulta de um processo complexo “[...] que envolve consentimentos, conflitos, diferentes tipos de mediação entre diversos sujeitos e instituições” (Júnior & Galvão, 2005, p. 404).
O acesso à obra original de Dalcroze ainda é precário. Encontrar suas obras nas estantes das bibliotecas públicas brasileiras é muito raro. Além do ensaio A Menina e o Conservatório, de acesso extremamente restrito, apenas dois pequenos textos de Dalcroze foram traduzidos até o presente momento: Os Estudos Musicais e a Educação do Ouvido (Jaques-Dalcroze, 2010), e Os hop Musicais (Jaques-Dalcroze, 2021). Também podemos considerar a tradução recente de um ensaio de Adolphe Appia (2021) - grande incentivador de Dalcroze - sobre a dimensão poética dos exercícios de Rítmica, uma tradução precedida de uma apresentação detalhada da experiência de Dalcroze em sua primeira escola, edificada na cidade-jardim de Hellerau, na Alemanha (Madureira & Padilha, 2021).
A análise mais completa da obra didática, musical e filosófica de Dalcroze foi organizada por Frank Martin (1965), ainda sem tradução (original em francês). No contexto da metodologia de ensino da Rítmica, destacamos o trabalho de Bachmann (1984), traduzido para o inglês (Bachmann, 1991) e para o espanhol (Bachmann, 1998).
No Brasil, as pesquisas sobre Dalcroze e a Rítmica encontram-se ainda em um nível introdutório, com destaque para algumas produções: o artigo pioneiro de Santos (2001), a tese de doutorado de Madureira (2008) e as dissertações de Mantovani (2009) e Nicoletti (2017).
A tradução da obra capital de Dalcroze, a coletânea Le rythme, la musique et l’éducation (1920), está na iminência de ser publicada no Brasil pela editora da UFRJ, o que deverá abrir novos horizontes de pesquisa sobre as contribuições da Rítmica no contexto escolar.
Na condição de artista, compositor, professor e pensador, Dalcroze tinha uma compreensão muito ampla de educação, um processo atrelado à formação cultural e ao desenvolvimento humano integral. Essa compreensão é consonante aos pressupostos estético-filosóficos do idealismo alemão, traduzidos pela noção do Bildung ou ‘formação cultural’ e imbuídos de fortíssima conotação estética e pedagógica (Suarez, 2005).
Apresentaremos em seguida a tradução de dois capítulos de um livro de memórias intitulado Souvenir, notes et critiques (Jaques-Dalcroze, 1942), a saber: No jardim de crianças (Au jardin d’enfants) e As crianças de ontem, de hoje, de amanhã (Enfants d’hier, d’aujourd’hui, de demain).
O primeiro texto - No jardim de crianças - já havia sido publicado dez anos antes no boletim do Instituto Jaques-Dalcroze de Genebra, intitulado Le Rythme (Jaques-Dalcroze, 1932). No posfácio de Souvenir, notes et critiques (Jaques-Dalcroze, 1942), Dalcroze justifica a inserção desse e de outros artigos anteriormente publicados em Le Rythme, alegando que o boletim tinha uma circulação restrita aos membros da Associação de Professores de Rítmica e não alcançou um público mais amplo que, desta vez, era o seu foco.
Os textos foram escritos na forma de ensaios e coloridos com relatos pessoais do autor sobre suas experiências em sala de aula como professor de Rítmica, atividade que ele desenvolveu desde o início da carreira docente - iniciada aos 27 anos - até se afastar definitivamente do Instituto por volta dos 77 anos de idade, justamente em 1942, data da publicação de Souvenir, notes et critiques.
Escolhemos traduzir e reunir esses dois textos para evidenciar um dos grandes interesses de Dalcroze: a formação musical da criança. Além desses dois textos, Dalcroze publicou outros quatro com a temática da infância nos quais o termo ‘criança’ (enfant) é uma palavra-chave: La musique et l’enfant (Jaques-Dalcroze, 1920), L’enfant et le sentiment plastique (Jaques-Dalcroze, 1931) e mais outros dois reunidos em Souvenir, notes et critiques (capítulos IV e IX): Les enfants chantent e La musique, le piano et l’enfant.
Na obra capital de Dalcroze - Le rythme, la musique et l’éducation (1920), encontramos apenas um capítulo específico dedicado à criança (La musique et l’enfant), embora o termo ‘criança’ apareça 234 vezes (e o termo ‘escola’, 191 entradas).
Dalcroze confessa no primeiro ensaio - No jardim de crianças - que desde o início de seu magistério no Conservatório de Genebra até 1932, ele nunca havia pensado em aplicar a Rítmica no contexto da educação infantil. Embora ele descreva a criança de quatro e cinco anos com alguns traços de romantismo e ingenuidade, sua visão de infância é bastante moderna e revolucionária para a época.
Para Dalcroze, disciplinar, na educação da criança, se coaduna com liberdade, entrevendo o valor da espontaneidade e da fantasia do brincar como algo a ser observado com muito apreço pelo professor, que encontra na própria criança, com quem entretém uma atitude dialógica, o gérmen do que desenvolverá no ensino, escutando suas necessidades e dando vazão às suas potencialidades.
Dalcroze não criou um método para ser reproduzido mecanicamente e de maneira indistinta. Educar, para ele, deve ser uma atividade profundamente criativa, uma arte, e, como tal, imbuída de amor e poesia, singularizada a cada gesto e a cada proposta que se destina às crianças como um encontro existencial.
Dalcroze mostra coerência com todo o seu questionamento sobre ideias caducas e práticas retrógradas. Além disso, ele salienta que o caminho trilhado pelo professor não servirá de guia para as crianças, que deverão construir o seu próprio itinerário de aprendizagem, descobertas e emoções. O professor deve buscar em sua criança interior os meios de aproximação daquilo que sentem seus alunos e comungar com eles o seu próprio prazer de brincar, respeitando o tempo da criança, sem imposições.
Em ambos os textos, Dalcroze exalta a potência criativa da criança, considerada o sujeito principal dessa relação de aprendizagem, e insiste que a família e os educadores devem se desdobrar e garantir a ela espaços acolhedores para que possa brincar, explorar, criar e se expressar com total autonomia e com a inteireza de seu corpo.
Ainda há uma ideia, que se pode reconhecer como condizente com o pensamento de sua época, de que é preciso controlar os movimentos desordenados da criança. Esse direcionamento, todavia, aconteceria de modo orgânico, através do próprio movimento rítmico motivado pela fantasia da criança, que promoveria a organização e harmonização do sistema nervoso. Vemos, nesse ponto, a intuição e a sensibilidade de Dalcroze ao perceber uma interferência mútua entre corpo físico-biológico e psíquico-emocional-espiritual. Assim, a flexibilidade corporal corresponderia a uma disposição flexível para a vida, o que iria assegurar às crianças certa calma, resiliência e coragem, como também a confiança em si mesmas e nos seus parceiros de jogo.
Dalcroze entende que a música deve ser indissociável da liberdade e da alegria de viver e, por isso, adverte que uma lição de música não pode jamais se tornar uma tortura ou algo enfadonho. É preciso que as crianças sintam vontade em inventar e brincar a música, dando sabor ao saber, aproximando-se da sua experiência vivida, de seu repertório sensorial próprio, extraindo a musicalidade da sua realidade e tornando-a significativa.
Dalcroze faz uma análise bastante severa e acurada dos métodos e pedagogias de seu tempo, mas também responsabiliza a instituição familiar - da qual ele é um árduo defensor - por não se envolver ativamente com o processo de escolarização das crianças, cobrindo-as, por outro lado, de exigências e expectativas. Ele insiste que a escola e a família devem interagir e colaborar ativamente a favor do desenvolvimento integral da criança.
Dalcroze põe em relevo um aspecto essencial do desenvolvimento humano, de que depende todo o sentido da nossa interação com o mundo: a dimensão afetiva. Mais do que isso, a consciência de que as condutas dos adultos em torno das crianças semeiam muito dos comportamentos da vida adulta, aquilo que imitam inconscientemente como referências. Ele insiste na importância da autoeducação dos adultos para que eles se renovem na exuberância da experiência com as crianças, ao invés de limitá-las com os seus automatismos e envelhecê-las com a rigidez de suas normas e de seus pensamentos conservadores. É preciso deixar que o novo cante com toda a potência da invenção, da alegria e do movimento.
Dalcroze apresenta uma mirada sensível sobre o ser humano, uma reflexão de caráter filosófico em que a música educa para a arte de viver. Ele nos alerta para a amplitude da responsabilidade do mundo adulto em relação às crianças em devir, no valor de cada instante do seu processo de aprendizado, que é contínuo e não se limita ao espaço escolar. Em outras palavras, Dalcroze reconhece a educação como uma responsabilidade compartilhada pelo mundo adulto, uma responsabilidade que pertence a toda a sociedade por gerações mais sensíveis, conscientes e felizes.
O campo das pesquisas sobre a história das disciplinas escolares, especialmente no contexto do ensino de Música, ainda é pouco explorado e delimitado com imprecisão, conforme advertem Júnior e Galvão (2005, p. 405) ao evidenciar as diferenças entre a historiografia da Arte e os estudos da história dos saberes escolares, que “[...] não se confundem e não coincidem”.
Com a tradução inédita desses dois pequenos textos de Dalcroze, esperamos contribuir com o desenvolvimento do ensino de Música na rede pública de ensino, ainda demasiado precário e sem grandes perspectivas de renovação.