1 INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 1990, com a implantação de políticas públicas voltadas para a aferição do desempenho dos alunos, por meio de testes padronizados, muitos são os desafios postos para a escola e para os professores (FLORENCIO; FIALHO; ALMEIDA, 2017). Para alcançar resultados e cumprir metas educacionais, a formação docente ganha destaque, ao mesmo tempo que se aumentam as cobranças e atribuições feitas ao professor, como asseveram Soares e Colares (2020) em estudo acerca das avaliações em larga escala.
A formação de professores, portanto, adquire status de solução para os problemas da educação; em consequência, as exigências que recaem sobre esses professores são as mais diversas, inclusive o sucesso ou insucesso na alfabetização das crianças é a eles atribuído majoritariamente (CARTAXO; SCOS, 2021). Como assinalam Mizukami e Reali (2009, p. 19), “[...] nessa nova ordem, os professores passam a ocupar lugar central nas reformas educacionais, pois têm a responsabilidade de conduzir os alunos nessa empreitada e de responder com o seu trabalho as demandas educacionais delineadas”.
Ao se inserir no campo da formação de professores, este estudo delimita-se a tratar da formação ofertada pelo Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC), implantado em 2007, por meio da Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC). O PAIC é uma política pública estadual, no campo educacional, que emerge dos baixos resultados apresentados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica2 (SAEB), em 2004 (BRASIL, 2004) , especialmente no que se refere ao processo de alfabetização das crianças. O PAIC foi instituído pela Lei n. 14.026, de 17 de dezembro de 2007 (CEARÁ, 2007), com o objetivo de “[...] alfabetizar todos os alunos das redes municipais até o 2º ano do Ensino Fundamental” (CEARÁ, 2012, p. 66).
Levando-se em consideração o contexto de implantação do PAIC, a avaliação no estado do Ceará foi ampliada em 2007, incorporando as turmas de 2º ano do ensino fundamental, denominada SPAECE-Alfa, que integrou o Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (SPAECE), implantado pelo governo estadual em 1992, “[...] para avaliar a proficiência dos alunos do 5º e 9º do ensino fundamental, na época, 4ª e 8ª séries, e o 3º ano do Ensino Médio” (CEARÁ, 2017, p. 118).
Nesse sentido, os professores do 2º ano do ensino fundamental foram convocados a desenvolver uma prática que desse conta das exigências do referido Programa, alfabetizando as crianças cearenses até o 2º ano, o que seria verificado mediante aferição quantitativa derivada dos resultados obtidos pelas crianças em provas aplicadas em larga escala, em todo o Ceará.
Para o alcance desse mote alfabetizador, os professores que lecionavam no 2º ano foram considerados sujeitos centrais para a promoção da qualidade do ensino, tendo em vista que eles precisavam atender à meta de alfabetização do PAIC, com ênfase nos conhecimentos de Português e Matemática.
Desta feita, a formação de professores passa a ocupar lugar de destaque na política de educação do Ceará, sendo ofertada pelo próprio Programa, com o objetivo de trabalhar os conteúdos necessários para o desenvolvimento das atividades a serem vivenciadas em sala de aula, a partir de uma rotina preestabelecida e de um material didático pré-selecionado pela consultoria e coordenação responsável pelo processo formativo. O escopo era formar professores capazes de aumentar os índices dos resultados dos alunos nos testes massificados das avaliações externas à escola, todavia essa formação ofereceu direcionamento para o trabalho dos professores alfabetizadores desde uma metodologia prescritiva, que possivelmente resultou em mudanças na prática docente.
Diante da implantação vertical do PAIC e da obrigatoriedade de os professores participarem das formações docentes ofertadas pelo governo, emergiu um problema que conduziu esta investigação: quais os significados produzidos pelos professores alfabetizadores que atuam no 2º ano do ensino fundamental acerca da formação vivenciada no PAIC? A reflexão sobre essa inquietação levou à elaboração de uma pesquisa científica, com o objetivo de compreender a formação docente inicial e aquela desenvolvida por intermédio do PAIC, a partir dos significados produzidos por professores alfabetizadores que atuam no 2º ano do ensino fundamental.
Parte-se do pressuposto de que a formação de professores, nos moldes como é desenvolvida no PAIC, não é suficiente para dar conta das problemáticas que envolvem a profissão docente, tendo em vista, principalmente, “[...] a estrutura organizacional da escola, que representa uma fonte de tensões e de dilemas internos à atividade de ensino” (TARDIF; LESSARD, 2014, p. 276). Concorda-se com André (2016, p. 36), quando leciona que:
Não podemos ignorar a tensão que está hoje colocada nos sistemas educacionais pelas condições socioculturais que vivenciamos: professores e gestores diante de crianças e jovens diversificados, com pensamentos, atitudes e comportamentos construídos num contexto social complexo em que a novidade, a moda, o fugaz, o passageiro assumem papéis determinantes.
Ao relegar a segundo plano de importância as condições socioculturais, entende-se que o trabalho docente se desenvolve alijado das circunstâncias contextuais e da percepção de que os espaços educativos nos quais os professores estão inseridos são múltiplos e plurais, permeados por tensões que ultrapassam o pragmatismo da alfabetização instrumentalizada. Inclusive, ressalta-se que, segundo Fernandes, Sousa e Fialho (2021), a burocratização da profissão docente é uma realidade que continua a ser fortemente sentida pelos professores de todos os níveis de ensino, o que tem exigido desses profissionais um desempenho voltado para o alcance de resultados, por vezes, em detrimento de um trabalho que priorize a aprendizagem global dos estudantes.
A pesquisa em relato utilizou a abordagem qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), por considerar os significados e sentidos atribuídos pelos professores ao processo formativo vivenciado no PAIC como alfabetizadores. Logo, priorizaram-se aspectos subjetivos em vez de dados quantitativos, pois o mote, na contramão de analisar resultados estandardizados aferidos em avaliações externas quantificadas numericamente, era compreender como os professores se sentiam em meio a essa política pública, considerando sua trajetória formativa inicial e continuada.
Nessa concepção, faz-se necessário explicar que as categorias significados e sentidos, na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, estudada por Vygotsky (2009), são fundamentais neste estudo, para orientar a olhar os sujeitos participantes da pesquisa como seres históricos e sociais, afinal:
O sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. (p. 465).
O autor citado afirma que os significados são elaborações sócio-históricas, as quais as pessoas não encontram prontas e elaboradas previamente, pois os sentidos são construções subjetivas, particulares e, portanto, em permanente elaboração durante toda a vida. Por esse motivo, considerou-se importante conhecer um pouco da história formativa dos professores, no que diz respeito à formação inicial, no sentido de trazer algumas reflexões sobre o percurso elaborativo de significados e sentidos ancorados na sua experiência, desde a licenciatura em Pedagogia, até a práxis desenvolvida em sala de aula.
Teve-se como objeto de estudo as narrativas únicas e particulares que foram coletadas por intermédio do método (auto)biográfico, com a utilização de entrevistas narrativas. À vista da complexidade que envolve esse objeto, o método (auto)biográfico foi o que mais se adequou para responder à problemática da pesquisa, por ser entendido como um caminho que contemplou a coerência entre o objetivo da pesquisa e a natureza do fenômeno a ser estudado, dinâmico, subjetivo e autoformador (NÓVOA; FINGER, 2014).
A relevância da pesquisa consiste no fato de ela permitir reflexão crítica tanto dos professores participantes acerca das suas formações como dos possíveis leitores sobre as políticas verticalizadas de formação docente. Ademais, problematiza a formação inicial e a formação continuada ofertada pelo PAIC, bem como as reverberações deste Programa na prática docente dos professores alfabetizadores.
2 CENÁRIOS DA FORMAÇÃO DOCENTE
As contradições e tensões que acompanharam a construção social da educação pública no Brasil reverberaram historicamente na constituição da profissão e da prática docente, inclusive Nóvoa (2002, p. 18) assevera que “[...] precisamos reconhecer, com humildade, que há muitos dilemas para os quais as respostas do passado já não servem e as do presente ainda não existem”. Em meio a esse cenário educacional dinâmico e mutável, compreende-se o professor como um sujeito que aprende e que se desenvolve ao longo de toda a vida, especialmente no exercício da docência.
Ao longo dos anos, o modo de conceber a docência e a formação de professores foi ganhando novos contornos. No Brasil, a partir da publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 – Lei n. 9.394 –, condições formativas para o exercício do magistério foram delineadas, provocando um olhar mais específico para a carreira docente, principalmente no que se relaciona à formação dos professores para atuar nas séries iniciais. No entanto, embora instituída a exigência de formação específica, ainda há a desprofissionalização, característica marcante no campo Pedagógico, seja pela ausência das exigências formativas, seja pela precarização do trabalho. Nóvoa (2002) acrescenta que a desprofissionalização também se expressa de maneiras muito distintas, que perpassam pelos níveis salariais baixos, pelas precárias condições de trabalho, bem como por processos de intensificação do trabalho docente por via de lógicas de burocratização e de controle.
As transformações do mundo contemporâneo sinalizadas pela globalização, pelos avanços nos meios de comunicação e da tecnologia, dentre outras, implicam novas formas de aprender, ensinar, sentir e agir, demandando diversas estratégias de formação dos professores, tanto inicial como continuada (FIALHO; SOUSA; FREIRE, 2020). Contudo, tais mudanças não podem acontecer sem considerar a realidade da escola, de seus estudantes e, principalmente, dos docentes. Além disso, não é qualquer formação que promove o desenvolvimento em seu sentido amplo, como leciona Imbernón (2011, p. 46), ao tratar da complexidade de todo esse processo:
[...] a profissão docente desenvolve-se por diversos fatores: o salário, a demanda de mercado de trabalho, o clima de trabalho nas escolas em que é exercida, a formação na profissão, as estruturas hierárquicas, a carreira docente etc. e, é claro, pela formação permanente que essa pessoa realiza ao longo de sua vida profissional.
Diante desses múltiplos fatores que perpassam pela formação docente, não basta ser um professor reprodutor de novidades e de métodos que objetivem apenas o domínio de um determinado conteúdo, faz-se necessário ter clareza de qual concepção de ensino e de aprendizagem está subjacente à sua prática. É preciso repensar a formação de professores ancorada na investigação, na reflexão e no diálogo, em que “[...] a escola seja considerada o contexto formativo principal para que mudanças nas práticas pedagógicas dos professores possam ocorrer” (MIZUKAMI; REALI, 2009, p. 31).
Nesse sentido, considera-se que as instituições formadoras precisam reconhecer o professor como um sujeito que pensa, sente e interpreta seu cotidiano, valorizando o contexto em que atua, entendendo que a escola deve ser concebida como locus privilegiado do processo formativo.
3 TECENDO O PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
A escolha do caminho teórico-metodológico é algo bastante complexo, pois requer do pesquisador a coerência com o seu objeto de pesquisa. Afinal, “os métodos nascem do embate de ideias, perspectivas, teorias, com a prática. Eles não são somente um conjunto de passos que ditam um caminho. São também um conjunto de crenças, valores e atitudes” (GATTI, 2002, p. 55). Nesse viés, a predileção por um determinado método não pode restringir-se à dimensão instrumental e técnica; para além desse aspecto, envolve o conhecimento dos pesquisadores referentes à sua visão de mundo e de homem. Assim, a escolha foi orientada com base nos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural, idealizada por Vygotsky (2009), fundamentada nos princípios do Materialismo Histórico-Dialético, pois as pesquisadoras concebem o ser humano como ser social historicamente situado no tempo e espaço, o que significa constituir o psiquismo humano no tempo e na materialidade (CARVALHO; LIMA, 2015). Inclusive, por esse motivo, as narrativas dos professores ocupam lugar central neste estudo.
Evidencia-se a complexidade do processo, ao mesmo tempo que se reconhece a importância desse referencial teórico, para adensar a interpretação das falas dos sujeitos no momento da análise de suas narrativas, haja vista a sintonia com o objeto deste estudo. Portanto, é algo que exige a clareza de que:
[...] a apreensão dos sentidos não significa apreendermos uma resposta única, coerente, absolutamente definida, completa, mas expressões do sujeito muitas vezes contraditórias, parciais, que nos apresentam indicadores das formas de ser do sujeito, de processos vividos por ele. (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 228).
De tal modo, a opção metodológica foi ancorada numa perspectiva qualitativa, corroborando a concepção de Bogdan e Biklen (1994), ao assegurarem que “[...] na investigação qualitativa a fonte de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal” (p. 47). Comunga-se com esses autores quando eles lecionam que a investigação deve considerar “[...] que nada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de pesquisa” (p. 49).
O estudo seguiu à luz do método (auto)biográfico, no qual a narrativa oral e sua transcrição ganharam expressividade, porque se tornam “[...] ao mesmo tempo, um parâmetro linguístico, psicológico, cultural e filosófico fundamental para explicar a natureza e as condições da existência humana” (NÓVOA, 2014). Assim,
[...] o método (auto)biográfico integra-se no movimento atual que procura repensar as questões da formação, acentuando a ideia que ‘ninguém forma ninguém’ e que a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida. (p. 153).
Seguir por esse caminho foi a forma mais coerente de perceber como os professores olham e interpretam sua experiência formativa, constituída ao longo da vida e, em especial, no PAIC. Como ressalta Stake (2011), “[...] essa é uma maneira de fazer uma pesquisa qualitativa: encontrar os significados das experiências pessoais que transformam as pessoas. Descobrir os momentos marcantes na vida de alguém” (p. 48).
Para proporcionar essa reflexão, a técnica de coleta de dados foi a entrevista narrativa, “[...] porque essa é uma forma de entrevista não estruturada que estimula os entrevistados a refletir e a narrar acontecimentos importantes de sua vida, seja pessoal ou profissional” (CARVALHO; LIMA, 2015, p. 65). Essa perspectiva apoia-se ainda no entendimento de que “[...] narrar é enunciar uma experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos um significado. Garimpamos em nossa memória, consciente ou inconscientemente, aquilo que deve ser dito e o que deve ser calado” (SOUZA, 2007, p. 66).
O locus da pesquisa foram duas escolas municipais de Fortaleza, selecionadas aleatoriamente, considerando-se apenas bons índices de proficiência na avaliação externa e censitária denominada SPAECE-Alfa, para as quais houve a autorização das Secretarias Municipais de Educação (SMEs) dos dois municípios onde as escolas estão situadas.
No que se refere à escolha dos sujeitos participantes, foram definidos os seguintes critérios de inclusão: professores com formação em Pedagogia que desejassem participar da pesquisa; atuassem como polivalentes no 2º ano do ensino fundamental; e estivessem havia pelo menos dois anos participando das formações no PAIC, tempo que se julgou suficiente para apreender os significados e sentidos sobre a referida formação. Desse modo, a pesquisa foi realizada com dois professores, um de cada escola selecionada, que atendiam aos critérios preestabelecidos e mostraram-se interessados em colaborar. Importa destacar que tanto as escolas como os professores foram preservados, logo se omitiu a denominação das instituições e se utilizaram nomes fictícios para os professores, com vistas a garantir o anonimato: Aslam, para o professor; e Fiona, para a professora.
A primeira entrevista com o Aslam foi realizada em 9 de outubro de 2019, com cerca de duas horas de duração, na sala de aula da escola em que ele atuava como docente, distante 30 quilômetros da sede do município. Pela dificuldade de acesso, a técnica da SME acompanhou a pesquisadora até a instituição e, inclusive, apresentou o professor. Já a segunda entrevista foi realizada em uma sala da SME, no dia 10 de dezembro de 2019, com a mesma duração média da primeira.
Quanto à professora Fiona, a primeira entrevista foi realizada em 4 de novembro de 2019, na escola em que atuava, na sala dos professores, após a recepção e o encaminhamento da coordenadora responsável pelo ensino fundamental, com duração média de uma hora e trinta minutos. A segunda entrevista foi na residência de uma das pesquisadoras, por opção da entrevistada, no dia 9 de novembro de 2019, com duração de aproximadamente duas horas.
Para a realização das entrevistas, foram utilizados os mesmos procedimentos com os dois docentes, a saber, apresentação, explicação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e um momento inicial, com a leitura da história de Guilherme Augusto Araújo Fernandes, de Fox (1995), seguida de uma reflexão em torno da trajetória de vida e formação profissional. Partiu-se do entendimento de que a literatura é uma importante estratégia para mediar o momento de reflexão, e essa história infantil, ao abordar a amizade entre um menino e uma senhora idosa que “perde” a memória, apresentando a iniciativa da criança de encontrar um meio para que ela possa retomar suas lembranças, foi selecionada por possibilitar discutir a valorização das memórias e romper a rigidez com que se reveste, muitas vezes, a entrevista.
As entrevistas foram gravadas em equipamento digital, transcritas na íntegra, e textualizadas para retirar marcas de oralidade (“né?” “tá?”, “viu?”); em seguida, foram validadas por e-mail pelos entrevistados, que concordaram com a divulgação. Para a análise dos dados, adotaram-se os pressupostos da Análise Textual Discursiva (ATD), que se destaca pela possibilidade de o “[...] pesquisador mergulhar em seu objeto de pesquisa, assumindo-se sujeito e assumindo suas próprias interpretações” (MORAES; GALIAZZI, 2006, p. 122). Além disso, a partir da análise detalhada docorpus, as pesquisadoras podem apreender as vozes dos entrevistados e discutir interpretações, a partir de um processo de imersão nas narrativas produzidas pelos sujeitos, na busca de extrair sentidos e significados atribuídos aos fatos.
4 O QUE DIZEM OS PROFESSORES? APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS NARRATIVAS
Ouvir o outro exige uma postura responsável e ética no intuito de tecer uma interpretação condizente com o objeto de estudo, porque:
[...] as histórias de formação, portanto, ao serem contadas ou lidas, publicam algo sobre o próprio narrador, acerca de alguém ou a respeito de alguma coisa, desde o que explica ou revela. As manifestações delas advindas suscitam interpretações, e não explicações. Um acontecimento, ao ser narrado, anuncia partes de uma totalidade. (SILVA, 2010, p. 217).
Com essa compreensão, ao buscar entender como os professores significam suas práticas a partir da formação recebida no PAIC, o que se buscavam não eram explicações para os fatos, mas interpretações que revelassem suas trajetórias formativas e os significados e sentidos atribuídos à formação desenvolvida no PAIC.
Os professores contaram que o ingresso na docência havia ocorrido motivado por referências familiares: Fiona pelo avô e Aslam tanto pelo avô como pelo pai:
Eu sempre gostei muito de criança, desde pequena. Nunca tive um irmão, vim ter depois de adulta, e eu sentia muito a falta disso. E eu adoro ser professora. Tinha meu avô como referência, que era professor; eu gosto. É uma coisa que eu gosto, faço com amor. Eu me formei, trabalhei oito anos com meninos de rua e, em seguida, passei no concurso [do estado do Ceará] e assumi. (Fiona, 2019).
A influência do meu pai é porque meu pai sempre quis que eu estudasse, que eu me formasse, porque os outros meus irmãos nenhum são formados, teve uns que não terminaram nem o ensino fundamental nem o ensino médio. [...] E a influência do meu avô é porque ele queria sempre uma escola na comunidade, porque na comunidade tinha muitas crianças, e não tinha escola e também não tinha professor, aí eu comecei a trabalhar com 16 anos na época, em 1994, com a influência dele: ele me chamou para ir trabalhar na escola, aí comecei a lecionar com 16 anos, por isso que eu tenho essa influência dele na minha vida como docente. (Aslam, 2019).
O ingresso no magistério foi influenciado por experiências vivenciadas no seio familiar, no primeiro caso, motivado pela condição de filha única e admiração ao trabalho docente do avô; no segundo caso, pelo estímulo do pai para o prosseguimento nos estudos e do avô, que apontava a necessidade de professores na comunidade onde viviam.
Ambos os professores informaram que a formação inicial na graduação em Pedagogia foi concomitante com a atuação docente, e que a falta de profissionalização específica, determinada na LDB, não foi impedimento para ingressarem na profissão antes da conclusão do curso. Ao contrário do defendido por Garcia (1999), que afirma que “[...] a formação inicial do professor consiste nas atividades organizadas que facilitam a aquisição pelo futuro professor dos conhecimentos, competências e disposições necessários para desempenhar tal atividade profissional” (p. 247), Aslam (2019) e Fiona (2019) inferiram que, primeiro, houve a experiência prática para, depois, emergir a possibilidade de articulação da prática com a teoria.
Fiona (2019) explicou que o início “[...] foi bem difícil porque não tinha experiência em sala, tinha experiência com criança, mas criança de rua”; disse ainda que: “[...] quando a gente se forma, a gente não sabe ser professora”. Vejamos o que ela disse sobre a sua experiência na graduação:
Apesar de ter sido uma experiência agradável, eu achei o curso resumido, ele poderia ter sido um curso mais aprofundado, maior. Você sabe que toda faculdade não prepara para a realidade da vida, ela nos dá um suporte, um norteio, só, mas não nos prepara. Essa crítica eu acredito que seja geral, não só na questão da Pedagogia. Mas eu gostei muito, os professores muito capacitados, de qualidade. [...] A única crítica que eu faço em relação à graduação é o curto espaço de tempo; eu acho que foi um curso de dois anos e meio; e eu acho que poderia ter sido mais aproveitado em relação ao tempo, ao professor ter mais tempo em sala de aula; e eu acho pouco, porque, quando a gente vai para a realidade da vida, para a sala de aula, não tem tanto suporte. (Fiona, 2019).
O relato de Aslam (2019) também revelou um sentimento semelhante ao de Fiona (2019) no tocante à formação inicial:
Tem alguns professores que tinham metodologias que dá para a gente tirar, para a gente levar para a sala, para os nossos alunos. Mas, para mim, eu acho que – na prática mesmo de sala de aula, de vários anos de experiência que a gente tem, comecei com 16 anos – que a Pedagogia mesmo em si não me preparou para o dia a dia, para a prática mesmo de sala de aula. Deu conta em algumas partes, mas outras ficaram faltando, então, para mim, por isso que eu fiz uma especialização, que a especialização foi muito boa, de Alfabetização e de Letramento, porque entraram as duas coisas que eu acho que estavam faltando na Pedagogia, para encaixar no que estava faltando, complementar.
Como visto, para os professores entrevistados, a formação inicial não os “preparou” suficientemente para a docência, porque não os instrumentalizou para exercerem a profissão. Importa destacar que ambos foram alunos da licenciatura curta ofertada pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), que emergiu para:
[...] regularizar a situação de muitos professores leigos que lecionavam sem a devida formação pedagógica, que passou a ser exigida após a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9394/96 (BRASIL, 1996), no entanto, foi bastante questionado no que concerne à qualidade da formação. (FIALHO; CARVALHO; SANTOS, 2020, p. 167).
Para ampliar a qualidade da formação inicial aligeirada, os professores complementaram a formação com cursos de especialização: Fiona cursou Psicopedagogia Clínico-Institucional; Aslam, Alfabetização e Letramento.
Franco (2019) e Nóvoa (2002) são alguns dos autores que discutem sobre a formação inicial docente e apontam muitas problemáticas nessa importante etapa formativa, mesmo quando desenvolvida regularmente no curso de Pedagogia em quatro ou cinco anos. Quando se trata de cursos aligeirados e massificados com mote principal de regularizar legalmente a situação de professores em atividade sem a devida formação exigida, a situação é ainda mais delicada, por asseverar problemas formativos (FIALHO; CARVALHO; SANTOS, 2020). Conforme Franco (2019), ainda há fragilidades inquestionáveis na lógica que tem regido a formação inicial ao longo do tempo, não obstante tantos diálogos erguidos acerca de sua necessária reestruturação e inovação.
As lacunas da formação inicial – apontada como incapaz de preparar para a atuação docente na escola regular – destacadas por Aslam (2019) e por Fiona (2019), ao contrário da acomodação ou do desânimo com a carreira docente, impulsionaram-lhes a lidar com os desafios exigidos pelo magistério e, assim, confirmar suas escolhas, realçadas pela continuidade dos estudos. Apreendese que eles conceberam a pós-graduação como a oportunidade de aprofundar os conteúdos da formação inicial, ampliando os conhecimentos exigidos para o trabalho em sala de aula. Com arrimo nos estudos de Franco (2019, p. 98), considera-se oportuno realçar que:
A formação continua não deve ser encarada como um adendo à formação que faltou. Formação continua não é suprir deficiência de formação anterior, formação continua é a necessidade de integrar vida e formação; articular a pessoa do professor às circunstâncias de seu trabalho e profissão, de forma crítica e integrada; criando condições de vivências formativas que permitem o autoconhecimento; a autoformação; os processos de identidade e profissionalização docente.
Destaca-se que as especializações cursadas pelos entrevistados não compunham uma formação contínua, permanente, mas outro curso integrante da formação (des)continuada. Trata-se de uma realidade complexa e desafiadora, vivenciada por um sujeito que está envolvido em um contexto diversificado, atuando em uma etapa de ensino submetida a um sistema de controle, principalmente relacionado aos resultados de desempenho nas avaliações externas, que, de certa maneira, tencionam o desenvolvimento de sua ação na sala de aula (FERNANDES; SOUSA, 2021). Portanto, “[...] não são poucas nem modestas as exigências que pairam sobre o professor” (FARIAS, 2006, p. 13).
Aslam (2019) destaca seu embasamento na prática, por ter iniciado muito cedo na docência, sem a possibilidade de refletir teoricamente sobre suas práticas docentes. Já Fiona (2019), por ter iniciado o exercício profissional trabalhando com “meninos de rua”, em um contexto de fragilidades e de carências, destaca que construiu uma imagem da docência pautada na perspectiva do cuidado, investindo na crença de que “[...] a criança aprende quando o professor quer, quando acredita que ela é capaz, que tem capacidade disso”. Desse modo, evidencia-se que os sentidos da docência para a professora revelam-se na influência da afetividade no processo de ensino e de aprendizagem. Quanto à importância da afetividade no desenvolvimento da cognição, como lembra Freire (1996), importa destacar que “[...] ensinar exige querer bem aos educandos” (p. 159).
Sobre a formação vivenciada há mais de dois anos no PAIC, as significações dos processos formativos nas práticas dos docentes são identificadas nas falas dos sujeitos quando afirmaram que os encontros e o material disponibilizados direcionam o passo a passo de seu fazer pedagógico, além da aplicabilidade de uma rotina que demarca os tempos das atividades prescritas. Como a maior queixa formativa era a ausência de instrumentalidade que possibilitasse uma atuação docente na escola, a formação do PAIC foi considerada positiva, ainda que possuísse caráter pragmático, conforme narrativas de Fiona (2019): “Se você pegar meu planejamento, você dá minha aula, porque é feito o passo a passo: você vai fazer isso, isso e isso. E eu gosto”.
Fiona (2019) considerava que ter um planejamento bem detalhado lhe dava segurança, pois assim ela sabia exatamente como deveria proceder para ministrar os conteúdos. Ele aferia importância ao como fazer, ou seja, à prática, ainda que esta estivesse desprovida de amparo teórico. Para ela, o importante era saber replicar as atividades e metodologias apreendidas na formação, ainda que não conseguisse identificar qual a corrente pedagógica, afinal, se essa prática aumentasse o rendimento dos alunos, era porque estava sendo eficaz. Nesse mesmo sentido, a narrativa de Aslam (2019) complementa a de Fiona (2019): “O programa trouxe muitas contribuições, porque é um programa rico em metodologias, atividades diversificadas, gêneros textuais, que prepara os alunos para o SPAECE, para o SAEB, para outras provas externas”.
Observa-se que os sentidos e significados atribuídos à formação do PAIC para lhe atribuir julgamento positivo transitam entre duas vertentes: ensinar o como fazer, isto é, elaborar de maneira prática a ação educativa; e a possibilidade de instrumentalizar os alunos para que, por meio de atividades e metodologias diversas, possam galgar melhores resultados nas avaliações de larga escala. Em momento algum, os professores questionaram o sentido da educação: formar os discentes para quê? Parecia mais importante conseguir bons resultados nas provas do que formar cidadãos críticos, questionadores e atuantes na realidade em que vivem, com o mote de tornar a sociedade mais justa, igualitária e melhor de se viver.
Aslam (2019) e Fiona (2019) ainda davam destaque para os formadores com comentários elogiosos, uma vez que, segundo os entrevistados, tais profissionais ofereciam uma condução que possibilitava uma ação capaz de alcançar resultados. Aslam (2019), inclusive, enfatizou que: “[...] são formadores capacitados, excelentes, porque eles dominam os conteúdos repassados nas formações e são professores de muita experiência em sala de aula”. Importa destacar que, nesse caso, o domínio do conhecimento ao qual Aslam (2019) se referiu é concernente ao conhecimento do material didático previamente elaborado e distribuído pelo PAIC. Em suma, o Programa era significado pelos professores como oportuno, porque subsidiava orientação precisa sobre a prática a ser desenvolvida em sala de aula.
Ainda que a instrumentalização tenha importância na formação, ela não pode vir destituída do amparo teórico e da pesquisa da realidade, dado que, como lecionam Pimenta e Almeida (2011), nos programas de formação, o docente precisa ser levado a desenvolver conhecimentos tanto teóricos como instrumentais, com suporte na atividade de pesquisa e de produção de conhecimento, haja vista que se gera, quando não se problematiza a educação, um desconhecimento científico do que seja o processo de ensino e de aprendizagem.
No modelo formativo adotado pelo PAIC, o professor, longe de ser um pesquisador da sua realidade e incentivador da curiosidade crítica dos alunos, tornava-se um replicador de orientações pedagógicas de maneira acrítica, reproduzindo padrões, em vez de constituir-se como sujeito transformador que problematiza os meios e os fins da educação. Confirma-se, assim, como asseveram Freitas et al. (2016), que na formação:
[...] atualmente, as práticas educativas desenvolvidas ainda convergem para a manutenção da relação hierárquica entre professor e aluno, para a postura passiva e o não favorecimento do desenvolvimento da capacidade de resolução de problemas e do poder crítico-reflexivo por parte do aluno. (p. 438).
Percebeu-se que a dinâmica exigida pela docência em sala de aula concomitante com a formação promovida pelo Programa era tão intensa, que os professores não se atentavam para o fato de que as orientações eram padronizadas e estáticas, ou seja, eram construídas sem levar em consideração o contexto no qual estavam inseridos alunos e professores. Inclusive, o material era o mesmo para todas as cidades do estado, da capital ao interior, sem valorizar as peculiaridades da cultura, economia e política local. Desse modo, alijados de uma formação crítica e reflexiva que, inclusive, questionasse a viabilidade de avaliações massificadas (BRANDENBURG; PEREIRA; FIALHO, 2019), não consideravam contextos específicos. Era visível, em seus relatos, a satisfação com as formações por atenderem às demandas emergenciais da prática docente.
Entende-se que a prática docente não pode ser reduzida a uma tarefa meramente técnica, oriunda de prescrições elaboradas fora do contexto da sala de aula. O exercício docente está para além dessa compreensão, pois é um aspecto que demanda complexidade, tornando inviável qualquer incursão que pretenda engessar o trabalho do professor. Aslam (2019) e Fiona (2019), na contramão, consideram a formação importante, principalmente pelas contribuições para o exercício de sua prática, por reconhecerem que o Programa supre essa lacuna deixada na formação inicial.
Com arrimo em Zabalza (1998, p. 62), salienta-se que a necessidade é instituída pela divergência “[...] entre a forma como as coisas deveriam ser (exigências), poderiam ser (necessidades de desenvolvimento) ou gostaríamos que fossem (necessidades individualizadas) e a forma como essas coisas são de fato”. A necessidade é, então, determinada pela diferença entre a situação em que o sujeito se encontra e a situação desejada, devendo tornar-se parte integrante da formação. Assim, com apoio na Psicologia Histórico-Cultural, entende-se que o docente precisa ocupar lugar central no processo de ensino e de aprendizagem (VYGOTSKY, 2009), tornando-se imprescindível conhecer o contexto onde se desenvolvem suas práticas, interesses, experiências, sentimentos e expectativas. Não é admissível uma formação praticista que suprima dos significados e sentidos do processo formativo a sua finalidade.
Nessa perspectiva, sugere-se que a formação docente se desenvolva em um ambiente no qual a escuta e a valorização do contexto sejam efetivamente praticadas, para que o formador passe a ser concebido como um parceiro “[...] que tem de oferecer seu conhecimento, sua compreensão, sua experiência profissional e sua disponibilidade em compartilhar significados e sentidos no espaço de formação” (PLACCO; SOUZA, 2015, p. 87), e não um instrumentalizador de métodos pré-elaborados. Juntos, professores formadores e em formação, bem como alunos, devem ser sujeitos pesquisadores, questionadores e atentos aos interesses políticos que norteiam as formações no âmbito educacional.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa emergiu da inquietação acerca de quais os significados produzidos pelos professores alfabetizadores que atuam no 2º ano do ensino fundamental a respeito da formação vivenciada no PAIC. Para discutir essa problemática, desenvolveu-se um estudo científico, com o objetivo de compreender tanto a formação docente inicial como a desenvolvida por intermédio do PAIC, considerando os significados produzidos por professores alfabetizadores que atuam no 2º ano do ensino fundamental.
Amparou-se nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, ao valorizar não a quantidade de sujeitos ou narrativas, mas as subjetividades adjacentes às narrativas recolhidas com suporte no método (auto)biográfico. Nesse sentido, as entrevistas narrativas revelaram-se como um dispositivo de produção de dados – sentidos e significados – apropriados aos objetivos da pesquisa. Oriundos de lembranças, os relatos dos professores foram permeados por sentimentos e emoções que revelaram as influências familiares para a escolha do curso de Pedagogia, as lacunas na formação inicial e os moldes segundo os quais ocorriam as formações do PAIC.
Fiona (2019) decidiu cursar Pedagogia porque, além de ser filha única e gostar de estar perto de crianças, nutria admiração pelo avô que era professor; já Aslam (2019) ingressou precocemente no magistério, aos 16 anos, por estímulo do avô, para atuar na docência e suprir a carência de professores na região, e do pai, para prosseguir nos estudos e concluir um curso superior. Ambos apontaram lacunas na formação inicial na graduação alegando que ela não preparava o licenciado para assumir uma sala de aula com crianças na escola.
Para os professores, a formação continuada era concebida como a possibilidade de suprir as “deficiências” da formação inicial. A formação vivenciada no PAIC promoveu significações na prática docente por meio de orientações prescritivas, cerceando a autonomia dos professores no desenvolvimento de seu trabalho em sala de aula; no entanto, diante de uma formação inicial deficitária, era vista como positiva. Os educadores relataram satisfação com as metodologias e a rotina trabalhadas pelos formadores, tendo em vista que eram pragmáticas e tecnicistas.
Observou-se que a pressão a que estão submetidos por resultados revela uma condição de subserviência às instâncias formadoras, cenário que denuncia a precarização do trabalho docente, efetivado por meio de um aparato legal que regulamenta os modos de fazer a docência, sem uma prévia discussão com os professores, alijando a criticidade.
Sem autonomia, vivenciando formações engessadas, o processo formativo não era questionado, tampouco objeto de pesquisa e avaliação constante. Desta feita, os resultados da pesquisa reiteram a necessidade de uma formação que permita aos professores desenvolver uma atividade profissional norteada em uma perspectiva crítica e reflexiva, concebida à luz da realidade de seus contextos de atuação.
Não se pode negar a importância da formação vivenciada, ainda que em moldes tecnicistas; no entanto, entende-se que ela precisa ir além da reprodução de prescrições, propiciando aos professores a produção de significados e de sentidos sobre esse fazer, ressignificando sua práxis.