INTRODUÇÃO
O presente trabalho faz parte de um esforço de pesquisa realizado no âmbito da Linha de Pesquisa "Políticas, Educação, Formação e Sociedade" do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e, mais especificamente, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gestão e Políticas de Educação (NUGEPPE-UFF), com o fito de melhor entender as ações de entidades privadas na formulação e execução da agenda educacional do Brasil contemporâneo. Deste esforço tem derivado uma série de teses, dissertações e artigos que buscam enfrentar o desafio de apreender as tensões entre o público e o privado na educação, especialmente quanto à tendência ainda hegemônica, observada no contexto da reestruturação capitalista, que aqui denominamos ‘processos de neoliberalização’.
A neoliberalização emerge, a partir do final da década de 1970, dos esforços para o restabelecimento das condições de acumulação do capital e de perpetuação no poder das elites econômicas (HARVEY, 2005). Longe da noção de um regime plenamente estabelecido¸ tal processo não se apresenta em estado puro. Ao contrário, coexiste com outras formas de organização, de estratégia e de discurso (JESSOP, 2002; 2013).
Esse movimento tem reorganizado instituições de Estado outrora não alcançadas diretamente pela lógica mercantil. Através de dispositivos institucionais e redes de troca de conhecimento, observa-se a disseminação de protótipos de políticas neoliberais que circulam por diversos territórios e escalas. Na medida em que se disseminam, tais experimentos regulatórios reforçam a legitimidade de seus modelos e se apresentam como soluções para vários contextos. Entretanto, ao circularem, modificam-se, posto que mergulham em trajetórias regulatórias próprias, provocando resultados imprevistos e não intencionais (BRENNER; PECK; THEODORE, 2010; 2012).
No campo educacional, são vastos os estudos que procuraram demonstrar a incidência neoliberal na educação da América Latina e do Brasil, destacando a função de organismos multilaterais na propagação de diagnósticas e diretrizes que influenciaram as políticas educacionais na região (SANDER, 2008; SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA 2011). Também tem sido explorado em diversas abordagens o papel de organizações não governamentais, fundações e institutos (ADRIÃO; PERONI, 2011; MARTINS, 2009), assim como do empresariado (FREITAS, 2012) na construção de uma coalizão de apoiadores (políticos, pesquisadores, gestores), com foco no avanço de reformas voltadas ao mercado.
A partir da perspectiva até aqui introduzida de processos de neoliberalização em curso, este artigo explora o papel da organização estadunidense Teach For America e seu papel na disseminação de uma agenda de reforma educacional voltada ao mercado, através de sua rede global Teach For All (TFAll). Aborda também suas iniciativas para se introduzir no Brasil por meio de uma de suas organizações-satélite, o ‘Ensina Brasil’.
Em nosso caminho metodológico, empregamos primeiramente o levantamento bibliográfico sobre o tema e a análise de documentação oficial publicada, tanto pela própria organização quanto por entes governamentais parceiros. Secundariamente, lançamos mão de reportagens em revistas e jornais.
Temos por objetivo fundamental introduzir alguns dos principais debates teóricos sobre o movimento reformador representado pela organização TFA e seu braço internacional TFAll nas políticas educacionais, posto que são raríssimos, quiçá inexistentes, os estudos do tipo em língua portuguesa. Também nos interessa acompanhar os caminhos percorridos pela organização para sua introdução e expansão no Brasil, tendo em vista que experimentos desse tipo se interpenetram em trajetórias regulatórias locais, ganhando vida própria, como afirmamos anteriormente.
Dividimos este texto em seis partes, além da introdução e das considerações. Inicialmente, apresentamos o modelo TFA e sua teoria da transformação para, em seguida, discutir a inserção de sua rede de egressos na gestão de escolas públicas. Na terceira parte, destacamos o debate sobre a eficácia do ensino ministrado pelos agentes do TFA e, na quarta parte, demonstramos o avanço dessa metodologia através da criação da rede Teach For All. Nas duas últimas partes, debruçamo-nos sobre o Ensina Brasil visto como organização- satélite do TFA no país e suas tentativas de consolidação no território brasileiro.
O MODELO TEACH FOR AMERICA E SUA TEORIA DA TRANSFORMAÇÃO
"Um dia, todas as crianças nessa nação terão a oportunidade de obter uma excelente educação" (KOPP, 2003). A declaração, até hoje presente em materiais promocionais, palestras e livros, remete ao fim dos anos oitenta e foi construída para ser a visão de longo alcance do que veio a se tornar uma das mais influentes organizações educacionais nos Estados Unidos (EUA): o Teach For America. O caminho proposto para atingir tal horizonte é objeto de intensos debates e tem seu foco na escola pública e no professor. Anos após sua consolidação nos EUA, a organização matriz desenvolveu uma rede global de suporte a empreendedores sociais interessados em reproduzir seu modelo educacional em outras nações, a rede Teach for All. Atualmente, 49 países possuem organizações disseminadoras da metodologia do TFA (TFALL, 2019). Em 2011, houve uma primeira experiência de introdução da metodologia no Brasil e, a partir de 2017, uma forte expansão.
Suas origens advêm da iniciativa de uma jovem de classe média alta, prestes a terminar a graduação na Universidade de Princeton. A estudante, inquieta com o estado da educação nacional, utilizou seu trabalho de conclusão de curso para elaborar um plano de reforma do sistema público americano. Sua visão das desigualdades educacionais dava centralidade ao professor como agente decisivo dessa mudança. As crianças de comunidades de baixa renda não estavam aprendendo satisfatoriamente e, para ela, parte substancial do problema, estava dentro das salas de aula. A criação de um grande corpo de professores, em âmbito nacional, que suprisse a carência de escolas com fraco desempenho acadêmico seria uma resposta significativa à questão (KOPP, 1992, 2003, 2011).
A percepção do problema para Wendy Kopp não era exatamente original. Ao longo daquela década, desde a ascensão do governo Reagan e da publicação do relatório A Nation at Risk: The Imperative for Educational Reform1 (NAR), a imagem de um país que tinha sua competitividade ameaçada por um sistema público de educação medíocre (GARDNER et al., 1983) dera o tom aos debates. As conclusões alarmantes do NAR fizeram com que o tema da educação desse um salto significativo em termos de visibilidade, nos anos subsequentes, conquistando espaço privilegiado na opinião pública e na agenda nacional (HUNT; STATON, 1996). Aquele relatório serviu também como referência para a onda de reformas educacionais centradas na lógica do mercado, que se reproduziriam nos anos e décadas subsequentes (GUTHRIE; SPRINGER, 2004).
A tese de Kopp, uma resposta ao problema da baixa atratividade da carreira docente para as escolas públicas, trazia elementos do seu próprio mundo como solução: recém-formados nas mais renomadas universidades do país, jovens de qualidades comprovadas pelo seu desempenho acadêmico prévio poderiam ser professores excelentes. Para o êxito em sala de aula, não seria necessária a formação nos cursos tradicionais de pedagogia ou licenciatura (KOPP 1992, 2003). Daí advém a estrutura de preparação à docência que permanece inabalável no TFA até hoje, qual seja, um curso de cinco semanas que precede a entrada dos recém-graduados de diferentes áreas do conhecimento em sala de aula (TFA, 2019a).
Mas, como atrair egressos das mais nobres instituições, com expectativa de trilhar carreiras proeminentes em áreas lucrativas como o mercado financeiro ou o setor de tecnologia, para escolas de regiões precárias dos EUA? A organização apostou na tradição do voluntariado americano, inspirando-se no modelo de serviço do Corpo da Paz, agência federal criada nos anos 1960. Dessa maneira, o engajamento possuiria caráter temporário: os professores leigos trabalhariam nas escolas públicas por dois anos e depois retornariam para suas profissões de origem (KOPP, 2003; VELTRI, 2008).
Ainda na década de 1990, enquanto a organização se estruturava, um novo elemento foi incorporado ao discurso: o desenvolvimento de lideranças (SCHNEIDER, 2011). Se a narrativa oficial do TFA versava originalmente sobre o desejo de que os voluntários se certificassem e permanecessem na docência, após seu período de vínculo com a organização, foi com a ideia da formação de líderes para a nação que sua teoria da transformação foi consolidada. Os professores temporários, após uma marcante experiência em sala de aula, seriam alçados a postos-chave de liderança na política e na gestão da educação ou advogariam pela causa, desde suas áreas de origem, sempre mantendo o compromisso com as bandeiras da reforma educacional.
A aposta de Kopp, segundo a qual com esse modelo seria possível revestir a docência de "uma aura de seletividade, serviço e status" (1992, p. 56), só pode ser viabilizada com o forte apoio do setor empresarial e da filantropia. Corporações de variados ramos, desde bancos e conglomerados financeiros, grupos do setor de tecnologia e fundações se constituíram como poderosa rede de sustentação da iniciativa (RECKHOW, SNYDER, 2014; GAUTREAUX, 2015). A vinculação da experiência da docência com competências inerentes ao mundo corporativo fez com que os dois anos em sala de aula fossem construídos como uma espécie de programa de trainee, referendado por aquela rede empresarial de apoiadores. As concretas possibilidades trabalhadas pela organização de reinserir posteriormente os professores leigos em postos de comando, tanto no mundo corporativo quanto na política educacional, foram cunhadas para garantir a atratividade do programa.
Quase trinta anos após os primeiros professores da organização ingressarem em escolas públicas do país, o TFA está presente hoje em 34 estados americanos, espalhados por 51 regiões, com cerca de 14.000 professores temporários (TFA, 2019b), trabalhando concomitantemente a professores tradicionais, em escolas públicas e escolas públicas charter2, primárias e secundárias nos EUA, em parcerias público-privadas. Seu modo de funcionamento pressupõe que os custos com os salários de seus professores temporários sejam pagos pelos governos que os contratam.
Análises que procuraram investigar o modelo do TFA surgiram desde os primeiros momentos da organização e destacaram elementos que seriam recorrentes nas críticas ao programa: sua abordagem salvacionista; a precariedade da formação e o pouco tempo de preparação dos docentes que ingressavam em sala de aula; o desrespeito ao conhecimento acumulado sobre os processos de ensino e aprendizagem; e os efeitos danosos do caráter temporário dos professores (SCHORR , 1993; DARLING-HAMMOND, 1994).
O que se tem apontado como salvacionismo do TFA remete a sua tese fundadora, a saber, o discurso de que professores brilhantes e obstinados têm o poder, pelos seus atributos individuais, de enfrentar as desigualdades educacionais. Como desdobramento desse pressuposto é disseminada a mensagem de que professores tradicionais não reverteriam esse quadro por não se esforçarem suficientemente ou por não serem tão talentosos (BROOKS; GREENE, 2013). Os impactos desse autorretrato hiperdimensionado das qualidades dos professores leigos se fazem sentir na sua interação com os professores de carreira e seus órgãos de classe (PITZER, 2010). O discurso anti-sindical que prevalece dentro do Teach For America tem origem em sua própria percepção de quem seria o responsável pelos problemas educacionais.
Blumenreich e Rogers (2016) investigaram a experiência dos primeiros recrutados pelo TFA ainda no ano de 1990 e concluíram que a teoria da ação do TFA é um mito que se mostrou insustentável diante da realidade encontrada por aqueles jovens. Os relatos de ex-participantes revelaram seu embaraço e constrangimento face à impotência de transformar a realidade daqueles estudantes.
Ainda sobre o modus operandi do TFA, a seletividade rigorosa no recrutamento de novos professores, caminho fundamental para estruturação do programa, é considerada fundamental. O TFA se tornou uma referência no assunto e chegou a figurar entre as mais atrativas organizações para os recém-formados nos EUA3.
Diante do exposto, seria possível afirmar que a jovem Kopp teria cumprido sua missão de transformar a carreira docente em algo cobiçado por milhares de jovens? O TFA se tornou um programa mais atrativo que os caminhos tradicionais de formação e certificação de professores? Tal fenômeno tem sido estudado por diversos autores. A base da atratividade da organização, oriunda de seu desenho original: estaria sustentada por um duplo benefício oferecido ao candidato, o "fazer o bem e se dar bem (LABAREE, 2010, p.48). O caráter filantrópico se mescla à ambição de pertencer a um grupo seleto, cujas oportunidades são sustentadas por uma rede de apoio social e economicamente pujante. Pelo modo elitista como foi pensado, o programa jamais responderia massivamente às demandas de escolas públicas do país, servindo muito mais como um articulador que põe em contato diferentes sujeitos, agregando valor de troca a sua credencial (MAIER, 2012). Assim, a atratividade do programa operaria de forma ambígua face ao fortalecimento do trabalho docente, visto que a grande expectativa dos jovens recrutados para as salas de aula é a esperança de, em um par de anos, estar longe delas.
Embora a face mais visível e polêmica do TFA envolva a atuação de seus professores leigos, seu treinamento de poucas semanas e seu papel nas salas de aulas, sua capacidade de expansão é autolimitada por seu caráter seletivo. Portanto, diríamos, com Scott, Trujillo e Rivera (2016), que a maior influência e relevância do TFA diz respeito a sua articulação para introdução de lideranças em locais estratégicos, com vistas ao remodelamento da escola pública. Isso se delineia: 1 - na sua missão de desenvolver empreendedores políticos; 2 - na disseminação de modelos corporativos de liderança gerencial; 3 - no fomento de redes poderosas de interesses de elite; 4 - na identidade de classe de seus membros.
A REDE DE EGRESSOS DO PROGRAMA NA GESTÃO DAS ESCOLAS
Se a inserção da rede de docentes egressos do TFA no contexto escolar ocorre em função da busca por posições políticas de destaque, em âmbito nacional e estadual, uma reconfiguração mais regional incrementada pelo Teach for America também tem afetado o dia a dia das escolas: o incentivo para que seus professores temporários, após esta experiência, concorram a posições nos conselhos escolares locais, espaços administrativos ligados ao comando de distritos escolares (JACOBSEN; LINKOW, 2014). Esse movimento tem contribuído para que as propostas do TFA, normalmente trabalhadas como agendas nacionais, também encontrem espaço em novas arenas de disputa.
Os efeitos do estilo TFA de gestão das escolas começa a ser observado em pesquisas que têm acompanhado seu ciclo de atuação. A ideia de inserir os egressos da organização em posições de liderança na gestão educacional tem reverberado também na gestão privada de escolas públicas. Várias redes de escolas charter foram criadas por egressos da organização. É o caso da Knowledge is Power Program (K.I.P.P.), a maior rede deste tipo nos EUA. Dados de 2011 e 2012 demonstram que cinquenta por cento dos gestores escolares e trinta e três por cento da equipe da KIPP eram de profissionais oriundos do TFA (KRETCHMAR, 2014). Tornou-se marca do TFA, e das escolas nascidas a partir da experiência de seus egressos, uma rigorosa política de avaliação e responsabilização. Embebidos dessa cultura de resultados orientada por instrumentos corporativos de gestão, a organização vai avançando paulatinamente em sua missão de promover a reforma educacional "numa crença quase vitoriana no poder da ciência e dos números" (AHMANN, 2015, p.5).
OS DEBATES SOBRE A EFICÁCIA DOS PROFESSORES DO TFA
Uma parte importante da literatura sobre o TFA nos Estados Unidos discute a eficácia do trabalho realizado pelos professores da organização em comparação com professores formados tradicionalmente. Decker, Mayer e Glazerman (2004) produziram pesquisa em sete escolas, envolvendo cem turmas e cerca de dois mil alunos, chegando à conclusão de que as turmas lideradas por professores do TFA tiveram melhores resultados em matemática do que turmas dirigidas por professores do grupo de controle. Cumpre destacar, entretanto, que o grupo de controle incluía professores novatos, que não entraram no ensino através de um caminho tradicional, o que se reflete mais claramente na situação das escolas pobres, do que na maioria das escolas do país.
Heilig e Jez (2010), ao revisarem as conclusões das pesquisas de Decker, Mayer e Glazerman (2004), destacaram que as pontuações dos alunos, em geral, permaneceram baixas e que o impacto positivo foi encontrado apenas nos professores do TFA, que obtiveram treinamento e certificação a partir do seu segundo ano em sala de aula. Ainda sobre avaliações que atestam a desenvoltura do TFA em sala de aula, Raymond, Fletcher e Luque (2001) apresentam o resultado da investigação realizada em Houston. Segundo os autores, a comparação com outros professores novatos e com docentes com anos de experiência revelou, em média, dados positivos para as turmas de alunos do TFA, ainda que os resultados não sejam estatisticamente significativos.
Cabe ainda destacar um estudo encomendado pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos para avaliar professores de matemática em escolas secundárias. Novamente se atribuíram melhores resultados aos alunos ensinados pelos professores do TFA, obtendo médias com desvio-padrão 0,7 maior nas avaliações de matemática, em comparação aos alunos de outros professores. De acordo com as conclusões do relatório, isso corresponderia a 2,6 meses de aulas extras necessárias ao aluno médio para alcançar os mesmos resultados em todo o país (CLARK et al., 2013). Entretanto, Laczko-Kerr e Berliner (2002) apontaram para resultados significativamente divergentes, ao investigarem os professores do TFA e outros grupos de docentes sem certificação ou com certificações aligeiradas. Nesse caso, as notas dos alunos foram semelhantes, ao passo que professores com certificações tradicionais obtiveram melhores desempenhos de suas turmas. O estudo também criticou a pesquisa de Raymond, Fletcher e Luque (2001), argumentando que, naquele caso, a comparação não considerou o desempenho de professores regularmente certificados, mas, sim, seus pares não certificados, muitos dos quais não tinham sequer os quatro anos de graduação. Além disso, os autores questionaram a credibilidade da pesquisa, já que seus realizadores se negaram a disponibilizar os dados para contraprovas.
Corroborando as investigações que apontam para a superioridade do ensino ministrado por profissionais certificados regularmente, Boyd et al. (2006) analisaram a eficácia de 3.766 novos professores na cidade de Nova York, que ensinavam da quarta a oitava série primária. Em suas descobertas, destacaram que as turmas de alunos acompanhados por professores do TFA obtiveram resultados expressivamente piores em leitura e matemática do que as turmas dirigidas por novos professores advindos de programas tradicionais de formação. Tal apontamento vai ao encontro das análises sobre a produção de pesquisas em eficácia de professores do TFA, de Heilig e Jez (2010; 2014). Segundos estes autores, os professores já certificados obtêm melhores resultados que os originários do Teach for América.
Quanto a questões éticas relacionadas às pesquisas sobre eficácia, cumpre-nos enfatizar um ponto levantado pelos últimos autores aqui citados. Há uma série de estudos não revisados por pares que são financiados pela TFA e outras organizações parceiras. Eles geralmente demonstram os benefícios dos professores da organização frente a docentes tradicionais. Porém, não passam pelo crivo e rigor acadêmico de especialistas do mesmo campo de conhecimento. Os trabalhos de Raymond, Fletcher e Luque (2001), Turner et al. (2012) e Hansen et al. (2015) são exemplos do caso.
A CRIAÇÃO DA REDE GLOBAL TEACH FOR ALL
O crescimento do TFA nos EUA foi acompanhado de um movimento de internacionalização de seu modelo de atuação. Em 2007, a fundadora do Teach for America, Wendy Kopp, anunciou a criação do Teach for All, rede global de suporte a empreendedores sociais ao redor do mundo que desejassem expandir as reformas educacionais defendidas pelo modelo do TFA (STRAUBHAAR; FRIEDRICH, 2015). Desde sua fundação, quarenta e oito países4 desenvolveram organizações educacionais baseadas no Teach for America, inserindo-se na rede global pela reforma da educação (TFALL, 2019).
Olmedo, Bailey e Ball (2013) têm analisado o Teach for All como uma rede de políticas para reformas educacionais vinculadas ao mercado, cujos diversos atores, alinhados e interdependentes, operam de modo a contribuir com uma dupla missão. A primeira tem o caráter estruturante e está ligada à expansão de mercados educacionais baseada na ideia de livre escolha e livres mercados. Mas produz também um modelo de autorregulação e empreendedorismo, eis a segunda missão, calcada na ideia de um governo da sociedade.
A PRIMEIRA INVESTIDA DA REDE TEACH FOR ALL NO BRASIL
Em 2010, na cidade do Rio de Janeiro, as principais universidades públicas e privadas foram alvo da incursão de uma equipe de recrutadores, que anunciavam a visão de uma organização não governamental que trabalharia para mudar a realidade educacional das piores escolas públicas da cidade. Estandes informativos, entrevistas e uma ousada estratégia de marketing preparavam o processo seletivo que recrutaria jovens para atuar em escolas municipais.
Com efeito, a seleção atraiu quase 2.400 candidatos e selecionou trinta e dois ‘ensinas’ - nomenclatura utilizada para tratar os agentes da organização (ENSINA BRASIL, 2010). Bacharéis em direito, engenheiros, psicólogos, economistas e administradores são exemplos de carreiras representadas na primeira turma recrutada. A propósito, um dos autores deste artigo foi um dos recém-graduados que ingressaram na organização a partir daquele processo.
O programa foi viabilizado pela parceria com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-Rio), à época sob o comando de Cláudia Costin, na gestão do prefeito Eduardo Paes. Hoje sabe-se que a iniciativa de importação do modelo TFA nasceu dentro da própria SME-Rio, fruto da articulação de alguns de seus gestores, que tiveram contato com a organização fora do país (STRAUBHAAR, 2014).
Unidades escolares participantes do programa Escolas do Amanhã5, especialmente aquelas com os piores resultados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), foram escolhidas para receber os agentes do Ensina Brasil. Embora a ambição da organização fosse destacar os profissionais recrutados para assumir turmas regulares, tal qual o modelo original, o ambiente político e a legislação vigente permitiram que atuassem apenas no contraturno escolar, em aulas de reforço para alunos com baixo rendimento6.
O estreito vínculo entre o Teach for America e o mundo corporativo (PRICE e MCCONNEY, 2013) se fez presente também no Brasil. O apoio de grandes bancos e empresas do setor financeiro como Itaú/Unibanco (através de seus Institutos Sociais), Bank of New York Mellon, McKinsey & Company (empresa líder de consultoria empresarial estadunidense), Endeavor (organização de apoio a empreendedorismo e empreendedores de alto impacto) chamam atenção. Essas empresas, ao lado de organizações como Globo, Natura, RJZ Cyrela, Grupo Umbria (Spoleto, Domino's e Koni Store), DHL e Google, apoiaram o Ensina Brasil em seus primeiros passos no Rio de Janeiro.
Inserções positivas em programas televisivos, como Fantástico, da Rede Globo, programas especiais da Globo News e do Canal Futura, matérias em jornais impressos e online, como O Globo e Extra, atuaram na estratégia de dar visibilidade ao Ensina Brasil: “Eles trocam carreiras promissoras por uma vocação: ensinar. Recrutados pelo programa Ensina!, jovens formados nas melhores universidades do país começam a lecionar nas piores escolas públicas”, anunciava a reportagem de uma revista semanal (GOULART, 2011). O jornal O Globo chamava atenção para a inserção dos jovens recém-graduados no sistema público, noticiando que as escolas municipais teriam o “reforço de trainees”. Além disso, já apontava para a visão de mais longo prazo da iniciativa, qual seja, “criar uma rede de pessoas que poderá influenciar não só no desenvolvimento da educação, como em reformas que influam no desenvolvimento do país” (BERTA, 2010).
Apesar de todo o suporte obtido, a primeira experiência do modelo no Brasil foi frustrada: inúmeras dificuldades operacionais; insatisfação da SME-Rio com os resultados acadêmicos alcançados nas escolas em que atuavam; a limitação de não conseguir se estabelecer o modelo considerado ideal de atuação (em que os ensinas se tornariam os professores regulares das turmas em que atuavam); problemas na gestão dos jovens recrutados, muitos dos quais frustrados com diversos posicionamentos da organização são alguns dos principais fatores que contribuíram para o encerramento da experiência nas escolas do Rio de Janeiro, no final de 2012 (STRAUBHAAR, 2014).
ENSINA BRASIL E SUAS NOVAS INVESTIDAS NO PAÍS
O fracasso na primeira experiência de tentar implementar o modelo TFA no país produziu um aparente desaparecimento da organização Ensina Brasil, por quase quatro anos. Entretanto, em 2016, sua face pública é restaurada. Ela ressurge com um novo sítio eletrônico, uma nova logomarca, equipe diretiva completamente renovada, mas o mesmo nome, a mesma proposta e a mesma ligação com a rede global TFAll.
Nessa segunda etapa, a sede da organização é transferida do Rio de Janeiro para São Paulo e uma estratégia de apagamento da memória do programa é estabelecida. Nenhuma menção ao Ensina Brasil e sua atuação em escolas do Rio de Janeiro nos anos de 2011 e 2012 é encontrada na divulgação institucional. Pelo contrário, os anúncios apresentam uma iniciativa nova, cuja ideia teria acabado de chegar ao Brasil (ENSINA BRASIL, 2019). O próprio portal da rede Teach For All reescreve a história da expansão da rede, apontando que 2017 foi o ano de entrada do modelo nas escolas (TFALL, 2019). Porém, se o mesmo nome e a mesma proposta não fossem suficientes para atestar que se trata da mesma organização, a consulta ao Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica comprova que estamos falando da mesma associação civil de direito privado.
Nestes novos tempos, uma das principais barreiras enfrentadas pela versão carioca do projeto parece ter sido superada, posto que, através de parceria com os governos dos estados de Mato Grosso (MT), Mato Grosso do Sul (MS) e Espírito Santo (ES), os ensinas são contratados pelas próprias secretarias de educação como professores temporários, podendo lecionar plenamente em turmas regulares da rede pública estadual, mesmo sem licenciatura. O mesmo modelo foi implantado em escolas municipais de Cariacica (ES) e Caruaru (PE).
Mas qual é o artifício legal que possibilita o ingresso de não licenciados em sala de aula, especialmente no segundo segmento do Ensino Fundamental e no Ensino Médio? O movimento de flexibilização da carreira docente, como se observa na Lei da (contra)reforma do Ensino Médio (BRASIL, 2017), avança a passos largos, mas a possibilidade do notório saber, como justificativa para a atuação de professores leigos em escolas regulares está restrita, até o momento, à educação profissional. O que temos observado nesta nova investida do Ensina Brasil é o uso da Emenda Constitucional nº 85/15 (BRASIL, 2015), que dispõe, entre outros aspectos, sobre a possibilidade de parcerias público-privadas na área de ciência, tecnologia e inovação7. Nos decretos e na portaria que oficializaram os acordos com os governos estaduais de MT, MS e ES, a ideia de inovação e formação de líderes na educação é apontada como argumento central (MATO GROSSO, 2016; MATO GROSSO DO SUL, 2016; ESPÍRITO SANTO, 2017). No Espírito Santo (p. 22), fez-se ainda menção ao "modelo testado internacionalmente em mais de 40 países" para sustentar a parceria (p. 22). Em todos os casos, são conferidas ao Ensina Brasil prerrogativas de gerenciamento do processo de seleção de professores e de formação prévia e continuada de profissionais contratados temporariamente para atuar nas escolas.
O esforço do Ensina Brasil em preservar o desenho original do programa pode ser observado também pela condução do processo formativo dos professores leigos recrutados. Como na experiência do TFA, além da formação inicial intensiva de poucas semanas, foi estabelecida parceria com faculdades privadas para complementação pedagógica dos docentes leigos, ao longo dos dois anos em que trabalham no programa. Assim, os professores do Ensina são certificados como docentes ao final de seu período de atuação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso percurso por alguns dos principais debates envolvendo a organização TFA/TFAll e nossa reconstituição de sua trajetória de expansão ao redor do mundo demonstram o grau de capilaridade que esse movimento reformador tem conquistado. Sua rápida disseminação e o modo receptivo com que redes corporativas locais encampam a ideia demonstram a necessidade de que as abordagens sobre esse fenômeno não desconsiderem os diferentes espaços e escalas em que se manifestam (PECK; THEODORE; BRENNER, 2012). Há que se ter cuidado para evitar a equivocada percepção de que o espalhamento da metodologia do TFA ao redor do mundo seja a mera disseminação linear de um experimento, do centro à periferia.
Além disso, já passou da hora para a pesquisa sobre educação brasileira interessar-se por tal movimento, que, sem muito alarde, já se encontra presente em oito dos 12 países da América do Sul. Como pudemos demonstrar, longe das práticas consagradas, as ações do TFA e afiliadas são vastamente questionadas. Assim, o aprofundamento das discussões que envolvem a organização é fundamental para salvaguardar o efetivo interesse público, no campo das políticas públicas de educação.