INTRODUÇÃO
O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos. [...] É resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto de tensões, conflitos e concessões culturais políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo.
(Michael W. Apple, 1993, p. 222).
A Constituição Federal de 1988, no artigo 205, reconhece a educação como direito fundamental para todos, compartilhado entre Estado, família e sociedade (BRASIL, 1988). Paralelo a isso, indica a necessidade de criação de um currículo como base nacional, como consta no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, nº 9.394/96):
[...] os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (Grifo nosso).
As discussões para elaboração da referida base tiveram culminância em 1997 na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documento de caráter não obrigatório, que pode ser entendido, como o próprio nome sugere, como um conjunto de metas educacionais para onde deveriam convergir as políticas públicas do Ministério da Educação (MEC), referentes à formação e prática docentes, ao currículo, à elaboração do livro didático, à implantação de projetos educativos e demais práticas pedagógicas.
Conforme estabelece o MEC, os PCN para o ensino médio constituem um programa governamental de reforma curricular aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e de acordo com os princípios definidos pela LDB. Assim, esta lei fundamenta os PCN no que se refere às intenções legais e pressupostos pedagógicos elaborados para este nível de ensino.
Os “Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio” (BRASIL, 1999), os “PCN+”, com orientações educacionais complementares (BRASIL, 2002) e as “Orientações Curriculares para o Ensino Médio” (BRASIL, 2006) surgem de forma complementar à primeira versão dos PCN. Esses documentos não se caracterizam como pressupostos legais, mas como recomendações com conteúdos mínimos. A novidade é que, desde então, as disciplinas passam a se organizar em áreas do conhecimento, cada uma em seu respectivo eixo temático e com a presença marcante dos temas transversais.
Decorridos mais de 20 anos do surgimento dos PCN, nasce a Base Nacional Comum Curricular (BNCC): documento que define os objetivos que os educadores devem considerar na elaboração do currículo da educação básica – infantil, fundamental e médio. A BNCC é a base, é a partir dela que as escolas organizarão seus currículos, tendo em vista o desenvolvimento de competências e habilidades mínimas pelos educandos. Foi construída por meio de grande consulta às bases educacionais brasileiras nas pessoas dos gestores, teóricos e pesquisadores das instituições de ensino superior (IES), junto a educadores de todos os níveis de ensino.
Um dos fatores que apontam a necessidade de se construir uma base nacional para os currículos é melhorar o desempenho dos estudantes de nível médio em exames, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Esse dado é importante, uma vez que, a mesma fonte que traz esse apontamento é, também, a responsável pela elaboração do referido exame. Trata-se do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) que, desde 1998, é responsável pela elaboração, seleção, aplicação, correção e divulgação dos resultados do Enem.
O Enem é considerado um exame, tendo em vista que a participação é voluntária, cujo objetivo é “avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania” (BRASIL, 1999, p. 5). Desde sua gênese, passou por uma série de adequações, e uma das principais ocorreu em 2009, quando se tornou a principal forma de acesso ao ensino superior.
Há, portanto, duas vertentes que norteiam o trabalho, cuja fonte é o Inep: os documentos legais do Enem e, especialmente, a versão homologada da BNCC. A última, ao referir-se ao ensino médio – segmento da educação básica de interesse neste artigo – aponta:
O Ensino Médio é a etapa final da Educação Básica, direito público subjetivo de todo cidadão brasileiro. Todavia, a realidade educacional do País tem mostrado que essa etapa representa um gargalo na garantia do direito à educação. Para além da necessidade de universalizar o entendimento, tem-se mostrado para garantir a permanência e as aprendizagens dos estudantes, respondendo às suas demandas e aspirações presentes e futuras. (BRASIL, 2018, p. 462, grifo nosso).
Frente ao exposto, chama-se a atenção para os termos em destaque na citação, como formas de reflexão para tentar responder à seguinte questão: quais os possíveis diálogos entre a BNCC e o Enem?
BNCC para o ensino médio: breve histórico
A BNCC passou a ser uma demanda da LDB e uma agenda do Plano Nacional de Educação (PNE). A partir de 2014, dentro do PNE (2014-2024), são retomados debates acerca deste documento, quando o MEC passa a discutir sobre direitos de aprendizagem para a educação básica (PERONI; CAETANO; ARELARO, 2019).
A primeira versão da base, com participação acadêmica e por meio de consultas públicas pela internet, foi divulgada em setembro de 2015 (BRASIL, 2015) e se torna objeto de discussões até março de 2016, ano em que foi divulgada uma segunda versão, disponibilizada, inclusive, para discussões junto à União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e pelo Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed), ao ponto de ter sido construído um Comitê Gestor do MEC para receber sugestões de seminários (BRASIL, 2016). Essas duas primeiras versões continham diretrizes para todas as etapas da educação básica, sendo, portanto, completas (PECCININI; ANDRADE, 2018).
Em 2017, o CNE, por meio de audiências realizadas nas cinco regiões do Brasil, com participação de entidades, professores e interessados, aprova a terceira versão (BRASIL, 2017a; PERONI; CAETANO; ARELARO, 2019) sem definições para o ensino médio. Em dezembro de 2017, surge a quarta versão parcial, contendo as diretrizes para educação infantil e ensino fundamental, aprovadas pelo CNE e homologadas pelo ministro da Educação, Mendonça Filho (BRASIL, 2017b). Finalmente, em 2018 é aprovada a versão final, intitulada “Educação é a Base” (BRASIL, 2018).
Como processo histórico, há que se destacar que a BNCC não foi consensuada, não foi pactuada e, portanto, apresenta vários questionamentos acerca de sua legitimidade. Há quem questione que a base, de forma disfarçada, seria um meio de regulação e controle do currículo (DOURADO; SIQUEIRA, 2019); ou quem não aprove os sujeitos e interesses na sua elaboração (NOVAIS; NUNES, 2018; PERONI; CAETANO; ARELARO, 2019); há quem discorra das implicações na autonomia do projeto político-pedagógico das escolas (CÂNDIDO; GENTILINI, 2017).
A despeito de aceitação, a base está aprovada e homologada. Como política de governo, é normativa e implica um esforço das redes de ensino, no âmbito público ou privado, de repensar suas propostas pedagógicas:
[...] a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento. (BRASIL, 2018, p. 7).
De acordo com a base “a aprendizagem de qualidade é uma meta que o País deve perseguir incansavelmente, e a BNCC é uma peça central nessa direção” (BRASIL, 2018, p. 5, grifo nosso). O destaque no excerto dialoga com outros objetivos do documento: “além dos currículos, influenciará a formação inicial e continuada dos educadores, a produção de materiais didáticos, as matrizes de avaliações e os exames nacionais, que serão revistos à luz do texto homologado da Base” (BRASIL, 2018, p. 5, grifo nosso).
No tocante ao ensino médio, a base trata do segmento como preocupante, uma vez que está aquém nos índices de aprendizagem, apresenta altos níveis de repetência, além da evasão escolar (BRASIL, 2018). Esse documento é a espinha dorsal da reforma da educação e, a partir de sua homologação, as escolas aproximam-se dos prazos para adaptação dos currículos às novas diretrizes.
Enem: uma política pública para a educação básica
A história do Enem é marcada pela década de 1990, período que pode ser caracterizado por mudanças significativas na educação, e, invariavelmente, essas transformações, assim como as que culminaram na BNCC, passam pela LDB (BRASIL, 1996).
No ano de 1998, o então ministro da Educação, Paulo Renato Costa Souza, propõe o Enem junto ao Inep (NASCIMENTO et al, 2013), que se torna um exame individual, de caráter voluntário, cujo objetivo é avaliar o desempenho dos estudantes brasileiros ao final da escolaridade básica, no bojo das políticas da qualidade da educação no Brasil (SOUZA; OLIVEIRA, 2003).
Em 1999, o MEC elabora o programa Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), com a finalidade de possibilitar o financiamento de cursos superiores pagos. No ano de 2004, o exame passa a servir de parâmetro para concessão de bolsas parciais ou integrais de estudos, a depender do desempenho do estudante – iniciativa validada pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) (NASCIMENTO et al, 2013).
No início, o Enem não obteve grande adesão, pois poucas universidades utilizavam seus dados como forma de ingresso (SANTOS, 2011). Esse cenário muda a partir de 2009, quando o MEC propõe sua utilização como forma de acesso às universidades públicas federais, que validavam os resultados dos estudantes por meio do Sistema de Seleção Unificada (SiSU). Dessa forma, tanto alunos concluintes do ensino médio, quanto egressos poderiam participar (NASCIMENTO et al, 2013; SANTOS, 2011).
A partir da elaboração do SiSU, há um salto significativo no número de inscritos no Enem. Para Maria Helena Guimarães de Castro, à época presidente do Inep, as principais razões foram: “A adesão das instituições de ensino superior foi fundamental para fortalecer a credibilidade do Exame e contribuiu decididamente para transformá-lo numa nova referência na busca de alternativas aos processos seletivos tradicionais.” (BRASIL, 2000, p. 25).
Em 1998, quando o exame surgiu, era composto por 63 itens e uma redação, sendo substituído pelo chamado “Novo Enem”, no ano de 2009. Desde então, passa a ser organizado em quatro áreas do conhecimento, composto por 180 itens, com a permanência da redação (SAPATINI, 2013). As provas são realizadas em dois dias, com duração de quatro horas e meia; a correção e a divulgação são de responsabilidade do Inep (BRASIL, 2013; SAPATINI, 2013).
Desde as últimas mudanças, no ano de 2009, o Enem foi se constituindo como um instrumento de interferência e reestruturação no currículo do ensino médio (COSTA, 2004; MARCELINO; RECENA, 2012). De acordo com Costa (2004, p. 5):
[...] a indução curricular promovida pelo Enem, de acordo com os seus próprios pressupostos, desloca a ênfase da transmissão do conhecimento para o desenvolvimento de competências. Ou seja, um deslocamento epistemológico no objeto da atividade educativa. O que se propõe é superar uma atividade educacional em crise, supostamente causada pela concepção equivocada do conhecimento (disciplinar), associada a ela, estabelecendo em seu lugar o desenvolvimento de competências como “novo” eixo estruturante da ação educacional. (Grifo nosso).
Dessa forma, o Enem baseia-se numa extensa lista de competências e habilidades, ao lado das referências conceituais para o conhecimento disciplinar, denominados “objetos de conhecimento” (BRASIL, 2012). Essa se torna uma nova estratégia para avaliar diretamente as competências dos alunos, definidas por um documento oficial como “modalidades estruturais de inteligência” (BONAMINO; FRANCO, 1999).
O MEC argumenta que um exame como esse deve ser desenvolvido com base numa concepção de prova com ênfase nas habilidades e conteúdo mais relevantes, tornando-se o mais importante instrumento de políticas educacionais (BRASIL, 2009).
MATERIAIS E MÉTODOS
A abordagem metodológica utilizada tem natureza qualitativa (MINAYO, 1994), caracterizando-se como um estudo descritivo, realizado por meio da pesquisa documental (GIL, 2010). Esse tipo de análise tem os documentos como fonte natural e poderosa de informações, sob a natureza de determinados contextos (LÜDKE; ANDRÉ, 2015).
Os documentos analisados estão relacionados, exclusivamente, ao Enem e à BNCC, indicados nas referências bibliográficas do artigo e disponíveis no site do Inep, onde foram realizadas as buscas desde as primeiras proposições destes.
No portal do Inep há uma série de links que delimitam e direcionam as pesquisas. Assim, foram exploradas tanto a página “Histórico” quanto “Legislação”, sendo que a última apresenta documentos publicados desde 1998.
Para a BNCC, foram feitas leituras das versões de 2016, 2017a, 2017b e 2018. Entretanto, houve um maior investimento sobre a última versão. Nela, a organização do que seria prioritário para entendimento partiu do sumário. Dessa forma, foram analisados, à luz do método materialista histórico e dialético de investigação, os componentes: a) Apresentação; b) Introdução; c) Estrutura da BNCC; d) A etapa do Ensino Médio.
Tanto os documentos referentes ao Enem quanto aos da BNCC passaram, a priori, por uma leitura flutuante, que pode ser entendida como uma pré-análise. Em seguida, os aspectos textuais que apresentavam alguma congruência foram explorados e reagrupados de forma analógica, ou seja, pelo compartilhamento de certos caracteres, cujo critério unificador pode ser sintático, ocorrência de signos linguísticos precisos e, até mesmo, semântico, a depender do contexto. Na etapa seguinte, com os componentes textuais arrolados, partiu-se para busca de significados, a partir de referenciais teóricos da pesquisa. A este processo pode-se denominar análise de conteúdo categorial (BARDIN, 2016).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados das análises dos documentos, tanto do Enem quanto da BNCC, no que se refere ao segmento do ensino médio, fazem recorrentes citações aos termos “competência”, “habilidade”, “contextualização” e, em menor frequência, à expressão “interdisciplinaridade”. Com a finalidade de aprofundar as análises, foi realizada uma discussão pormenorizada.
ENEM X BNCC: COMPETÊNCIA E HABILIDADE
Nos documentos referentes ao Enem (BRASIL, 2000; 2005; 2009; 2012; 2013), os termos “competências e habilidades” são prementes. Por competência, Perrenoud (1999) considera que pode ser definida de diversas maneiras, visto que não há um discernimento claro. Para ele, envolve a mobilização de conhecimentos, com o objetivo de enfrentar situações. Do ponto de vista legal e, concordando com a definição anterior, a LDB apresenta a seguinte definição: “É a capacidade de mobilizar, articular, colocar em ação habilidades e conhecimentos necessários para o desempenho eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho.”
Desde que surgiram, os PCN têm como foco facilitar a comunicação entre os profissionais da educação. De forma complementar, a lei supracitada menciona quais habilidades devem ser desenvolvidas na busca pela competência (BRASIL, 2002). Como o presente estudo nasce do anseio de se estabelecer possíveis diálogos entre o Enem e a BNCC, buscou-se a definição de competência e habilidade, do ponto de vista do Inep:
Competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer. As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências. (BRASIL, 1999, p. 7).
Endossando a definição anterior, o Inep, em um documento subsequente, alerta que o Enem é um exame pautado na aquisição desses dois constituintes, e define: “Competência é uma habilidade de ordem geral, enquanto habilidade é uma competência de ordem particular, específica.” (BRASIL, 2005, p. 58). O que torna todas as definições bastante imbricadas, complementares e nada contraditórias.
A BNCC, antes de definir os termos em seu texto de apresentação, garante o desenvolvimento das aprendizagens dos estudantes por meio de “dez competências”. No documento, esses conceitos ficam alinhados com à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) da seguinte forma: “Competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.” (BRASIL, 2018, p. 8).
Em “Os marcos legais que embasam a BNCC”, o texto fundamenta a colaboração entre estados, municípios e o Distrito Federal, pautadas na LDB, no estabelecimento de competências para educação básica. Nessa referência, dois conceitos decisivos para o currículo brasileiro são esclarecidos, ao se definir, a partir da Constituição de 1988, o que é básico-comum, referindo-se às competências e diretrizes, e que os currículos são diversos. “Os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências.” (BRASIL, 2018, p. 11).
Se na BNCC as decisões pedagógicas devem estar orientadas para o desenvolvimento de competências, o principal indicador de “sucesso” desse processo seria a aquisição da habilidade do “saber” e, sobretudo do “saber fazer”, por parte dos alunos. Definição que dialoga com Moretto (2003) e Garcia (2005), quando consideram “habilidade como menos ampla que competência”, ligada à “forma de fazer”.
A “Estrutura da BNCC”, para toda educação básica é organizada com ênfase na explicitação das competências e aquisição de habilidades e, para o ensino médio, não é diferente. Há, inclusive, um layout que facilita o entendimento das competências por área do conhecimento (Figura 1).
Para atender de forma particular cada habilidade a ser desenvolvida, o documento propõe um código alfanumérico organizado. Assim, é possível visualizar, de forma prática, as aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, em cada etapa (Figura 2).
O ensino médio deve ser o resultado da consolidação das competências e habilidades previamente desenvolvidas no ensino fundamental. Como garantia para essa progressão, na seção “Currículos: BNCC e itinerários” há substituição de um modelo único de currículo por um modelo diversificado e flexível. Nessa nova organização, o eixo de formação geral básica garante as aprendizagens essenciais, ou seja, os conteúdos com suas particularidades, ao passo que os itinerários formativos podem ser vistos como estratégicos para flexibilização escolar, pois fomenta a mobilização de competências e habilidades de diferentes áreas. Os itinerários formativos devem considerar a realidade local e favorecer o protagonismo juvenil.
Por fim, a BNCC traz uma organização das competências e habilidades a serem desenvolvidas no ensino médio (Quadro 1).
Área | Competências | Habilidades | ||
---|---|---|---|---|
BNCC | Enem | BNCC | Enem | |
Linguagens e suas Tecnologias | 7 | 9 | 28 | 30 |
Matemática e suas Tecnologias | 5 | 7 | 43 | 30 |
Ciências da Natureza e suas Tecnologias | 3 | 8 | 26 | 30 |
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas | 6 | 6 | 30 | 30 |
Totais parciais | 21* | 30* | 127* | 120* |
Fonte: Elaboração própria.
*Número absoluto de competências e habilidades indicadas nos documentos analisados.
Embora este estudo tenha caráter qualitativo, as quantidades absolutas são aqui apresentadas para comparação. Em relação ao Enem, na BNCC há uma redução no número de competências para o ensino médio e um acréscimo nas habilidades descritas, esse “detalhe” que pode estar associado a um dos objetivos do documento: “a BNCC [...] influenciará as matrizes de avaliações e os exames nacionais, que serão revistos à luz do texto homologado da Base” (BRASIL, 2018, p. 5). Nesse escopo, e com maior especificidade, a base avança em relação aos documentos propostos pelo Inep para o Enem.
Souza e Oliveira (2003) defendem que o MEC propôs o Enem como uma oportunidade para que os jovens planejassem seu futuro, a partir de uma ideia clara do seu potencial pessoal e profissional, uma vez que esse exame “permitiria avaliar seu potencial para planejar futuras escolhas”. Entretanto, embora seja um documento recente, a BNCC aponta um dado bastante preocupante, o ‘gargalo’ que é o Ensino Médio, incluindo as projeções de futuro, para os estudantes desse segmento.
A BNCC é real e está pronta para fazer cumprir a lei o que implica em esforços para que se cumpra um currículo pautado, não apenas como documento, na aquisição de competências e habilidades enquanto aspectos relevantes do conhecimento humano. Como endossam Mastelari e Zômpero (2017), é preciso envolver a expertise, como aprendizado e a destreza em realizar e discernir a essencialidade do fazer.
ENEM X BNCC: CONTEXTUALIZAÇÃO E INTERDISCIPLINARIDADE
Além do desenvolvimento de competências e habilidades, tanto o Enem quanto a BNCC, em vários momentos, discutem os termos “contextualização” e “interdisciplinaridade”, sendo o último mais frequente nos documentos do Inep para o Enem. Para Fidelis e Geglio (2019) esses dois conceitos apresentam-se como palavras-chave nas políticas públicas e documentos orientadores das práticas escolares.
A ideia de modelos de ensino integrados ou ‘inter’ é antiga. No Brasil, por exemplo, há referências nos anos de 1970, com o intuito de promover uma aprendizagem contrária às tradicionalistas (VASCONCELOS; ANDRADE, 2017). Complementando, Fazenda (2008) enfatiza a interdisciplinaridade como uma atitude de ousadia em relação ao conhecimento, visando favorecer o processo de aprendizagem, tendo em vista os saberes dos alunos e sua integração. As atitudes a que a autora se refere, são:
[...] a atitude de humildade diante dos limites do saber próprio e do próprio saber, sem deixar que ela se torne um limite; a atitude de espera diante do já estabelecido para que a dúvida apareça e o novo germine; a atitude de deslumbramento ante a possibilidade de superar outros desafios; a atitude de respeito ao olhar o velho como novo, ao olhar o outro e reconhecê-lo, reconhecendo-se; a atitude de cooperação que conduz às parcerias, às trocas, aos encontros, mais das pessoas que das disciplinas, que propiciam as transformações, razão de ser da interdisciplinaridade. Mais que um fazer, é paixão por aprender, compartilhar e ir além. (FAZENDA, 2008, p. 73, grifo nosso).
Por “contextualização”, entende-se como uma estratégia de “induzir uma conexão entre um conteúdo e seus significados como forma de situar o aprendiz e a partir daí promover a apreensão significativa de um conhecimento.” (SANTOS NETO, 2006, p. 27). Em dados momentos, os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização tornam-se indissociáveis, uma vez que a prática interdisciplinar requer uma ligação entre as dimensões da situação real e contextualizada (FIDELIS; GEGLIO, 2019).
Em 2010, o CNE promulgou novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), ampliando o conceito de contextualização, definindo-o como “a inclusão, a valorização das diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade.” (Parecer CNE/CEB nº 7/2010).
A BNCC, no texto “Base Nacional Comum Curricular e currículos” também se refere aos termos. Isso ocorre no momento em que trata da adequação da base e dos currículos à realidade local, com a efetiva participação das famílias e da comunidade:
[...] contextualizar os conteúdos dos componentes curriculares, identificando estratégias para apresentá-los, representá-los, exemplificá-los, conectá-los e torná-los significativos, com base na realidade do lugar e do tempo nos quais as aprendizagens estão situadas.
[...] decidir sobre formas de organização interdisciplinar dos componentes curriculares e fortalecer a competência pedagógica das equipes escolares para adotar estratégias mais dinâmicas, interativas e colaborativas em relação à gestão do ensino e da aprendizagem. (BRASIL, 2018, p. 16, grifo nosso).
Curiosamente, os dois termos aparecem na mesma página, em tópicos voltados para o mesmo olhar. A base não define contextualização, mas explicita como imprescindível para o fortalecimento das relações entre as disciplinas, uma vez que os currículos – desde os PCN até o Enem – estão organizados por área. Estar organizado por área, como aponta o parecer CNE/CP nº 11/2009, “não exclui necessariamente as disciplinas, com suas especificidades e saberes próprios historicamente construídos, mas, sim, implica o fortalecimento das relações entre elas e sua contextualização.” (Grifo nosso).
Numa abordagem mais incisiva, como garantia de ocorrência de maior contextualização, a BNCC traz o parecer CNE/CEB nº 5/2011 que trata de certa flexibilização da organização do currículo escolar, como princípio obrigatório, ao destacar que é preciso “romper com a centralidade das disciplinas nos currículos e substituí-las por aspectos mais globalizadores e que abranjam a complexidade das relações existentes entre os ramos da ciência no mundo real.”
Esse “romper” com a centralidade das disciplinas parece ter sido atendido pelo Enem. O exame, embora possua uma média de questões dentro das disciplinas que compõem cada área do conhecimento, tem como uma das características a interdisciplinaridade (CAVALCANTE et al, 2006; PRIMI et al, 2001; RAMOS, 2002), em que o conhecimento prévio raramente é necessário, pelo menos na forma de definições conceituais (BIZZO, 2003).
O Enem é um exame composto por itens dentro de uma referência mais construtivista (GOMES; BORGES, 2009), o que o antagoniza aos vestibulares tradicionais, sendo considerado mais fácil, mais interpretativo, mais interessante por não priorizar conceitos puramente memorizados (SANTOS, 2011), o que “dialoga” com a BNCC, quando descreve: “No novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de informações.” (BRASIL, 2018, p. 14, grifo nosso).
A partir da discussão apresentada, parece um consenso que os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização emergem como princípio organizador das reformas curriculares para o ensino médio. Considerando as premissas da BNCC e o jovem deste século, é urgente que o ensino supere o caráter meramente propedêutico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente trabalho foi proposta a análise dos possíveis pontos nodais entre documentos provenientes de uma mesma fonte, o Inep, para fins similares: a promoção de políticas públicas para a educação básica, mais especificamente, ensino médio. Os resultados mostram uma explícita imbricação na promoção do ensino por meio do desenvolvimento de competências e habilidades, que pode se dar a partir de estratégias que promovam a contextualização e a interdisciplinaridade.
O artigo não pode ser finalizado apenas por indicar esses quatro termos como congruentes, pois esse diálogo entre os documentos pode ser entendido como um “gatilho” e um convite à reflexão, mesmo porque a última versão da BNCC é muito recente, sua maturação e aplicabilidade só serão alcançadas quando, efetivamente, chegar ao “chão da escola”, embora, para o segmento do ensino médio, seja algo urgente. Se isso não ocorrer, estará fadada a ser “mais do mesmo”, uma vez que, em aspectos generalistas, exceto pelo seu caráter obrigatório, assemelha-se aos PCN.
A BNCC dá sinais de que surgiria desde 1988, é reforçada pela LDB de 1996, mesma década em que surgem os PCN, entretanto, é homologada em 2018. Como apontado na fundamentação teórica, o modelo neoliberal trouxe uma série de implicações no sistema educacional brasileiro, especialmente nos anos de 1990, por meio de políticas educacionais que pretendem implantar novas perspectivas para o ensino independentemente das possibilidades reais que as escolas e os professores têm para concretizar tais mudanças (GERALDI, 2015).
Um ponto preocupante, apontado por Geraldi (2015), aplica-se ao contexto atual, o momento de colocar a base em prática. Isso porque se os currículos não forem muito bem construídos, não será alcançada a “aprendizagem de qualidade”, apontada como meta a ser incansavelmente perseguida pelo Brasil. Considerando que o documento regula avaliações nacionais, como o Enem, em um país com dimensões continentais como o Brasil, corre-se o risco de acentuar, ainda mais, as diferenças socioeconômicas.
Outra reflexão cabe quando se fala em protagonismo juvenil e contextualização das competências. Se ensino contextualizado é aquele que articula conhecimentos de conteúdos em enredos historicamente situados, faz-se necessária a implementação de um currículo com perfeito alinhamento com as demandas locais e efetiva participação das comunidades, afinal, o que é contexto para o estudantes da região sul provavelmente não faz sentido para alguém do nordeste.
Uma análise trazida por Kuenzer (2002) considera que nem toda produção científico-acadêmica da história da humanidade, uma vez incorporada pelos currículos, é possível de ser contextualizada; há saberes que não fazem parte do contexto de uma dada comunidade escolar e, ainda assim, são importantes para história da humanidade.
Por fim, de posse da informação de que hoje, no Brasil, a principal forma de continuidade de estudos, pós-educação básica, é por meio do Enem e, considerando que a BNCC será a métrica para esse segmento de ensino, com marcas tão peculiares, como a evasão escolar, faz-se mais que urgente a discussão e, sobretudo, o entendimento do verdadeiro interesse de implantação de políticas públicas aparentemente inclusivas. Com essas informações os estudantes podem obter melhores resultados, bem como condições de escolhas, de forma que o ensino médio não seja para eles, especialmente de periferias, mais um promotor de “gargalo” social.