INTRODUÇÃO
Infrequentemente convivemos com pessoas transexuais e travestis na escola, na universidade ou no trabalho, pois, poucas concluem o período de escolaridade obrigatória e/ou não estão no mercado de trabalho formal (PEDRA, 2018). Por consequência, a escassez de informações sobre a existência de estudantes transexuais e travestis na universidade pública dificulta as pesquisas que tentam compreender suas realidades, como também evidenciam a situação de invisibilidade que esse público tem sofrido.
Nesse contexto, o presente estudo é um recorte de pesquisa, que tem por objetivo apresentar e discutir os aspectos que interferem no acesso e na permanência de estudantes transexuais e travestis da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), no campus Campo Grande. Para tanto, foram entrevistadas/os 5 transexuais e travestis que estudam na instituição. Priorizamos as entrevistas como coleta de dados por ser um fator contribuinte para a visibilidade dessas pessoas, haja vista que somente essas podem dizer sobre suas vivências de acordo com suas realidades.
Como as questões das entrevistas foram organizadas em agrupamentos, dados de identificação, perfil socioeconômico, escolaridade e acesso e permanência na UFMS, dividimos o artigo em quatro seções, além da introdução e das considerações finais. No entanto, cabe destacar que essa forma de organização tem apenas a finalidade de evidenciar as respostas, mas, em nossas análises, há momentos em que comparamos determinados dados de diferentes agrupamentos.
DADOS PESSOAIS DE IDENTIFICAÇÃO
Neste item, apresentamos e discutimos acerca dos dados pessoais de identificação das/os estudantes entrevistadas/os. Ressaltamos que as respostas descritas no Quadro 1 são transcrições adaptadas para o proposto nos agrupamentos, no entanto, todas estão de acordo com as considerações e autodeclarações das/os estudantes,
Nome fictício | Lucas | Maia | Mariana | Loren | Freddy |
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Reconhecimento | Homem trans | Mulher trans | Travesti | Homem trans | Pessoa trans não binária |
Data de nascimento | 27/7/2000 | 1/8/1997 | 6/12/1991 | 12/2/1996 | 13/3/1998 |
Identificação da cor da pele | Pardo | Branca | Negra | Negro | Branca |
Identificação da orientação sexual e estado civil | Heterossexual Namorando | Heterossexual Solteira | Pansexual1 Solteira | Gosta de pessoas Namorando | Pansexual Solteira |
Fonte: Quadro elaborado por meio de entrevistas realizadas com estudantes da UFMS.
Conforme o Quadro 1, Lucas é um homem trans, 18 anos, que se autodeclara pardo; Maia, é uma mulher trans branca, 22 anos; Mariana se reconhece travesti e negra, 28 anos; Loren, homem trans negro, 23 anos; e Freddy, pessoa trans não binária branca, 21 anos. Vale mencionar que Mariana é formada em jornalismo por uma IES privada, para tanto, ciências sociais é sua segunda graduação, por essa razão é a estudante mais velha dentre as/os 5 entrevistadas/os.
Para compor o perfil das/os estudantes entrevistadas/os, priorizamos a autodeclaração da identidade de gênero, da cor da pele e da orientação sexual por entendermos que correspondem a um processo pessoal de reconhecimento, que dispõe, além da própria identificação, o modo como a pessoa se percebe e se posiciona na sociedade. Uma situação que possibilitou a constatação desse processo foi a resposta de Maia sobre sua identidade de gênero,
Eu me reconheço como uma mulher transexual, mas eu não me sinto nessa necessidade de ficar assim… mulher trans, trans, trans… sabe? Mulher, sabe? Eu acho que, pra mim, esse conceito de mulher trans diz respeito a mim, porque quem me vê de fora, me vê como uma mulher, sabe? Até pelo conceito de passabilidade… eu sei que eu tenho uma passabilidade bem grande. Quem me vê de primeira não pensa ‘ah ela é trans’, sabe? Fala ‘ah é uma mulher’. Tudo bem que eu tenho características, sou grande, tenho pé grande, mas tem mulher que tem pé grande, mão grande, sabe? Então, pra mim mesmo, eu sou uma mulher trans, mas não fico falando mulher trans pra todo mundo (MAIA, 2019).
O conceito de passabilidade apontado por Maia se refere ao modo de a pessoa ser vista socialmente de acordo com o gênero que se identifica. No caso da entrevistada, ela se reconhece mulher e é lida como mulher, então não sente necessidade de dizer “mulher trans” para todo mundo. A percepção da identidade é
individual, entretanto não é neutra. A compreensão do que é ser homem e mulher, e até o reconhecimento transexual, transgênero e travesti, é definida a partir do contexto histórico e social,
Como sujeitos sociais, é no âmbito da cultura e da história que definimos as identidades sociais (todas elas, e não apenas a identidade racial, mas também as identidades de gênero, sexuais, de nacionalidade, de classe, etc.). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que estes são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa delas supõe, portanto, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência (GOMES, 2003, p. 171).
Corroborando a autora, as identidades sociais, como identidade de gênero, racial ou sexual, constituem as pessoas na medida em que são interpeladas a partir de agrupamentos sociais e diferentes situações, dessa maneira, quando são reconhecidas/definidas, as identidades supõem uma resposta afirmativa de pertencimento a um determinado grupo social de referência.
Considerando como o gênero está estabelecido socialmente, Freddy afirma que não se sente mulher, mas também não quer ser homem, então se reconhece uma pessoa trans não binária. Com relação a Loren, seu reconhecimento é a partir da sua compreensão sobre a transexualidade, “[…] homem trans. Transgênero, no caso. Transexual creio que até o momento, não, porque eu lido bem com a minha… não quero ter um pinto não, eu acho, até agora, até esse momento. Não sei mais pra frente, pode mudar. Mas até então, homem trans” (LOREN, 2019).
Loren entende que o reconhecimento da transexualidade se configura a partir da vontade de fazer a cirurgia de transgenitalização, em razão da aversão ao órgão genital. Então, por não ter desarmonia com seu órgão, o estudante prefere se identificar como homem transgênero ou apenas homem trans. Desse modo, podemos compreender que a constituição de sua identidade de gênero foi interpelada pelo contexto histórico e social dos termos transexual e transgênero.
O termo transexual tem sido empregado como uma forma de “higienização”, estando relacionado à cirurgia de transgenitalização e ao processo transexualizador por ser utilizado, principalmente, pela medicina ao se referirem às pessoas transexuais e travestis. Todavia o termo transgênero é mais recente e tem sido utilizado como forma de englobar as duas identidades (SAGRILLO, 2017).
Concernente à autodeclaração sobre a cor da pele, vale destacar a ênfase de Loren ao afirmar “eu sou negro, preto… preto mesmo, e gosto inclusive”, por entendermos que o reconhecimento de sua identidade racial sobrepõe a outros aspectos além da cor, posto que, segundo Gomes (2003, p. 171), “[…] construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros”.
Conforme a autora, a identidade negra pode ser entendida como uma construção social, histórica e cultural que tem sofrido implicações sociais a partir da relação com a/o outra/o, de modo que o processo de construção da identidade negra seja mais complexo, instável e plural em razão de marcas negativas deixadas pelo racismo. Sob essa conjuntura, entendemos que, quando Loren enfatiza que gosta de ser “negro, preto mesmo”, está ressaltando também o orgulho pelo processo histórico e social de sua identidade racial.
A identificação da orientação sexual também integra um processo pessoal de reconhecimento, que sofre implicações sociais quando destoante da heterossexualidade e que pode interferir no acesso e permanência na universidade. Dentre as/os estudantes transexuais e travestis entrevistadas/os, Maia e Lucas se autodeclaram heterossexuais, Mariana e Freddy pansexuais e Loren afirma que gosta de pessoas. Apenas os homens namoram.
PERFIL SOCIOECONÔMICO
Neste tópico, discutimos sobre o perfil socioeconômico das/os entrevistadas/os, contemplado no Quadro 2, estabelecido a partir de questões relacionadas aos recursos financeiros de cada uma/um.
Nome fictício | Lucas | Maia | Mariana | Loren | Freddy |
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Trabalha/já trabalhou? | Nunca trabalhou | Já trabalhou com marketing de uma empresa de semijoias, atualmente trabalha com mídias sociais | Já trabalhou, saiu do serviço de telemarketing há pouco tempo | Já trabalhou em restaurantes e telemarketing, mas atualmente é autônomo | Já trabalhou como freelancer |
Com relação à renda, vem de uma família de classe baixa, média ou alta? | Classe média baixa | Classe média alta | Pobre/ Classe média baixa | Classe média | Classe média |
E hoje em dia, como define sua classe? | Classe média baixa | Classe média alta | Classe média baixa | Classe média baixa | Classe média alta |
Situação de moradia? | Mora com a família da namorada | Casa própria, mora com a avó e o pai | Casa alugada, mora com a mãe e irmã | Casa alugada, mora com a namorada | Casa própria, com os pais |
Meio de transporte? | Ônibus e automóvel de aluguel | Carro próprio | Ônibus | Ônibus | Carro e ônibus |
Fonte: Quadro elaborado por meio de entrevistas realizadas com estudantes da UFMS.
Conforme as entrevistas, notamos que o entendimento sobre a classe social a qual pertencem não estava muito definido, ainda que na pergunta houvesse as referências “baixa, média e alta”. Escolhemos essa pergunta com o objetivo de perceber como as/os estudantes compreendem a renda própria e/ou da família, as questões concernentes à moradia, trabalho e ao meio de transporte também tiveram o mesmo foco. Entendemos que classes correspondem a segmentos sociais ordenados hierarquicamente que são pertinentes às oportunidades de acesso a bens e serviços que são valorizados socialmente (GRUSKY, 2001).
A partir da percepção da classe, as/os estudantes compararam suas vidas com o histórico de outras/os transexuais e travestis que conhecem fora da universidade. Freddy, por exemplo, afirma ser uma pessoa privilegiada por não precisar trabalhar e ter o apoio da família, assim como Maia, que também usou o termo privilegiada para explicar que não é todo mundo que ganha um carro de aniversário para poder ir à faculdade.
Com relação ao trabalho, Mariana e Freddy estão apenas estudando, mas já trabalharam, Lucas é o único entrevistado que nunca trabalhou, enquanto Maia e Loren, apesar de já terem trabalhado com carteira assinada, atualmente se dedicam ao mercado informal. Maia, por exemplo, trabalha com o Instagram e tem um canal no YouTube, porém declara que não é dinheiro suficiente para se sustentar sozinha “[…] eu ganho dinheirinhos picados, mas nada assim de…‘ai, vou ganhar dinheiro e vou viver minha vida’” (MAIA, 2019).
A estudante também ressalta sobre a experiência vivenciada no trabalho antigo, no qual trabalhou no marketing de uma empresa de semijoias, “[…] foi péssimo pra mim, trabalhar lá, porque eles eram muito transfóbicos, gordofóbicos, e eles ficavam soltando comentários assim, sabe? Pra eles não era preconceito, porque é naturalizado ali, naquela cultura, né?” (MAIA, 2019), depois acrescenta que acabou saindo porque aconteceram coisas que não foram boas para ela.
Os olhares e comentários gordofóbicos e transfóbicos sobre Maia em seu antigo emprego refletem o preconceito estabelecido e naturalizado na sociedade. Nessa direção, Pizzi, Pereira e Rodrigues (2017) apontam que, poucos são os estudos e os números relacionados às pessoas transexuais e travestis no mercado de trabalho, pois as/os candidatas/os que não pertencem ao padrão socialmente aceito, o que inclui o homem branco como perfil preferencial, tendem a ser excluídas/os, principalmente quando se refere às mulheres transexuais e travestis.
Em nossa pesquisa, não houve respostas afirmativas à exclusão no mercado de trabalho, contudo, também não aprofundamos essa questão por não ser o intuito da pesquisa. Ainda assim, de acordo com as perguntas realizadas, nos cabe discutir a relação entre as/os entrevistadas/os e seus respectivos empregos. Freddy, por exemplo, trabalhou apenas como freelancer e Loren atualmente trabalha como autônomo, mas conta que já trabalhou na cozinha de restaurantes e como atendente de telemarketing.
Mariana também relata que já foi atendente de telemarketing, todavia ela declara que escolheu trabalhar nessa função em razão do horário flexível, pois assim não atrapalharia as aulas na faculdade. Nesse contexto, o trabalho de telemarketing é referenciado na tese de Venco (2006, p. 71) como um espaço antagônico,
É possível analisar por ao menos dois ângulos diametralmente opostos. Por um lado, as desigualdades vividas por negros, mulheres, homossexuais e outras pessoas discriminadas na sociedade, que são variáveis condicionantes — quando não determinantes — das condições de ingresso no mercado de trabalho, dos níveis salariais e das probabilidades promocionais. Por outro, a emergência de um segmento do mercado de trabalho que traz a possibilidade de inclusão, via emprego formal, mas cuja atividade é, no entanto, realizada a distância e, portanto, reitera as barreiras baseadas no preconceito racial, estético ou sexual criadas na civilização.
A autora argumenta que o telemarketing evidencia as barreiras sociais baseadas no preconceito racial, estético ou sexual por ser uma atividade a distância, contudo também inclui as pessoas que vivenciam tais preconceitos no emprego formal. Já na pesquisa realizada por Pizzi, Pereira e Rodrigues (2017) sobre o mercado de trabalho na perspectiva de mulheres transexuais e travestis, o telemarketing é evidenciado como um dos únicos espaços acessíveis para transexuais e travestis.
Para a realização da pesquisa, o autor entrevistou mulheres transexuais e travestis inseridas no mercado de trabalho, atuantes no ramo da prostituição, desempregadas e estudantes, para descrever diversas visões sobre o tema. Em um determinado momento, uma das entrevistadas ressaltou que a elas cabem os empregos que não atendem o público diretamente, pois as empresas, por exemplo, não querem a imagem da mulher transexual ou travesti as representando.
Seguindo o pensamento da entrevistada, Ferreira (2017) também reconhece que a inserção dessa população no mercado de trabalho pode ocorrer de forma limitante, mais ainda se considerar a dificuldade de formação escolar e capacitação profissional que mulheres transexuais e travestis podem ter. Entretanto a situação de trabalho e/ou empregabilidade formal também pode estar atrelada a outros fatores, como classe social e identidade racial.
A título de exemplo, entre as/os estudantes que entrevistamos, constatamos que Maia, uma mulher transexual branca, que se considera classe média alta, mora com a família em uma casa própria e anda somente de carro, já trabalhou com carteira assinada em uma empresa de semijoias, enquanto Mariana, uma travesti negra, que se considera classe baixa, mora com a família em uma casa alugada, anda apenas de ônibus, trabalhava como atendente de telemarketing.
Outros exemplos consistem em Loren, homem trans negro, classe baixa, mora com a namorada em uma casa alugada, anda somente de ônibus, que trabalhava como atendente de telemarketing e em cozinha de restaurantes, enquanto Lucas, homem trans pardo, classe baixa, mora com a família da namorada, anda de ônibus e automóvel de aluguel, nunca trabalhou. Além de Freddy, pessoa trans branca, classe alta, mora com os pais em casa própria, anda de carro e ônibus, que apenas trabalhou como freelancer.
Entre as comparações apontadas acima, podemos observar que as diferenças entre a cor da pele e a classe social são condições que podem interferir na relação das/os estudantes entrevistadas/os com o trabalho e também com os estudos, contudo a escolaridade e o apoio financeiro dos pais também são aspectos que determinam as condições analisadas.
ESCOLARIDADE
Neste agrupamento, apresentamos e discutimos as questões concernentes às informações escolares das/os estudantes entrevistadas/os e de seus respectivos familiares, como pais e/ou pessoas responsáveis pelo sustento e criação, conforme Quadro 3.
Nome fictício | Lucas | Maia | Mariana | Loren | Freddy |
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Escolaridade do pai e da mãe (ou responsável)? | Mãe pós- graduada e pai tem ensino médio incompleto | Mãe graduada, pai tem graduação incompleta e avó é pensionista do exército | Mãe tem ensino fundamental incompleto, irmã tem graduação incompleta e não tem contato com o pai | Mãe pós-graduada e não tem contato com o pai | Mãe graduada e pai mestre |
Escola pública ou privada? | Pública | Privada | Pública | Pública - Zona Rural | |
Qual graduação cursa? | História | Jornalismo | Ciências Sociais | Artes Visuais - licenciatura | Artes Visuais - licenciatura |
Ano de ingresso? | 2018 | 2016 | 2015 | 2018 | 2016 |
Motivação na escolha do curso? | Queria Ciências Sociais, mas, como não tem licenciatura na UFMS, escolheu História | Influência da família, queria Moda, e a família não aceitou, mas atualmente gosta do curso | Gosta de estudar política e se identifica com o curso | A tia disse que era uma área boa para contratação, gosta mais da parte teórica do curso | Gosta de arte e se identifica com o curso |
Fonte: Quadro elaborado por meio de entrevistas realizadas com estudantes da UFMS.
Consideramos relevante cada questão desse agrupamento por corresponder a determinados aspectos que podem interferir no acesso e permanência das/os estudantes. Como não há pesquisas por órgãos oficiais, esse é um aspecto que prejudica a obtenção de dados concernentes às vivências de transexuais e travestis, seja na educação básica ou na educação superior, dificultando os estudos que tentam compreender o contexto histórico e social dessa população, uma vez que as informações disponíveis, realizadas por pesquisas científicas e Organizações não governamentais (ONGs), são focadas em regiões ou locais específicos.
Sem a obtenção de dados que ratifiquem a vivência dessa população na sociedade, não há índices cabíveis para que o governo elabore políticas públicas de acesso à educação, saúde, mercado de trabalho e segurança. Em tal situação, como Pedra (2018) afirma, transexuais e travestis se mantêm como um grupo segregado, que quase não possui representação política e que dificilmente ocupa determinados ambientes sociais, como a educação superior.
Além das características como raça e gênero, o contexto socioeconômico e educacional dos pais também pode interferir no acesso à educação superior. Pais mais escolarizados, isto é, que tenham graduação e/ou pós-graduação, podem favorecer o desempenho acadêmico das/os filhas/os e nutrir expectativas sobre sua formação (SILVA et al., 2017). Em consequência, a motivação na “escolha” do curso também pode estar atrelada à origem familiar, como apontado em nossa pesquisa.
Antes de discutirmos sobre as respostas obtidas, cabe mencionar que nos referimos ao termo “escolha” entre aspas por compreendermos que a decisão do curso perpassa por questões externas à própria atratividade, como, por exemplo, a condição social, cultural e econômica da família, além da própria escolarização da/o estudante, pois, conforme Zago (2006, p. 232), “[…] para a grande maioria não existe verdadeiramente uma escolha, mas uma adaptação, um ajuste às condições que o candidato julga condizentes com a sua realidade e que representam menor risco de exclusão”.
No tocante à escolaridade dos pais/responsáveis das/os 5 entrevistadas/ os, 4 têm pelo menos 1 pessoa próxima que seja graduada ou pós-graduada. Nesse segmento, perguntamos sobre a “escolha” do curso e obtivemos como respostas que as motivações estão atreladas à atratividade, origem familiar e à rápida inserção no mercado de trabalho. A atratividade a que nos referimos diz respeito à identificação/ interesse pela área de estudo escolhida, como afirmam Freddy, Mariana e Lucas.
No que tange à origem familiar como motivação na “escolha” do curso, Maia, que atualmente está no sexto semestre de jornalismo, considera que durante o período após a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não sabia o que decidir, então, como mora com o pai e com a avó, a opinião de ambos interferiram na sua escolha. No caso de Loren, ainda que tenha sido uma pessoa da família a opinar em sua escolha em cursar Artes Visuais, foi a rápida inserção no mercado de trabalho que determinou sua decisão, todavia o estudante aponta que a sua vocação para o curso é apenas pela teoria, pois gosta muito das aulas de História da Arte, mas, com relação à parte prática, ou seja, dar aula, afirma que não tem aptidão.
A resposta de Loren condiz com o estudo de Melo (2018), que constata que a atratividade nos cursos de licenciatura ocorre de forma precária pois, na maioria das vezes, tais cursos são escolhidos por motivações externas à própria licenciatura, como a rápida inserção no mercado de trabalho e a conciliação com o estudo, por também estarem relacionados à classe social da/o estudante.
Considerando apenas as universidades públicas, cursos considerados ‘mais prestigiados’, frequentemente, são restritos a uma minoria de estudantes com maior poder econômico, tendo cursado a educação básica no setor privado. Já os cursos considerados ‘com menor prestígio’, dentre eles as licenciaturas, têm sua maioria composta por estudantes com baixo poder econômico, oriundos da rede pública da educação básica (MELO, 2018, p. 50).
Segundo a autora, os cursos considerados com “menor prestígio” são compostos, em maioria, por estudantes oriundas/os da rede pública e com baixo poder econômico, enquanto os cursos com “maior prestígio” são reduzidos a uma minoria provinda do sistema privado e com maior poder econômico. Sob esse pressuposto, em nossas entrevistas obtivemos segmentos similares, Mariana cursa Ciências Sociais e provém da rede pública, assim como Lucas, que cursa História, e Loren, que cursa Artes Visuais e as/os três têm baixo poder econômico.
Maia, que cursa Jornalismo, tem maior poder econômico e é proveniente de escola privada, assim como Freddy, que cursa Artes Visuais. Embora o curso de Artes Visuais seja considerado com “menor prestígio”, a escolha de Freddy foi motivada pelo interesse à área de estudo, e, diferentemente de Loren, durante a entrevista não houve menção à licenciatura. Também cabe destacar que não há a opção Artes Visuais bacharelado na UFMS.
As respostas obtidas em nossas entrevistas também são condizentes com o estudo realizado em 2013 por Ristoff (2014, p. 743), por evidenciar a correlação entre a classe social, a origem escolar das/os estudantes e o curso escolhido na educação superior, uma vez que, “[…] a origem social e a situação econômica da família do estudante é um fator determinante na trajetória do jovem brasileiro pela educação superior e, por isso mesmo, deve estar na base das políticas públicas de inclusão dos grupos historicamente excluídos”.
Devido às políticas de acesso e permanência na educação superior que foram promulgadas durante os governos Lula e Dilma, tem aumentado o número de ingresso de estudantes com baixo poder econômico e/ou que são oriundas/os de escolas públicas em universidades públicas, e, embora ainda não haja políticas específicas para transexuais e travestis, segundo a nossa pesquisa, são essas políticas que têm interferido nas vivências dessas pessoas na universidade, como discutiremos adiante.
POLÍTICAS NA UNIVERSIDADE
Neste tópico, dedicamo-nos a discutir as respostas pertinentes às políticas de acesso e de permanência, e a outros aspectos apresentados no Quadro 4 abaixo, que podem interferir nas vivências das/os estudantes transexuais e travestis na UFMS,
Nome fictício | Lucas | Maia | Mariana | Loren | Freddy |
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Você entrou por cotas? Qual recorte? | Cota de escola pública | Não | Cota racial, de escola pública e renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo | Cota racial e de escola pública | Não |
Precisa/ participa de alguma assistência estudantil? Qual? | Não precisa e não participa | Não | Não, porque trabalhava. Se não trabalhasse, iria precisar | Sim, tem bolsa- permanência | Não |
Como foi o processo do nome social? | Na matrícula se informou sobre o nome social e, apesar da/o funcionária/o não saber explicar os procedimentos, conseguiu alterar o nome no sistema | Não solicitou o nome social oficialmente, mas conversa com as/os professoras/ es no início das aulas | Por alterar o nome depois de um ano de curso, o processo foi burocrático porque as/os funcionárias/os não sabiam alterar | Não foi burocrático. No ato da matrícula, levou cópia do documento do nome social e em todas as listas de chamada é o nome social que consta | No início do curso, não sabia da existência do nome social na UFMS, pois há pouco acesso à informação sobre direitos de transexuais e travestis |
Há elementos que facilitaram o acesso e/ou permanência na educação superior? | Principalmente o ingresso por cota e o apoio da família para cursar uma universidade | Apoio da família, principalmente financeira, por ter ganhado um carro e por apoiar em viagens ou materiais de estudo | O que fez permanecer foram as amigas e o curso, por ser aberto à discussão e compreensão sobre identidade de gênero | Força de vontade, apoio da namorada, ajuda financeira e psicológica de professor e coordenador | Amigas/os, mas reconhece que é privilegiada |
Há elementos que dificultaram o acesso e/ou permanência na educação superior? | Não dificultou, mas teve medo de não ser respeitado e de não conseguir acesso ao nome social | Não | A burocracia para conseguir acessar o nome social. O procedimento é simples, mas funcionárias/os não sabem como proceder | Ainda que haja a transfobia velada, esta não afeta a permanência. Considera que por ser negro e vivenciar o racismo, criou uma resistência | O preconceito velado e a não aceitação do nome social por colegas e professoras/es a deixou desconfortável no início |
Você acredita que deve haver investimentos públicos para pessoas transexuais/ travestis acessarem/ permanecerem na universidade? | Sim, sempre teve o apoio da família para ingressar na educação superior, mas há muitas pessoas transexuais que não têm, principalmente apoio financeiro e falta de oportunidade de trabalho, já na UFMS há bolsas que podem ajudar | Sim, porque a maioria das pessoas transexuais e travestis está na prostituição por ser difícil sobreviver à vida escolar, de modo que não acessam à educação superior | Sem dúvida, ter cotas, porque é uma população marginalizada, então a universidade poderia se abrir, para trazer essas pessoas para a universidade | Acredita que poderia ter um facilitador para os homens trans se informarem que o Hospital Universitário (HU) fornece os trâmites para o começo do tratamento hormonal, como exames e acompanhamento psicológico. E também cotas específicas | Sim, políticas de cotas, porque poucas/os transexuais e travestis conseguem ingressar na universidade. Há também questões financeiras e psicológicas que interferem na permanência e que devem ser atendidas pela IES |
Conhece outras/os estudantes transexuais e travestis na universidade? | Não, até tinha expectativas de conhecer. | Conhece três meninas | Conhece três pessoas | Conhece uma pessoa. Conhece mais pessoas fora da universidade | Conhece duas meninas |
Fonte: Quadro elaborado por meio de entrevistas realizadas com estudantes da UFMS.
A primeira pergunta que envolve as políticas na universidade é pertinente ao acesso à UFMS por meio das cotas com base nas 15 linhas disponíveis desde 2017. Conforme as linhas, Lucas entrou por cotas de escola pública, Mariana entrou por cotas raciais, de escola pública e renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, Loren entrou por cotas raciais e escola pública, e somente Maia e Freddy não entraram por cota. Como ainda não há cotas específicas para pessoas transexuais e travestis, as/os estudantes recorreram às vagas de acordo com seus respectivos critérios.
Das/os 5 entrevistadas/os, as/os 3 que entraram por cotas são oriundas/ os de escola pública, pertencentes a uma classe com baixo poder econômico e são negras/os e pardas/os, conforme reconhecimento, enquanto as 2 pessoas que não entraram por cotas são provindas de escola privada, têm maior poder econômico e são brancas. Esses aspectos nos mostram que a política de cotas tem contribuído no acesso de transexuais e travestis que estão incluídas/os em um contexto de desigualdades sociorraciais, entretanto as/os estudantes entrevistadas/ os apresentam outros elementos que também contribuíram para o ingresso.
Como exemplo, Lucas destaca a importância das cotas como um dos aspectos que facilita o acesso à educação superior, mas também enfatiza que sempre teve o apoio da família. O estudante também se refere ao apoio familiar na questão sobre investimentos públicos na universidade. Lucas justifica a relevância dos investimentos públicos no acesso e permanência de transexuais e travestis na educação superior por considerar que a maioria não tem amparo familiar, e, sem essa base, muitas/os não conseguem concluir o período de escolaridade obrigatória e ingressar em uma IES. O entrevistado também ressalta que os programas vigentes na universidade, isto é, as bolsas de assistência estudantil, podem amparar quem precisar de ajuda financeira.
Segundo Maciel (2020), associadas à democratização do acesso e permanência na educação superior, as políticas mencionadas objetivam a igualdade de oportunidades para as/os estudantes que apresentam condições socioeconômicas desfavoráveis. Sob essa perspectiva, quando nos referimos às/aos transexuais e travestis, podemos considerar que tais mecanismos podem interferir positivamente no processo de formação acadêmica.
Entretanto ainda se fazem necessárias políticas específicas para esse público, haja vista que suas vivências são perpassadas por outras condições além da desigualdade sociorracial. Dessa forma, a necessidade das cotas para transexuais e travestis foi mencionada por Mariana, Freddy e Loren também na pergunta sobre investimentos públicos de acesso e permanência na universidade. Mariana considera que deve, sem dúvidas, ter investimentos públicos para transexuais e travestis, principalmente para terem oportunidade de acessar a universidade, para tanto, cita a discussão sobre cotas e sua relevância.
Segundo a estudante, a marginalização histórica dessa população entrava a conclusão do ensino médio e a inserção no mercado de trabalho formal, então a universidade deve se flexibilizar e oferecer formação a todas/os. O argumento de Mariana salienta que os traços elitistas e excludentes da educação superior brasileira devem ser superados para a garantia de acesso a todas/os, especificamente para esse grupo.
As políticas orientadas para o acesso, expansão de vagas e possibilidades de ingresso nas universidades federais para segmentos marginalizados socialmente, não são acompanhadas satisfatoriamente por políticas que garantam a conclusão dos cursos de graduação. Nessa perspectiva, Freddy cita a política de cotas, mas ressalta que a universidade deve inserir também políticas de permanência para transexuais e travestis.
Freddy afirma que as cotas seriam um bom começo, pois são poucas pessoas que conseguem entrar na universidade, todavia, questões financeiras e psicológicas também foram aludidas como situações de permanência na qual a universidade deve se atentar. A reflexão de Freddy concilia com a premissa de Cordeiro (2017) de que o acesso precisa ser pensado para além do ingresso, uma vez que implica permanência, formação e conclusão.
O acesso à educação superior tem permitido que grupos em desvantagens sociais sejam incluídos de forma precária e minoritária, consequentemente, a democratização do acesso à educação também precisa pautar o combate à discriminação e preconceitos, além de dispor de práticas e informações dentro do ambiente universitário (CORDEIRO, 2017).
Ratificando a autora, Loren, além de citar as cotas e enfatizar que conhece muitas/os transexuais e travestis que não têm acesso à universidade, destaca que poderia haver investimentos públicos para a divulgação de determinadas informações. O entrevistado frisa que a universidade poderia divulgar que o Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian fornece exames e acompanhamento psicológico para o começo do tratamento hormonal para transexuais e travestis. O processo transexualizador é oferecido pelo SUS desde 2008 e não possui como finalidade única a cirurgia de redesignação sexual, entretanto são poucas pessoas que têm conhecimento acerca desse direito.
Consequentemente, conforme Pedra (2018, p. 83), as mudanças corporais realizadas por transexuais e travestis acontecem, geralmente, “[…] sem o acompanhamento médico e levam a altos índices de morbidade em decorrência do uso indiscriminado de silicone líquido e hormônios, que configuram um grave problema de saúde pública”. Por conseguinte, a não divulgação de serviços e a dificuldade de obter informações são aspectos que também burocratizaram e dificultam o processo do nome social para 3 das/os 5 entrevistadas/os.
Embora destaquemos a relevância do conhecimento acerca do processo transexualizador ofertado pelo hospital universitário, o principal aspecto que interfere no acesso das/os estudantes transexuais e travestis à universidade é a inclusão do nome social. Na UFMS, a Resolução nº 41, que dispõe sobre o uso do nome social por travestis e transexuais nos respectivos registros funcionais e acadêmicos no âmbito da universidade, entrou em vigor a partir da sua publicação, no dia 8 de outubro de 2012, no entanto, ainda que esse direito subsista há 5 anos (até o período de realização das entrevistas), ainda há estudantes que não têm conhecimento acerca de sua existência, como ainda há funcionárias/os que não foram instruídas/os a consolidar esse direito.
Segundo Freddy, o processo do nome social foi tardio por não saber que poderia utilizá-lo na universidade, “[…] pois há pouco acesso à informação sobre direitos de transexuais e travestis na educação superior” (FREDDY, 2019). Pela falta de divulgação desse direito, o uso do nome social foi um dos aspectos que dificultaram seu acesso e permanência, em razão de não ter sido respeitada/o por colegas e professoras/es no início da graduação.
A desinformação das/os funcionárias/os também foi um elemento que dificultou a permanência de Mariana. Como a estudante ingressou com o nome de registro e decidiu alterar um ano depois, em razão do reconhecimento de sua identidade de gênero, o procedimento tornou-se burocrático, porque as pessoas que trabalham na universidade não sabiam como proceder.
Para Lucas o procedimento do nome social foi difícil inicialmente, pois a/o funcionária/o responsável pela realização da matrícula não soube explicar como alterar o nome no sistema. Após algumas tentativas, o estudante conseguiu a modificação e desde então não teve problemas. Diferentemente dessas/es estudantes, Loren afirma que para a adesão do nome social não houve contrariedades.
Para Loren o nome social não é um aspecto que dificulta seu acesso e permanência na UFMS, uma vez que está incluso no sistema desde a matrícula e tem sido empregado pelas/os professoras/es. Tal como Maia, cujo nome, ainda que não aderido ao sistema por questões pessoais, é também respeitado pelas/os professoras/es e pela coordenação. Dessarte, a estudante afirma não haver aspectos que dificultam seu acesso e permanência na IES.
Lucas também declara não ter enfrentado nenhuma dificuldade durante a permanência, entretanto antes do ingresso teve medo da transfobia que poderia vir a sofrer, “[…] não assim, não que dificultou, mas acho que dificultou na parte pessoal e psicológica… era o medo. Medo de não ser reconhecido, de não ser respeitado, de não conseguir acesso ao nome social, então acho que era mais o medo mesmo de enfrentar muitas barreiras, sabe?” (LUCAS, 2019).
Semelhante à resposta de Lucas, Scote (2017), ao entrevistar estudantes transexuais e travestis sobre o acesso e permanência na educação superior, afirma que o medo de que na universidade se reproduzam preconceitos e exclusões é frequentemente mencionado pelas pessoas entrevistadas, além do sentimento de não aceitação no contexto universitário diante da transexualidade.
A transfobia dentro da universidade é citada por Loren como uma ação que ocorre de forma velada, por meio de olhares e desrespeito com o pronome de acordo com o gênero, todavia, o estudante considera que não afeta sua permanência por ter criado resistência ao vivenciar o racismo, entendido aqui como “[…] um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como cor da pele, tipo de cabelo, formato de olho etc.” (MUNANGA; GOMES, 2006, p. 179).
A correlação que Loren faz entre a transfobia e o racismo nos permite observar que o reconhecimento da transexualidade é apenas uma das identidades que perpassa o contexto social de uma pessoa, de modo que a resistência criada diante o racismo transpõe a transfobia. Em concordância, Brito (2016) argumenta que a vivência de pessoas transexuais e travestis sofre variação de acordo com o grupo racial ao qual pertencem, impactando os níveis de escolaridade e as possibilidades de participação no mercado de trabalho.
Corroborando a autora, podemos comparar as respostas de Loren e de Maia ao serem perguntadas/os sobre os elementos que dificultam a permanência. Para a estudante não há dificuldades na universidade, por acreditar que é um ambiente mais individual, no qual as pessoas estão focadas em seus cursos, já para Loren, mesmo também não havendo dificuldades, reconhece que a transfobia está presente em seu cotidiano.
De acordo com as respostas, devemos considerar também o conceito de passabilidade citado por Maia anteriormente. A entrevistada percebe que é lida socialmente enquanto mulher, então não sente a transfobia como as/os outras/ os estudantes. Entretanto, Loren sente o preconceito por conhecer e enfrentar o racismo desde antes do reconhecimento da sua identidade de gênero, tanto que destaca a própria força de vontade como um dos elementos que facilitam o seu acesso e permanência na IES.
O estudante também menciona o apoio da namorada e a ajuda financeira e psicológica de um professor e coordenador do curso, à medida que Maia cita o apoio financeiro da família. Já Freddy e Mariana citam o apoio das/os amigas/os, todavia Mariana também argumenta que, referente à universidade, não há elementos que facilitem sua permanência, pois até pensou em desistir do curso em alguns momentos.
Considerando o argumento de Mariana, a universidade carece de uma mudança cultural e pedagógica, capaz de propiciar discussões para que as diferenças sociais não sejam perpetuadas em desigualdades educacionais que levam à exclusão escolar. Em suma, para que haja a igualdade de condições de acesso e permanência na educação superior, são necessárias ações que assegurem tais direitos às pessoas historicamente excluídas desse nível de ensino.
Nesse segmento, ao perguntarmos para as/os estudantes sobre a assistência estudantil, apenas Loren afirmou que tem bolsa-permanência, enquanto Mariana justificou que só não tem porque estava trabalhando até pouco tempo. Já Maia reconhece que não precisa de assistência, principalmente por ter apoio familiar financeiro, entretanto, quando perguntamos sobre os investimentos que deveria haver na educação superior, a entrevistada distingue a sua realidade das outras/os transexuais e travestis.
A estudante pondera que a maioria das pessoas transexuais e travestis não conseguem concluir o período de escolaridade obrigatória, não acessam a universidade e está na prostituição. Esse apontamento suscita a reflexão sobre as diferenças entre as/os transexuais e travestis que têm acesso à educação superior e as/os que não têm. Por conseguinte, questionamo-nos sobre as vivências de quem não acessa esse nível de educação e como a universidade e as políticas podem contribuir para mudar essa realidade.
Embora ainda seja uma minoria que tem acesso à educação superior, nesta pesquisa destacamos que o reconhecimento das identidades sociais, a situação socioeconômica, a escolaridade das/os estudantes e de seus pais, o apoio familiar e financeiro, e as políticas de acesso e permanência na educação superior, são elementos que têm contribuído no acesso e formação das/os entrevistadas/os que já estão na universidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme nossa pesquisa, reconhecemos que a política de cotas tem contribuído no ingresso de transexuais e travestis que estão inseridas/os em segmentos sociais historicamente excluídos do direito à educação. Porém o acesso à educação superior ainda permanece restrito a uma parcela mínima da sociedade que tem amparo e/ou apoio financeiro de familiares, relacionamentos afetivos e amigas/os. As/os próprias/os entrevistadas/os apontaram que suas vivências são privilegiadas quando comparadas/os à marginalização histórica das pessoas transexuais e travestis, e, por esse motivo, ressaltaram a importância de investimentos públicos para o acesso dessa população na universidade.
O uso do nome social na UFMS é um aspecto que interfere negativamente na permanência devido a não divulgação da existência desse direito, e na dificuldade de obter informações sobre o reconhecimento do nome. Embora a Resolução nº 41 esteja em vigor, ainda há funcionárias/os que não foram instruídas/os a alterar o nome no sistema para aparecer corretamente nas listas de chamada.
Aqui cabe destacar que o nome social é, comumente, escolhido pela própria pessoa transexual e travesti, sendo condizente à identificação ao gênero no qual a pessoa se reconhece, desse modo, o nome é mais do que um conjunto de letras (ALVES; MOREIRA, 2015). Sob essa perspectiva, o desrespeito ao nome social torna-se uma das principais formas de excluir essas/es estudantes do âmbito educacional, fazendo com que a sua obrigatoriedade seja um elemento contribuinte para o acesso e permanência.
Portanto, cabe ressaltar também que a primeira instituição a elaborar uma resolução dispondo sobre a inclusão do nome social de estudantes e servidoras/es transexuais e travestis foi a Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), em 2009, e, até 2016, dentre as 63 universidades federais, mais de 50 têm resoluções internas a respeito do uso do nome social (LEWER, 2016). Ademais, em relação às reservas de vagas, em 2018, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi a primeira instituição a publicar um processo seletivo com reserva de vagas para esse grupo (DIAS, 2018).
Em suma, a partir dos dados obtidos, consideramos que o acesso à educação superior para grupos em desvantagens sociais requer ser pensado para além do ingresso, uma vez que implica permanência, formação e conclusão, nesse contexto, ainda que os relatos sobre transfobia no ambiente universitário sejam menos incisivos, cabe à IES dispor de práticas para divulgação e promoção de discussões que reconheçam e consolidem os direitos que têm sido, custosamente, conquistados pelos movimentos sociais LGBT.