1 Introdução
A Educação Superior (ES) brasileira denota um processo de expansão, impulsionada por políticas públicas de democratização do acesso (Ristoff, 2019; Senkevics; Mello, 2019). A partir do final do século XX, programas de expansão da rede federal de ES, bem como a concessão de bolsas de estudo e financiamento para estudantes das instituições privadas, alavancaram o aumento do número de matrículas. Ações afirmativas e de assistência estudantil também foram desenvolvidas, buscando oportunizar a inclusão de segmentos sociais menos favorecidos nesse nível da Educação, promovendo o processo de expansão e democratização da ES brasileira (Cespedes et al., 2021; Senkevics, 2021).
A escolha do curso ou carreira é também uma importante faceta da democratização. Devido à grande concorrência no processo seletivo dos cursos diurnos ou de turno integral, de maior prestígio social, a par da disponibilidade restrita de vagas em cursos noturnos, pode-se observar uma desigualdade nas possibilidades de escolha, acesso e permanência nas diferentes carreiras. Jovens de classe mais alta, com disponibilidade para dedicação integral aos estudos, possuem maior possibilidade de escolha da carreira do que jovens que, desde cedo, conciliam Educação e trabalho (Caregnato et al., 2019; Dias Sobrinho, 2010). A gratuidade e o compromisso social da universidade pública ganham relevância neste contexto.
Este artigo aborda pesquisa sobre a democratização do acesso à ES pública, com foco no estudante de Odontologia, trazendo para a discussão a teoria da justiça social de Nancy Fraser (Fraser, 2006; 2007; 2008; 2009). O objetivo foi analisar se a oferta de vagas em um curso noturno de Odontologia de uma universidade federal constitui-se como possibilidade de democratização do acesso à ES com justiça social.
As cinco seções que compõem o artigo estão assim organizadas: inicialmente apresentamos o referencial teórico sobre democratização do acesso à universidade, a ES em Odontologia e o perfil do estudante de graduação, como fundamentos da pesquisa; a seguir, explicitamos o percurso metodológico. Num quarto momento estão os resultados da pesquisa, abordando as informações sobre os estudantes ingressantes e concluintes dos cursos diurno e noturno de Odontologia, analisados sob a ótica da justiça social. Por fim, fazemos considerações finais sobre a pesquisa, perspectivas e desafios sobre o tema.
2 Expansão e democratização das universidades federais na perspectiva da justiça social
O ano de 2003 é um marco na gestão do sistema federal de ES, com o início de sua expansão e interiorização (Brasil, 2012a). A segunda etapa foi promovida pelo Plano de Expansão e Reestruturação das Universidades Federais (Reuni), tendo como objetivo principal a criação de condições para ampliar o acesso e permanência na ES, em nível de graduação (Brasil, 2007).
O perfil do estudante destas instituições também é impactado pela lei de cotas (Brasil, 2012b) e pelo sistema de Seleção Unificada – SiSU (Brasil, 2010). A lei de cotas estabelece a reserva de vagas para estudantes egressos do Ensino Médio (EM) público com recortes por renda, raça/cor e pessoas com deficiência. Já o SiSU promove a seleção de candidatos a vagas em cursos de graduação disponibilizadas pelas instituições públicas de ES com base em resultados do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem).
A participação de egressos de escola pública como ingressantes nas Instituições Federais de Educação Superior (Ifes) aumentou 14,8% entre 2012 e 2016, com acréscimo importante de estudantes pretos, pardos e indígenas a partir da lei de cotas (Senkevics; Mello, 2019). As mudanças foram observadas, principalmente nas Ifes mais seletivas e que partiam de patamares de inclusão social mais baixos. Ainda assim, existe uma importante estratificação horizontal entre os cursos universitários. Estudantes brancos e com pais com nível superior estão mais presentes em cursos como Medicina, Direito, Engenharia, Odontologia. Estudantes de nível socioeconômico mais baixo são mais encontrados em cursos noturnos e, consequentemente, em instituições privadas, nas quais predomina a oferta neste período (Carvalhaes; Ribeiro, 2019). O acesso à ES ainda é balizado pela origem socioeconômica, mesmo que o Estado e as instituições tenham ações consideradas eficazes para a promoção de maior igualdade no acesso a este nível educacional (Ristoff, 2019).
O acesso à Educação é entendido, aqui, como uma questão de justiça social, não só no ingresso, mas na permanência e na conclusão da escolarização (Trezzi, 2022). Sob a ótica da justiça social, a ampliação de vagas e as mudanças no acesso à ES pública resultam de políticas que promovem redistribuição e reconhecimento. Para Nancy Fraser (2006; 2007; 2008), as políticas de redistribuição são ações que confrontam as injustiças socioeconômicas, proporcionando que todos tenham iguais direitos e acesso aos benefícios sociais, recursos e riquezas produzidas pela sociedade com o fito de superar a exploração de classe. Já as políticas de reconhecimento são aquelas que salientam as diferenças dos grupos minoritários ou vulneráveis para que, deste modo, acessem seus direitos e tenham o reconhecimento legal ou cultural por sua raça, gênero, poder econômico, escolaridade.
3 A ES em Odontologia e o perfil do estudante de graduação
As políticas de democratização da ES promoveram mudanças no perfil dos ingressantes do curso de Odontologia, abrangendo mais egressos de escola pública e com menor renda (Ristoff, 2019).
O custo dos materiais necessários ao curso de Odontologia é uma preocupação na rotina dos estudantes, sejam de instituições públicas ou privadas de ES (Silva et al., 2019). Neste sentido, a condição de estudante-trabalhador pode contribuir para sua permanência no curso, ao prover renda para seu sustento e aquisição de materiais, ou, ao contrário, afastá-lo da vida acadêmica em virtude da sobrecarga de atividades.
Nas Ifes brasileiras, em 2018, 29,9% dos estudantes estavam trabalhando e 40,6% não trabalhavam, mas estavam procurando emprego. Somente 29,5% dos estudantes dedicavam-se exclusivamente aos estudos (Andifes, 2019). Estes percentuais apresentam importante diferença entre as áreas do conhecimento. Estudantes trabalhadores são mais frequentes nos cursos da área de Ciências Sociais Aplicadas. Nas Ciências da Saúde representavam 15,8% dos estudantes; e 50,3% dedicavam-se exclusivamente aos estudos.
Estes são exemplos de que cursos noturnos nas universidades federais podem acolher estudantes de setores menos favorecidos da sociedade e que dependem da oferta neste turno para levar adiante sua graduação, principalmente em cursos mais seletivos, ou de maior prestígio social. Contribuem, desta forma, para a promoção de justiça social (Fraser, 2006; 2007; 2008), ampliando o acesso à cultura e Educação e, também, a possibilidade de melhores condições de emprego e renda.
4 Percurso metodológico
A pesquisa empírica aqui apresentada é resultado de estudo desenvolvido no âmbito do doutorado em Educação (Lamers, 2021). O cenário foi o curso de graduação em Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
A Universidade implantou o curso noturno de Odontologia a partir de 2010, como parte da proposta de adesão da UFRGS ao Reuni. Um projeto inovador dentro de uma Instituições de Ensino Superior (IES) que abriga um curso centenário de Odontologia em período integral. O ingresso no curso noturno é anual com oferta de 30 vagas. As atividades obrigatórias acontecem exclusivamente no turno da noite e o período de integralização é de 16 semestres, podendo ser menor se o estudante puder realizar estágios obrigatórios em outros turnos. O curso diurno oferta 44 vagas semestrais e possui 10 semestres de duração. O projeto pedagógico do noturno expressa a intensão de incluir o estudante trabalhador e apresenta a mesma carga horária que o curso diurno (Lamers; Santos; Toassi, 2017). A principal diferença, portanto, é a duração alongada do curso noturno.
A coleta de dados foi realizada em duas etapas:
Etapa 1 – ingressantes: os dados foram coletados por meio de um questionário, semiestruturado e pré-testado, respondido pelos estudantes no momento da matrícula, nas dependências da Faculdade de Odontologia. O instrumento foi construído a partir da revisão de literatura, buscando responder aos objetivos da pesquisa. No curso noturno, a pesquisa ocorreu entre 2010 e 2019, totalizando 10 turmas. Participaram 267 estudantes (89%). No curso diurno, a pesquisa foi aplicada entre os anos de 2014 e 2019, totalizando 12 turmas e participação de 436 ingressantes (82,6%)1. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS2.
Etapa 2 – concluintes: os dados sobre os concluintes do curso de Odontologia foram obtidos por meio de consulta aos microdados do Censo da Educação Superior de 2017, 2018 e 2019. O relatório do projeto de pesquisa sobre perfil, avaliação do curso e expectativas profissionais dos formandos do curso de Odontologia (Olsson; Lamers; Toassi, 2020) foi consultado de forma complementar aos dados censitários.
As variáveis que compõem o estudo podem ser observadas no Quadro 1.
Categoria | Variáveis |
---|---|
Acesso ao curso de Odontologia – perfil dos ingressantes | |
Concluintes do curso de Odontologia |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023)
EM: Ensino Médio ES: Educação Superior
Os dados quantitativos foram registrados em banco de dados no software IBM SPSS Statistics e analisados por meio da distribuição de frequência. As informações entre os ingressantes do curso diurno e noturno foram comparadas por proporções, mediante os testes Qui-Quadrado e exato de Fisher. As análises estatísticas foram realizadas com apoio de profissional especializada, utilizando o software R, versão 2.0.2, e foi adotado um nível de significância de 5%.
As categorias de análise das informações relativas aos estudantes foram construídas a partir do estudo sobre justiça social na perspectiva de Nancy Fraser. Para a autora, redistribuição e reconhecimento são políticas que se complementam e devem atingir os grupos discriminados, para que estes possam atuar em todos os espaços em condições de igualdade de direitos enquanto cidadãos sociais (Fraser, 2006; 2007; 2008; 2009).
5 Justiça social na ES: ingressantes e concluintes do curso de odontologia diurno e noturno
Na Universidade investigada, os estudantes jovens, de 17 a 20 anos, foram a maioria dos ingressantes no curso diurno de Odontologia (76,1%). No curso noturno, 54,3% dos ingressantes tinham 21 anos ou mais e 26,2% ingressaram com 25 anos ou mais (Gráfico 1).
Análise estatística (teste Qui-quadrado) demonstrou p-valor < 0,001 na comparação entre a idade dos estudantes nos dois turnos, ou seja, que a idade está associada à escolha do turno do curso. O curso noturno de Odontologia possibilita o ingresso de pessoas com mais idade na universidade, o que pode ser entendido como a materialização de uma política redistributiva, uma vez que, no noturno, ingressam estudantes com idade superior ao diurno. Considerando o conceito de justiça social estabelecido por Fraser (2007; 2008), podemos compreender as políticas que promovem o acesso à Educação como redistribuição de um bem social, uma riqueza produzida pela sociedade. A abertura de vagas noturnas possibilitou que estudantes que não tiveram acesso ao curso de Odontologia na idade aconselhada (18 anos) pudessem acessar posteriormente, visto que há maior percentual de ingressantes com 25 anos ou mais, se comparado com o curso diurno.
Na região metropolitana de Porto Alegre, cidade em que o estudo foi realizado, Franzoi et al. (2019) verificaram que 20% dos jovens entre 15 e 19 anos conciliavam estudo e trabalho e 20% estavam fora da escola, trabalhando ou procurando trabalho. Essa realidade dos jovens que deveriam concluir o EM até os 18 anos e não o fazem impacta na idade de ingresso na ES – se e quando ingressarem. E pode representar uma demanda de estudantes com mais idade buscando um curso superior, como ocorre com o curso noturno de Odontologia pesquisado. A origem socioeconômica deste estudante, sendo uma das dimensões da justiça social, também impactará na sua decisão entre estudar e trabalhar ou só trabalhar, tendo a escolarização um destino praticamente certo para a população economicamente mais favorecida (Trezzi, 2022).
Tratando da presença de estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI), 23,7% dos ingressantes do diurno e 23,9% do noturno declararam ser PPI. Análise estatística demonstrou não haver diferença numérica significativa, por cor ou raça dos estudantes, entre os turnos, nos períodos analisados (Tabela 1).
Cor ou raça | Diurno | Noturno | p-valor* | ||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
n | % | n | % | ||
Branco | 332 | 76,1 | 201 | 75,3 | 0,7191 |
Amarelo (origem asiática) | 1 | 0,2 | 1 | 0,4 | |
Preto | 36 | 8,3 | 20 | 7,5 | |
Pardo | 64 | 14,7 | 44 | 16,4 | |
Indígena | 3 | 0,7 | - | - | |
Não informou | - | - | 1 | 0,4 | |
TOTAL | 436 | 100,0 | 267 | 100,0 |
Fonte: Lamers (2021, p. 141)
*Teste exato de Fischer
Ainda que não haja diferença de ingressantes PPI entre os turnos do curso de Odontologia, o Quadro 2 mostra que há diferença na disputa de vagas reservadas para PPI. Comparando os dados da Universidade dos anos de 2015 a 2017, que tiveram os mesmos critérios para reserva de vagas e número de vagas ofertadas no processo seletivo (vestibular), percebemos que a disputa por uma vaga reservada para PPI foi maior no noturno do que no diurno. Exceção para a categoria “Ensino público com renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e autodeclarado preto/pardo/indígena”, em 2015, que apresentou a mesma densidade de candidatos por vaga em ambos os turnos (UFRGS, 2021).
Candidatos por vaga reservada no vestibular | 2015 | 2016 | 2017 | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Diurno | Noturno | Diurno | Noturno | Diurno | Noturno | |
Ensino público independentemente da renda familiar e autodeclarado preto/pardo/indígena | 6,0 | 7,0 | 1,7 | 4,6 | 4,2 | 7,6 |
Ensino público com renda igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e autodeclarado preto/pardo/indígena | 5,0 | 5,0 | 3,8 | 9,3 | 4,0 | 5,0 |
Fonte: Lamers (2021, p. 142)
Na população brasileira, a representação de pretos e pardos é de 55,8%. Já no Rio Grande do Sul, pessoas pretas e pardas representam 21% da população em 2018 (IBGE, 2019). A representação de cor/raça no curso noturno de Odontologia está acima da média da população no estado. Cabe considerar que, em 2018, a taxa de acesso à graduação no estado do Rio Grande do Sul entre jovens brancos de 18 a 24 anos era 35,2%, enquanto que para pretos e pardos era de somente 14,2% (Souza, 2020). Existe, portanto, um importante contingente de pessoas pretas e pardas que ainda não acessam a ES.
A relevância da lei de cotas para a democratização do acesso à ES é destacada por Senkevics e Mello (2019) ao mostrarem que, após a lei, o grupo de PPI com baixa renda cresceu 26% entre os ingressantes das Ifes da região sul no período de 2012 a 2016. Assim, a diferença relativa entre PPI de baixa renda na população e nas Ifes reduziu 40%.
Redistribuição e reconhecimento, enquanto elementos de justiça social, se conectam quando observamos a cor/raça dos estudantes, não só dos ingressantes, mas dos candidatos a cada turno do curso, demonstrando que o curso tem uma demanda de equidade represada a ser atendida. Essa diversidade deve ser considerada no arranjo institucional. É preciso reconhecer quem ingressa, mas também, quem está demandando essas vagas. As políticas de reconhecimento têm o papel de salientar as diferenças de status dos grupos minoritários ou vulneráveis e promover meios para que estes acessem seus direitos e tenham o reconhecimento legal ou cultural por sua raça, gênero, poder econômico e escolaridade (Fraser, 2006; 2009).
Quanto à origem escolar, mais de 50% dos estudantes de ambos os turnos realizaram o EM em escola pública. Esse resultado é esperado, tendo em vista que a Universidade possui política própria de reserva de vagas desde 2008 e, em 2012, passou a ter seu processo seletivo regido pelas regras de reservas de vagas da Lei de Cotas (Brasil, 2012b).
Mesmo com percentuais próximos entre estudantes do diurno e do noturno oriundos da escola pública de EM, cabe destacar que, somente no curso noturno encontramos estudantes egressos de EM na modalidade Educação de Jovens Adultos (EJA). No Ensino Fundamental há mais estudantes egressos de escola privada entre os ingressantes do diurno, diferença essa estatisticamente significativa (Tabela 2).
Variáveis | Diurno | Noturno | p-valor | ||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
n | % | n | % | ||
Ensino Fundamental | 0,0094 | ||||
Escola pública | 217 | 49,7 | 142 | 53,2 | |
Escola privada | 177 | 40,6 | 83 | 31,1 | |
Escola pública e privada | 40 | 9,2 | 40 | 15,0 | |
Não informou | 2 | 0,5 | 2 | 0,7 | |
Ensino Médio | |||||
Escola pública | 234 | 53,6 | 145 | 54,30 | 0,3489 |
Escola privada | 190 | 43,6 | 103 | 38,6 | |
Escola pública e privada | 10 | 2,3 | 10 | 3,8 | |
Escola pública e EJA | - | - | 2 | 0,7 | |
EJA | - | - | 3 | 1,1 | |
Não informou | 2 | 0,5 | 4 | 1,5 | |
Total | 436 | 100,0 | 267 | 100,0 |
Fonte: Lamers (2021, p. 144)
EJA: Educação de Jovens Adultos
No Brasil, em 2016, 63,6% dos ingressantes das Ifes eram egressos do EM na rede pública. Considerando que mais de 80% dos jovens brasileiros que frequentaram o EM em 2016 estavam em escolas públicas (Senkevics; Mello, 2019), a proporção desse segmento de estudantes na universidade pública precisa aumentar para que haja acesso à formação superior com justiça social, assim como no curso de Odontologia de ambos os turnos.
Em relação ao tempo entre a conclusão do EM e o ingresso no curso de Odontologia, a maioria dos ingressantes do noturno (58,1%) teve mais de três anos de intervalo, enquanto apenas 11,2% ingressou logo após o EM (Gráfico 2). A diferença é significativa na análise estatística, com p-valor < 0,001 (Teste Qui-Quadrado).
É também no noturno que encontramos mais estudantes que são os primeiros de suas famílias a cursarem a ES – 32,6% do noturno; 20,9% do diurno –, uma diferença estatisticamente significativa (p < 0,001, teste Qui-Quadrado). Segundo Ribeiro, Ceneviva e Brito (2015), as características socioeconômicas e culturais dos pais produzem efeito nos resultados educacionais dos filhos, estando associadas à desigualdade de oportunidades educacionais. Quando políticas de redistribuição e reconhecimento proporcionam que os filhos superem o nível de escolaridade de seus pais, ocorre mobilidade educacional com tendência à mobilidade social (Caregnato et al., 2019).
O curso de Odontologia foi tradicionalmente uma formação de prestígio social, recebendo estudantes com condições de dedicarem-se integralmente ao estudo (Silva et al., 2019). Em uma sociedade na qual os jovens ingressam no mercado de trabalho ainda antes da conclusão da escolaridade básica, as vagas noturnas na ES pública podem contribuir para a redução de desigualdades. Ainda assim, não podemos desconsiderar a estratificação existente entre quem pode dedicar-se integralmente aos estudos em período diurno e quem precisa conciliar trabalho e estudo (Caregnato et al., 2019).
Na UFRGS, a presença de estudantes trabalhadores é predominante no curso noturno de Odontologia, que possui mais da metade de seus ingressantes conciliando trabalho e estudo (52,8%), enquanto somente 6,4% dos ingressantes do diurno estão nessa condição (p < 0,001, teste Qui-Quadrado). Destacamos que 24,1% dos trabalhadores do curso noturno relataram trabalhar na área da saúde. São estudantes que já estão inseridos no mercado de trabalho e buscam, na graduação em Odontologia, uma ascensão profissional.
A presença de estudantes trabalhadores difere entre as redes de Ensino na ES. Na rede privada, em 2018, 61,8% dos estudantes associavam estudo e trabalho. Já na rede pública, eram 40,3% dos estudantes nessa situação (Instituto SEMESP, 2020), o que pode ser relacionado com a maior oferta de vagas noturnas na rede privada, assim como com a localização e o tipo de cursos ofertados. Em um curso privado de Odontologia na Paraíba, o turno da noite abrigava maior número de alunos que não só trabalhavam, como também contribuíam com o sustento da família (Silva et al., 2019). Na Universidade Federal do Maranhão, após a implantação de cotas para ingresso na universidade, aumentou o percentual de alunos trabalhadores no curso de Odontologia, mesmo que somente diurno (Silva et al., 2011).
A renda familiar divide o grupo de ingressantes em duas condições. Entre os estudantes com renda familiar até 4,5 salários mínimos há maior proporção de ingressantes no curso noturno (40,1% do noturno, 26,6% do diurno). No grupo com renda familiar acima de 6 salários mínimos predominam os estudantes do curso diurno (25,9% do diurno, 20,9% do noturno)3.
Klitzke e Sato (2020) salientam a relevância do recorte de renda na política de reserva de vagas, principalmente em cursos de alto prestígio, para possibilitar o ingresso de estudantes economicamente menos favorecidos. As autoras reforçam ainda que, apesar dos avanços nas últimas décadas, a formação superior no Brasil segue estratificada, desigual e hierarquizada, percepção partilhada por Carvalhaes e Ribeiro (2019).
A condição socioeconômica dos estudantes de Odontologia oriundos das classes populares caracteriza-se como um enquadramento estrutural, com regras de interação social e padrões de vida. A abordagem de enquadramento proposta por Nancy Fraser (2009, p. 29) como “princípio de todos afetados [...estabelece que ....] aqueles afetados por uma dada estrutura social ou instituição tem o status moral de sujeitos da justiça com relação a ela”. Nessa perspectiva, estudantes que trabalham para manter seu vínculo com o curso, ou os que não trabalham, mas dependem de benefícios institucionais para continuar sua formação, são enquadrados como sujeitos de justiça e, portanto, destinatários de necessária assistência estudantil. Ingressantes por meio das ações afirmativas, seja por critério racial ou de renda, são sujeitos de justiça desde sua inscrição no processo seletivo, quando buscam condições de equidade no ingresso a uma vaga pública na ES, lutando para que sua escolha de Odontologia em uma universidade federal possa prevalecer sobre os destinos socialmente demarcados para as camadas populares. A redução do abismo social que impacta na escolaridade brasileira passa, portanto, por uma questão de justiça social (Trezzi, 2022).
A conclusão da graduação é, também, o fechamento de uma trajetória de formação. A expansão do acesso a essa etapa da Educação é fundamental para o desenvolvimento do país, mas a permanência e conclusão são igualmente importantes para que se possa falar em democratização da ES.
De 2017 a 2019, 34 estudantes concluíram o curso noturno de Odontologia, correspondendo a 56,7% dos ingressantes de 2010 e 2011, turmas para as quais decorreu tempo suficiente para a conclusão do curso. A Tabela 3 mostra que a maioria dos formandos do curso noturno são brancos (91,2%), com idade entre 26 e 29 anos (53%) e metade concluiu o EM em escola privada. No curso diurno estão formandos mais jovens, tendo 41,1% de 23 a 24 anos. Egressos da escola pública representam 44% dos formandos do diurno; porém, 33 estudantes não tinham a informação registrada no Censo consultado, prejudicando a análise.
Variáveis | Diurno | Noturno | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
n | % | n | % | |
Cor/Raça | ||||
Branca | 207 | 84,1 | 31 | 91,2 |
Preta | 11 | 4,5 | 2 | 5,9 |
Parda | 16 | 6,5 | 1 | 2,9 |
Não declarou | 12 | 4,9 | ||
Idade (anos) | ||||
21–22 | 21 | 8,5 | - | - |
23–24 | 101 | 41,1 | 1 | 2,9 |
25 | 47 | 19,1 | - | - |
26–27 | 50 | 20,3 | 7 | 20,6 |
28–29 | 12 | 4,9 | 11 | 32,4 |
30–31 | 4 | 1,6 | 5 | 14,7 |
32–33 | 1 | 0,4 | 3 | 8,8 |
34–50 | 10 | 4,1 | 7 | 20,6 |
Conclusão Ensino Médio | ||||
Escola pública | 110 | 44,7 | 16 | 47,1 |
Escola privada | 103 | 41,9 | 17 | 50,0 |
Sem informação | 33 | 13,4 | 1 | 2,9 |
Total | 246 | 100,0 | 34 | 100,0 |
Fonte: Adaptado de Inep (2018; 2019; 2020)
Ao estudar o perfil de concluintes dos cursos da área da Saúde, por meio dos dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2013, Noro e Moya (2019) encontraram percentual menor de estudantes brancos (59,8%) e maior de egressos de escolas públicas (62,6%). Perfil de formandos do curso diurno semelhantes ao da UFRGS foi identificado por Silva, Spigher e Amante (2018) em Santa Catarina.
Quanto à renda familiar, a Tabela 4 evidencia que nenhum estudante do curso noturno com renda familiar inferior a dois salários mínimos conseguiu concluir o curso, segundo dados de 2018 e 2019. Identificamos, também, que são estudantes com renda inferior aos do curso diurno, estando a maioria na faixa de dois a cinco salários mínimos (56%), enquanto que no curso diurno o maior grupo (37,2%) tem renda familiar de seis a dez salários.
Renda familiar (salários mínimos) | Diurno | Noturno | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
n | % | n | % | |
Menos de 2 | 1 | 0,8 | -- | -- |
2 a 5 | 42 | 34,7 | 14 | 56,0 |
6 a 10 | 45 | 37,2 | 6 | 24,0 |
11 ou mais | 25 | 20,7 | 3 | 12,0 |
Não informou | 8 | 6,6 | 2 | 8,0 |
Total | 121 | 100,0 | 25 | 100,0 |
Fonte: Elaborada por Lamers (2021, p. 169)
No Quadro 3 buscamos comparar características dos estudantes ingressantes e formandos do curso noturno. Os dados mostram que há mais concluintes brancos do que ingressantes, indicando que os estudantes PPI estão chegando em menor número ou em maior tempo ao final do curso. Identificamos, também, menos egressos de escola pública se formando do que ingressando, e nenhum estudante formando com renda inferior a dois salários mínimos, apesar destes serem 6,7% dos ingressantes. Já o percentual de formandos com mais de cinco salários mínimos de renda familiar foi maior entre os concluintes.
Variáveis | Ingressantes (2010-2019) | Concluintes (2017-2019) |
---|---|---|
Cor/raça branco | 75,3% | 91,2% |
Ensino Médio escola pública | 54,3% | 47,1% |
Renda familiar menor que 2 salários mínimos | 6,7% | - |
Renda familiar até 5 salários mínimos | 54,6% | 56,0% |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2023)
Retomando o entendimento de Educação como bem público, direito de todos e de cada um, e dever do Estado, entende-se que a democratização da ES engloba sua expansão, com a inclusão de grupos sociais historicamente excluídos e com condições efetivas de permanência e conclusão. Neste movimento de democratização, as universidades federais, consideradas elitizadas por historicamente atenderem a classe social mais favorecida, passam a reservar parte de suas vagas para ampliar a diversidade social dos estudantes. Na perspectiva de justiça social, espera-se que as condições econômicas, origem social ou cor/raça não sejam impeditivas de acesso nem de sucesso educacional. Para tanto as políticas assistenciais nas Ifes são importantes mecanismos de permanência e conclusão do curso (Araújo; Mariano; Oliveira, 2021; Cespedes et al., 2021).
No comparativo acima observa-se a necessidade de atenção ao processo de permanência no curso. Os concluintes são mais brancos e menos egressos da escola pública. Nenhum formando do curso noturno declarou renda familiar menor que dois salários mínimos, ainda que, entre os que declararam renda de até cinco salários, o percentual de formandos tenha sido ligeiramente maior que de ingressantes. Essa comparação indica que a população foco das ações afirmativas está tendo mais dificuldades de chegar ao final do curso e obter o diploma, constituindo a renda um obstáculo à concretização da justiça social. A realidade é dinâmica, como mostra o estudo de acompanhamento dos formandos em Odontologia da UFRGS de 2018 e 2019, pois aumentou o número de formandos cujos pais têm menor escolaridade e renda, quando comparado a anos anteriores (Bitencourt et al., 2023), fruto das políticas de democratização da ES.
6 Considerações finais
Neste estudo vimos que as variáveis que caracterizam o curso noturno como espaço de democratização da ES são idade, tempo entre término do EM e ingresso na ES, primeiro da família a cursar a ES, trabalho e renda familiar. Na jornada entre acesso e conclusão do curso noturno de Odontologia, existem percalços que, analisando comparativamente, identificamos: o curso noturno tem menos pretos, pardos e indígenas se formando do que ingressando, assim como menos egressos do EM público. Logo, as políticas de redistribuição e reconhecimento que procuram reduzir as assimetrias sociais no ingresso não estão sendo suficientes para promover a permanência e a conclusão do curso, visto que características de maior democratização no acesso ao curso não são evidenciadas entre os formandos.
É possível dizer que a oferta de um curso noturno de Odontologia em universidade federal de reconhecida qualidade contribui em direção à justiça social no acesso à ES. Ainda assim, é preciso destacar que, por si só, a impossibilidade de frequentar um curso diurno consiste em indicador de injustiças anteriores ao ingresso na universidade. Conciliar trabalho com estudo, em jornada diária mormente exaustiva, não pode ser considerado justiça, embora o objetivo seja alcançar melhores condições de existência. A origem social e econômica do estudante constitui fator interveniente na sua trajetória pela ES, devendo balizar as políticas de inclusão dos grupos historicamente excluídos e as políticas institucionais de avaliação, permanência e redução da evasão. Para a permanência do estudante trabalhador, estratégias de flexibilização curricular podem ser adotadas, de modo que o estudante construa sua trajetória acadêmica conciliando suas possibilidades com o padrão de qualidade do projeto pedagógico do curso. Além de apoio estrutural, tal como fortalecimento da política de assistência estudantil e disponibilidade de espaços e materiais físicos e digitais para estudo, no caso do curso de Odontologia, é importante viabilizar a aquisição e empréstimo de instrumental.
Há, portanto, que se avançar na igualdade de status (Fraser, 2009) de todos os estudantes e seu reconhecimento na democratização da Educação, considerando toda a trajetória de acesso, permanência e conclusão, não deixando de apontar os desafios que ainda pairam em uma sociedade tão desigual quanto a sociedade brasileira.