Introdução
Este artigo se insere no campo da História da Educação em interface com a história das culturas do escrito, tendo como objetivo a análise da escrita jornalística das primeiras décadas do século XIX brasileiro.
O século XIX é tomado como marco temporal, por abrigar importantes acontecimentos político-culturais, como a vinda da família real para o Brasil e, posteriormente, a constituição do estado-nação independente. Associado a isso, temos o estabelecimento oficial da imprensa, com a publicação de impressos de cunho cada vez mais diversificados ao longo do século. No campo da educação escolar, a escolarização da população ainda estava em processo de consolidação; após a produção de aparatos legais visando a organização do ensino, na primeira metade do século, assistiu-se, na segunda metade, ao seu processo de consolidação, num percurso lento e desigual para cada província (FARIA FILHO, 2000). Desse modo, tanto as dimensões físicas e materiais quanto a legitimação sociocultural da escola enquanto instância de ensino e aprendizagem encontravam-se em sua fase germinal.
A província de Minas Gerais, em função do ciclo do ouro, sofreu um rápido desenvolvimento urbano desde o século XVIII, resultando em intensas atividades comerciais e desenvolvimento econômico (LIBBY, 1988; LENHARO, 1979; FONSECA, 2016). A grande circulação de pessoas e produtos impactou também no desenvolvimento cultural, de hábitos e comportamentos, condições essas que, em conjunto, possibilitaram, já na segunda década do XIX, o estabelecimento da imprensa. A província se tornou, então, um importante polo também de disputas e debates políticos, protagonizados, sobretudo, pelos jornais.
Considerando-se essa configuração, trata-se de um período e local em que os jornalistas se consideravam responsáveis pela instrução da população, produzindo, por meio de seus escritos, um modo particular de difundir ideias, valores, posicionamentos políticos e comportamentos. Segundo o jornalista Bernardo Pereira de Vasconcellos1, o papel dos jornais é “instruir recreando”, e
[...] será mais feliz e mais ilustrada a Nação em que a leitura dos periódicos generalizar a instrução pública, combatendo a ignorância, os abusos, e os prejuízos, e consagrando à causa da razão às luzes e os trabalhos dos homens instruídos (VASCONCELLOS, 1825, p. 167).
Não eram raros os periódicos que traziam, já nos seus títulos, a metáfora iluminista das luzes como princípio da civilização (PALLARES-BURKE, 1998), tal como o Aurora Fluminense, o Astro de Minas, o Estrella Mariannense, o Farol Paulistano, entre vários outros. Nesse sentido, consideramos a produção jornalística como atividade política, na acepção de Keith Baker (1987), segundo o qual indivíduos ou grupos de uma dada sociedade articulam, negociam e mobilizam reivindicações, nem sempre coerentes ou convergentes entre si, constituindo, assim, a cultura política desse contexto. A imprensa está sendo considerada, portanto, não como simples veiculadora de discursos e práticas de cunho político, mas como agente político que possuía centralidade nos debates do período.
A predominância de periódicos de perfil liberal, disponíveis nos arquivos e hemerotecas para consulta e pesquisa, longe de ser devido ao acaso ou a contingências políticas de conservação seletiva de documentos, reflete a proliferação de periódicos que se afirmavam representantes desse matiz político, em Minas Gerais, especificamente, de tendência moderada (SILVA, 2013). Realizamos a análise de 4 deles, impressos em centros urbanos de importância econômica e social no período, na província mineira, nas décadas de 1820 e 1830: O Universal (Ouro Preto, 1825-1842), Estrella Marianense (Mariana, 1830-1832), Astro de Minas (São João del-Rei, 1827-1839) e O Mentor das Brasileiras (São João del-Rei, 1829-1832). Elegendo-os como fontes principais, discutimos sobre os modos como participavam do debate político; como construíam seus argumentos para formar a opinião pública e vencer as disputas, cuja dinâmica dificilmente se reduzia a uma simplificada polarização entre liberais e conservadores, tal como percebemos na contemporaneidade. Nesse sentido, buscamos compreender e dar inteligibilidade ao liberalismo (ou liberalismos) em construção, por meio de alguns de seus representantes.
A produção historiográfica que se dedica à temática problematiza, principalmente por meio de análise de conteúdo, a rede de interlocuções no interior desse debate (LUSTOSA, 2000; NEVES, 2003; MOREL, 2005; SILVA, 2009); são também consideradas as condições materiais, como as de produção e de circulação, que se relacionam ao processo de participação nessas disputas (MOREIRA, 2006; JINZENJI, 2010; VERONA, 2020). Este artigo busca contribuir com a produção do campo, desconstruindo e analisando o processo de produção do texto, ou seja, no complexo contexto pós independência ao início do período regencial, analisamos, em específico, as “fórmulas” utilizadas pelos redatores liberais na batalha verbal contra os opositores, buscando o convencimento dos leitores.
A imbricada relação entre oral e escrito e a escrita de jornais
José Murilo de Carvalho (2000) analisa a Retórica como chave de leitura para se compreender os jornais de cunho político produzidos no Brasil do século XIX. A constituição política e cultural, marcada pelo colonialismo e pela monarquia, teria configurado um modo de pensar e expor ideias menos guiado por argumentos lógicos, que pelo discurso laudatório, pela violência na linguagem e pela citação exacerbada (e muitas vezes incoerente) de autores canônicos para legitimar os argumentos. O percurso formativo desses políticos-jornalistas, embora nem sempre homogêneo, reforça a importância dos estudos em Retórica, seja por meio da frequência às cadeiras secundárias daquela matéria como preparativo para os estudos jurídicos em Coimbra, seja pelo contato com manuais de retórica em circulação no Brasil desde fins do século XVIII (CARVALHO, 2000, p. 134). Segundo Duran (2009), no século XIX, os compêndios e manuais de retórica, tantos os portugueses quanto os produzidos no Brasil, contribuíram para a fabricação de um universo vocabular específico muito característico entre oradores e escritores.
Essa ambiência intelectual era comum aos proprietários e redatores dos principais jornais da província de Minais Gerais, que atuavam como advogados, sendo ou não bacharéis em direito, havendo também padres e professores (SILVA, 2009), como é o caso dos responsáveis pelos periódicos aqui analisados. São sujeitos que, concomitantemente à atuação política, exerciam atividades profissionais que se sustentavam, em grande medida, nas habilidades argumentativas por meio da expressão oral, dirigida a grupos de ouvintes.
O argumento central a ser aprofundado neste estudo é, portanto, a forte marca da oralidade na estruturação dos textos da imprensa pós-independência. A análise se apoia no conteúdo veiculado, como cenário, mas se detém sobre as estratégias utilizadas na construção dos textos. Para além da distinção necessária entre o texto e o suporte que o dá a ler (CHARTIER, 1996), estamos buscando penetrar no texto e identificar os elementos que o constituem, que o configuram e o potencializam para formar a opinião de leitores. O uso e abuso de metáforas dispostas em uma escrita eloquente, por exemplo, concediam à escrita maior poder de persuasão (CARVALHO, 2000); a mobilização de um vocabulário específico, bem como o uso de enunciados devidamente ordenados para se construir relações semânticas específicas (MAINGUENEAU, 1989) estão entre essas estratégias de escrita.
Os vários modos como a oralidade e a escrita se configuram para determinados contextos e grupos sociais, bem como seus possíveis impactos nos modos de pensar e agir, são discutidos por autores dos campos da Linguística e subcampos, e também da Antropologia, da História, e da Educação, estando entre as referências centrais que sustentam este estudo, Olson e Torrance (1997), Ong (1998), Chartier e Cavallo (1998), Galvão (2001). A baixa taxa de letrados do contexto em foco torna a análise dos recursos textuais, uma opção metodológica particularmente fértil para compreender modos de elaboração escrita que possuem marcas de recursos típicos da oralidade, estratégia que evidencia a interdependência entre as esferas da oralidade e da escrita na construção de textos voltados para leitores neófitos ou ouvintes.
Apreender a parcela da população capaz de ler e escrever, em determinado contexto histórico, oferece muitos obstáculos. Se por um lado temos, a partir do censo de 1872, o índice de 16% de alfabetizados na população brasileira, estudos como os de Villalta (2007) e Morais (2009) indicam as dificuldades em se caracterizar a população letrada, mesmo nos centros urbanos, como Mariana e São João del-Rei (cenários dos periódicos em foco neste estudo), sendo necessário ampliar a análise da oferta de instrução institucionalizada, para a de posse de objetos de leitura, capacidade de assinar documentos, exercício de atividades profissionais que requerem o domínio dessas habilidades, entre outros. Deve-se, ainda, considerar as especificidades do saber ler e escrever para cada contexto histórico, e os diversos níveis de proficiência para cada habilidade (MAGALHÃES, 1999).
De todo modo, devemos considerar que a parcela de não leitores/as era majoritária, o que não significava que estes estavam alheios aos conteúdos escritos. Ouvir ler era uma prática comum em sociedades em que a habilidade da leitura era privilégio de uma pequena parcela da população (CHARTIER, 1996), como a do período imperial brasileiro. A leitura em espaços públicos ou a leitura em voz alta fazia parte do cotidiano dos centros urbanos mineiros (VILLALTA, 1997; MORAIS, 2009) e os jornais constituíam importante elemento desse repertório, sendo objetos privilegiados de leitura compartilhada, tanto em ambientes domésticos (JINZENJI, 2012) quanto em práticas institucionalizadas de leitura pública, a exemplo da Sociedade Philopolytechnica de São João del-Rei. Estabelecimento planejado para ampliar o acesso à leitura, previa a assinatura de jornais, inclusive internacionais, podendo ser lidos em voz alta, para aqueles que não dominassem o idioma (MORAIS, 2002). Em Ouro Preto, a leitura coletiva ocorria nas salas do Palácio do Governo da Província, (O UNIVERSAL, 1831, p. 4) e também no gabinete de leitura do padre e professor de latim e retórica, Antônio Ribeiro Behring (O UNIVERSAL, 1830, p. 4).
O conjunto de contingências elencado estabelece as balizas que sustentam a interdependência entre o oral e o escrito na escrita dos jornais do período, considerando-se os perfis daqueles que redigiam e dos leitores aos quais essa escrita se dirigia e procurava instruir.
Os jornais liberais de Minas Gerais e os recursos retóricos
Os quatro periódicos mineiros que tomaremos como “textos modelo” foram produzidos na primeira fase do jornalismo no Brasil, nos principais centros urbanos do período, sendo importantes representantes do liberalismo em constituição. O Universal teve sua primeira edição em 18 de julho de 1825, tendo como diretor e principal redator, o bacharel em direito e deputado geral, Bernardo Pereira de Vasconcellos (1795-1850), até o ano de 1835. Era impresso em Ouro Preto, então capital da província, na Typografia Patrícia do Universal2, estabelecimento também responsável pela impressão de documentos do governo. O Universal encerrou seus trabalhos em 30 de maio de 1842, com o início da Revolta Liberal, tendo mantido com bastante regularidade, a tiragem de 3 edições semanais, sendo considerado o periódico mais longevo do século XIX.
A mesma oficina tipográfica deu origem ao Estrella Mariannense, primeiro periódico político voltado para a causa liberal em Mariana, publicado entre 1830 e 1832. Mariana distava poucas léguas da capital e sua primeira fase, em que era impressa na Tipografia do Universal, durou 1 ano e 11 meses. A partir de abril de 1832 até o encerramento das atividades, em novembro desse mesmo ano, passou a ser impresso em sua própria oficina, a Tipografia Mariannense, em Mariana, com tiragem semanal. A folha tinha como principal redator, Manuel Berardo Accursio Nunan (1802-1856), responsável pelo estabelecimento da tipografia na cidade. Havia sido secretário da Câmara Municipal quando iniciou as atividades de redação, e também exercia a função de advogado.
São João del-Rei sediou os outros dois periódicos em análise: o Astro de Minas (1827-1839) era impresso três vezes por semana na tipografia de mesmo nome, de propriedade de Baptista Caetano de Almeida (1797-1838). Amigo e interlocutor político de Vasconcellos, Baptista Caetano tinha como principal atividade o comércio, tendo obtido provisão para advogar; foi também vereador e juiz de paz na cidade, e nos últimos anos de sua vida, foi Deputado por Minas Gerais, falecendo em 1839, mesmo ano em que o Astro encerrou suas atividades.
Dois anos após o início da produção do Astro de Minas, a mesma tipografia iniciava a produção do semanário O Mentor das Brasileiras, em 30 de novembro de 1829. Foi um dos primeiros periódicos brasileiros voltados para as mulheres e tinha como redator principal, o advogado e professor de Gramática Latina e de instrução primária, José Alcibíades Carneiro, que ocupou essa atividade até o fim dessa publicação, em junho de 1832. Sua atividade política se iniciou na escrita do periódico e teve continuidade após esse período, na câmara de vereadores de São João del-Rei (1833-1835), passando a substituir Baptista Caetano como Deputado em 1838, quando aquele passava por problemas de saúde, que culminaram em sua morte.
Por meio da escrita jornalística3, esses sujeitos se interconectaram em defesa da Monarquia constitucional, na qual o
Grande PEDRO, que havia conhecido as necessidades reais do Brasil não dilatou o Oferecimento do mais Liberal dos Códigos ao Povo do Brasil, que aceitando-o com extremo regozijo, apressou-se a jura-lo, com nobre ardor [...] (O UNIVERSAL, 1829a, p. 1, grifo no original).
Esses escritores públicos conciliaram ou deram sequência à atividade política na tribuna, atuando diretamente nas instâncias políticas em nível regional ou nacional. A arte de persuadir e conseguir a adesão de seus interlocutores faria parte do repertório oral, refletindo no modo de produzir os argumentos por escrito. Bernardo Pereira de Vasconcellos era conhecido pelos discursos eloquentes, carregados de emoção e sarcasmo, merecendo destaque nas observações de Robert Walsh, que chegou a fazer uma incursão pela Câmara dos Deputados, para conferir tal fama (CARVALHO, 1999, p. 16).
A marca dessa oralidade eloquente aparece no trecho da matéria citada anteriormente, em que não faltam ornamentos e superlativos para celebrar o sétimo ano da independência, atribuindo o feito à figura do Imperador, seu “Imortal Defensor”, “Perpetuo Defensor”, “Grande PEDRO”. As expressões elogiosas, presentes ao longo do texto comemorativo, se repetem em frases sucessivas, indicando que a intenção não era meramente informativa, mas gerar comoção, conquistar a adesão pelo apelo à emoção.
Os jornais analisados nos indicam diversas dessas estratégias que foram mobilizadas e que resultaram da articulação entre as dimensões do léxico e da sintaxe, produzindo uma semântica. Essas estratégias faziam sentido aos leitores/ouvintes, porque esses sujeitos (liberais ou não) estavam inscritos em uma série de referências políticas próprias daquele tempo, em posições sociais e conjunturas históricas que faziam valer as estratégias de interlocução (MAINGUENEAU, 1989).
Ao recorrer à dimensão dos afetos, os textos ganhavam tom persuasivo e envolvente e as figuras de linguagem e a eloquência funcionavam tanto para dar credibilidade ao discurso, que resultava laudatório, quanto para criticar os oponentes políticos, marcando os textos com violência verbal. Essas estratégias de escrita indicam textos impregnados pela retórica, definida no dicionário de Antônio Morais Silva como “a arte de falar e escrever bem para persuadir os ouvintes” (SILVA, 1789, p. 630). Esses recursos podem ser melhor compreendidos por meio do “Compêndio da Rhetorica Portugueza”, escrito pelo professor régio Antonio Teixeira de Magalhaens (1782), do qual sintetizamos, no Quadro 1, alguns dos recursos mais comuns identificados nos periódicos e a função pretendida com o seu uso.
Recursos | Função | Exemplos |
---|---|---|
Expressões próprias para opositor e aliado | Desqualificar x enaltecer | Tiranos x Faustíssimos |
Figuras de Linguagem (Metáfora, ironia e personificação) | Mover os afetos e as paixões | Corcundas; “Folhetos de Superstições descobertas”4 |
Eloquência | Ensinar, mover, deleitar | [...] muitos de nossos Concidadãos procuram intrigar-nos, desacreditando-nos com mentirosas calúnias, apresentando-nos ao Público, como Autores de mil desgraças, ódios e rixas: mas quem são esses, que assim nos caluniam? São os culpados, contra quem falamos; são os maus, a quem arguimos; e são enfim os mentirosos que desprezam a verdade, e que gostam de vê-la sempre encoberta com os negros véus da mentira, da lisonja, e da adulação5 |
Disposição (Argumentos organizados) | Convencer | |
Repetições e redundâncias | Enfatizar, persuadir |
FONTE: Elaborado pelas autoras a partir do “Compêndio da Rhetorica Portugueza” (MAGALHAENS, 1782), Astro de Minas (1827-1839), Estrella Mariannense (1830-1832), O Universal (1825-1842), O Mentor das Brasileiras (1825-1832).
Os debates que ocorriam nas tribunas se replicavam nas folhas, e seus autores recorriam frequentemente a artigos da Lei de Liberdade de imprensa, de 1823, para tentar criminalizar os ataques ou justificá-los. O trecho a seguir, publicado em 9 de outubro de 1830 pelo Estrella Mariannense, tematiza a referida Lei, de forma eloquente e fazendo uso da personificação e da metáfora:
A necessidade de enaltecer a imprensa de modo tão eloquente sugere que sua reputação precisava ser conquistada e consolidada junto à população, aos legisladores e ao poder executivo. Associá-la a “garantias sociais” e “civilização” são estratégias para buscar essa legitimidade. Na construção do discurso, cria-se a personificação da Liberdade de Imprensa, tratada com o pronome pessoal “tu”, à qual é atribuída a capacidade de orientar o Povo Mineiro nas eleições ocorridas em setembro daquele ano. Ao final do trecho, apresenta-se a metáfora das Luzes, ao se referir às palavras impressas como “raios de luz”, “clarão”, capazes de chegar aos pontos mais longínquos da Província e levar os princípios da Ilustração para a população.
Para refinarmos essa análise, destacamos, a seguir, três tipos de produção discursiva utilizadas com recorrência e que possibilitam caracterizar essa escrita combativa: a produção da polêmica em torno da polarização entre os liberais e os conservadores; o recurso ao medo, em referência ao risco de retorno ao status de colônia; e a desqualificação dos opositores por meio do sarcasmo e da ironia.
A produção da polêmica por meio da polarização política
Muito folgamos com a aparição da nova Folha = A constituição em triumpho =, cujo primeiro N. nos parece liberal; e se bem que os Redatores daquele Periódico, enumerando os Periódicos desta Vila, não nos contemplassem como tal, [...] lhes perdoamos essa afronta, congratulando ao Brasil pelo progresso das Luzes, que pela maravilhosa arte da imprensa, se tem espalhado por todo este vasto Império (O MENTOR DAS BRASILEIRAS, 1830a, p. 56).
Nos Faróis que nos chegaram ultimamente de S. Paulo vimos a Correspondência de um nosso Patrício o Sr. Mineiro em que se congratula pela notícia de ter aparecido no Ouropreto o Telégrafo, que ele supõe um imitador do Astro e do Universal: mas bem depressa reconhecerá nosso Patrício que o Telégrafo segue muito diferente carreira daquela que sempre trilharam o Astro e o Universal! (O UNIVERSAL, 1829c, p. 3, grifos no original).
Anúncios como esses se repetem nos vários periódicos daquele contexto, indicando que era comum a divulgação do surgimento de novos títulos. Merecem destaque, no entanto, os trechos que indicam a imprecisão e o equívoco em relação ao posicionamento político. Em tom de ironia e deboche, no primeiro: “nos parece liberal”, “não nos contemplassem como tal”; no segundo, “supõe um imitador do Astro e do Universal”. Isso reflete o próprio liberalismo em construção, ou seja, posicionamentos nem sempre homogêneos buscavam se enquadrar sob o mesmo rótulo; grupos com interesses diversos e, em alguns aspectos divergentes, buscavam conformar uma identidade para si, o que nem sempre era compreendido de modo adequado pelos leitores e mesmo pelos próprios redatores. De acordo com Morel (2005), durante o primeiro reinado, os liberais moderados tinham como eixo a ilustração, a defesa da monarquia constitucional e o combate ao absolutismo. Entretanto, os outros princípios complementares sofriam transformações e deslocamentos, de acordo com os acontecimentos políticos de modo que, se em 1830, a defesa do monarca estava no centro do debate, após a sua abdicação em 1831, o mesmo monarca devia ser deslegitimado, havendo também ambiguidade em relação à ideia de revolução e em relação aos grupos exaltados e anárquicos (MOREL, 2005, p. 133).
Nesse processo, podemos dizer que a imprensa contribuiu para a produção de uma simplificada bipolarização, entre liberais e conservadores, o que alimentava o confronto verbal por meio do escrito. Reunir esforços para combater um “inimigo” comum, acabou se tornando a tônica de parte do material publicado, no período analisado, sendo esse binarismo produzido, uma estratégia retórica para persuadir os leitores sobre o partido a tomar (DURAN, 2013).
A consistência na produção e manutenção dessa polarização pode ser vista pela repetição de um mesmo léxico, mobilizado pelos diferentes periódicos liberais, que passavam, também, a ser apropriado pelos leitores e leitoras que tinham suas correspondências publicadas nos jornais. No Quadro 2, a seguir, agrupamos algumas dessas denominações e expressões próprias utilizadas para se referir aos aliados e inimigos políticos.
Aliados Políticos | Opositores Políticos |
---|---|
Amante do Brasil Amáveis patrícias Amigos Benemérito cidadão Bons brasileiros Brasileira Constitucional Brasileira inimiga do despotismo Cidadão Fiel e Honrado Melíflua Nossos patrícios pardos Órgão fiel dos constitucionais habitantes dessa Província |
Besta Caim Corcundas Demônio Déspota Ente nulo Gênio do Inferno Liberticidas Monstros inexoráveis Palhaço Pateta Poetas charlatães Pseudo-brasileiro Sadunho monstro Semi-bárbaro Sujeitinho com esperteza de rato de gaveta Tirano sedento de sangue humano |
FONTE: Elaborado pelas autoras a partir de Astro de Minas (1827-1839), Estrella Mariannense (1830-1832) O Universal (1825-1842), O Mentor das Brasileiras (1825-1832).
Operacionalizar esse vocabulário representava construir a imagem dos grupos conservadores como inimigos do povo, inimigos do partido liberal. Essa estratégia discursiva alimentava o exercício da polêmica (MAINGUENEAU, 1989, p. 125), e presume a partilha de um campo discursivo e leis que lhe estão associadas. Ou seja, é importante criar uma atmosfera capaz de desqualificar o adversário, já que ele seria constituído do mesmo que nós, entretanto, deformado, invertido e, portanto, insuportável.
A fim de designar os lados atuantes do combate político, nomear os aliados liberais também era uma estratégia, embora utilizada em menor proporção, e possuíam caráter laudatório, geralmente reforçando os conceitos em disputa: “Amante do Brasil”, “Brasileira Constitucional”. O contraste e a oposição simplificavam a tensão, facilitando para quem lia, a escolha pelo partido virtuoso, como na seguinte matéria:
E qual será a causa desta diferença dos dois partidos? A profissão dos diferentes princípios que cada um deles segue. Os liberais professam justiça, respeito aos direitos do homem, amor da pátria, desejo da prosperidade nacional. Os corcundas, injustiça, desprezo dos direitos do homem, egoísmo, opressão, quem deixará de amar aqueles e de odiar estes? (ASTRO DE MINAS, 1829, p. 4).
Para além do termo corcunda, a construção da polarização política coloca de maneira invertida os valores que seriam aqueles veiculados pelo partido liberal, tais como a justiça, o respeito aos direitos e à pátria, e os valores do partido conservador. Para acentuar a polêmica, ao final, uma interrogativa busca enredar o leitor, não buscando uma resposta, mas para afirmar uma certeza.
A produção do medo: ameaças do regresso
Por meio da escrita eloquente, os jornais construíam também uma atmosfera particular, que se pautava na produção do medo como estratégia para persuadir os leitores. Produzia-se uma sensação de instabilidade política, um clima apreensivo em que, por um lado, a Nação estaria sob constante ameaça de retornar ao status de colônia, com a instauração da monarquia absolutista; por outro lado, criava-se o alerta de que o desrespeito às instituições levaria ao descontrole e ao domínio dos exaltados e anarquistas.
Provocar pela força do medo, conforme o “Tratado dos affectos e costumes oratórios” (FONSECA, 1793), é uma das formas mais eficazes de exercitar os afetos, sendo um modo eficaz de persuasão. O medo pode ser exercitado de diversas formas, entre elas trazer a ideia de um mal que é comum a todos é igualmente particular, afetando a cada um.
Em 1832, o jornal Estrella Mariannense publicou um texto que discursava sobre os supostos perigos que rondavam o Brasil. De maneira eloquente, o texto fazia uma crítica aos falsos republicanos, ao mesmo tempo em que defendia a validade de reformas com teor republicano6, uma vez que estas almejavam maior autonomia para as Províncias. A crítica alertava, no entanto, que as reformas deveriam ser realizadas com cautela, sob o risco de que um “Insondável abismo se prepararia para os Brasileiros, se fosse tal a sua cegueira” (ESTRELLA MARIANENSE, 1832, p. 336). Para prevenir a “calamidade geral que abrange e chega a todos” ele, o redator, seria a luz a eliminar a cegueira (ESTRELLA MARIANENSE, 1832, p. 336).
No que se refere ao projeto de Nação independente e liberal em construção, trazer referências do contexto de domínio político de Portugal sobre o Brasil era uma forma de utilizar um “anti-modelo” temeroso para, por meio do contraste, negá-lo (REIS, 2015, p. 16). Em uma crítica contundente realizada à Câmara dos Deputados, o Astro a acusa de absolutista, motivo pelo qual estaria perdendo o crédito da população:
Os inimigos da Constituição se reúnem para derruba-la, e os filhos da pátria, que devem ser os sustentáculos dela, se desunem com baixa e vil intriga?! Até onde brasileiros! Quereis levar a vossa loucura!! Não serão bastantes trezentos anos de vassalos colonos, para ainda quererdes com a vossa desunião chamar sobre vos, e sobre vossos filhos a escravidão, e a ignominia? Não vos serve de lição Portugal avassalado, e esmagado aos pés do tirano Miguel, esse monstro sedente de sangue? [...] A união, emblema da força, será a única coisa, que poderá sustentar o Sistema Constitucional no Brasil; sem ela, é trabalhar em vão (ASTRO DE MINAS, 1830, p. 3).
Os termos tirania, monstro sedento, escravidão, são associados aos riscos da perda da soberania, buscando “mover paixões e tocar os corações” (MAGALHAENS, 1782). Em trecho de outra matéria, é possível observar como o jogo de palavras era utilizado para persuadir os leitores.
[...] Jamais devem consentir, que o seu pestilento hálito venha poluir a nossa Província: uma vez cortadas as hórridas cabeças desse monstro feroz, dessa fúria infernal, jamais se deve consentir que elas renasçam, pois talvez ainda possam erguer-se em Minas, como o afirmam esses vis absolutistas. Se voltarem à nossa malfadada Província, os MONSTROS da intriga, então, Mineiros, vossa desgraça é certa. Então vereis espezinhadas todas as Leis, não cessarão as perseguições [...] (ESTRELLA MARIANNENSE, 1830b, p. 134, grifo no original).
A metáfora produz a associação dos conservadores à imagem de um monstro de muitas cabeças que, mesmo após cortadas, regeneram e possui hálito pestilento; aparentemente um híbrido da mitológica Hidra, e o diabo, com fúria infernal. A personificação dos inimigos políticos em monstro feroz e persistente contribui para intensificar o medo de que as leis fossem “espezinhadas”. Promovia-se o medo de que direitos fossem perdidos, de que as leis fossem invalidadas, o que simbolizava um modo de persuasão eficaz, na medida em que suspendia momentaneamente uma possível sensação de segurança e destacava a instabilidade política vivenciada no contexto da Regência. Conforme o “Tratado dos affectos e costumes oratórios”, um dos modos mais legítimos de exercitar o Medo seria “Mostrando-se que o mal além de grande está iminente” (FONSECA, 1793, p. 23).
Em O Mentor das Brasileiras, a fábula era constantemente utilizada como metáfora da vida política, e as historietas eram longamente explicadas pelo redator Alcibíades Carneiro, que dessa forma, instruía as leitoras. A fábula a seguir, “A rã e os touros”, associa o medo e o contexto político como estratégia de persuasão.
Uma rã em um charco observava a peleja de dois touros, que em um prado decidiam com os cornos a primazia de seu rebanho; a timorata rã exclamava à suas companheiras, que olhavam ao longe com indiferença a briga dos touros = Ah! Que grande destruição está para nos sobrevir! E perguntada por outra a razão porque assim se queixava, sendo os touros de uma natureza diferente [...], ela respondeu = Bem conheço, que eles são animais muito diferentes da nossa espécie, e que vivem em uma região separada; porém [ilegível] prevendo, que naquele ataque o que ficar vencido há de sem dúvida vir procurar estes lugares para esconderijo, e quem pode assegurar, que ele não nos venha inquietar esmagando-nos com o duro pé? Portanto no meu modo de pensar, o furor dos touros também nos pertence, e o meu receio não é sem fundamento.
Moralidade
Eis aqui porque nunca devemos ser indiferentes em negócios alguns, mui principalmente naqueles que nos tocam mais de perto, quais são as mudanças dos nossos Governantes, cuja rivalidade pode ocasionar males indiretos nas preferências das pessoas, que devem ocupar os lugares eminentes do Estado. [...]
Amáveis patrícias, o partido para o qual vos convida o vosso Mentor é o partido da Constituição, único que vos pode felicitar, e a vossos filhos; uni-vos, portanto, ao Sagrado Código, como segura Égide, e não temais que os Touros vencidos na luta vos venham esmagar, porque vos, apesar da delicadeza do sexo, tereis coragem para repelir a sua impetuosidade, protegidas pelo nosso imortal Imperador Constitucional (O MENTOR DAS BRASILEIRAS, 1830c, p. 125-126, grifos no original).
As mulheres são apresentadas como pertencentes a outra espécie, de tão distantes aos assuntos políticos. Talvez essa tenha sido a metáfora necessária para que o apelo pudesse atingir as leitoras, aparentemente estranhas aos acontecimentos políticos efervescentes do momento. A alusão à disputa dos touros, seus duros pés, capazes de esmagar, o perigo, a desordem, o mal iminente, são contrapostos à “delicadeza” do sexo feminino, que estaria segura se unida à Constituição, associada a elementos religiosos, como o “sagrado” e o “imortal”, em expressões como Sagrado Código e imortal Imperador Constitucional.
Tais recursos, quando observados em seu conjunto, representam o que poderíamos chamar de um jogo metafórico e de palavras que vai constituindo pouco a pouco a atmosfera de que os inimigos são incansáveis, que podem estar envolvidos no governo, podem ser partícipes de um Gabinete Secreto7, e permanecem como ameaça iminente. Vale mencionar que os rumores da recolonização, frequentemente veiculados nas páginas da imprensa liberal, foram fundamentais, porque politizaram conflitos antilusitanos que remontam desde o século XVII no Brasil, contribuindo para a afirmação de identidade brasileira em contraposição ao português (PANDOLFI, 2014).
Ironia, deboche e ridicularização do opositor
“Não é nos Patetas que se encontra sempre o leggere et non intelligere?” (O UNIVERSAL, 1829b, p. 4, grifos no original). Frase escrita por Bernardo Pereira de Vasconcellos, que usualmente recorria a expressões em Latim para qualificar seu discurso, resultava, ao mesmo tempo, em desqualificação do seu interlocutor. Nessa matéria, responde a críticas que outro periódico (não nomeado) fazia à ausência de tranquilidade pública em Ouro Preto, devido a infrações nas leis. Discordando dessa acusação, por meio da oposição de ideias, desqualifica aquele que critica, dizendo que não é capaz de compreender o que lê, escuta e vê. Desqualificar o opositor era também uma das formas de se colocar na disputa pela narrativa mais convincente para a conquista da opinião pública, subjugando e ridicularizando o outro como incapaz ou incompetente.
Algumas fórmulas adotavam a metáfora utilizando animais, como em um glossário, publicado em números sucessivos de O Universal, em 1829, em que todos os verbetes visavam criticar os conservadores. Corcunda, é definido com deboche e ironia, como
Homem que afeito e satisfeito com a carga do despotismo, se a curva como o dromedário para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o indelével ferrete do Servilismo, tem contraído o hábito de não erguer mais a cabeça, recheada das estonteadas ideias de uma sórdida cobiça (O UNIVERSAL, 1829b, p. 4).
A desqualificação do opositor produzia a personificação do periódico, que passava a ser visto com equivalência ao seu redator. Nesse percurso, as supostas qualidades morais, intelectuais e até mesmo viris, desses sujeitos, eram alvo de deboche e escárnio, como forma de atingir o próprio impresso.
Uma longa matéria publicada em O Mentor das Brasileiras em fevereiro 1830, intitulada Sinais característicos dos Corcundas e dos Liberais, possibilita a visualização dessa construção, com uso de abundante ironia, e a ênfase nos extremos em que eram posicionados os dois grupos. Em um texto esquematicamente organizado, a comparação e o contraste são apresentados por meio de alguns quesitos, como o temperamento, o caráter na ocupação de empregos públicos, no uso que fazem das armas, as habilidades com as letras, atuação no comércio, na agricultura, nos ofícios mecânicos, no trajar e como esposos e eclesiásticos. Tendo como objetivo principal ridicularizar os conservadores e enaltecer os liberais para as leitoras, o texto acumula incoerências às quais aparentemente não se atribui grande importância, como o fato de os corcundas serem considerados assassinos brutos, maridos tiranos e, ao mesmo tempo, se trajarem e caminharem de modo afeminado e afetado, sendo chamados de “petimetres”.
No trajar são os corcundas afeminados; gostam de se enfeitar com bagatelas, que bem denotam a cabeça oca, e falta de miolos; conservam um andar afetado, e próprio de um petimetre; a variedade de trejeitos que tomam de momento a momento é a prova mais evidente da tolice que lhes é inata.
Os liberais, pelo contrário, são livres de todos estes prejuízos. O seu traje é honesto, asseado, sem ridicularias. Vestem mais para se comporem honestamente, que para ostentarem um ar majestoso, e enfatuado. Mesmo no andar se conhece a regularidade de seu espírito; porque não afetam trejeitos, e nem fazem finuras de comédias, que tornam irrisórias as pessoas que a isso se habituam (O MENTOR DAS BRASILEIRAS, 1830b, p. 73-78).
Percebe-se a centralidade em desqualificar estereotipada e exageradamente os opositores não só como (futuros) cônjuges, mas também como homens, dentro das expectativas de masculinidade e virilidade. Esse mesmo tipo de ridicularização aparece no Astro de Minas que, respondendo a ameaças de um “pequeno partido dissidente, isto é: inimigo da liberdade”, afirma que “milhões de homens não podem ser oprimidos por meio dúzia de tiranos afeminados que só querem consumir sem trabalhar” (ASTRO DE MINAS, 1831, p. 4).
Conclusão
Apresentamos, com este estudo, alguns modos como homens de letras, que atuavam concomitantemente na política e eram redatores e proprietários de jornais, nas décadas de 1820 e 1830, tensionavam o debate público por meio de seus escritos. Nesse processo, buscamos problematizar como os recursos típicos da oralidade constituíam os argumentos escritos, resultando em textos com marcas particulares, com forte carga emocional, muitas vezes violenta, mas também irônica e debochada. Isso se relacionava ao perfil intelectual dos sujeitos escritores - advogados, políticos, professor - e conciliava com a característica da população do período à qual se dirigiam, composta, em sua maioria, por leitores neófitos e ouvintes, tornando os recursos da Retórica, propícios para a produção dos discursos escritos.
Pretendemos contribuir para o adensamento da discussão do campo dos estudos sobre Cultura Escrita, que sinalizam para a tênue fronteira (se é que ela existe) entre a escrita e a oralidade nos mais diversos contextos culturais e sociais, indicando essa interpenetração na produção escrita de um contexto histórico ainda pouco investigado. Nesse sentido, se por um lado a produção de jornais nas primeiras décadas do XIX revolucionou as práticas de leitura, moldando e impulsionando a leitura extensiva em detrimento da leitura intensiva (CHARTIER, 1998), por outro, a característica dessa leitura, seja oralizada ou em silêncio, retoma aspectos da leitura intensiva pois, na prática, tratam-se de textos que se repetem nos argumentos, nos objetivos e nos recursos, sendo essa repetição o elemento necessário para a conquista da opinião pública.
Quando (supostos) leitores passam a se apropriar dessas estratégias, reproduzindo o uso de léxicos, figuras de linguagem e demais elementos da retórica nas suas correspondências encaminhadas para os jornais, podemos dizer que os efeitos pretendidos eram, ao menos em parte, alcançados. O modo de pensar e se manifestar por escrito marcados pela retórica teria tido, portanto, uma abrangência maior que os escritores de obras e jornais (CARVALHO, 2000; DURAN, 2013), atingindo as pessoas comuns.