A presente edição da ETD traz o dossiê “Psicanálise, educação e formação de professores” como mais uma contribuição à reflexão sobre a inquietante tarefa de educar. Freud ([1919]1964b), precisamente um século atrás, remeteu o inquietante ao que nos é absolutamente familiar, evidenciando que ele é constitutivo e está entranhado em nós, embora espraiado na externalidade como o estranho fora de nós. Luz e sombra, portanto, alternam-se, confundem-se, criam formas que se apresentam a nossos olhos para reconhecimento e decifração, como na imagem proposta em nossa capa e nos artigos do dossiê.
É também de Freud (1975), em carta endereçada a Lou Andreas Salomé, a afirmação citada por Bion (1977, p. 59), em seu texto “Cesura”, de que “tenho que artificialmente cegar-me, a fim de focalizar toda luz num ponto escuro”3. Onde a luz se apresenta timidamente, é preciso a total escuridão para que ela se faça visível. Quando a luz branca dos refletores do discurso bem-acabado, da teoria fechada e da instrumentalização técnica é lançada exuberante sobre a realidade, ela elimina nuanças, incertezas, sombras, impedindo-nos de fazer esse exercício. Esse é o paradoxo com o qual devemos trabalhar. Se na luz imaginamos saber o que vemos, é na sombra e na escuridão que aguçamos os sentidos, resgatando-os do adormecimento. No interjogo luz e sombra tornamo-nos observadores daquilo de cuja existência sequer ousamos suspeitar; capacitamo-nos a escutar ondas de som antes inaudíveis ou captar luz onde antes só se supunha escuridão.
Está aí o porquê de um dossiê sobre educação e formação de professores, que tem a psicanálise como campo de interlocução privilegiado. A ciência criada por Freud nos convoca a operar com os paradoxos, (re)conhecer o desconhecido, sustentar a incerteza, aquilo que se apresenta a despeito de a luz da consciência não permitir facilmente identificar. A psicanálise nos obriga a aguçar os sentidos para aquilo que se esconde e se mostra. Mas não se trata de tarefa fácil.
O Homem dos Lobos4, em My recollections of Sigmund Freud (GARDINER, 1973, p. 140, tradução livre), a certa altura, ao falar de sua imersão no tratamento e na própria teoria psicanalítica, discorre sobre como Freud e ele concebiam a capacidade de compreender a psicanálise.
Nós falávamos sobre quão difícil é, para uma pessoa saudável, aceitar os princípios dos ensinamentos de Freud, uma vez que eles ferem sua vaidade. É diferente para o neurótico que tem, antes de mais nada, experimentado em sua própria pessoa a força e os objetivos de seus impulsos inconscientes e, secundariamente, submetendo-se à psicanálise, toma ciência de sua inabilidade para manejá-los sem ajuda.
Mas há um outro tipo de pessoa acessível a todo conhecimento teórico, e, portanto, também à psicanálise. Essas são pessoas em quem a inteligência irrepreensível parece ter sido apartada de seus impulsos instintivos. Tais pessoas são capazes de pensar sobre as coisas até o limite da conclusão lógica, mas não aplicam os resultados de seu pensamento a seu próprio comportamento5.
Como somos todos um pouco saudáveis, um pouco neuróticos e um tanto resistentes, podemos tomar a fala do Homem dos Lobos como um guia para nos levar pelo convite à leitura, sem abandoná-la impulsivamente, quando ela parecer ferir nossa vaidade ou demonstrar que, para desenvolver nosso trabalho, precisamos de ajuda, de parceria, da companhia de um outro. Como diz Foucault, trata-se de tarefa corajosa enfrentar “o que pode ser mudado no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que nos é estranho” (FOUCAULT, 1988, p.13). Por fim, inspiradas por tais autores, apostamos que a reflexão aqui proposta não será estancada pela inteligência irrepreensível dos leitores, e será capaz de transformar profundamente a relação do sujeito com ele próprio e de construir uma ética generosa e amorosa com o outro.