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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.24 no.80 Curitiba ene./mar 2024  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.24.080.ds04 

Dossiê

Formação de professores e docência no ensino superior: contribuições de Maria Isabel Cunha

Teacher education and teaching in higher education: contributions of Maria Isabel Cunha

Formación docente y docencia en la educación superior: aportes de Maria Isabel Cunha

Simone Regina Manosso Cartaxo, Doutor em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-8670-6324

1Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Campus Uvaranas, Ponta Grossa, PR, Brasil


Resumo

Este artigo tem como objetivo relacionar elementos da biografia e da produção da pesquisadora Maria Isabel Cunha, da Universidade Federal de Pelotas - UFPel com suas considerações sobre a formação de professores, a fim de levantar contribuições de sua trajetória intelectual e profissional para a formação de professores e de professoras. Parte-se da realização de entrevista com a pesquisadora e da pesquisa bibliográfica (SALVADOR, 1978; BARDIN, 1977; LIMA; MIOTO, 2007) sobre sua produção intelectual. Da entrevista e da análise emergem temas principais para o campo da formação de professores: a humanização; o ensino; os saberes da prática; e a profissionalização. A síntese final integra o aspecto da intelectualidade na trajetória da pesquisadora.

Palavras-chave: Formação de professores; Mulheres pesquisadoras; Ensino na universidade.

Abstract

This article aims to relate elements of the biography and production of the researcher Maria Isabel Cunha, from the Federal University of Pelotas - UFPel, to her considerations on teacher training, in order to raise contributions from her intellectual and professional career to teacher education. It starts with an interview with the researcher and bibliographical research (SALVADOR, 1978; BARDIN, 1977; LIMA; MIOTO, 2007) on her intellectual production. From the interview and analysis, main themes emerge for the field of teacher education, namely, humanization; teaching; practical knowledge; and professionalization. The final synthesis integrates the aspect of intellectuality in the researcher's trajectory.

Keywords: Teacher training; Women researchers; Teaching at the university.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo relacionar elementos de la biografía y de la producción de la investigadora Maria Isabel Cunha, de la Universidad Federal de Pelotas - UFPel, con sus consideraciones sobre la formación docente, con el fin de plantear aportes desde su trayectoria intelectual y profesional para la formación docente de maestros. El punto de partida es una entrevista a la investigadora y una búsqueda bibliográfica (SALVADOR, 1978; BARDIN, 1977; LIMA; MIOTO, 2007) sobre su producción intelectual. De la entrevista y del análisis emergen ejes temáticos para el campo de la formación docente: humanización; enseñanza; conocimiento de la práctica; y profesionalización. La síntesis final integra el aspecto de la intelectualidad en la trayectoria del investigador.

Palabras clave: Formación de profesores; Mujeres investigadoras; Docencia en la universidad.

Introdução

Escrever sobre a docência e a formação de professores é um ato de resistência frente ao contexto vivenciado, com políticas que colocam em risco o futuro da formação docente e de uma nação, haja vista as diretrizes para os cursos de licenciatura, Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, homologada pela Portaria nº 2.167, de 19/12/2019, que assume uma abordagem de formação preponderantemente instrumental, com vistas ao desenvolvimento das competências dos estudantes demarcadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Essas diretrizes se restringem à formação do professor baseada em um currículo mínimo e “distante de uma base curricular que lhe propiciasse formação capaz de desenvolver sua autonomia e criticidade” (Bazzo; Scheibe, 2019, p. 673), além de constituir um elemento “estratégico para concretizar a reforma da educação básica em curso, atendendo aos reclamos do mercado, que pugna pela formação do sujeito produtivo e disciplinado” (Aguiar; Dourado, 2019, p. 35).

Retomar percursos, histórias e conhecimentos produzidos pelas pessoas que, desde há muito tempo, vêm trabalhando e contribuindo para a constituição do campo da formação de professores é uma forma de dar sustentação aos movimentos de resistência. Muitas são as pessoas que têm contribuído para ocupar os espaços em defesa da educação, da escola, do ensino e da formação de professores de formas diversas e singulares e, dentre elas, destacamos a professora Maria Isabel da Cunha, conhecida carinhosamente como Mabel.

Neste texto, apresentamos uma análise de entrevista realizada com a professora Maria Isabel Cunha, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a fim de levantar contribuições de sua trajetória intelectual e profissional para a formação de professores e de professoras. Para atender a esse fim, delimitamos como objetivo relacionar elementos da biografia e da produção da pesquisadora com suas considerações sobre a formação de professores expressas na entrevista.

Para compor o capítulo, desenvolvemos os seguintes tópicos: apresentação da professora e pesquisadora, destacando sua formação; procedimento metodológico; temas que emergiram da entrevista e de seus escritos: humanização, ensino, saberes da prática e profissionalização. Finalizamos com uma síntese que destaca os aspectos da intelectualidade da sua trajetória.

A professora Maria Isabel Cunha (Mabel)

Como a própria professora destaca, “é nossa obrigação trazer um pouco desse processo” (entrevista, 2021), ao referir-se à sua constituição profissional e contribuição educacional. Em autobiografia escrita em 2015, diz: “me encontro com 70 anos de vida e 50 de magistério. O vivido por uma geração tem sentido quando serve para as que a sucederam. Mesmo assumindo que experiência não se transfere, reconhecemos que ela inspira e favorece novas perspectivas” (Cunha, 2015, p. 174), ou seja,

[...] estimular sínteses que favoreçam a compreensão da trajetória da formação de professores no Brasil, em uma perspectiva processual. Com isso, espera-se contribuir com os estudiosos do tema, especialmente as novas gerações, e auxiliá-los a inteirarem-se dos movimentos vividos nesse campo de estudos, no qual, certamente, há tensões e compreensões subjetivas em jogo (Cunha, 2013, p.611).

Para Cunha (2013, p. 611), o conceito de formação de professores ancora-se nas pesquisas que acompanham os movimentos político-econômicos e socioculturais, na prática de formação estabelecida a partir “uma amálgama de condições teórico-contextuais” e nos “diferentes contornos do papel docente, produzidos socialmente, em um tempo e lugar”.

Filha de professora, fez escola normal no Instituto de Educação Assis Brasil, em Pelotas, cursou Ciências Sociais na Universidade Católica dessa cidade, e completou sua formação em Pedagogia, habilitação em Supervisão Escolar, também pela UCPel. Teve acesso, desde cedo, a um repertório mais amplo de discussões sobre a educação, e diz que aprendeu “[...] com Paulo Freire que o diálogo cognitivo é precedido pelo diálogo afetivo, mas, essa perspectiva já estava na base da minha formação escolanovista” (Cunha, 2015, p. 176). Uma verdadeira vivência da docência iniciou com sua experiência no Grupo Escolar Félix da Cunha, em 1965, seguida de uma longa experiência na Escola Técnica Federal de Pelotas, a partir de 1993 Concomitantemente, assumiu a docência na UFPel, em julho de 1995.

Atuei por quinze anos nessa Escola Técnica. Posso dizer que nela amadureci profissionalmente, entendendo progressivamente o papel da teoria a partir da prática, da aplicação dos princípios da pesquisa na aprendizagem, da humildade frente ao trabalho coletivo, da importância do empoderamento dos professores para a sua profissionalização, do diálogo como referente da formação.[...] Na Faculdade, vivíamos num tempo em que o que valia era o pé no barro, isto é sair do nosso conforto e ir para as periferias e desenvolver projetos sociais (Cunha, 2015, p. 178-179).

Seu doutorado, realizado na Unicamp, foi um marco, e sua tese O Bom Professor e sua Prática teve uma grande repercussão e é amplamente referenciada.

Hoje, passados quase 30 anos dessa pesquisa, é fácil observar que o paradigma nela presente transformou a pesquisa em educação, em especial com o campo da formação docente. São os estudos qualitativos que preponderam e vão se consolidando como uma poderosa ferramenta de compreensão do fenômeno educativo (Cunha, 2015, p. 180).

Como Pró-reitora de Graduação na UFPel, vivenciou a implementação proposta da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão definida pela constituinte de 1988. Priorizou a construção do Projeto Político Pedagógico da Universidade nessa perspectiva. Protagonizou as discussões sobre os currículos da graduação e as relações teoria-prática que subsidiariam a concepção legalmente proposta, pois, no coletivo, analisavam que:

[...] os currículos vigentes para o ensino são a antítese da ideia que preside a pesquisa, porque a pesquisa pressupõe a problematização da prática, do campo empírico, para depois ir à teoria. E nos currículos tradicionais, o conceito de prática é de que ela é a aplicação da teoria; portanto está no final das propostas curriculares dos cursos e, em geral, na forma de estágios. Como então compatibilizar ensino e pesquisa? (Cunha, 2015, p. 181).

Defendendo a pedagogia da pergunta, questionou e continua questionando a formação de professores, priorizando discussões sobre a pedagogia universitária. Newton César Balzan (apudCunha, 1995, p. 11), seu orientador de doutorado, destaca, ao prefaciar a publicação da sua tese: “o trabalho de Mabel tem a marca do pesquisador inquieto que nunca para de se perguntar sobre como e por que as coisas se dão de uma determinada maneira e não de outra”.

Procedimentos metodológicos1

O ponto de partida desse estudo foi o planejamento de uma entrevista com a professora Mabel, tendo como objetivo relacionar elementos da sua biografia e da sua produção como pesquisadora, no campo da formação de professores.

Guiadas por esse objetivo, desenvolvemos uma análise qualitativa dos dados encontrados no material disponível, por meio de procedimentos da pesquisa bibliográfica (Salvador, 1978; Bardin, 1977; Lima; Mioto, 2007).

De acordo com Creswell (2010), a pesquisa qualitativa emprega diferentes concepções filosóficas, estratégias de investigação, métodos de coleta, análise e interpretação dos dados, e oferece etapas singulares na análise dos dados. No caso do emprego de entrevistas, os pesquisadores coletam pessoalmente os dados e, para isso, podem utilizar um protocolo, como instrumento para a coleta. A fim de garantir transparência quanto aos objetivos e encaminhamentos da pesquisa, a professora entrevistada recebeu o roteiro de questões após seu aceite para participar desta ação e, posteriormente, teve acesso a um roteiro de questões que seriam utilizadas na entrevista. Tal procedimento oferece segurança à pessoa entrevistada, pois indica um posicionamento ético das entrevistadoras.

Geralmente, a pesquisa qualitativa também se ancora em múltiplas fontes de dados, que são examinadas em seus sentidos e organizadas em categorias ou temas, por meio de unidades de informação, em um processo indutivo, que pode envolver a colaboração interativa com os participantes. Neste processo de pesquisa, os pesquisadores focalizam na apreensão dos significados que os participantes dão ao problema em questão (Creswell, 2010).

Para identificar e estudar seus dados, os pesquisadores qualitativos utilizam lentes teóricas, que permitem a utilização de conceitos para a interpretação do que enxergam, ouvem e entendem. Essa interpretação pode ser compartilhada com os participantes para que seja revista, contribuindo para o desenvolvimento de um quadro mais complexo do problema investigado (Creswell, 2010).

Para este trabalho, a entrevista com a professora Maria Isabel da Cunha foi acordada e agendada por meio de correio eletrônico (e-mail), e realizada pela Plataforma Google Meet, com gravação consentida pela participante. A entrevistada foi informada de que a gravação seria confidencial, serviria somente para a escrita de um texto sobre suas contribuições à formação de professores(as) e que receberia o link da gravação, para que pudesse arquivá-la. Apesar de seguir um roteiro que pudesse guiar as reflexões e respostas, a entrevista ofereceu uma amplitude de temas, o que permitiu à entrevistada moldar seu conteúdo, sem rigidez, possibilitando a narração de uma história em termos pessoais. Neste sentido, atendendo aos objetivos deste trabalho, a entrevista se caracterizou como semiestruturada (Bogdan; Biklen, 1994).

As questões elaboradas para a entrevista exigiam a exploração de determinados temas contemplados em publicações realizadas pela entrevistada na sua trajetória. Entretanto, durante as interações, as entrevistadoras solicitavam clarificações de alguns aspectos sobre o assunto mencionado nas respostas, levantavam situações narradas em outros textos, estimulando que alguns momentos particulares fossem explorados, para que pudessem ser revividos (Bogdan; Biklen, 1994).

A entrevista teve a duração de uma hora e vinte minutos, o que representou 18 páginas de transcrição, para revisão do texto. O texto construído a partir da transcrição da gravação foi revisto, por meio de nova escuta do vídeo da entrevista, para comparação de cada trecho (Ludke; André, 1986). Posteriormente, nova leitura do texto foi realizada para a eliminação de vícios de linguagem e de repetições desnecessárias de palavras e expressões de uso oral, para a realização de correções de alguns problemas de concordância e de questões gramaticais, sem alterar o sentido das discussões narradas pela entrevistada. As correções se caracterizaram apenas como uma “limpeza” de termos que prejudicavam a fluência da leitura e o entendimento das relações entre as ideias. O texto corrigido foi encaminhado para a entrevistada, a fim de que pudesse passar por sua avaliação e validação.

Após essa etapa, procedemos aos processos de leitura definidos por Salvador (1978). Nesse processo, realizamos uma leitura informativa para constatar as informações oferecidas, buscar relações entre essas informações e os objetivos da proposição, e analisar seus fundamentos. Essa leitura é de reconhecimento dos temas presentes no texto, localização e seleção de referências importantes, análise reflexiva e crítica de seus fundamentos (Salvador, 1978).

Essas sucessivas leituras fazem parte dos procedimentos utilizados nas pesquisas bibliográficas, que requerem rigorosidade no tratamento do objeto de estudo, por meio de um conjunto ordenado de etapas para atingir os objetivos propostos (Lima; Mioto, 2007). Utilizando as palavras de Minayo et al. (1994) e Lima e Mioto (2007), argumentamos que a objetivação só é possível em um processo de pesquisa pelo repúdio à neutralidade, exigindo do pesquisador a máxima redução dos juízos de valor. Neste sentido, os métodos e técnicas de coleta e tratamento dos dados adquirem grande importância.

Como a pesquisa bibliográfica tem sido um procedimento bastante utilizado nos trabalhos de caráter exploratório-descritivo, reafirma-se a importância de definir e de expor com clareza o método e os procedimentos metodológicos (tipo de pesquisa, universo delimitado, instrumento de coleta de dados) que envolverão a sua execução, detalhando as fontes de modo a apresentar as lentes que guiaram todo o processo de investigação e de análise da proposta (Lima; Mioto, 2007, p. 39).

Seguindo o objetivo proposto para este estudo do texto de transcrição da entrevista, buscamos seguir as técnicas de análise de conteúdo de Bardin (1977), realizando uma exploração do material, para o estabelecimento de inferências e interpretações e, posteriormente, para a elaboração de codificações, de acordo com uma análise quantitativa e categorial. A codificação auxilia na seleção, organização e categorização das unidades de registro (palavras-tema) e de contexto (segmento das mensagens necessárias à compreensão da significação da unidade de registro), relevantes para a sistematização de contribuições da pesquisadora entrevistada para a formação de professores(as).

Na sequência, apresentamos os principais temas que emergiram da entrevista: a humanização; o ensino; os saberes da prática; e a profissionalização. Esses temas foram abordados no diálogo com outras publicações de Mabel e de autores que são referenciados por ela.

A humanização

Professora Mabel destaca que vivemos para contar histórias e são elas a condição da nossa humanização, que transcende o agora, pois todo o fato humano não acontece aleatoriamente, é sempre produzido em circunstâncias históricas e culturais. Então, essas histórias estão sempre relacionadas com outras e pertencem às mesmas circunstâncias temporais. Estamos no mesmo mundo, mas envolvidas por diferenças e desigualdades; as diferenças de classe colocam obstáculos a alguns e oferecem oportunidades a outros. A experiência de uns pode ser transformadora para a trajetória de outras pessoas, ou seja, o passado como forma de compreensão do presente e construção do futuro.

Identificamos movimentos de críticas ao campo de formação de professores e a trajetória da Professora Mabel nos faz pensar. A sua biografia como parte do ser ontológico, que humaniza e que faz dos seres humanos sujeitos de seu percurso, na relação dialética subjetividade-objetividade. Como seres históricos, sociais e culturais, biografamo-nos, assim como menciona Paulo Freire (2019), na Pedagogia da Esperança.

[...] atualmente trabalho apenas com a pós-graduação, porque como aposentada atuo como professora voluntária no Programa e não tenho mais a relação direta, por exemplo, com os alunos da graduação e formação inicial. Mas de qualquer forma nós estamos sempre no meio de professores e/ou de pessoas que têm muita intenção de atuar ou de aperfeiçoar seu trabalho na docência. E eu não sei se é em função da própria idade que eu digo que a gente vive para contar histórias e acho que a memória é uma coisa que nos torna sujeitos; pessoa que não tem memória pode ter vida biológica, mas não tem mais vida humana, com sentidos. [...] No campo de formação de professores, e da formação em geral, eu acho que esta é uma compreensão relativamente recente. Eu, em especial em função da minha idade e da minha trajetória, me constituí numa época em que a racionalidade técnica ainda era muito preponderante; nós não tínhamos essa perspectiva de que havia um conhecimento teórico produzido com sentido universal que caberia para todas as pessoas e circunstâncias. E essa compreensão de conhecimento induzia a um tipo de formação humana e, portanto, de formação de professores (Entrevista, 2021).

Ao reconhecer uma formação fundamentada na racionalidade técnica, estabelece uma crítica ao tipo de proposta que ignora o humano, o ser ontológico que se constitui no mundo, com o mundo e com os outros (Freire, 2005), e nos aponta um caminho.

O ensino

Dentre os temas tratados por Mabel, o ensino, objeto de estudo da Didática - área de que se ocupou em toda a trajetória profissional - é destaque, e seu posicionamento a respeito da relação entre professor-aluno-conhecimento constitui o ponto de partida para pensar o ensino. Parte da crítica de que o paradigma tradicional de ensino deu centralidade às respostas, produzindo uma prática escolarizada de punição da dúvida e dos questionamentos. Enfatiza, por outro lado, que “as perguntas devem ser muito mais importantes do que as repostas. Ainda que muitas vezes a gente precise de respostas... mas a resposta tem que instituir uma nova pergunta” (Entrevista, 2021). Ou seja:

Na perspectiva epistemológica, o conhecimento factual não pressupunha versões e subjetividades. Não se valorizava a dúvida como referente da aprendizagem. Ao contrário, a certeza era o prumo da qualidade do ensino e da aprendizagem e a dúvida sistematicamente punida pela liturgia escolarizada (Cunha, 2018, p. 7).

A compreensão de Mabel a respeito do ensino é ampla e está relacionada à pesquisa. Destaca que os estudos de Pedro Demo e Niuvenius Paoli foram os primeiros, na época pós-constituinte, que, no Brasil, abordaram o tema da indissociabilidade e sua repercussão no ensino de graduação. “Foram os primeiros que vieram sobre o ensino com pesquisa, que era mais uma forma metodológica, ainda não era tão epistemológica” (Entrevista, 2021). Na Unicamp, se discutia a questão do ensino para a pesquisa e do ensino com a pesquisa.

Os estudos afirmavam que a pós-graduação é o lugar do ensino para a pesquisa. Ou seja, este é o objeto que orienta do aluno, para que sejam pesquisadores, e o produto é uma pesquisa, onde há uma responsabilidade com o produto. Agora, a graduação é lugar do ensino com pesquisa, ou seja, a pesquisa é usada como processos de ensino, como compreensão do ensinar, como metodologia no ensinar, sem uma responsabilidade específica com o produto, enfatizando o processo. Ainda que até possa haver interessantes produtos... Muitos alunos fazem TCCs bem interessantes (Entrevista, 2021).

Foi a partir do livro Um Discurso sobre a Ciência, de Boaventura de Sousa Santos, que Mabel compreendeu a dimensão da evolução da ciência a partir

[...] dos paradigmas da ciência moderna, da transição de paradigmas e do que ele chama de ciência pós-moderna. E foi muito bom para mim ter um suporte teórico, para poder começar a justificar e a encontrar as categorias de análise, do que significava o ensino como produção e o ensino como reprodução do conhecimento (Entrevista, 2021).

Esse referencial serviu, também, para sustentar a discussão sobre as inovações no ensino, compreendendo-as a partir de uma ruptura epistemológica, uma mudança na concepção de conhecimento e não apenas nas metodologias de ensino. Então, afirma:

O que não sabemos é se os professores investigadores que atuam na educação superior constroem processos investigativos com seus alunos, e se desenvolvem a docência entendendo a pesquisa e a aprendizagem como comunidades de indagação, onde ambos são agentes de aprendizagem (Cunha, 2011, p. 456).

Ao evidenciar o ensino e a pesquisa, Mabel aponta para uma fragilidade na Pós-Graduação, indicando que os programas não se “atentam para os saberes do ensino, como se a competência investigativa fosse capaz de transformar os saberes da pesquisa em saberes do ensino” (Cunha, 2011, p. 449).

[...] eles têm abandonado a dimensão do ensino. Pesquisa-se muito outros e importantes temas, mas o ensino parece que perdeu o glamour. Não sei se foi junto a uma crítica da didática tecnicista ou se devido exatamente a esse desdobramento de temáticas que hoje afetam o campo da educação e que as vezes têm mais apelo; o fato é que são poucas as investigações sobre o ensino, inclusive nos Programas da área da Educação. Creio que isso pode estar tendo repercussão na formação dos nossos alunos, não no sentido de um praticismo, mas numa perspectiva profissional mais ampla [...] é difícil achar textos sobre a prática pedagógica, a gênese, o que é prática pedagógica, como é que se organiza, quais são seus fundamentos, quer dizer, parecem ser temas de pouco prestígio no nosso campo. Vejo que os programas de ensino de física, ensino de matemática, de geografia, especialmente, os mestrados profissionais estão mais ativos na discussão do ensino do que realmente nós das Faculdades de Educação. E é claro que nós não nos resumimos ao ensino, mas o que faz o professor? O professor ensina! Então nós precisamos voltar um pouco para as questões contemporâneas, que precisariam de uma reflexão da nossa condição como docentes. As demandas com essa questão da pandemia deixaram muito claro o quanto, a toque de caixa, nós, especialmente os professores da rede pública, fomos instigados a novos saberes (Entrevista, 2021).

Os saberes da prática

A reflexão sobre os saberes necessários para a profissão docente é problematizada por Mabel, tendo como referência sua própria experiência, o diálogo com outros estudiosos, como Maurice Tardif, Antonio Nóvoa, Gimeno Sacristan, Donald Schön, Christopher Day e Lee Shulman, para mencionar os estrangeiros. No Brasil, os aportes de Paulo Freire, Vera Candau, Marli André e Newton Balzan foram fundamentais para rever as práticas tradicionais e promover uma discussão sobre a profissionalidade docente.

Eu lembro que nós entravámos no primeiro ano dos cursos de licenciatura, na primeira aula e começávamos a falar sobre a teoria de formação de professores como se nossos alunos não soubessem nada de docência. No entanto, eles tinham passado dez ou doze anos aprendendo sobre docência ao estar na escola, ao olhar seus professores, e por bem ou por mal, sofrer suas decisões... Então não se assumia esse tipo de conhecimento como um conhecimento válido e entrávamos logo nas teorias, anunciando o como deve ser. Na realidade não recuperávamos a subjetividade da construção da profissão que já vinha em todos nós porque, de todas as profissões, talvez, a de professor seja a mais universalmente conhecida porque qualquer pessoa sabe dizer minimamente o que faz um professor, mesmo que nunca tenha ido na escola. [...] Então a nossa profissão, eu diria, é uma profissão arraigada no senso comum. E tanto é que muitas pessoas, um contingente grande, especialmente no âmbito universitário, conseguem ser professores sem uma profissionalização para a docência. E é assim, porque justamente é uma profissão forjada no espaço cotidiano muito intenso dessas pessoas. Então temos muitos anos de escolarização vendo o exercício dessa profissão constantemente na nossa experiência. E quando se pergunta aos professores que não têm a formação, especialmente na universidade, o que inspira a sua condição da docência, é bem comum que eles digam que se inspiram nos seus ex-professores. Reproduzem coisas que admiravam nos seus professores e no geral procuram evitar aquilo que não era do seu agrado. Os modelos históricos estão muito mais fortes na nossa memória do que às vezes a leitura de um texto teórico sobre como deve ser um professor (Entrevista, 2021).

Tendo em vista essa contribuição e a partir das pesquisas realizadas por nossa entrevistada sobre a docência universitária, tem-se uma preponderância do senso comum, em um contexto de ausência da profissionalização. Em outros textos, ela problematiza de forma pontual esta questão:

Os professores ‘práticos’ possuem saberes, muitas vezes até inovadores; mas não se trata de saberes profissionais, pois estes, na perspectiva de Tardif (2002), têm o significado de saber fazer e saber justificar fundamentadamente por que se faz. Ao ouvir os docentes sobre suas práticas, percebe-se que eles são capazes de fazer justificativas de suas decisões, mas que são, quase sempre, baseadas no senso comum. Dizem eles: ‘Faço porque me inspirei num ex-professor que tive e admirava’; ’faço porque experimentei numa turma e vi que tive sucesso’; ’faço porque essa alternativa resolveu um problema de minha prática’ (Cunha, 2018, p.8).

[...] Antonio Nóvoa (2011) tem afirmado que é preciso trazer a formação para dentro da profissão, isto é, compreender que a base inicial é o ponto de partida para uma formação que se dá por toda a vida. Então não se trata de colocar na formação inicial todo o peso da profissionalidade. Mas sim de defender lugares de formação (CUNHA, 2008) que aliem a prática à teoria, contribuindo para fazer da docência um campo profissional. Não basta saber fazer, é preciso compreender teoricamente por que se faz e as consequências dessas ações como professores (Cunha, 2018, p. 8).

A defesa de espaços de formação de professores é uma forma de dar continuidade ao processo de aprendizagem da docência, uma vez que os professores acionam permanentemente saberes da prática, mas que precisam ser ressignificados em saberes teóricos para se transformarem em profissionais.

A profissionalização

A relação entre a profissionalização e os saberes da prática é constante nas pesquisas da nossa interlocutora. Desde a publicação de sua tese O Bom Professor e sua Prática, que revelou uma peculiar maneira de compreender a docência, até publicações mais recentes da autora.

Desenvolver a formação dos docentes do ensino superior requer levar em conta a cultura como ponto de partida para a compreensão dos significados que os docentes dão aos saberes pedagógicos. Mas, se esse é o ponto inicial, certamente não se constituirá na expectativa da chegada da trajetória formativa, pois, para tal, são fundamentais os aportes da teoria da educação, incluindo a autocompreensão dos processos subjetivos da construção da professoralidade docente. Compreender essa pluralidade de exigências pressupõe assumir a docência como ação complexa que requer saberes disciplinares, culturais, afetivos, éticos, metodológicos, psicológicos, sociológicos e políticos (Cunha, 2018, p. 10).

A profissionalização dos professores é um desafio e depende, entre outros, de políticas que expressem uma concepção crítica e superem uma abordagem de formação instrumental e de um currículo mínimo. A precarização das condições de trabalho do professor também repercute na sua desprofissionalização. O professor precisa de tempo físico, de condições e de espaços para pensar sobre a docência:

O que nos profissionaliza é quando temos que pensar o que esses fazeres têm nos ensinado! Incluindo as compreensões teóricas que os sustentam. Não são meramente ações que se reproduzem culturalmente sem uma repercussão dos seus sentidos. [...] Muitas vezes, nós fazemos certas coisas sem pensar porque não conhecemos a teoria que nos diz como fazer, e não lançamos mão de uma base teórica da profissão. A formação que nós defendemos, do ponto de vista da profissionalização, não pode ser só baseada nos discursos teóricos que relegam toda a compreensão cultural da docência, mas a que está posta na nossa sociedade e no imaginário das pessoas que serão professores. Ao mesmo tempo, não pode se restringir a um processo que carece, digamos assim, de uma sustentação teórica, que não só diga para o professor o que fazer e como fazer, mas diga o porquê fazer! E o porquê fazer é nossa função de formadores! Do ponto de vista acadêmico, do ponto de vista de trazer a teoria para poder discutir as razões das nossas decisões, para que não sejam meramente um processo imitativo, um processo que se faça num feeling e não só empírico, ainda que o empírico seja importante. Mas depois é preciso repensar sobre ele (Entrevista, 2021).

Esse posicionamento é sempre um convite à reflexão, afinal a complexidade da docência requer um olhar para os diferentes saberes, de forma a chegar a novas sínteses com sustentação teórica.

O aspecto da intelectualidade na trajetória de Mabel

A produção intelectual de um estudioso, ou de uma estudiosa, não é forjada fora de seu contexto histórico, sua socialização, suas experiências, suas crenças, sua postura frente ao mundo. E suas memórias, construídas sobre o resgate de ações ocorridas em diferentes momentos da vida profissional, contemplam os eventos históricos que marcaram as ações.

A construção da própria trajetória, contada por meio de suas memórias, a coloca como sujeito histórico, que toma decisões, assume posições e delineia caminhos de trabalho. A memória pessoal é sempre uma memória social familiar e grupal, em que se cruzam os modos de ser do indivíduo e de sua cultura (BOSI, 2007). Estão presentes as diversas vozes que fizeram parte da história das pessoas e que ofereceram elementos para a constituição de seus estudos e de seu trabalho. Mas, também de modo relevante, as tendências pedagógicas que predominaram em determinados períodos históricos e influenciaram a constituição do sujeito educador, como o tecnicismo, lembrado por Mabel como tendência arraigada no pensar e no agir docente, em seus primeiros tempos de professora nas licenciaturas.

De acordo com Imbernón (2009), ainda predominam formações de natureza transmissora e uniforme, que fazem uso de teorias descontextualizadas, válidas para todos e distantes dos problemas práticos reais e que, portanto, provocam poucas mudanças. A professora Mabel avalia de maneira crítica essa tendência, presente em seus trabalhos iniciais como formadora e reflete, também, sobre a forte presença de modelos de docentes considerados positivos ou negativos, bem como a marca do senso comum na profissionalização de professores, indicando a fragilidade em relação à formação científica na construção da intelectualidade.

Afinal, a formação dos professores deve desenvolver o pensamento da complexidade, envolvendo o conhecimento da matéria, o conhecimento didático, o conhecimento dos estudantes, do contexto, dos valores etc., que estão ancorados em uma cultura profissional. A mudança dessa cultura requer tempo e bases sólidas, em um processo que não é linear e uniforme, mas complexo e instável, pois ensinar não é tarefa fácil (Imbernón, 2009).

Os avanços da ciência, da psicopedagogia, das estruturas sociais, a influência dos meios de comunicação de massa, os novos valores e tudo o que vem sendo tratado neste livro repercutem numa profissão que se sente desconfortável num âmbito de incerteza e mudança, já que a formação até agora não se ocupou desses aspectos. São velhos e novos desafios que continuam tornando a educação nada fácil e, nos novos tempos, a introduzem numa maior complexidade. A complexidade aumentou devido ao contexto. Quando falamos de contexto, fazemos referência tanto aos lugares concretos (instituições educativas) como aos fatores que caracterizam os ambientes sociais e de trabalho onde se produz (Imbernón, 2009, p. 90).

Neste sentido, os processos de formação e desenvolvimento profissional e a função do docente precisam considerar os diferentes modos de conceber a prática educativa, que pode ser identificada em três perspectivas ideológicas dominantes no discurso teórico: perspectiva tradicional, que concebe o ensino como uma atividade artesanal e o professor como artesão; a perspectiva técnica, que concebe o ensino como ciência aplicada e o docente como técnico; e a perspectiva radical, que concebe o ensino como atividade crítica e o docente como profissional autônomo, que investiga e reflete a prática (Perez Gómez, 2007).

O conhecimento dessas diferentes perspectivas, em seus aspectos teóricos e práticos, contribui para uma formação da autonomia docente, ao permitir o discernimento sobre os possíveis caminhos a serem traçados no trabalho educativo. A autonomia intelectual exige conhecimento dessas perspectivas e clareza sobre os resultados a serem obtidos, mediante as opções de que se dispõe para o ensino. Além disso, é preciso reconhecer que os professores são sujeitos do conhecimento e possuem saberes específicos em relação à profissão, e sua prática não é unicamente lugar de aplicação de saberes produzidos por outros, mas espaço de produção, transformação e mobilização de saberes que lhe são próprios (Tardif, 2004).

Nesse sentido, reconhecer que os professores são sujeitos do conhecimento significa admitir que eles têm o direito de opinar a respeito de sua própria formação profissional e, se o trabalho dos professores exige conhecimentos específicos, sua formação necessita basear-se nesses conhecimentos (Tardif, 2004).

Na formação de professores, ensinam-se teorias sociológicas, docimológicas, psicológicas, didáticas, filosóficas, históricas, pedagógicas etc., que foram concebidas, a maioria das vezes, sem nenhum tipo de relação com o ensino nem com as realidades cotidianas do ofício de professor. Além do mais, essas teorias são muitas vezes pregadas por professores que nunca colocaram os pés numa escola ou, o que é ainda pior, que não demonstram interesse pelas realidades escolares e pedagógicas, as quais consideram demasiado triviais ou demasiado técnicas (Tardif, 2004, p. 241).

Ao discutir a formação dos professores, na direção das considerações de Tardif (2004), Mabel destaca a importância de que eles tenham consciência dos saberes que orientam suas práticas, podendo justificá-las, para além de uma compreensão empírica, que revela fragilidade na condução da profissão.

Então os professores têm saberes, porque eles se constituíram na sua história e depois na sua prática, mas esses saberes não se constituem como saberes profissionais, porque quando se pergunta assim ‘porque você faz assim?’ as respostas vêm em cima do senso comum, da experiência. Eu faço porque deu certo! Eu faço porque eu vejo que os alunos correspondem. Eu faço porque o professor que eu admirava fazia, e eu considero assim... então as justificativas também são empíricas. Daí toda a profissão que não tem uma base teórica de justificativa, que qualquer um pode fazer, ela é muito frágil (Entrevista, 2021).

Para nossa entrevistada, há um aspecto importante sobre os modos de constituir-se professor, considerando que não se trata de uma prática estritamente utilitária e neutra. A profissão docente se desenvolve permeada por questões sociais, tensões e problemas de uma época, vinculadas à escolarização de massa, envolvendo crenças, ideologias, valores e interesses (Tardif, 2004).

Lembro que a escola é filha da modernidade, a escola no sentido geral que envolve, também a universidade. Toda a sua construção foi feita a partir da concepção epistemológica da modernidade, concepção e conhecimento da modernidade. Hoje, enfim, temos de avançar em outro paradigma, muito mais holístico, muito mais transversal, complexo mesmo. A gente tem dificuldade, porque nós fomos formados a partir dessa lógica da ciência moderna; é um processo lento, mas necessário (Entrevista, 2021).

O contexto apontado pela professora revela um problema epistemológico presente no modelo universitário de formação para o magistério, que se direciona, com ênfase, ao aplicacionismo do conhecimento, no qual os estudantes vivem aulas baseadas em disciplinas de conteúdo proposicional, teórico e de fundamentos. Pouca relação com a prática que vai acontecer, em geral, nos estágios, onde devem aplicar os conhecimentos adquiridos. Nesse contexto, vivem desequilíbrios, pois a prática é multifacetada e não será compreendida como uma aplicação linear da teoria. Ao finalizarem a formação, iniciam o trabalho sozinhos, então, aprendendo na prática, e com dificuldades de estabelecer conexões com a teoria, pois tais conhecimentos não correspondem à ação cotidiana (Tardif, 2004).

As bases do pensamento pós-moderno proposto por Santos (et al., 2019), com uma nova perspectiva epistemológica, indica a necessidade de superação de uma perspectiva elitista, de conhecimento único, historicamente produzido pelas sociedades dominantes, para uma justiça de saberes e, por isso, uma justiça social. Esse caminho indica o fortalecimento dos diferentes tipos de saberes, tão válidos quanto o conhecimento científico, que não é realidade para a grande parte da população mundial.

Entretanto, na contramão de propostas que garantam a formação humana, científica e para a pesquisa, e que contemplem uma diversidade de saberes, impõe-se, por meio de políticas educacionais e do engessamento dos cursos de formação, a permanência do tecnicismo, do desempenho em termos de competências, voltados à avaliação do mérito, que geram grandes limitações para a formação crítica e ética de educadores.

Então, infelizmente, vem se tirando a capacidade intelectual dos professores, e isso foi muito forte na época do racionalismo técnico. Mais tarde a gente conseguiu, enfim, fazer a crítica e retomar novas perspectivas. Hoje estamos novamente sobre esse jugo do que deve ser ensinado, do que não pode ser ensinado. Quer dizer, o professor foi perdendo a sua condição de intelectual, no sentido de pensar o conhecimento, de pensar a interpretação desse conhecimento com seus alunos, de tomar decisões. Ficam muito mais subjugados mesmo. Ou é a lógica do livro didático ou é a lógica das diretrizes que, dependendo do sistema, são feitas meio como camisa de força e não como ponto de orientação (Entrevista, 2021).

A produção científica brasileira, no campo das ciências sociais, representada por cientistas negros e indígenas, tem contribuído para descolonizar a história do país, evitando o apagamento da memória e servindo à democratização do saber, na medida em que promove a consciência social sobre o racismo e amplia a visão crítica da história (Santos et al., 2019).

Assim, é um enriquecendo da história do Brasil, uma ampliação da paisagem das ciências sociais e humanas brasileiras, que não é agora apenas um monopólio de uma pequena minoria de antropólogos, que estudavam os negros ou os indígenas. É uma pujante comunidade científica, sobretudo negra, que está a rever a história do Brasil. E tudo isso incomoda quem não quer ampliar a democracia (Santos et al., 2019, p. 9).

Esse é um traço importante da formação científica atual, na perspectiva da pós-modernidade, mencionada pela professora Mabel, que representa um importante legado dos movimentos sociais.

[...] hoje nós temos estudos de gênero, de raça, de etnia, toda essa presença multicultural na escola, que não era objeto da minha época de formação e nem da minha condição inicial de professora de formadores. São temáticas muito contemporâneas que vieram por força dos movimentos sociais e se tornaram, inclusive, leis, e que hoje, inclusive, com o esforço positivo da democratização do acesso à educação e às escolas, tornou esse espaço mais multicultural, incluindo os conflitos próprios da sociedade: os preconceitos, as visões de mundo... Então eu vejo que essa é uma ideia que tem tornado mais complexa, mais ampla a condição da formação docente (Entrevista, 2021).

A trajetória dessa pesquisadora, educadora e formadora de professores traça a transição de tempos históricos carregados de múltiplos saberes culturais, científicos, populares, técnicos, empíricos, políticos, igualmente importantes para a constituição de educadores comprometidos com a construção de uma educação ética, democrática, cidadã, respeitosa, que possibilite o discernimento crítico dos aspectos que lhe impõem limites. Limites de natureza elitista, neoliberal, conservadora, autoritária, tecnicista, que nega direitos, justiça social, tratamento igualitário a todas as pessoas, para a transformação de suas vidas. Suas memórias exprimem as mudanças paradigmáticas, ideológicas e políticas que atravessaram produções educacionais e influenciaram o pensamento de sua geração.

Por meio de seu relato, vislumbramos perspectivas de mundo, de vida e de processos educativos a serem repensadas e outras a serem aprofundadas e discutidas com mais vigor, em nossos contextos de formação. Em suas palavras, emerge a concepção de uma intelectualidade radical necessária aos educadores e às educadoras, aberta a diferentes modos de ser e pensar, que adentre criticamente às armadilhas forjadas pelo poder político para domesticar e silenciar aqueles e aquelas que são responsáveis pela educação de crianças, jovens e adultos.

Intelectualidade intimamente relacionada ao desvelamento da complexidade dos temas pós-modernos, intensamente disseminados pelas redes de informação, seja na direção do risco ou de caminhos para a proteção social. Intelectualidade jamais alicerçada no mero tecnicismo!

Como citar: CARTAXO, S. R. M. Formação de professores e docência no ensino superior: contribuições de Maria Isabel Cunha. Revista Diálogo Educacional, v. 24, n. 80, p. 59-73, 2024. https://doi.org/10.7213/1981-416X.24.080.DS04

1A realização da entrevista teve a colaboração da professora Lucimara Cristina de Paula.

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Recebido: 10 de Novembro de 2023; Aceito: 22 de Janeiro de 2023

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