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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.24 no.80 Curitiba ene./mar 2024  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.24.080.ds09 

Dossiê

Acacia Zeneida Kuenzer: referência feminina na formação docente e na Educação Profissional

Acacia Zeneida Kuenzer: Female reference in teacher formation and Professional Education

Acacia Zeneida Kuenzer: referencia femenina en la formación docente y en la Educación Profesional

Sandra Terezinha Urbanetz, Doutora em Educação1 
http://orcid.org/0000-0003-0425-8538

Cristhianny Barreiro, Doutora em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-7547-1905

1Instituto Federal do Paraná (IFPR), Curitiba, PR, Brasil

2Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul), Pelotas, RS, Brasil


Resumo

Este artigo é sobre a obra de Acacia Zeneida Kuenzer, importante referência feminina para pensar a formação de professores, especialmente a da Educação Profissional. Através da análise de trabalhos publicados e de entrevista realizada com a autora, pode-se inferir que desde a década de 1980 a autora defende uma formação docente que se dê em um espaço universitário, tendo em vista a articulação dos conhecimentos sobre o mundo do trabalho e os científico-tecnológicos de todas as áreas de conhecimento, através de práticas integradas e integradoras entre ciência, cultura e trabalho, dentro dos eixos contextual, institucional, pedagógico, práxico, ético e investigativo. Em sua obra também é possível perceber o posicionamento da formação docente na relação com o trabalho e com a educação, demonstrando que a precarização do trabalho e da formação docente servem ao que chama de inclusão excludente, uma vez que fazem ingressar no sistema educacional os trabalhadores e seus filhos sem dotá-los de efetivas condições de análise e transformação social, em um movimento que vem se aprofundando de redução dos conhecimentos teóricos em benefício dos conhecimentos instrumentais e pragmáticos. Kuenzer aponta como a educação acaba por servir à manutenção e aprofundamento das relações de exploração capitalista, tornando ainda mais necessário ao papel do professor refletir e fazer refletir as condições que permeiam o mundo do trabalho, amparado em sólido ferramental teórico, que permita a ação em direção a uma sociedade mais justa. A vida e obra acadêmica da autora são exemplos de militância em prol desses objetivos.

Palavras-chave: Acacia Zeneida Kuenzer; Formação Docente; Educação Profissional.

Abstract

The article is about the work of Acacia Zeneida Kuenzer, an important female reference for thinking teacher formation, especially to Professional Education. Through article analysis and interviews carried out with the author, it is possible to infer that since the 80s decade the author defends a teacher formation that takes place in the university space, taking in account the articulation of knowledge about the world of work and scientific-technological knowledge from all areas of knowledge through integrated and integrating practices between science, culture and work, within the contextual, institutional, pedagogical, praxical, ethical and investigative axis. It is also noticeable in her work the positioning of teacher formation in relocation to work and education, demonstrating that the precarization of work and teacher formation serve to which is called excluding inclusion, once it makes worker and their children to enter in the educational system without providing them effective conditions of analysis and social transformation, in a trend of reducing theoretical knowledge in favor of pragmatic instrumental knowledge. Kuenzer points to how education ends up serving to maintain and deepen capitalist exploitative relations, making more necessary the role of the teacher to reflect on and inspire reflection on the conditions that permeate the world of work, supported by solid theoretical tools that allow for action towards a fairer society. Her life and academic work are examples in activism in favor of those objectives.

Keywords: Acacia Zeneida Kuenzer; Teacher Formation; Professional Formation.

Resumen

Este artículo es sobre la obra de Acacia Zeneida Kuenzer, importante referencia femenina para pensar la formación de profesores, especialmente a de la Educación Profesional. A través del análisis de artículos y de entrevista realizada con la autora, se puede inferir que, desde la década de 1980, ella defiende una formación docente que se dé en un espacio universitario, con vistas la articulación de los conocimientos acerca del mundo del trabajo y los del científico-tecnológicos de todas las áreas de conocimiento, a través de prácticas integradas e integradoras entre ciencia, cultura y trabajo, dentro de los ejes contextual, institucional, pedagógico, práxico, ético e investigativo. Además es posible percibir en su obra, el posicionamiento de la formación docente en la relación con el trabajo y con la educación, demostrando que la precariedad del trabajo y de la formación docente en la relación con el trabajo y con la educación, demostrando que la precariedad del trabajo y de la formación docente sirve a lo que se llama de inclusión excluyente, ya que hace ingresar en el sistema educacional a los trabajadores y a sus hijos sin dotarlos de efectivas condiciones de análisis y trasformación social en un movimiento que viene profundizándose en reducción de los conocimientos teóricos en beneficio de los conocimientos profundizándose en la reducción de los conocimientos teóricos en beneficio de los conocimientos instrumentales y pragmáticos. Kuenzer señala como la educación acaba por servir a la manutención y profundización de las relaciones de manutención y profundización de las relaciones de explotación capitalista, haciendo aún más necesario al papel del profesor reflejar y hacer reflejar las condiciones que permean el mundo del trabajo, amparado en solido dispositivo teórico que permita la acción en dirección a una sociedad más justa. La vida y obra académica de la autora son ejemplos de militancia por el bien de esos objetivos.

Palabras clave: Acacia Zeneida Kuenzer; Formación Docente; Educación Profesional.

Introdução

Ao iniciarmos pensar sobre as referências femininas na formação docente, cabe a lembrança de que, embora sejam as mulheres que historicamente atuam na educação, haja vista a distribuição por sexo de docentes brasileiros, não são elas que, majoritariamente, são lembradas como as grandes referências teóricas e acadêmicas que sustentam o campo.

Ao atendermos o chamado deste dossiê, buscamos evidenciar que, desde onde atuamos, na educação profissional, temos uma nova constituição, ainda que tímida, em que grandes nomes femininos há tempos têm contribuído com a discussão, aprofundando os conceitos, as contradições e principalmente analisando e discutindo as condições concretas em que se estabelece a educação profissional brasileira.

Entre tantas pesquisadoras, neste texto elencamos uma em especial, a professora Dra. Acacia Zeneida Kuenzer, cuja trajetória se mistura com a própria história da educação profissional brasileira das últimas décadas. Assim, a partir da questão “Quais contribuições para pensarmos a formação e o trabalho docente podem ser ressaltadas na obra de Kuenzer?”, buscamos realizar a pesquisa aqui presente com o objetivo de identificar e analisar trabalhos publicados pela autora sobre os temas, partindo de uma perspectiva de uma revisão integrativa que, segundo Whittemore e Knafl (2005), tem o objetivo de integrar proposições, opiniões e conceitos de um tema específico, sendo importante ferramenta para que se possa efetuar a síntese e análise com base em diferentes tipos de pesquisas e documentos. Na revisão integrativa podemos avançar na compreensão de um determinado tema, já que não se restringe a apenas descrever trabalhos encontrados. Whittemore e Knalf (2005) anunciam cinco passos importantes em sua realização: (1) identificação do problema ou propósito da revisão, (2) busca de literatura, (3) avaliação da qualidade das fontes, (4) análise das informações, (5) comunicação1.

Desta forma, após identificar o problema, para efetuar a busca de literatura, partimos das informações do currículo lattes da professora e depois da leitura dos títulos dos trabalhos publicados buscamos identificar aqueles cuja temática fosse a formação e/ou o trabalho de professores, foco deste dossiê. Logo após, buscamos os trabalhos na íntegra que foram lidos, confirmando sua inclusão, dado o critério estabelecido. Desta maneira, compuseram o córpus dez trabalhos, sendo 1 livro, 4 artigos publicados em periódicos, 2 capítulos de livros e 2 conferências transcritas e publicadas, além da entrevista realizada com a autora e publicada (Urbanetz; Barreiro; Mendes, 2021). Cabe ressaltar que sua obra não se restringe apenas a esta temática, tendo diversas outras contribuições na análise da relação trabalho e educação.

O passo de avaliar a qualidade das fontes, no caso desta pesquisa, mostrou-se desnecessário, já que há uma suposição prévia de que os trabalhos da autora são todos relevantes, e por isto aqui estamos analisando parte de sua obra. Conforme consta em seu currículo, de imediato percebemos a relevância científica da autora, que é professora titular aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1A, atuando atualmente como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (PPGEP - IFRN). A professora Acacia graduou-se em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1972), realizou seus estudos de mestrado em Educação junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 1979, e de doutorado em Educação: História, Política, Sociedade na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1984. Atuou em diferentes instâncias sociais como consultora e assessora, sempre aproximando o mundo produtivo da educação, contexto no qual desenvolve suas investigações, conforme podemos ver evidenciado em suas palavras:

No doutorado, também porque comecei a fazer pesquisa numa área nova: investigar as dimensões pedagógicas nas relações de trabalho, no sistema produtivo; embora já existissem muitas pesquisas na área da Sociologia do Trabalho, na área da Educação, o grupo orientado pelo Dermeval foi pioneiro. Não tinha muitos interlocutores e nem pesquisas sobre o que estávamos investigando. Tanto que quem batizou minha tese de “Pedagogia da fábrica” foi o Octavio Ianni, que participou da banca de defesa, ocasião em que reconheceu publicamente a relevância da linha investigativa que se iniciava sob a orientação do Dermeval. Não tanto pela qualidade do meu trabalho, pois hoje quando a gente lê, percebe que tem aspectos que poderiam ser melhor trabalhados, mas era o que as condições materiais e intelectuais possibilitavam à época. O que Ianni reconheceu, por mérito do Dermeval, é que se abria uma outra visão dentro da Educação, e ele, como sociólogo, reconhecia ter valor. Sem o trabalho e a determinação do Dermeval, que criou e sustentou por muito tempo aquele doutorado na PUC-SP, o GT Trabalho e Educação não teria sido o que é; tampouco tantos pesquisadores comprometidos com a emancipação da classe trabalhadora teriam sido formados, nem tantos trabalhos teriam sido publicados (Urbanetz; Barreiro; Mendes, 2021, p. 7).

Sua obra e vida estão intrinsecamente ligadas ao GT Trabalho e Educação. Como docente atuou em diferentes níveis e modalidades de ensino, sempre deixando sua marca como uma docente exigente e amorosa, o que também se verifica na sua vasta produção intelectual com artigos, palestras, conferências, capítulos e livros publicados, sempre coerente com a análise da sociedade sob a perspectiva do materialismo histórico.

Ainda assim, queremos destacar que os artigos aqui selecionados estão todos publicados em periódicos, cuja classificação da CAPES encontra-se no extrato A1, conforme pode ser observado na Tabela 1. Além disso, o livro e capítulos são publicados por importantes editoras como, Cortez, Editores Associados e Papirus. Completando, uma das conferências foi publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e a outra pelos Anais do Seminário Internacional de Formação de Professores para o MERCOSUL

Quadro 1 Composição do corpus 

Tipo Ano Título
Livro autoral Cortez 1985 Pedagogia da Fábrica
Artigo Educação e Sociedade 1998 A formação de educadores no contexto das mudanças no mundo do trabalho: novos desafios para as faculdades de educação
Artigo Educação e Sociedade 1999 As políticas de formação: A constituição da identidade do professor sobrante
Capítulo de livro Editores Associados 2002 Exclusão includente e Inclusão excludente: a nova forma de dualidade estrutural que objetiva as novas relações entre educação e trabalho
Conferência (capítulo de livro INEP) 2006 Formação de Professores para a Educação Profissional e tecnológica: perspectivas históricas e desafios contemporâneos
Capítulo de livro Papirus (em coautoria) 2009 Trabalho docente: comprometimento e desistência
Conferência (Anais de Sem. Intern. MERCOSUL) 2010 O trabalho e a formação do professor da educação básica no MERCOSUL/ CONE SUL
Artigo Educação e Sociedade 2011 A formação de professores para o Ensino Médio
Artigo Paradigma 2022 La precarización del trabajo docente en el régimen de acumulación flexible
Entrevista Educar em Revista 2021 Acacia Zeneida Kuenzer: a constituição de uma educadora

Fonte: elaboradorado pelas autoras (2024).

Sinalizada a qualidade dos materiais que compõem o córpus, partimos então para o próximo passo, a análise das informações constantes nos materiais em si. Para isto, realizamos mais uma vez a leitura dos textos e integramos a compreensão dos conceitos e da própria história da pesquisadora para compor o texto, tendo como perspectiva “a formação docente” enquanto temática de discussão fundamental. É possível perceber que suas discussões buscam investigar as relações de determinação entre o trabalho e a educação, durante toda a sua trajetória, já que para ela:

Não há, portanto, como estudar a questão das mudanças no mundo do trabalho nas suas relações com a escola sem entender como os projetos pedagógicos que vêm do mundo do trabalho determinam a formação e a prática docente. (Urbanetz; Barreiro; Mendes, 2021, p. 8).

[...] não dá para compreender a questão da formação do professor em si, mas a partir de como a infraestrutura e a superestrutura, entendidas como produção, formação e como ajuste normativo, se articulam, para que o capital amplie a sua hegemonia sobre o trabalho. (Urbanetz; Barreiro; Mendes, 2021, p. 20).

Assim, a seguir, passamos ao quinto passo desta revisão integrativa, a comunicação. No texto em sequência objetivamos comunicar os resultados da análise realizada.

A Formação Docente enquanto temática de discussão fundamental

Desde os anos de 1980 Kuenzer estuda, pesquisa e discute a formação docente, sempre vinculada ao desenvolvimento das forças produtivas, pois, compreende que a cada forma de organização da sociedade corresponde uma forma de organização e oferta de formação aos docentes, posto que enquanto trabalhadores estão inseridos nesta sociedade. Em 1999 publicou um artigo emblemático, “As políticas de formação: A constituição da identidade do professor sobrante”, em que apresenta e discute como as propostas políticas para a formação dos docentes tornam impossível uma formação sólida que vise à construção de um cientista da educação, visto que o que se propõe, naquele período, se caracterizava como uma formação aligeirada e, por vezes, desqualificada, atribuindo ao professor o papel de cumprimento de tarefas prescritas (Kuenzer, 1999).

No desenvolvimento deste e em outros textos, a autora vai demonstrando de maneira clara e concisa como o modelo de formação de professores se modifica e diferencia em função das concepções de educação e de sociedade vigentes, a cada momento histórico, considerando as diferentes finalidades e os interesses sempre contraditórios. Assim sendo, já em 1999, a autora nos apresenta que a formação docente, que em tempos anteriores exigia apenas uma boa oratória, se modifica, passando a demandar dos profissionais respostas até então desconhecidas. Nas palavras da autora é possível perceber a percepção da necessidade de uma formação integral docente:

Essa rápida análise permite identificar a primeira característica do professor de novo tipo: ser capaz de, apoiando-se nas ciências humanas, sociais e econômicas, compreender as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, construindo categorias de análise que lhe permitam apreender as dimensões pedagógicas presentes nas relações sociais e produtivas, de modo a identificar as novas demandas de educação e a que interesses elas se vinculam. Ou seja, compreender historicamente os processos de formação humana em suas articulações com a vida social e produtiva, as teorias e os processos pedagógicos, de modo a ser capaz de produzir conhecimento em educação e intervir de modo competente nos processos pedagógicos amplos e específicos, institucionais e não institucionais, com base em uma determinada concepção de sociedade. (Kuenzer, 1999, p. 170).

Assim sendo, os conhecimentos históricos, filosóficos, sociológicos, econômicos, entre outros, tornam-se essenciais para uma formação sólida dos docentes, a fim de que ao compreenderem como se efetiva a relação com o conhecimento, a partir das novas configurações estabelecidas na organização social, consigam compreender e intervir na realidade.

Kuenzer defende a necessidade da compreensão da organização dos conteúdos “que possibilitem interação significativa e permanente entre o aluno e o conhecimento, exigindo não só o trato com conteúdos, mas principalmente com formas metodológicas que permitam a utilização do conhecimento sócio-histórico e científico-tecnológico para intervir na realidade, criando novos conhecimentos” (Kuenzer, 1999, p. 171). Explicita ainda a necessidade de que o docente, a partir da leitura da realidade, seja capaz de compreender a necessidade de selecionar os conteúdos a serem trabalhados, considerando (para além dos conhecimentos construídos historicamente) os saberes tácitos e as experiências dos alunos, a fim de organizar oportunidades educativas e de aprendizagem nas quais essa interação entre estudante e conhecimento provoque a transição “do senso comum para o comportamento científico” (idem).

Para a autora, isso exige o conhecimento, por parte do docente, de como ocorre a aprendizagem nos diferentes momentos do desenvolvimento humano, bem como as maneiras diferenciadas, tanto em termos de conteúdos quanto em termos metodológicos, de organização do processo educativo. Portanto, em função da complexidade do trabalho docente, faz-se imprescindível que a formação ocorra na interface com todas as áreas do conhecimento, ou seja, uma formação universitária, em sua concepção mais ampliada de formação. E, coerente com sua análise, partindo do olhar ampliado sobre as mudanças ocorridas na sociedade, a autora passa a discutir que a maior oferta da educação em diferentes níveis e modalidades necessita de uma análise de como, ao transformar as relações de trabalho, deixando o emprego formal e estável para a configuração de novas formas de empregabilidade, demanda uma ampliação da educação de maneira generalizada, porém totalmente desigual.

Estabelece-se, dessa forma, uma realidade inusitada: ao tempo que as novas demandas aproximam, e mesmo confundem, educação e trabalho, de modo a já não haver mais diferença entre educação para a cidadania e para o sistema produtivo, passando-se a requerer para o conjunto dos trabalhadores a formação intelectual que até então era restrita a um pequeno número de funções, extinguem-se os postos formais e mudam as formas de trabalho. A precarização do trabalho, revertida em exclusão, inviabiliza o acesso aos direitos mínimos de cidadania, desaparecendo as condições para o acesso generalizado à educação, reforçando-se a tese da polarização das competências, a ser concretizada por meio de sistemas educacionais seletivos, nos quais apenas a pequena minoria que ocupará os postos de trabalho vinculados à criação de ciência e tecnologia, à manutenção e à direção, terá direito à educação de novo tipo, nos níveis superiores e em boas escolas (Kuenzer, 1999, p. 172-173).

Em face da realidade atual, vemos que em sua análise a autora já apontava o que pode ser verificado em nosso país, mais uma vez relegado ao papel de mero consumidor, na divisão internacional do trabalho, com um aprofundamento brutal das desigualdades internas e externas, com problemas de distribuição e produção da riqueza cada vez mais profundos, sem falar dos problemas com a corrupção, violência, desregulamentação do estado, insuficiência de políticas públicas de saúde, educação e segurança, que estimulam a consolidação das milícias e da violência generalizada. Com isso, continuamos verificando como a precarização econômica adentra à escola que não consegue - e não deveria ter que conseguir - proporcionar aos estudantes um desenvolvimento cultural que proporcione a aquisição cognitiva necessária para a compreensão dos conteúdos escolares e do mundo.

Assim, os desafios aos docentes só aumentam e ainda que saibamos que a escola não é capaz de resolver em seu interior as desigualdades e problemas sociais, todos sabemos o quanto essas questões, na tentativa de suprir, amenizar e auxiliar os estudantes, afetam a saúde tanto física quanto emocional dos docentes (Kuenzer; Caldas, 2009).

Com estes estudos, em 1999 Kuenzer apontou os eixos necessários para uma formação sólida dos docentes, a fim de que obtenham uma formação mais rigorosa:

  • - contextual, articulando os conhecimentos sobre educação, economia, política e sociedade, e suas relações, tomadas em seu desenvolvimento histórico;

  • - institucional, contemplando as formas de organização dos espaços e processos educativos escolares e não-escolares;

  • - teórico-prático, integrando os conhecimentos relativos a teorias e práticas pedagógicas, gerais e específicas, incluindo cognição, aprendizagem e desenvolvimento humano;

  • - ético, compreendendo as finalidades e responsabilidades sociais e individuais no campo da educação, em sua relação com a construção de relações sociais e produtivas segundo os princípios da solidariedade, da democracia e da justiça social;

  • - investigativo, comprometido com o desenvolvimento das competências em pesquisa, tendo em vista o avanço conceitual na área de educação (Kuenzer, 1999, p. 175).

Ao finalizar o texto, a autora afirma que ao retirar da universidade a formação do professor, “o governo nega a sua identidade como cientista e pesquisador, ao mesmo tempo em que nega à educação o estatuto epistemológico de ciência, reduzindo-a a mera tecnologia, ou ciência aplicada [...]” (Kuenzer, 1999, p. 182), construindo a figura de um profissional que apenas realiza tarefas em condições cada vez mais precárias, portanto, um tarefeiro que ao atender os “sobrantes” da sociedade também se constitui como um.

Em 2006 foi promovido um debate no VIII Simpósio da série Educação Superior em debate com o tema da Formação de Professores para a Educação Profissional e Tecnológica, a partir de diálogo estabelecido entre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e a Secretaria de Educação Tecnológica do Ministério da Educação, com a participação e representantes da Anfope, do Conselho Nacional de Educação, de diretores e professores da rede federal de Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Três são as mulheres convidadas para abrir esta produção, “Acacia Kuenzer (UFPR), Lucilia Machado (Una) e Maria Ciavatta (Uerj), pois elas representam o pensamento sobre educação profissional e tecnológica, produzido no Brasil nos últimos 20 anos” (Moll, 2008, p. 11).

Nesta importante publicação, a autora discorre sobre as mudanças no mundo do trabalho e as necessárias mudanças na formação de professores para que os trabalhadores possam desenvolver as ferramentas necessárias ao enfrentamento da precarização do seu trabalho produtivo (Kuenzer, 2008). Trata-se de um texto em que Kuenzer (2008) retoma a discussão sobre a necessária formação em licenciatura para os professores da educação básica, assim como a formação pedagógica em mestrados e/ou doutorados, tendo em vista que formarão os futuros professores universitários, já que se torna imprescindível “conhecer o mundo do trabalho sem ingenuidade, a partir da apreensão do caráter de totalidade das relações sociais e produtivas” (Kuenzer, 2008, p. 31).

No ano de 2011 tivemos, entre outras tantas, mais uma publicação que discute a formação dos professores para o ensino médio enquanto um campo de disputas, compreensível em virtude da configuração social vivida em nosso país. Ao publicar “A formação de professores para o ensino médio: Velhos problemas, novos desafios” (Kuenzer, 2011), a autora atualiza a discussão sobre a temática indicando que permanecem os problemas de enfrentamento adequado. Mais uma vez aponta uma tendência que se verifica até os dias de hoje que é a problemática da escassez de professores, a falta de formação adequada e o impacto sobre a qualidade do ensino ofertado às novas gerações.

Traz ainda um questionamento fundamental que diz respeito à falsa ideia de que a formação docente pode ser considerada como um campo neutro, em que as necessidades formativas estão restritas a proposições técnicas e comportamentais, desvinculadas de “valores, concepções e compromissos de classe” (Kuenzer, 2011, p. 669).

Volta também a explicitar que:

[...] se há projetos pedagógicos contraditórios, consequentemente não existe uma única proposta de formação de professores, mas propostas que se diferenciam a partir das formas históricas de organização e gestão do trabalho, visando atender à divisão social e técnica que o trabalho assume em cada regime de acumulação. Ou seja, há demandas desiguais e diferenciadas de formação que se estabelecem ao longo das cadeias produtivas, nas quais se confrontam finalidades e interesses que são contraditórios (Kuenzer, 2011, p. 670).

Em relação aos aspectos dessa diferenciação, quanto trata da formação docente para a educação profissional, a autora lembra que “as pesquisas têm evidenciado que a qualidade deste professor resulta da articulação de conhecimentos tácitos, científicos e pedagógicos, o que não se pode resolver com um curso genérico de licenciatura e sem que haja alguma forma de articulação com o mundo do trabalho, pela experiência ou pela pesquisa (Kuenzer, 2010; Urbanetz, 2011)” (Kuenzer, 2011, p. 673).

E, a partir do estudo realizado sobre a compreensão da desistência e da resistência dos docentes, Kuenzer e Caldas (2009) indicam que os processos de sofrimento não ocorrem de maneira linear, mas sim no âmbito de dimensões contraditórias, o que indica de maneira clara o quanto os docentes enquanto trabalhadores não se diferenciam de outros trabalhadores, portanto, igualmente superexplorados, e que “os cursos de formação, ao tratar o trabalho docente de forma romantizada, não preparam os professores para enfrentar o sofrimento e a síndrome da desistência” (Kuenzer, 2011, p. 681).

Importa enfatizar a necessidade de que a formação dos professores requer a articulação permanente entre os conhecimentos sobre o mundo do trabalho e os conhecimentos científico-tecnológicos específicos de cada área, além de conhecimentos pedagógicos, que dizem respeito a todas as áreas de formação humana. Isso, porque cabe lembrar que a formação docente é também uma estratégia de reprodução do capital e como tal, não se separa da esfera da produção, portanto, vão existir propostas diferenciadas e desiguais de formação. Esta compreensão é fundamental para a percepção da relativa autonomia existente nos processos formativos. E que, ao desenvolver a docência para os que vivem do trabalho, historicamente excluídos, amplia-se a necessidade de uma identificação e análise das mudanças cada vez mais intensas no mundo do trabalho, ao qual, docentes e estudantes estão submetidos.

Kuenzer lembra também que (em geral) pensa-se e propõe-se a formação docente apenas a partir de processos que se resumem a percursos formativos restritos a prescrições técnicas e metodológicas, esquecendo-se as dimensões políticas, filosóficas e epistemológicas necessárias à formação consistente, deixando esta questão “nos limites da lógica da reprodução capitalista, sem a necessária compreensão do seu caráter ideológico” (Kuenzer, 2011, p. 676).

Deste modo, permanece “a crença de que, com um bom percurso formativo, inevitavelmente teremos bons professores” (Idem), instalando de forma concreta a noção de culpabilização individual do docente, da mesma forma como a sociedade capitalista culpabiliza o sujeito na sua individualidade pelo seu fracasso em não conseguir emprego ou outra melhor colocação no mercado de trabalho.

Assim como não se aponta a estrutura excludente da forma capitalista de organização social, não se aponta a complexidade e as imensas dificuldades enfrentadas pelos docentes nas escolas, atribuindo a eles a culpa pelos resultados obtidos por seu trabalho “com alunos, em escolas que se propõem a atender os filhos dos que vivem do trabalho, com uma proposta pedagógica burguesa e sem condições mínimas de trabalho, incluindo a parca remuneração e a desvalorização social” (Kuenzer, 2011, p. 676).

Cabe destacar que já em 1985 Kuenzer afirmava que aos processos amplamente pedagógicos, que visam à formação de subjetividades favoráveis à exploração capitalista, sempre se articulam processos especificamente pedagógicos que têm como função precípua a produção de consensos, na linha da concepção gramsciana de disciplinamento (Kuenzer, 1985), impedindo o rompimento com essa lógica.

A tarefa de desnudar a quem serve os processos educativos, evidenciando as contradições existentes partindo das condições reais, para a autora, é o caminho a ser buscado na construção de alternativas coletivas e eficazes na colocação da educação a serviço da construção de uma sociedade mais justa e democrática. Nesta perspectiva, a função primordial dos docentes passa a ser a de agente de transformação, a partir da disseminação e construção dos conhecimentos emancipadores. Ação essa que só pode ocorrer em processos coletivos, sistematizados e intencionais. Para tanto, cabe a organização de propostas que interessem à classe dos que vivem do trabalho, de forma coletiva, democrática, tanto em termos de organização curricular quanto de gestão.

Em seu texto de 1998, ao discutir a formação docente nas faculdades de educação, encontramos que:

Desta rápida apresentação da nova realidade, três constatações gerais já vêm orientando a discussão da formação de educadores e, consequentemente, a discussão da função das faculdades de educação:

-o novo princípio educativo exige que o trabalhador/cidadão de novo tipo domine os conteúdos básicos da ciência contemporânea que fundamentam os novos processos sociais e produtivos. Exige que tenha novas atitudes e comportamentos perante a sociedade e o trabalho, uma nova ética de responsabilidade, de crítica e de criação, voltada para a preservação da vida, do ambiente, e para a construção da solidariedade, como condições necessárias para a criação de uma sociedade mais humana e mais igualitária, que supere a exclusão;

-o novo princípio educativo exige a universalização da educação, pelo menos básica, da maioria da população, sem o que as exigências explicitadas no item anterior não poderão ocorrer. Esta não é uma determinação do mundo da produção, o qual, por seu caráter excludente, é cada vez mais seletivo com relação ao emprego; é também, e principalmente, uma determinação da necessidade de formação de uma nova humanidade, capaz de enfrentar com melhores condições de compreensão e crítica a realidade da crescente exclusão e pobreza que caracteriza esta etapa de desenvolvimento;

-o novo princípio educativo exige a ampliação da oferta pública nos demais níveis, na perspectiva do atendimento ao direito universal à educação (Kuenzer, 1998, p. 05).

Ressaltando que a autora permanece fazendo essa discussão a partir da análise ampliada da sociedade, apontando como a reestruturação produtiva tem ampliado as desigualdades sociais, com um aumento exponencial da pobreza, bem como, a partir do aprofundamento da diminuição de renda por conta do desemprego estrutural e da diminuição das ações do estado, ocasionando situações de vida cada vez mais perversas.

E, consciente de que o objeto e a preocupação maior dos docentes são os processos pedagógicos, cabe a necessária clareza da especificidade de que a função docente se efetiva a partir das ações intencionais e sistematizadas, posto que é na mediação desses processos sistematizados, tanto escolares quanto não escolares, que o conhecimento social e historicamente produzido se transforma em saber escolar (Kuenzer, 1998).

Assim sendo, faz-se necessário que o docente construa uma compreensão histórica de como ocorrem os processos de formação humana no bojo da vida social e produtiva, a partir da análise da realidade que se faz à luz das teorias e dos processos pedagógicos, de modo a ser capaz de produzir conhecimento em educação e intervir clara e intencionalmente nos processos pedagógicos amplos e específicos, sejam eles institucionais, ou não. Para tanto, na formação docente cabe a consolidação de processos formativos que possibilitem a apropriação e a compreensão da realidade em suas múltiplas determinações, nos mais diversos campos do conhecimento.

Para Kuenzer, apoiada nos autores que embasam o método materialista histórico, o fenômeno da precarização docente está inserido no âmbito da precarização de todos os trabalhadores em geral, em função da forma capitalista de organização social, que ideologicamente apresenta a precarização do trabalho como responsabilidade individual, pois, como mudam as bases materiais de produção, mudam também as relações sociais e de trabalho, os modos e as formas de vida por elas constituídas. Neste contexto, são constituídos também os processos formativos dos docentes.

Assim é que no regime de acumulação flexível faz-se necessário que os processos educativos dos estudantes e os processos formativos dos docentes sigam a lógica da domesticação e disciplinamento necessários aos processos do sistema produtivo, que organicamente incluem e excluem conforme sua necessidade, porque já é mais do que claro que o capitalismo precariza o trabalho porque necessita desta precarização para se manter, usando como elemento de conformação a distribuição desigual do conhecimento para os estudantes e a diferenciação de formação para os docentes.

Desta forma, o modo de produção capitalista, na sua forma flexível, cria o fenômeno que a autora denomina de Inclusão excludente (Kuenzer, 2002), no qual ampliam-se as oportunidades de acesso ao ensino para todos, porém, não se garante nem a permanência neste processo e muito menos o êxito. E isso para os docentes aparece da mesma forma. Muitos são os cursos de formação ofertados nas mais diversas instituições educacionais, desde as universidades até os cursos ofertados por instituições isoladas, diferenciando esta formação em termos de pesquisa, extensão, inovação e oportunidades de desenvolvimento.

Desta maneira, cabe a necessária compreensão dessa realidade excludente que atinge os trabalhadores em geral e os docentes em específico, ainda que de formas diferenciadas, mas igualmente cruéis, amplificadas pelo momento histórico em que, além da forma de produção modificada, da ideologia e da consequente forma como as relações sociais se estabelecem, temos o aparato jurídico-normativo dando suporte legal a todo esse movimento. Dentro desta lógica, a formação sólida e aprofundada científico-tecnológica é para poucos, porque para a maioria dos docentes resta uma formação geral, superficial e genérica, simplificada e de baixa qualidade. Isso, porque a maioria desses docentes irá atuar de forma precarizada, em escolas com condições precárias e estudantes que vivem uma vida precária. E ainda que existam os casos chamados de exceção, a desigualdade na oferta de formação ofertada aos trabalhadores em geral e aos docentes em específico, vai desde a oferta nas escolas públicas e ou privadas de baixo custo até as chamadas ilhas de excelência (as escolas públicas que por diversos fatores escapam da precarização generalizada dos sistemas públicos de ensino) e as escolas particulares internacionais, que têm sido, além da formação em outros países, a opção para que a alta burguesia forme seus filhos e futuros dirigentes.

Nas palavras da autora:

A formação de professores segue a mesma lógica: se dá mediante uma cadeia que integra, no caso brasileiro, diferentes níveis, com diferentes qualidades: mestrado e doutorado, licenciatura, graduação, complementação/formação pedagógica para graduados não licenciados, especialização em docência, programas de educação continuada. E, finalmente, para a educação profissional e tecnológica, certificação de competência equivalente à licenciatura após 5 anos de experiência como docente; certificação de notório saber reconhecido pelos sistemas de ensino; e titulação ou avaliação por competências de docentes com experiência no processo de trabalho, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional. Nesse caso, a avaliação de competências pode ser à licenciatura, graduação cujo objeto é o ensino, seus fundamentos e suas metodologias. Quando nenhuma dessas alternativas for possível, ainda resta a formação em serviço, quando não houver docente disponível, em conformidade com a Resolução n° 02 do CNE/CP/2019 (Kuenzer, 2022, p. 83).

Ao tratar da precarização das relações trabalhistas, a autora ressalta toda a flexibilização nas Leis ocorrida a partir de 2016 que institucionaliza a precarização com a admissão da terceirização das atividades-fim, os contratos temporários que se estendem para 180 (cento e oitenta dias) e podem ser prorrogados por mais 90 (noventa), colocando os trabalhadores em geral e os docentes, nosso objeto aqui, na condição de prestador de serviço, quase sempre temporário, sem mais nenhum direito trabalhista. Sem direito a férias, décimo terceiro salário e porcentagem do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), no caso de demissão. Ou seja, conquistas históricas são perdidas a fim de que o capital continue a acumular. O impacto dessas medidas começa a ser sentido no trabalho docente, que cada vez mais torna-se desafiador e, em muitos casos, desanimador, visto que com o trabalho intermitente, o docente nunca sabe se terá trabalho ou não e qual será esse trabalho. Mesmo para aqueles que assumem uma turma ou uma determinada disciplina, não há garantia de continuidade, ou seja, a cada mês, o docente vai descobrir se terá ou não uma turma, ou uma disciplina para ministrar.

Deste modo, compreende-se como docentes e estudantes, trabalhadores, se encontram no processo de precarização de trabalho e de formação. Toda essa organização pressupõe uma organização social que combina trabalhos desiguais e diferenciados ao longo da estrutura das mais diversas cadeias produtivas que exigem diferentes qualificações. Assim,

A essa cadeia de produção corresponde uma cadeia de formação, que articula trabalho e escola; quanto menor e mais desqualificada a formação escolar, maior a necessidade de aprender a trabalhar trabalhando, processo que se dá de forma fragmentada e descontínua, em decorrência da inclusão/exclusão em várias cadeias produtivas, uma vez que os trabalhadores são excluídos das cadeias produtivas e recontratados mediante formas precárias, configurando-se estratégias de consumo predatório da força de trabalho. Já para a ponta qualificada das cadeias produtivas, a formação se dá em cursos de graduação e pós-graduação lato e estrito senso. A formação dos professores, enquanto parte integrante das cadeias de formação de trabalhadores, não escapa a essa lógica (Kuenzer, 2022, p. 89-90).

Desta forma, Kuenzer esclarece os caminhos usados pelo capitalismo para o enfraquecimento e precarização do trabalho:

[...] flexibilizando as formas de contratação e flexibilizando a formação, mediante a adoção das categorias das teorias pós-modernas, em particular a desvalorização da teoria, e a fragmentação da cadeia de formação. Do ponto de vista ontológico, a flexibilização das formas de contratação se dá pela via do novo arranjo jurídico normativo; do ponto de vista epistemológico, a negação da categoria práxis, pela negação da centralidade da categoria trabalho, substituída pela centralidade da categoria cultura, o que mergulha a produção teórica nos vieses culturais e aligeira a formação. Da mesma forma que os arranjos produtivos articulam competências desiguais e diferenciadas para assegurar competitividade em um mercado cada vez mais agressivo, se constituem "cadeias" de formação dos professores, para desenvolver essas competências diferenciadas, que por sua vez demandam escolas de diferentes qualidades com profissionais da educação também com diferentes níveis de qualificação e tipos de contratação. A premissa, nunca confessada, é que, para trabalhar nas escolas com condições precárias de trabalho pedagógico e que atendem os alunos da classe trabalhadora, não é necessário um professor plenamente qualificado, estável e bem remunerado (Kuenzer, 2022, p. 90).

Considerações: a precarização do trabalho docente constituindo o professor sobrante

Ao tomar o trabalho docente enquanto processo humano concreto, Kuenzer (2010, p. 6) afirma que ele é “determinado pelas formas históricas de produção e reprodução da existência”, explicitando a necessidade de compreendermos o fazer docente do âmbito do trabalho, enquanto atividade humana, tanto em seu sentido ontológico quanto em seu sentido histórico.

Assim sendo, a autora explicita que o trabalho docente permanece imbricado à lógica da acumulação do capital, direta ou indiretamente, pela compra da força de trabalho do professor e, mesmo que sua finalidade seja a formação humana, esse trabalho permanece atravessado pelas mesmas contradições que caracterizam o capitalismo. Então, nessa sociedade, permanece atravessado pelas contradições contínuas, com necessidade de formação que aponte para a construção de relações sociais mais justas.

A partir da compreensão da natureza não material do trabalho docente é possível perceber os espaços contraditórios desta ação, pois, esse docente passa a ser “artífice da sua própria exploração, ao tempo que busca sua realização pessoal, vinculada a finalidades” (Kuenzer, 2022, p. 90) e isso pode ser visto na diferenciação da atuação mais livre nas instituições públicas e mais controlada nas instituições privadas e (ainda assim) de forma contraditória em todos os espaços. Os docentes, em sua imensa maioria, são assalariados ou do governo nas esferas federal, estadual ou municipal, ou de cooperativas ou associações privadas, todos vendendo a sua força de trabalho sendo, dentro da lógica vigente de acumulação de capital, cada vez mais explorados e expropriados de seu sentido humanizador.

Isto porque os serviços educacionais, como os demais serviços, sofreram os impactos da crise do capitalismo no final do século e início deste; forçadas a se reorganizar para serem competitivas inclusive na disputa pelos fundos públicos, as instituições educacionais públicas e privadas desencadearam estratégias próprias da reestruturação produtiva, neste sentido não se diferenciando das demais empresas, a não ser pela especificidade de seu processo de trabalho. Assim, combinaram complexificação tecnológica com redução de força de trabalho, hierarquizada segundo novas formas de articulação entre qualificação-desqualificação e quantidade de trabalhadores, além de incorporar mecanismos de descentralização, em particular, de terceirização, ou no caso dos professores do setor público, de contratos precários para realizar tarefas específicas, por tempo determinado. Em decorrência, a resistência deste tipo de trabalho não-material a submeter-se às leis da exploração capitalista tende a cair por terra, vendendo os profissionais sua força de trabalho para objetivar um resultado com o qual na maioria das vezes não concordam. Através de seu trabalho, objetivam um produto que é fruto de sua alienação, de sua própria transformação em mercadoria, e não o fruto da coincidência entre a sua subjetividade, a sua consciência e as condições materiais de existência, no sentido de utopia, de projeto de transformação da sociedade. Aos professores restaria a esperança de trabalhar nos espaços públicos, onde, em tese, a relação entre custos e benefícios seria regida por outra lógica - a do direito a um serviço público de qualidade - e não pela realização da lógica da mercadoria. Mas nem isto é possível nos Estados de tipo neoliberal que, ao materializar a lógica das políticas mínimas, por um lado, empurram parte de suas responsabilidades para o setor privado, na perspectiva do público não estatal, e, por outro lado, reduzem a política de direitos a ações de filantropia (Kuenzer, 2011, p. 680).

Assim sendo, Kuenzer explica claramente como tanto nas instituições privadas quanto nas públicas os docentes estão submetidos à lógica das leis do mercado, em função da intensa privatização dos serviços educacionais interferindo diretamente na capacidade criativa e na autonomia do desenvolvimento do trabalho docente, tornando-o cada vez mais contraditório, pois, como buscar a construção de currículos e práticas críticas e inovadoras, dentro de um cenário conservador? Como pensar e executar propostas curriculares alternativas? Como propor a construção de outras relações sociais, sem o espaço para essas reflexões?

A autora afirma, lembrando Moll e Moraes (2003), que o recuo da teoria vigente desde os anos de 1990 contribuiu em muito para a fragilização dos processos formativos e a simplificação dos cursos de formação docente, com os cursos de formação à distância, com custos tão baixos e de qualidade por vezes duvidosa, caracterizando a forma dentro dos preceitos do pragmatismo, do presenteísmo, da fragmentação e da negação da categoria totalidade, inviabilizando o estabelecimento de relações causais entre fenômenos sociais. Assim, nos currículos pode-se perceber que as disciplinas “que podem fornecer elementos para a crítica e consequente apreensão das relações sociais concretas em seu caráter de totalidade são relegadas a um lugar secundário na parte comum do currículo, o que ocorre com as ciências humanas e sociais” (Kuenzer, 2022, p. 89).

A partir da facilidade oferecida pelas novas tecnologias de comunicação e informação, e com toda flexibilização da legislação escolar, possibilita-se a formação docente tanto a distância quanto presencial, de formas articuladas à forma de produção capitalista. Para alguns poucos, a oferta de formação universitária, em graduações, mestrados e doutorados da mais alta qualificação; e para todos os outros, a graduação em cursos aligeirados, sem aprofundamento teórico e prático. Com isto, vivem docentes e estudantes numa constante desvalorização do saber, do conhecimento, do esforço cognitivo e assim se “materializa a precarização para atender às necessidades de redução de custos e aumento de competitividade: professor pouco qualificado para alunos que serão sobrantes nas relações sociais e de trabalho” (Kuenzer, 2022, p. 91).

A alternativa parece ser a necessária conscientização do docente enquanto trabalhador, enquanto objeto e sujeito de formação, e assim a permanente articulação às possibilidades de sua ação diretamente vinculadas ao processo de formação. Isso exige a compreensão de todas as mudanças que acontecem no mundo do trabalho e das relações sociais que colocam novas demandas para a educação e estabelecem uma nova pedagogia com novos contornos, especialmente de não universalidade, ao contrário, cada vez mais excludente, posto que serve a uma única classe social. Com relação às mudanças que agora não passam mais pelos modos de fazer meramente repetitivos, rígidos, estáveis e mecanizados, mas sim demandando o desenvolvimento de competências cognitivas que só se desenvolvem em situações de aprendizagem, interação significativa e permanente entre estudante e o conhecimento, cabe pensar a necessidade de formação docente que não apenas trate do conteúdo, mas principalmente com formas metodológicas que permitam a utilização do conhecimento sócio-histórico e científico e tecnológico para intervir na realidade a fim de que sejam criados novos conhecimentos, mas principalmente novas relações.

Desta maneira, a autora volta a insistir que para superar essa exclusão disfarçada de inclusão nos processos educativos há a demanda que a formação docente precise articular, de maneira consistente, os conhecimentos sobre o mundo do trabalho aos conhecimentos científico-tecnológicos de todas as áreas de conhecimento, através de práticas integradas e integradoras entre ciência, cultura e trabalho, dentro dos eixos já apresentados: contextual, institucional, pedagógico, práxico, ético, e investigativo.

E, para encerrar, nas palavras literais da autora:

Ainda que as condições de formação não garantam de per-si a realização da qualidade na atividade educativa, condicionada por diversos fatores materiais, entende-se que não é possível superar as dificuldades da prática, em direção à sua transformação, sem que se possua sólido conhecimento teórico; caso contrário, recai-se numa prática limitada e repetitiva, para a qual o senso comum é suficiente. O que remete, necessariamente, à revisão das propostas pedagógicas que vêm sendo ofertadas pelas instituições de formação, cada vez mais aligeiradas, utilitárias, pragmáticas, fragmentadas e despolitizadas, ao gosto da nova epistemologia da prática. (Kuenzer, 2010, p. 19-20)

Ter clareza de como a formação de trabalhadores em geral, e de trabalhadores da educação em particular, está sendo construída, é fundamental para definir o sentido da luta. Sem essa visão, não seremos bons professores (Urbanetz; Barreiro; Mendes, 2021, p. 21).

Como citar: BURBANETZ, S. T.; BARREIRO, C. Acacia Zeneida Kuenzer: referência feminina na formação docente e na Educação Profissional. Revista Diálogo Educacional, v. 24, n. 80, p. 140-155, 2024. https://doi.org/10.7213/1981-416X.24.080.DS09

1Tradução livre das autoras, buscando aproximação ao significado em português. (1) Problem identification, (2) Literature Search, (3) Data evaluation, (4) Data analysis, (5) Presentation.

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Recebido: 23 de Março de 2023; Aceito: 25 de Maio de 2023

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