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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.24 no.80 Curitiba ene./mar 2024  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.24.080.ds11 

Dossiê

Relações, métodos, palavras: a pesquisa narrativa (auto)biográfica por Maria Helena Abrahão1

Relationships, methods, words: (auto)biographical narrative research by Maria Helena Abrahão

Relaciones, métodos, palabras: investigación narrativa (auto)biográfica de Maria Helena Abrahão

Luciana Haddad Ferreira, Doutora em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-8440-7347

Neuzita de Paula Soares, Doutoranda em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-9255-8906

Thiago Borges Aguiar, Doutor em Educação3 
http://orcid.org/0000-0002-7294-1200

1Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC), Campinas, SP, Brasil

2Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), Piracicaba, SP, Brasil

3Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP, Brasil


Resumo

O estudo aqui apresentado tem como objetivo discutir as contribuições de Maria Helena Menna Barreto Abrahão, professora e pesquisadora, para a investigação narrativa (auto)biográfica e para o campo de estudos da formação docente. Valemo-nos, para tanto, da mesma premissa defendida por Maria Helena em toda a sua trajetória: colocamos a vida no centro do processo e tomamos como objeto de estudo e reflexão sua própria narrativa (auto)biográfica. Para análise, apresentamos excertos da narrativa da pesquisadora, produzida no contexto de uma entrevista narrativa, enfatizando as articulações entre a formação de professoras e o paradigma (auto)biográfico de produção do conhecimento sobre educação. Dentre diferentes aspectos apresentados na narrativa, destacamos três dimensões. Na primeira, as relações, entendemos que a pesquisa e seu campo só existem no espaço da interlocução. Na segunda, os métodos, compreendemos as diferenças entre paradigmas pautados pelo recorte da realidade e o paradigma aqui discutido que está aberto ao inédito do momento da pesquisa. Na terceira, as palavras, observamos como termos consolidados no campo investigativo vão se modificando como resultado de uma interação humana. O estudo também reconhece a contribuição da pesquisadora para o fortalecimento das bases teóricas das pesquisas (auto)biográficas. O trabalho investigativo de vanguarda dessa mulher brasileira abriu caminhos para um movimento de pesquisa que tem contribuído significativamente para a formação e valorização docente no país.

Palavras-chave: Pesquisa (auto)biográfica; Formação de professores; Narrativa.

Abstract

The study presented here aims to discuss the contributions of Maria Helena Menna Barreto Abrahão, teacher and researcher, to (auto)biographical narrative research and to the field of teacher training studies. To this end, we use the same premise defended by Maria Helena throughout her career: we place life at the center of the process and take her own (auto)biographical narrative as an object of study and reflection. For analysis, we present excerpts from the researcher's narrative, produced in the context of a narrative interview, emphasizing the connections between teacher training and the (auto)biographical paradigm of knowledge production about education. Among different aspects presented in the narrative, we highlight three dimensions. In the first, relationships, we understand that research and its field only exist in the space of dialogue. In the second, the methods, we understand the differences between paradigms guided by the perspective of reality and the paradigm discussed here that is open to the unprecedented at the time of the research. In the third, words, we observe how consolidated terms in the investigative field change as result of human interaction. The study also recognizes the researcher's contribution to strengthening the theoretical bases of (auto)biographical research. The cutting-edge investigative work of this Brazilian woman opened the way for a research movement that has contributed significantly to the training and development of teachers in the country.

Keywords: (Auto)biographical research; Teacher education; Narrative.

Resumen

El estudio presentado aquí tiene como objetivo discutir las contribuciones de Maria Helena Menna Barreto Abrahão, docente e investigadora, a la investigación narrativa (auto)biográfica y al campo de los estudios de formación docente. Para ello, utilizamos la misma premisa defendida por María Helena a lo largo de su carrera: situamos la vida en el centro del proceso y tomamos su propia narrativa (auto)biográfica como objeto de estudio y reflexión. Para el análisis, presentamos extractos de la narrativa del investigador, producidos en el contexto de una entrevista narrativa, enfatizando las conexiones entre la formación docente y el paradigma (auto)biográfico de producción de conocimiento sobre educación. Entre los diferentes aspectos presentados en la narrativa, destacamos tres dimensiones. En el primero, las relaciones, entendemos que la investigación y su campo sólo existen en el espacio del diálogo. En el segundo, los métodos, entendemos las diferencias entre los paradigmas guiados por la perspectiva de la realidad y el paradigma aquí discutido que está abierto a lo inédito en el momento de la investigación. En el tercero, palabras, observamos cómo términos consolidados en el campo investigativo cambian como resultado de la interacción humana. El estudio también reconoce la contribución del investigador al fortalecimiento de las bases teóricas de la investigación (auto)biográfica. El trabajo investigativo de vanguardia de esta brasileña abrió el camino a un movimiento de investigación que ha contribuido significativamente a la formación y desarrollo de docentes en el país.

Palabras clave: Investigación (auto)biográfica; Formación de profesores; Narrativo.

Introdução

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

(Conceição Evaristo)

A pesquisadora Maria Helena Menna Barreto Abrahão2 ocupa lugar de destaque na produção acadêmica nacional e internacional, sobretudo ao considerarmos os estudos no campo da formação docente numa perspectiva (auto)biográfica. Pesquisadora Sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ, ao longo de sua carreira de 35 anos de atuação, completadas em 2023, Maria Helena soma mais de cinquenta artigos publicados em periódicos e participa de mais de quarenta livros como autora. Tais números, no entanto, não são suficientes para oferecer à leitora ou leitor correta perspectiva da relevância de seu trabalho para o campo aqui em debate. É preciso conhecer sua produção para compreender o impacto de seu trabalho no modo como pensamos e fazemos pesquisa em educação. Defensora de um paradigma de investigação de toma a história de vida como elemento central da ação investigativa, ela nos convida a pensar sobre as palavras, as relações e os métodos da pesquisa educacional.

A professora Maria Helena Menna Barreto Abrahão tem se dedicado, em igual período, à formação de outras professoras e pesquisadoras3. Exerceu a docência nos cursos de graduação, especialmente nas licenciaturas, e pós-graduação na área de Educação, das universidades pelas quais passou, tendo orientado mais de noventa estudos relacionados à formação de professoras numa perspectiva (auto)biográfica. Continua sendo, na atualidade, uma professora de professoras, ao manter contribuições ativas junto ao grupo de pesquisa que lidera e participa, bem como nos momentos em que é convidada a dialogar sobre seus estudos em outros espaços formativos. É uma pesquisadora que escreve sobre algo que conhece bem, pois a docência sempre fez parte de sua trajetória de vida.

A mulher Maria Helena Menna Barreto Abrahão é uma voz feminina que se faz ouvir e que encoraja outras pesquisadoras a deixarem suas marcas nos espaços em que atuam. Ela abriu e continua abrindo caminhos para mulheres não apenas no universo acadêmico, ao apontar possibilidades transgressoras de pensar e fazer pesquisa, mas também ao defender e praticar a investigação como ato formativo sensível e de reconhecimento da nossa humanidade, de afirmação da subjetividade como objeto de conhecimento. Num ambiente predominantemente masculino como o da pesquisa acadêmica no início de sua trajetória, entre os anos de 1980 e 1990, a professora se firmou como uma referência internacional no campo.

Nosso objetivo, neste texto, é evidenciar as contribuições desta pesquisadora, professora e mulher brasileira para a pesquisa educacional. Valemo-nos, para tanto, da mesma premissa defendida por Maria Helena em toda a sua trajetória: colocamos a vida no centro do processo. Assim, tomamos como objeto de estudo e reflexão sua própria narrativa (auto)biográfica. Com ela, discorremos sobre o surgimento e a consolidação do movimento biográfico no Brasil.

Ao narrar sua trajetória, a professora entrelaça eventos que se inserem numa história mais macro desse movimento, aprofunda conceitos e nos faz refletir sobre a complexidade e o compromisso de se fazer uma pesquisa que considera a vida dos sujeitos pesquisados como centro do processo investigativo. Ela nos permite compreender como uma abordagem hoje consolidada no Brasil passou por muitos enfrentamentos, transições epistemológicas e exigiu a insistência de várias pesquisadoras para marcar sua presença no meio acadêmico.

Dialogar com suas memórias é fazer eco às diferentes vozes que destacam as contribuições de Maria Helena que a levaram a se tornar uma referência internacional na pesquisa narrativa (auto)biográfica, ao mesmo tempo em que, na interlocução aqui registrada, construímos uma nova experiência sobre a história de vida dessa mulher que é, como ela mesma já disse, uma nova personagem a cada escrita:

Quanto mais eu leio, quanto mais eu estudo sobre a história de vida de uma pessoa, e quanto mais eu trabalho nessas compreensões, percebo que a cada escrita minha é como se uma nova personagem surgisse. Eu vejo que ela é uma nova personagem no meu estudo, porque já é uma outra professora que me conta as mesmas memórias e eu sou outra ao ouvir. E o engraçado é que reconhecemos aquela mesma pessoa em todos os estudos, eles são todos diferentes um do outro, pegando ângulos diferentes, mas é a história de vida da mesma pessoa (Abrahão, 2023a).

As memórias entrelaçadas neste texto foram construídas no contexto de uma entrevista narrativa realizada pelo grupo de estudos e pesquisa que fazemos parte, o HiNaS4. O grupo, predominantemente feminino, reúne-se quinzenalmente, de forma virtual, para fortalecimento do coletivo e para trocas de experiências das pesquisas realizadas por suas participantes, bem como discussão de leituras e reflexões sobre a temática.

No ano de 2023, o grupo realizou seus encontros convidando pesquisadoras e pesquisadores brasileiros consideradas com relevante papel na criação, há mais de trinta anos, e consolidação da pesquisa narrativa (auto)biográfica, em especial para as investigações relacionadas à formação de professores. A intenção foi de compreender um pouco mais a história e a constituição dessas pesquisas, com suas interfaces, nuances, aproximações, riscos e distanciamentos epistemológicos.

A definição do nome de Maria Helena de Mena Barreto Abrahão como participante em um desses encontros foi unânime, quase uma obviedade, considerando sua importância nessa história, pela densidade de suas produções e pelo reconhecimento da comunidade acadêmica. É uma mulher pesquisadora que ocupa posição de vanguarda na comunidade brasileira de pesquisas narrativas e de histórias de vida, bem como em formação de professoras5.

O encontro com a pesquisadora se deu no primeiro semestre do ano de 2023, de modo virtual, sendo gravada (registro audiovisual) e transcrita. A conversa com Maria Helena aconteceu após o planejamento e a estruturação do roteiro de uma entrevista narrativa. Esse roteiro foi submetido a análise por pesquisadoras da área e, posteriormente, foi objeto de debate do grupo que também pôde ensaiar respostas e corrigir eventuais fragilidades, considerando princípios de coerência metodológica e os cuidados éticos em pesquisa narrativa. Nesse processo, na busca por instituirmos fios que levassem ao aprendizado e compreensão a partir da história da pesquisadora, prevaleceu a construção de perguntas estimuladoras, sempre rechaçando a ideia rígida de entrevista como a alternância entre uma pergunta fechada e uma resposta esperada, o que é antagônico aos pressupostos do campo.

Compartilhamos antecipadamente, com a professora, a versão final de um roteiro com cinco tópicos sobre os quais gostaríamos que ela falasse no momento do encontro, sem esperar que ela os respondesse diretamente. São eles:

  1. Conte-nos quando e como começa a sua trajetória de pesquisadora e professora. Como a pesquisa narrativa atravessa a sua história?

  2. Gostaríamos de saber mais sobre as bases epistemológicas e autoras / autores com quem você mais dialoga. Quais são as suas referências?

  3. Como você entende a construção das pesquisas relacionadas à história de vida, narrativa e (auto)biografias no Brasil? Seria possível afirmar que essas constituem um único campo teórico, que apesar de diverso, possui certa identidade e coerência epistêmica e metodológica?

  4. Quais as possíveis aproximações do campo narrativo (auto)biográfico com as pesquisas etnográficas, pesquisa-ação e cotidianistas? O que aprendemos com elas, e o que temos ensinado?

  5. Fale sobre a contribuição de pesquisadores latino-americanos, especialmente brasileiros, na constituição de um coletivo de vanguarda que tem se tornado referência internacional na produção do conhecimento com / sobre / da pesquisa narrativa (auto)biográfica.

Aqui, construímos um texto que traz excertos dessa entrevista narrativa em diálogo com três aspectos abordados por Maria Helena: as relações, os métodos e as palavras. Antes disso, a fim de evidenciar as contribuições do campo para a formação docente, apontamos aproximações entre a pesquisa narrativa (auto)biográfica e a formação de professoras.

Contribuições para pensar a formação docente

Quando a gente trabalha a formação nessa sociedade tão conturbada, de um humanismo mais sadio, então esses autores sempre nos ajudam (Abrahão, 2023a).

O campo de pesquisa sobre formação docente vem se constituindo, historicamente, a partir de diferentes referenciais e perspectivas teóricas. Assim como colocam André (2010), Cunha (2013) e Diniz-Pereira (2013), partindo do entendimento sobre o que é formar e como este processo é constitutivo da profissão docente, encontramos pesquisadoras que se propõem a olhar para a temática de diferentes maneiras: estudam a formação inicial, continuada ou permanente; debatem políticas de formação; currículos e exigências formativas; atentam para especificidades da formação em certos contextos de atuação, tempos históricos e localidades.

Dentre os diferentes estudos sobre a temática da formação, Freitas e Abrahão (2017) destacam que tem sido cada vez mais presente a preocupação com o desenvolvimento de investigações que considerem as professoras e suas práticas como constituintes da pesquisa. Mais do que falar sobre elas, é reconhecida a importância de pensar com as docentes. Nesta perspectiva, a pesquisa narrativa (auto)biográfica tem grandes contribuições a fazer e por isso tem ocupado crescente espaço nas mesas de debate e nas publicações acadêmicas dos últimos trinta anos.

Uma das principais características da pesquisa narrativa (auto)biográfica é a redução das distâncias entre o chão da escola e o universo acadêmico. Apoiamo-nos na certeza de que as educadoras são portadoras de reflexões potentes, que podem ser tomadas como ponto de partida para investigações e estudos. Afinal, apenas a professora, imersa em sua realidade, é capaz de capturar e narrar os dilemas, atravessamentos, delicadezas e subjetividades do seu cotidiano.

Ao escutar as vozes docentes e trazer suas vidas para o centro do processo de pesquisa, transformamos o ato investigativo, por vezes solitário, em uma ação conjunta. Assim, a pesquisa narrativa (auto)biográfica é mais do que uma metodologia pela qual se faz possível enxergar as nuances do trabalho, da formação e das práticas docentes. É uma opção paradigmática de investigação e educação, que assume intencionalmente a pesquisa como fruto de um trabalho reflexivo colaborativo, que pode possibilitar desenvolvimento e aprendizado de todas as pessoas envolvidas.

Pesquisadoras como Maria Helena têm lutado para o reconhecimento dessa forma de fazer pesquisa, enfatizando suas contribuições para pensar a profissão docente a partir da realidade e das trajetórias de educadoras. Abrahão vem defendendo a escuta e autoria de professoras há tempos, trazendo a debate a pesquisa narrativa (auto)biográfica como modo de produção de conhecimento com / sobre / pelas professoras. Dentre seus estudos, vale destacarmos as publicações nas quais se propõe ao diálogo com outras pesquisadoras como Maria Isabel Cunha (Abrahão; Cunha et al., 2008), em livro no qual discutem relações entre a formação, o currículo e a cultura escolar. Soma-se à voz destas educadoras a de outras, que tem protagonizado o movimento narrativo (auto)biográfico na formação de professoras, como Lima, Geraldi e Geraldi (2015), Passeggi, Souza e Vicentini (2011) e Prado e Soligo (2007).

A comunidade de pesquisa narrativa (auto)biográfica tem defendido então que o paradigma de investigação contribui, sobretudo, para a ampliação do debate acerca da formação continuada, ao afirmar a autoria docente e incentivar redes de partilha e autoformação. Nessa esteira, as discussões em relação à formação de professoras ganham novos contornos; seus discursos, suas histórias e suas vozes e, sobretudo sua autoria enquanto participantes e pesquisadoras passam a ser fundamentais para a produção do conhecimento no campo.

Ao trazer as contribuições da etnografia, das histórias de vida e dos estudos do/no/com o cotidiano, a pesquisa narrativa (auto)biográfica se realiza a partir da valorização das memórias e experiências das professoras, sem reduzir o estudo ao registro descritivo das suas percepções pessoais, pois parte do vivido para a construção de novas compreensões da realidade. No âmbito daquela que narra, o processo é formativo e possibilita a reflexão e ampliação do estado de consciência sobre si e sobre sua condição de professora no contexto em que vive (Abrahão, 2023b). Na esfera coletiva e da produção de conhecimento, as narrativas da vida e do trabalho docente possibilitam enxergar as tensões e desvelam possibilidades que auxiliam as pesquisadoras na elaboração de perguntas investigativas e na compreensão dos fenômenos educacionais (Abrahão, 2018).

Ainda, a pesquisa narrativa (auto)biográfica pressupõe o fortalecimento de coletivos docentes que se amparem e se responsabilizem pela autoformação, numa perspectiva crítica e responsável de busca e reflexão sobre os dilemas vivenciados e narrados. As memórias e experiências são compartilhadas pelas professoras em suas comunidades como uma forma de refletir coletivamente sobre condutas, valores, identidades e práticas pedagógicas. As narrativas de si na formação de professoras também incentivam a reflexão crítica sobre as estruturas sociais e educacionais que atravessam a prática docente.

Reafirma-se, então, um modo de fazer pesquisa mais horizontal e dialógico, no qual a formação docente é concebida não como produto, mas como processo. Para tal, o desenvolvimento da atitude investigativa e o estreitamento entre universidade e escola básica são imperativos defendidos por aquelas que adotam tal paradigma, como Maria Helena vem fazendo desde o início dos anos dois mil (Abrahão, 2003; Abrahão, 2004).

Entendendo como inegável a contribuição de tal paradigma de investigação para a produção do conhecimento e para as práticas de formação de professoras, reconhecendo a figura de Maria Helena como uma de suas principais representantes junto à comunidade acadêmica internacional, destacamos a seguir os movimentos apresentados em sua entrevista, ao narrar sobre sua própria trajetória e tecer relações com o campo da pesquisa narrativa (auto)biográfica no Brasil.

Optamos por não transcrever a entrevista em sua íntegra, respeitando os limites estabelecidos pelas normas acadêmicas para este formato de texto, e também por entender que os trechos selecionados são suficientes para deixar transparecer as contribuições que este diálogo oferece para a compreensão de um campo e as marcas nele deixadas da história de vida dessa mulher, professora e pesquisadora.

As relações, os métodos, as palavras

É nesse momento da narrativa, da escuta, que tanto o narrador quanto o pesquisador vão se aprimorando no seu saber e no seu conhecimento (Abrahão, 2023a).

Ao partilhar conosco suas reflexões, por meio da entrevista narrativa, a professora Maria Helena se preocupa em destacar a presença e participação de muitas outras pessoas em sua trajetória. Ela escolhe falar dos encontros que a pesquisa ocasionou, mostrando como a relação com o outro é constitutiva de seu modo de pensar seu campo de estudos. Justifica que a pesquisa narrativa (auto)biográfica coloca o indivíduo, suas vozes e experiências ao centro do processo, fazendo referência não apenas àquela que participa contando a sua história, mas também à pessoa que pesquisa.

No momento que a narrativa acontece, há uma produção de sentidos por parte de quem narra e de quem escuta, a enunciação. Quem está fazendo o enunciado vai buscar cenas cotidianas nas suas memórias, assim como quem o escuta. [...] Eu ainda coloco que essa narrativa se realiza num tempo e espaço, porque a pessoa que está enunciando, ela nos conta coisas e acontecimentos num tempo-espaço humano que partilhamos (Abrahão, 2023a).

Quem narra faz reflexões sobre sua caminhada e, nesse processo, nos faz também, como ouvintes, participar e assim invocar nossas próprias experiências. A pesquisa, neste sentido, remete a uma relação narrativa, que pressupõe interconexões entre as particularidades do que é vivido e contado por alguém e o caráter social e cultural que permite ao outro se reconhecer no que é relatado. É a história de alguém, mas poderia ser de muitas outras pessoas.

As narrativas não se resumem a uma interpretação individual da realidade, pois sempre descortinam tensões e reações de certo contexto, em certo tempo e lugar. Um tempo-espaço que, por ser humano, está sempre aberto a possibilidades, dúvidas, incertezas e múltiplas compreensões. Porque humanas, as narrativas também se realizam em diálogo e na certeza do acolhimento e escuta de outras pessoas. Por isso, na perspectiva que adotamos, toda história é contada a alguém.

Outras formas de recolhimento de memórias (como os diários) ou de registro do cotidiano (como os relatórios escolares) também pressupõem a existência de um outro, de vários outros. Quando narramos, mesmo que “apenas para nós mesmos”, estamos num espaço-tempo humano de relação. Mas a narrativa (auto)biográfica precisa de interlocução para se realizar, sob o risco de tornar-se outra coisa. Se há uma relação narrativa entre o individual e o partilhado, podemos afirmar haver também relações entre falar e ouvir, apresentar(-se) e acolher(-se).

Para o Marinas6 o circuito narrativo só acontece se a escuta do narrador for atenta. A Josso7 nos diz que a escuta tem que ser sensível. É nesse momento e contexto que o narrador vai buscar as cenas do cotidiano, vai na memória para nos contar, assim como ele também esquece ou reprime algumas cenas da sua vida (Abrahão, 2023a).

Maria Helena explicita que a pesquisa narrativa como campo investigativo também se fortalece pela escuta e acolhimento. Ao rememorar a realização do I Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica - CIPA, no ano de 2004, conta como a comunidade de pesquisadoras se fortalece pelas redes colaborativas de discussão que possibilitam a produção e difusão do conhecimento:

[...] Ninguém se conhecia, um aqui e outro acolá. Já naquele momento sabíamos que alguns pesquisadores trabalhavam com histórias de vida ou narrativas, eram aproximadamente doze grupos de pesquisa no Brasil. O primeiro CIPA foi muito interessante, pois estas pessoas foram convidadas por mim para escrever capítulos sobre suas pesquisas e nós primeiro fizemos um livro, e do livro aconteceu o CIPA. [...] Eu não poderia imaginar o que aconteceria depois, por todo este tempo. Nós não tínhamos como imaginar que haveria esse boom, esse crescimento do campo de pesquisa. Nós ocasionalmente nos líamos, mas nós não nos conhecíamos, não interagíamos. E isso aconteceu porque passamos a nos conhecer e conversar sobre nossas pesquisas. Era justamente essa a minha preocupação na época. A minha ideia era poder conversar entre si, interagir, pensar em pesquisas que pudessem ser realizadas conjuntamente. A partir daí, o movimento cresceu muito. Eu costumo dizer que nasceu forte (Abrahão, 2023a).

De certo modo, o próprio campo investigativo para se constituir também precisava de espaços de interlocução. O campo, para se desenvolver, implicava que as pessoas pudessem conversar, se conhecer pessoalmente. O evento acadêmico realizado na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil tinha como objetivo reunir pesquisadoras, professoras e estudantes interessadas em discutir questões teóricas e metodológicas relacionadas à pesquisa (auto)biográfica em diferentes campos do conhecimento, como Literatura, História, Psicologia, Sociologia, Antropologia, entre outros. O I CIPA contou com a presença de pesquisadoras nacionais e internacionais que apresentaram suas pesquisas e debateram temas como memória, identidade, subjetividade e a relação entre autobiografia e sociedade. O congresso viabilizou o desenvolvimento da pesquisa (auto)biográfica no Brasil e a promoção do diálogo interdisciplinar entre pesquisadores de diferentes áreas. Ele foi construindo a própria narrativa (auto)biográfica do campo. Este movimento é reconhecido e narrado por outros pesquisadores como Passeggi e Souza (2017), que escreveram sobre a história de constituição da pesquisa narrativa (auto)biográfica no Brasil.

No primeiro CIPA, foi apresentado o livro “A aventura (auto)biográfica: teoria e empiria” (Abrahão, 2004). Ele apresenta uma coletânea de artigos que abordam a pesquisa (auto)biográfica sob diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, explorando sua relação com a subjetividade, memória, identidade, literatura, arte e educação. Os autores também discutem questões éticas e epistemológicas envolvidas na pesquisa (auto)biográfica e apresentam estudos de caso que ilustram a aplicação prática desses métodos em diferentes contextos. A obra é uma referência para pessoas interessadas na pesquisa (auto)biográfica e em seus desafios teóricos e metodológicos.

O CIPA teve um crescimento significativo nos quase vinte anos desde a sua primeira edição, e tornou-se um dos maiores eventos acadêmicos da área de Educação do país, contando com o envolvimento de mais de mil participantes inscritos já em sua segunda edição. Em sua terceira versão, foi criada a Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, a Biograph, que passou a ser a responsável pela organização deste evento. Por meio de seus encontros e publicações8, a Biograph contribui para a divulgação de pesquisas e reflexões sobre o tema, estimulando o diálogo entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Além disso, a associação promove o intercâmbio de experiências entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros, enriquecendo a produção científica na área.

Na época eu não tinha consciência exata do que seria o CIPA. Eu o propus por sentir falta dessa proximidade com os colegas. Conhecia um colega aqui e outro ali, e alguns do exterior. Ainda estes, eu os conhecia de ler, de saber da existência, mas não havia nenhuma ligação entre nós. [...] O objetivo principal do CIPA era ver os grupos de pesquisa, fazer com que se conhecessem, para podermos pensar juntos, nos escutar. E a partir dali já passamos de fato a ter pesquisas conjuntas com colegas de outros grupos, e algo interessante passou a acontecer, pois formamos novos grupos, por exemplo o grupo que trabalha com histórias de vida, outro que busca compreender as histórias de vida de destacados educadores brasileiros, grupos com pesquisadores de várias localidades trabalhando juntos em interesses comuns (Abrahão, 2023a).

Relação é se conhecer, conversar, escutar, pensar junto. Isso acontece na narrativa (auto)biográfica e precisa acontecer no campo da pesquisa (auto)biográfica. Trata-se de uma condição que é ao mesmo tempo humana e metodológica. A história da criação do CIPA e da busca de Maria Helena por interconexões com outras pesquisadoras nos revela como a pesquisa narrativa (auto)biográfica se fortalece e se ancora como forma humanizada de produzir conhecimento, o que extrapola muito a caracterização deste paradigma pela escrita de textos narrativos. Falamos de uma opção metodológica.

Ao trabalhar com metodologia e fontes dessa natureza o pesquisador conscientemente adota uma tradição em pesquisa que reconhece ser a realidade social multifacetária, socialmente construída por seres humanos que vivenciam a experiência de modo holístico e integrado, em que as pessoas estão em constante processo de autoconhecimento. Por esta razão, sabe-se, desde o início, trabalhando antes com emoções e intuições do que com dados exatos e acabados; com subjetividades, portanto, antes do que com o objetivo. Nesta tradição de pesquisa, o pesquisador não pretende estabelecer generalizações estatísticas, mas, sim, compreender o fenômeno em estudo, o que lhe pode até permitir uma generalização analítica (Abrahão, 2012 p.80)

Os movimentos e métodos narrativos (auto)biográficos pressupõem alterações na própria concepção de o que vem a ser uma investigação, sobretudo ao se opor à ideia de que há um único modo de se fazer pesquisa, com protocolo universal e replicável, e estes são dados a priori. A investigação narrativa valoriza a subjetividade como uma forma possível de compreender a realidade, considerando que isso não exclui o caráter social e coletivo das relações humanas, ao contrário: aponta-se para a urgência em considerar as partes e o todo sincronicamente.

Como as pessoas e suas histórias estão no centro do trabalho metodológico, é imperativo que todos os envolvidos estejam presentes em sua inteireza. O ser humano não é apenas sua versão racionalizada, matematizada. Os sujeitos são também intuição e emoção e estes elementos não são um excesso que precisa ser excluído da pesquisa. Eles são, pelo contrário, presentes em todos os momentos. Da concepção da investigação, à sua realização, estamos exercendo um diálogo constante entre intuição, emoção e razão, o que traz a marca do constante inacabamento e inexatidão como elementos de trabalho. Generalizamos as experiências, que nosso espaço-tempo de encontro algum grau de totalidade e não as conclusões estatísticas, que são um recorte com vistas a maior precisão.

Não se trata de rechaçar outros paradigmas de produção do conhecimento, pautados na busca por um recorte que traga a maior segurança possível dos dados encontrados por meio do recorte do olhar e do controle dos procedimentos. Trata-se de encontrar aquilo que constitui a marca de um paradigma de conhecimento do campo narrativo (auto)biográfico: a escolha das narrativas e/ou histórias de vida como objeto de estudo, assumindo uma diversidade e heterogeneidade de referenciais teóricos com os quais se pode dialogar. O compromisso metodológico é com a manutenção da coerência com os referenciais escolhidos e na adoção de estratégias que viabilizem a produção de um conhecimento humanizado, que possibilite enxergar as pessoas envolvidas e suas vivências.

Maria Helena conta sobre seu próprio processo de construção como pesquisadora no campo narrativo (auto)biográfico, e com isso nos ajuda a compreender como se dá o surgimento dos diferentes movimentos no campo.

Aqui que houve uma transição do meu modo de pensar a pesquisa, da pesquisa altamente quantitativa, que eu não acho errada, eu acho ótima, pois há vários fenômenos que podemos compreender melhor por esta qualidade de pesquisa. [...] Mas no meu caso, eu passei a me interessar pelas histórias de vida das pessoas, e são outras nuances que vemos aqui, que me levaram à busca de outros caminhos. Trabalhamos identidade, trabalhamos a saúde, trabalhamos uma série de quesitos. [...] Posso dizer que a aproximação com o (auto)biográfico se dá por esse desejo de querer conhecer as histórias de vida e querer entender as questões de pesquisa a partir das histórias de vida (Abrahão, 2023a).

O surgimento das metodologias narrativas e (auto)biográficas se dá no contexto de busca por formas de aproximação com a experiência e a vida humana. Dá-se, ainda, no campo do desejo de compreender algo que só aparece na escuta atenta de uma história de vida. A partir das memórias e histórias narradas, buscamos elementos para a compreensão de nossas temáticas de estudo e para a elaboração do conhecimento. Parece plausível a escolha de estratégias que auxiliem na produção de registros em diferentes formatos e suportes, a depender do contexto e dos sujeitos. Daí a variedade de recursos e caminhos para que cada investigação se realize.

Sem a pretensão de comparar-se a outras formas de fazer pesquisa, a consolidação do campo de estudos narrativos (auto)biográficos possibilita a ampliação do debate acerca dos meios e finalidades da pesquisa educacional, valorizando a diversidade necessária para a produção de conhecimento num campo tão abrangente e repleto de pautas, cada qual com suas especificidades.

[...] Por um certo período até havia, por parte de alguns pesquisadores, nem sempre brasileiros, a tentativa de categorizar o modo como fazemos pesquisa. Um esforço para aplicar critérios que não são nossos. Muito mais recentemente, talvez nos últimos 10 anos, vemos a consolidação da ideia de que a diversidade, a polissemia presente nos estudos narrativos (auto)biográficos é fundamental, para a própria formação do campo [...].

Nós temos uma certa unidade epistemológica, e é ela que nos agrega. Mas acontece que lidamos com a diversidade da vida, tanto da vida que estudamos como das nossas próprias, e isso é enriquecedor. Eu escrevi sobre isso, num capítulo que eu gosto muito, eu dei o seguinte título: História de Vida de destacados educadores brasileiros: unidade na diversidade epistemológica de uma construção em rede de pesquisa 9. É dentro dessa diversidade que a gente consegue ver o que nos une, que é o paradigma maior.

[...] O que interessa é que nós dizemos como fazemos, o que fazemos e com que base fazemos. Porque assumimos um trabalho com a vida real, não trabalhamos exatamente nas mesmas condições que um autor, que estudamos, trabalhava. Por isso temos que mostrar o caminho metodológico tal como o fazemos. Isso nos fortifica e nos dá reconhecimento (Abrahão, 2023a).

Como estamos muito acostumados a paradigmas racionalizantes, que recortam a realidade para compreendê-la, houve tentativas de enquadrar a pesquisa com narrativas (auto)biográficas em categorias fechadas. Mas é justamente a diversidade, e não a padronização que caracteriza, como Maria Helena nos explica o respeito às diferentes formações e trajetórias das pesquisadoras do campo. Como ela, outras estudiosas do campo como Passos (2018), Abrahão, Cunha e Boas (2018) e Delory-Momberger (2018) têm se dedicado a dar visibilidade aos meios e métodos próprios deste paradigma, explicitando a unidade e diversidade do campo.

Muito diferente de reduzir o campo a superficial ecletismo, o que se afirma nos citados estudos é que apenas aquela que realiza o estudo, em diálogo e aproximação com seus objetos e fenômenos estudados, poderá dizer qual o melhor caminho para chegar a compreensões suficientemente adensadas. Mais ainda, dizer a pesquisa é ato humano de interlocução, que é a única forma de respeitar o próprio exercício de escuta da narrativa do outro.

Partir de diferentes referenciais teóricos, adotar enfoques distintos ou escolher outras formas de aproximação do fenômeno estudado não descaracteriza a comunidade que realiza pesquisas narrativas (auto)biográficas. Maria Helena reconhece na narrativa um ponto de convergência e a caracteriza como estratégia pela qual se acessa a história de vida e / ou de formação, a realidade cotidiana, as memórias e os sonhos dos sujeitos.

[...] Eu gosto do esquema do Bolívar10, quando ele apresenta a narrativa em três dimensões: ela é um fenômeno (porque ela é um relato); é uma metodologia de pesquisa (é nela que nós trabalhamos) e ela é uma práxis social, que vocês sabem disso melhor do que eu. É nesse momento da narrativa, da escuta, que tanto o narrador quanto o pesquisador vão se aprimorando no seu saber e no seu conhecimento. Ao trabalhar com professores, abordamos por estas três vias a formação da profissionalidade.

O que eu considero que seja um paradigma na nossa pesquisa, é o (auto)biográfico, as pessoas no centro do processo. Dependendo de que estudamos, ou de quem pesquisa, pode ver de outra maneira. Mas para mim o biográfico é maior, ele que abrange outras categorias.

Mas sem a narrativa não há pesquisa (auto)biográfica. A narrativa se insere no paradigma como uma estratégia para acessarmos o que desejamos em termos de busca de conhecimento. Como é que vamos conhecer uma história de vida, sem a narrativa? Como alcançar as memórias da pessoa que viveu, das pessoas que conviveram, que nós estamos estudando, se não por elas? (Abrahão, 2023a).

A valorização das trajetórias de vida (como objeto de estudo) e de pesquisa (como métodos investigativos), se funda no princípio de que o campo narrativo (auto)biográfico se faz no fortalecimento do coletivo e na relação dialógica, uns com os outros. Por esta mesma razão, Maria Helena enfatiza não ser possível, nem coerente, caracterizar os movimentos e métodos da pesquisa narrativa (auto)biográfica a partir de alguns grandes nomes. O reconhecimento dos pesquisadores brasileiros no campo, tem se dado de forma gradual, num processo de articulação e construção coletiva. Portanto, não cabe a referência de discípulos e mestres, mas sim de ineditismo, parcerias e construção colaborativa.

Nesse fazer, o estudo é desenvolvido de forma autoral e artesanal, por isso marcado pelas escolhas dos sujeitos envolvidos e seus desejos. É narrativo o estilo da escrita, é biográfica a ação de pesquisa, quando nos assumimos em formação e disponíveis à escuta e diálogo. São textos intersubjetivos, que ligam a pesquisadora, a narradora e a leitora.

Por isso, ao desenvolver uma pesquisa narrativa (auto)biográfica, a pesquisadora, como em qualquer paradigma, o faz a partir de uma perspectiva ética e estética. Em nosso caso, isso significa também escolher as palavras que melhor representam nossos processo, e pensar sobre elas.

[...] Não analisamos as histórias de vida. A gente fala em compreensão. [...] Eu prefiro dizer que trabalhamos com informações, ao invés de dados, mas eu uso também construção de dados. Porque não tem nada ainda construído na hora que iniciamos a pesquisa. [...] Já essa palavra, coleta, ela não existe para nós, nós estamos construindo. E não tem nada dado, tudo vai se construindo na relação, depende muito de como nós recebemos e como nós depois vamos contar a pesquisa. Não está dado para a própria pessoa que conta a sua história, imagine. Ela vai fazendo escolhas, omitindo partes, enfatizando outras. [...] E nossa tarefa, ali com o material em mãos, é também fazemos nossa narrativa, são as nossas teses, os nossos escritos, os nossos capítulos, e essa já é uma reconfiguração. E quem vai ler tem uma outra reconfiguração (Abrahão, 2023a).

A professora nos mostra que expressões cunhadas por outras abordagens metodológicas talvez não nos sirvam, ou precisem ser consideradas de acordo com os nossos processos. Palavras como coleta, dados e análise, não são meras escolhas semânticas. As palavras dizem da relação que vai se construindo e, por isso, precisam ser pensadas e repensadas a cada pesquisa. Não há palavras prontas, oriundas de um método prévio. Há palavras novas, oriundas da escuta e da interlocução.

Sobre esse aspecto, ao realizar uma pesquisa narrativa, a análise de dados se configura na produção de compreensões sobre as experiências e vivências dos participantes, permitindo que a pesquisadora identifique significados compartilhados e particularidades presentes nas narrativas realizadas.

Maria Helena também explicita a articulação da palavra dada e da escuta. Como já apresentamos, para a pesquisadora, a escuta dever ser atenta e sensível, “sem a escuta de qualidade ético/política da parte do pesquisador, portanto, a narrativa torna-se vazia, monológica, ou no limite, não existe” (Abrahão, 2018 p.33). Em diálogo com esta ideia, a palavra dada é a outra ponta da relação e deve contribuir para o processo de enunciação do narrador, é um fenômeno responsivo.

A palavra, então, ocupa lugar central na pesquisa narrativa (auto)biográfica, por entendermos que cada enunciado carrega em si certo contexto, certas ideias de si/do outro e certa compreensão da realidade. Por meio da escrita narrativa, buscamos compreender como as professoras fazem uso das palavras para elaborar o que é vivido coletivamente, também observando se fazem uso da escrita para instituir momentos de reflexão e troca, pela partilha de suas percepções, estratégias e leituras da realidade vivida. Tomamos a escrita e a fala como instrumento das professoras para abrir brechas para o diálogo, o trabalho coletivo e a reflexão sobre a profissão. Enquanto a professora escreve, também se relaciona com os outros que a leem e que protagonizam sua narrativa, em escuta respondente, tal como anunciado por Bakhtin (2010). Ela aprende e ensina numa rede colaborativa que se refaz a cada texto escrito.

Considerações finais

Aprendi, lendo o Ricoeur11, que nós professores somos autores. Autores porque nos reconhecemos assim, mas também porque assim somos reconhecidos, no sentido de que nos identificamos (Abrahão, 2023a).

A entrevista evidenciou a contribuição da pesquisadora Maria Helena Mena Barreto Abrahão para o fortalecimento do campo das pesquisas narrativas (auto)biográficas em suas diferentes vertentes e enalteceu o princípio colaborativo que permeia os diferentes grupos de pesquisadores da área. Ao participar da entrevista, Maria Helena contou situações vividas que possibilitaram ao grupo compreender acerca das bases epistêmicas da pesquisa, nas quais o sujeito que narra, relembrando fatos, dividindo experencias de diferentes espaços e tempos vividos, produz nos sujeito reflexões, inferências e aprendizagens sobre a história da pesquisa (auto)biográfica e também da história da vida de uma mulher pesquisadora que abriu caminhos e que dedica anos de sua trajetória a aprofundar e produzir compreensões e novas formas de pesquisar e produzir conhecimento.

Além dos destaques que nos possibilitaram compreender o campo de estudo aqui evidenciado, sua narrativa mostra parte da trajetória de uma grande pesquisadora brasileira, celebrando mais de trinta anos de contribuições em busca de um processo de pesquisa que revolucione a formação docente do país.

Como citar: FERREIRA, L. H.; SOARES, N. de P.; AGUIAR, T. B. de. Relações, métodos, palavras: a pesquisa narrativa (auto)biográfica por Maria Helena Abrahão. Revista Diálogo Educacional, v. 24, n. 80, p. 170-184, 2024. https://doi.org/10.7213/1981-416X.24.080.DS11

2Agradecemos a colaboração de Maria Helena Menna Barreto Abrahão neste estudo. Seu compromisso com a produção do conhecimento e sua generosidade nos inspiram.

3Usaremos o feminino ao fazer referência à classe docente e de pesquisa em Educação, por sabermos serem as mulheres maioria atuante nestes campos de trabalho.

4HiNaS - Grupo de Pesquisa Histórias de Vida, Narrativas e Subjetividade, cadastrado no diretório de grupos do CNPq: https://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/0976371314368679.

5As narrativas (auto)biográficas dos demais pesquisadores convidados também possibilitaram o estudo e elaboração de outros achados de pesquisa sobre a temática, que intencionamos publicar brevemente.

6Citando o pesquisador espanhol José Miguel Marinas.

7Citando a pesquisadora francesa Marie-Cristine Josso.

8Dentre as várias publicações organizadas pela Biograph, destaca-se a Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, que teve seu primeiro número lançado em 2016.

9Abrahão, M. H. M. B. História de Vida de destacados educadores brasileiros: unidade na diversidade epistemológica de uma construção em rede de pesquisa. Curitiba: CRV, 2018.

10Citando o pesquisador espanhol Antonio Bolivar Botia.

11Citando o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005).

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Recebido: 20 de Outubro de 2023; Aceito: 22 de Janeiro de 2024

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

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