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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.24 no.80 Curitiba ene./mar 2024  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.24.080.ao04 

Artigos

A escolaridade dos pais dos estudantes da educação de jovens e adultos em debate

The schooling of the parents of youth and adult education students in debate

El nivel educativo de los padres de estudiantes de educación de jóvenes y adultos, a debate

Luís Carlos Ferreira, Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana1 
http://orcid.org/0000-0003-2695-6206

1Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), Redenção, CE, Brasil


Resumo

O propósito do texto é analisar a relação do nível de escolaridade dos pais dos estudantes matriculados na educação de jovens e adultos e as possíveis influências reveladas no processo de retorno às salas de aula da modalidade. A abordagem intergeracional e interdisciplinar dessa discussão, desperta interesse de entender se existe [ou não] relação entre a escolaridade dos pais com a situação dos estudantes, os quais, por razões diversas, deixaram de dar continuidade aos estudos na idade esperada, mas retornaram às salas de aula em busca de aprendizagem, formação e certificação escolar. A base teórica procede de Bourdieu (2003), DaMatta (2002), Castel (2010), Freire (1987) e Escóssia (2021) cujos processos de formação escolar e humana passam pela força do papel com a certificação e a apreensão dos conhecimentos como instrumentos de emancipação do indivíduo. A pesquisa qualitativa, do tipo participante, permitiu a interlocução feita in loco, com 33 (trinta e três) estudantes do ensino fundamental de uma escola pública, da EJA, no interior do estado do Ceará, em conversas gravadas em áudio, com base em três perguntas que pautaram a análise nas falas dos estudantes-respondentes. Diante dos achados no estudo, foi possível verificar a necessidade de superação das histórias familiares de insucesso escolar conduzidas a uma não repetição dessa trajetória intergeracional; a prospecção de um futuro possível mediante a certificação alcançada na conclusão da etapa escolar e, por fim, as chances de mobilidade social prometida com a certificação, convertida em melhores oportunidades profissionais associadas à transformação social.

Palavras-chave: Educação de jovens e adultos; Certificação escolar; Escolaridade dos pais.

Abstract

The purpose of the text is to analyze the relationship between the educational level of the parents of students enrolled in youth and adult education and the possible influences revealed in the process of returning to the modality's classrooms. The intergenerational and interdisciplinary approach of this discussion arouses interest in understanding whether there is [or not] a relationship between parents' education and the situation of students, who, for various reasons, stopped continuing their studies at the expected age, but returned to classrooms in search of learning, training and school certification. The theoretical basis comes from Bourdieu (2003), DaMatta (2002), Castel (2010), Freire (1987) and Escóssia (2021) whose processes of school and human formation go through the power of paper with the certification and apprehension of knowledge as instruments of individual emancipation. Qualitative research, of the participant type, allowed the dialogue to be carried out in loco, with 33 (thirty-three) elementary school students from a public school, EJA, in the interior of the state of Ceará, in conversations recorded in audio, based on three questions that guided the analysis in the speeches of the student-respondents. In view of the findings in the study, it was possible to verify the need to overcome family stories of school failure leading to a non-repetition of this intergenerational trajectory; the prospect of a possible future through the certification achieved at the end of the school stage and, finally, the chances of social mobility promised with the certification, converted into better professional opportunities associated with social transformation.

Keywords: Youth and adult education; School certification; Parents' schooling.

Resumen

El texto tiene como objetivo analizar la relación entre el nivel educativo de los padres de alumnos matriculados en educación de jóvenes y adultos y las posibles influencias reveladas en el proceso de retorno a las aulas de la modalidad. El abordaje intergeneracional e interdisciplinario de esta discusión despierta el interés de comprender si existe [o no] una relación entre la escolaridad de los padres y la situación de los estudiantes, quienes, por diversas razones, dejaron de continuar sus estudios a la edad esperada, pero regresaron a las aulas en busca del aprendizaje, la formación y la certificación escolar. La base teórica proviene de Bourdieu (2003), DaMatta (2002), Castel (2010), Freire (1987) y Escóssia (2021) cuyos procesos de escuela y formación humana pasan por el poder del papel con la certificación y aprehensión del saber como instrumentos de emancipación individual. La investigación cualitativa, de tipo participante, permitió realizar el diálogo in loco, con 33 (treinta y tres) alumnos de enseñanza fundamental de una escuela pública, EJA, del interior del estado de Ceará, en conversaciones grabadas en audio, a partir de tres preguntas que orientaron el análisis en los discursos de los estudiantes-respondientes. Frente a los hallazgos del estudio, fue posible verificar la necesidad de superar las historias familiares de fracaso escolar que conduzcan a la no repetición de esa trayectoria intergeneracional; la perspectiva de un futuro posible a través de la certificación lograda al final de la etapa escolar y, finalmente, las posibilidades de movilidad social prometidas con la certificación, convertidas en mejores oportunidades profesionales asociadas a la transformación social.

Palabras clave: educación de jóvenes y adultos; certificación escolar; escolaridad de los padres.

Introdução

Dizer que a educação escolar tem importância no futuro pessoal e profissional das pessoas e reconhecer a escola como espaço de formação de valores que constituem parte integrante da formação humana dos indivíduos não é novidade! No entanto, abordar sobre o nível de escolaridade dos pais dos jovens e adultos11 que retornam às salas de aula da modalidade e seus efeitos na formação humana dessas pessoas nos desafia a conhecer muitas situações de superação, reconhecimento e inclusão social.

Nos últimos anos, em especial, no último governo, assistimos à completa invisibilidade das políticas públicas de educação de jovens e adultos, que foram acompanhadas de uma “redução por gotejamento” na modalidade. Em outras palavras, a expressão serve para explicar a gradativa diminuição na oferta do número de escolas, pelos sistemas de ensino, consequência de uma redução do número de matriculados na modalidade, conforme mostram os dados estatísticos do Censo da Educação Básica (Brasil, 2023).

O processo de degradação que resulta na invisibilidade também ocorre com a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão2 (SECADI). Além disso, destaca-se a falta de alinhamento com as políticas de implementação das Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), sem falar da alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional com a promulgação da Lei 13.415/2017, que institui o Novo Ensino Médio32, sem o devido diálogo com a Educação de Jovens e Adultos.

Nessa perspectiva, discutimos a ampliação do olhar sobre os invisíveis ou os excluídos social e culturalmente, sobretudo, em relação ao interesse pelo retorno aos estudos, quase sempre associado às possibilidades de ingresso ou reinserção em postos de trabalho, reconhecimento de cidadania e esperança de um futuro. Então, a proposta do texto é analisar a relação do nível de escolaridade dos pais dos estudantes matriculados na educação de jovens e adultos e as possíveis influências reveladas no processo de retorno aos bancos das salas de aula da modalidade. Tomamos de empréstimo o termo “invisíveis”, utilizado por Fernanda da Escóssia, em uma de suas importantes obras Invisíveis: uma etnografia sobre os brasileiros sem documento, para, de forma análoga, tratarmos dos não certificados ou não escolarizados no papel. No caso, Escóssia (2021) refere-se à falta da certidão de nascimento enquanto um documento básico que destitui a pessoa de direitos e de acesso às políticas públicas diversas - saúde, educação, assistência social, entre outros - no exercício de sua cidadania.

A ideia consiste no entendimento de que a falta do documento de escolaridade pode ser uma das razões que acentuam a invisibilidade ou a exclusão social, quando reduz e dificulta o acesso dessas pessoas a determinados direitos básicos e políticas públicas, complementados por privações e/ou dependência de tutores sociais, ou seja, de pessoas que auxiliam nas situações de dificuldades vivificadas no cotidiano. Em outras palavras, significa conhecer o nível de escolaridade dos pais dos estudantes matriculados nas classes de Educação de Jovens e Adultos (EJA) para, então, discutirmos sobre os porquês da interrupção e regresso à continuidade dos estudos, conhecermos as influências para o retorno na modalidade, bem como os possíveis impactos da falta da certificação escolar, no âmbito pessoal e profissional dessas pessoas.

Sendo assim, a busca do papel com a retomada dos matriculados aos bancos da EJA carrega, em si, muitos sentidos e alguns significados que, preliminarmente, servem como incentivo ou de indícios na superação das muitas histórias de vida que se destacam pela esperança de futuro. Desse modo, propomos conhecer parte dessas experiências do passado da escolarização dos pais, por meio da escuta aos estudantes matriculados de uma das escolas de ensino fundamental da modalidade, localizada no Maciço de Baturité, no interior do Ceará.

Recorremos à pesquisa qualitativa, do tipo participante, cuja abordagem consiste na observação-participante, inicialmente, por intermédio de um componente curricular obrigatório do curso de Pedagogia, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) - Estágio Curricular em EJA nos países da integração - em que se exige o cumprimento de carga horária ‘in loco’ nas escolas-campo em turmas da modalidade na região do Ceará. Das atividades relacionadas às experiências de estágio, destacam-se: a observação e a coparticipação nas atividades pedagógicas, realização da prática da regência em concordância com o professor-regente da turma da modalidade e, por fim, uma conversa gravada em áudio com os estudantes, jovens e adultos, da(s) turma(s) de EJA.

Antecipamos que, no percurso metodológico, a coleta dos áudios com as falas dos estudantes dessas turmas forneceu elementos importantes para a análise não somente sobre as vivências desses jovens e adultos presentes nas salas de aula da EJA, mas para os próprios estudantes-estagiários dessas turmas de estágio curricular que, nos espaços de prática - escolas-campo -, provocaram respostas pautadas em três indagações: 1. Quais os motivos para o retorno às salas de aula? 2. Qual a escolaridade de seus pais e família [ascendente]? 3. Quais perspectivas você espera alcançar com a conclusão dessa etapa escolar?

De um lado, falar dos/com os estudantes matriculados na educação de jovens e adultos significa perceber a realidade, suas trajetórias de vida como processo de acolhimento, de esperança e esforço pela conquista de uma certificação escolar. De outro, a possibilidade de entrecruzar as aprendizagens - crítica e criativa - que, na perspectiva interdisciplinar, são reveladoras de múltiplos saberes, culturas e experiências de formação humana do sujeito da EJA, assim como encarnam, no sujeito ativo, a consciência da transformação e da emancipação social.

O papel como fonte documental e a constatação ”certificada” do saber

É sabido que a certificação escolar no ensino regular, próprio para as crianças e jovens com idade para a etapa e ciclo da escolarização básica, depende, quase sempre, do acompanhamento dos pais ou responsáveis legais em promover a garantia com a educação formal sob a condição de responsabilizar-se pela frequência e o acompanhamento escolar. Por razões diversas, no caso da população jovem ou adulta que não deu continuidade ao processo de escolarização à idade adequada, retomar os estudos serve como garantia de um direito à aprendizagem e, por conseguinte, aos documentos formais - certificado e histórico escolar - como parte da complementação e continuidade do processo de formação humana e de reconhecimento da sua própria cidadania. Nesse sentido, a perspectiva do encontro intergeracional pela consulta aos pais dos estudantes da EJA, acerca do nível de escolaridade, possibilita conhecer os diferentes olhares para a educação escolar e, ao mesmo tempo, resgatar [na análise] muitos valores subjetivos deixados como legado por esses pais em relação à certificação e o que a falta dela impacta ou influencia na caminhada social dessas pessoas.

Inicialmente, partimos do conhecimento preliminar baseado nas informações dadas pelos estudantes da EJA a respeito do nível de escolaridade de seus pais, de modo a revelar parte das expectativas presentes no retorno aos bancos escolares, no intuito de dar mais sentido ao reconhecimento social como matriculados na modalidade.

Dos estudos e observações feitas ao longo de nossas pesquisas4, adiantamos que a educação de jovens e adultos envolve diretamente [e não somente] a aquisição do certificado escolar, enquanto um documento oficial que legitima o conhecimento fixado no papel. Além disso, a modalidade pode celebrar o encerramento de um ciclo de aprendizagem como uma determinada série, etapa ou ano escolar, seja de modo prolongado [ou não], no caso dos anos iniciais, finais do ensino fundamental e/ou ensino médio quando nos referimos à conclusão da Educação Básica. Em relação à escolaridade, notamos o desafio de cada segmento de ensino em despertar o reconhecimento de um direito à educação no sujeito social, especialmente, com a certificação materializada no documento que carrega, em si, muitos significados ligados à potência e à força do papel que, a princípio, comprova os conhecimentos e os saberes que são legitimados na posse desse documento. De um lado, destacamos o reconhecimento da certificação como um processo que está restrito ao documento, em si; de outro, interrogamos em que medida o papel reflete os conhecimentos adquiridos pelo sujeito e se, de fato, a aprendizagem do sujeito-concluinte está refletida na letra e na tinta preta do papel.

Longe de duvidarmos de o quão fundamental e importante é advogarmos em favor da certificação e do que isso representa na sua inteireza e na totalidade, importa discutir - no artigo - a materialidade do documento e o que representa física e simbolicamente. Na sequência, é fundamental analisar a relação da certificação com as aprendizagens resultantes da formação reunida em conhecimentos, experiências, convivências, considerados fundamentais no processo. Nesse contexto, somos provocados a refletir sobre o que Kuenzer (2005) chama a atenção para a ‘certificação vazia’, enquanto expressão utilizada como significado daquilo que nem sempre condiz com a aquisição do papel, a apreensão do conhecimento e as aprendizagens necessárias ao estudante concluinte.

Muito além da tinta preta registrada nos documentos expedidos por órgãos oficiais está a pessoa humana, detentora de saberes que extrapolam os conhecimentos impressos no papel, sobretudo, na educação de jovens e adultos cujos saberes ancestrais, históricos, políticos, artísticos estão encarnados nas experiências de vida do aprendente. Convém destacar que esses elementos têm desafiado o cotidiano escolar da modalidade a trabalhar com práticas pedagógicas de superação dos conhecimentos colonizados e tornados abstratos na concepção de uma educação bancária.

Precisamos insistir no diálogo interdisciplinar da formação humana na educação escolar, especialmente, na educação de jovens e adultos, com as práticas curriculares significativas que ultrapassem a relação linear e fixa dos conhecimentos enciclopédicos, livrescos e acadêmicos. Essa é uma das chances de repensarmos formas alternativas de rompimento com a cultura do silêncio entre os sujeitos da modalidade, em se tratando das pessoas que, potencialmente, encarnam memórias e existências latentes das muitas experiências vivificadas, em que o currículo escolar tende a invisibilizar, negar /ou excluir.

A essa altura, arriscamos dizer que o documento de escolaridade vale como um testemunho físico tão fundamental para o acesso a determinadas políticas públicas de direitos sociais por parte dos sujeitos da modalidade, a exemplo de pais e mães de família, trabalhadores formais ou informais, lideranças religiosas, pessoas LGBTQIA+, membros de grupos e associações etc., os quais buscam acesso a determinadas políticas públicas: emprego, trabalho e renda, aquisição de documentos (carteira de motorista, por exemplo) entre outros. É um portar-se frente a uma autonomia gerada pelo letramento que possibilita aos indivíduos, que se apropriaram da leitura e da escrita, a inclusão em muitas garantias legais, formalizadas no âmbito do exercício da cidadania.

Em relação à posse do documento físico de qualquer natureza, DaMatta (2002) aponta para o significado real dessa aquisição material que, em muitos casos, dá legitimidade ao sentido oficial de comprovação da existência individual da pessoa, pois “num sentido preciso, a obrigatoriedade das carteirinhas, atestados, certificados e diplomas, que ajudam a reificar direitos e pessoas, são sintomas de um sistema que insiste em operar pelo eixo da pessoalidade, da honra, da vergonha e da amizade” (Damatta, 2002, p. 43).

Por outro lado, notamos também que o certificado escolar carrega uma promessa de recompensa a quem consegue concluir determinada etapa ou segmento de ensino. Na educação de jovens e adultos, o reconhecimento desse tipo de documento oficial pode ser visto como esperança de transformação e de mobilidade social com oportunidades de ingresso no mercado de trabalho e/ou melhoria das condições de emprego, entre outros. Esses efeitos estão presentes nas falas dos sujeitos da escola de EJA - apresentadas mais adiante - que investem esforço, tempo e dedicação aos estudos formais. Não por acaso, esperançam por um retorno como garantia de recompensa pela apreensão da aprendizagem conferida na materialidade do documento e, acima de tudo, nos conhecimentos adquiridos e oficialmente retratados no título de reconhecimento desse direito.

A promessa de recompensa ocorre quando, subjetivamente, se espera do certificado ou do diploma conferido ao estudante concluinte da etapa ou do segmento de ensino, simbolicamente, a retribuição pelo esforço alcançado. No campo material, o documento, em si, na forma de titulação proferida pela escola, em grande medida, gera um impacto que pode ser traduzido como possibilidade de êxito provável ao indivíduo, na forma de empregabilidade, maior eficiência nas atividades profissionais e mesmo na melhoria da qualidade de vida originada pela árdua caminhada na modalidade. É importante destacar que esse mesmo “papel” hierarquiza e classifica os que o possuem dos que não possuem, seja como forma de inclusão nos diferentes modos de pertencimento a determinados grupos como também para hierarquizar e segregar os graus de maior ou menor titulação e, até mesmo, classificar o “ser mais” do “ser menos” na lógica dos processos produtivos.

Diante disso, a posse do documento não pode [e não deve] determinar a cidadania da pessoa escolarizada, precisamente porque esse tipo de reconhecimento está longe de ser reduzido ao conhecimento legitimado no papel dos diferentes graus de titulação alcançados pela pessoa. Razão pela qual os processos humanizadores vão muito além do registro formal, pois envolvem a consciência, o diálogo, as relações sociais de inclusão dos homens [e mulheres] que lutam por emancipação e libertação. Nessa perspectiva, é fundamental recorrermos às palavras de Freire (1987, p. 35), que nos lembra o quanto “a libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce desse parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos”. Por isso, a possibilidade de superação da contradição está na força e na luta percorridas pelo sujeito que transforma o certificado em práxis45 humanizadora nas suas ações de libertação. Primeiro, uma libertação de si próprio e depois em comunhão com o outro, transformando-se, simultaneamente.

Em torno da certificação, muitas expectativas são criadas e transferidas ao que, no cotidiano, confere valor ao registro material e que, de modo geral, pressupõe a garantia dos conhecimentos apreendidos. No entanto, a realidade concreta, opressora, encontra, na sociedade moderna, as garantias indiscutíveis da racionalização como resultado objetivo dos saberes alcançados e reduzidos à fonte escrita que oficializa e documenta os conhecimentos alcançados.

Numa análise concreta, DaMatta (2002) nos mostra que

se o mundo da casa não precisa de leis escritas, no mundo da rua tudo é explícito e escrito: dos sinais de trânsito à Constituição e aos indispensáveis “documentos”. Em casa vale o cheiro, o corpo, a palavra, mas na rua o que conta é o fiador e a assinatura com firma reconhecida em cartório os quais incorporaram e canibalizaram à sua arcaica burocracia, moderníssimos computadores (Damatta, 2002, p. 61-62).

Sendo assim, insistimos na força da palavra - falada e escrita - como parte da herança cultural que caracteriza os sujeitos de direitos e do processo humanizador revelado na produção dos saberes que, por si só, não cabem nem ficam restritos ao papel. Esses saberes chegam encarnados nos sujeitos-aprendentes que, especialmente na EJA, buscam reativá-los e revivê-los em transformação com os conteúdos trabalhados. Podemos dizer que há um (re)encontro dos saberes ancestrais, culturais, familiares e humanos produzidos nos/pelos sujeitos da escola de EJA durante anos e anos de trajetórias e experiências de vida com os conhecimentos formais e livrescos. Percebemos que, no cotidiano dos processos educativos, esse entrecruzamento de culturas [ainda] desafia a concepção de uma educação bancária, enraizada e que, por isso, é objeto de adesão dos opressores que sonham com a permanência dessa escola do silêncio.

Retratos de família: um olhar sobre a escolaridade dos pais

O nível de escolaridade dos pais e família dos 33 (trinta e três) estudantes matriculados na EJA de uma turma de ensino fundamental da rede pública, no interior do estado do Ceará, foi objeto de muito interesse neste estudo por desvelar algumas pistas na relação com as histórias de superação, transformação das condições de educação escolar e reconhecimento do processo de formação humana vivido por essas pessoas. Ao dizermos isso, refletimos sobre o quão fundamental tem sido a retomada da escolaridade entre os que retornam às salas de aula da educação de jovens e adultos, sobretudo, pela percepção da importância da palavra - falada e escrita - como práxis continuum de movimento de produção de sonhos, autonomia e, principalmente, emancipação social.

É bom que se diga que estamos diante da escassez na literatura que versa sobre a discussão em torno da família dos estudantes, jovens e adultos da EJA, possivelmente, por serem reconhecidos como um público cuja idade já constitui suas próprias famílias ou, quem sabe, por ser um tema de menor interesse pelos estudiosos da área em se tratando de família de pessoas jovens e adultas, entre tantos outros motivos. No entanto, a relação intergeracional e interdisciplinar que essa discussão sugere nos desperta muito interesse de entender se existe [ou não] relação entre a escolaridade dos pais com a situação desses estudantes que, por razões diversas, deixaram de dar continuidade aos estudos na idade esperada, mas que retornaram às salas de aula em busca de aprendizagem, formação e certificação escolar.

De um lado, as condições objetivas do retorno pressupõem a superação no nível de escolaridade dos pais desses jovens e adultos da EJA, como um ir além das histórias de vida de suas famílias. De outro, o retorno à escola vem carregado de um provável êxito na caminhada pessoal e profissional, representada na forma de uma promessa de recompensa aliada ao alcance de reconhecimento social garantido pela força do papel. Desse modo, algumas evidências extraídas de conversas com os estudantes matriculados em turmas de EJA do ensino fundamental, mostraram que três aspectos ocorrem, simultaneamente, na relação entre a escolaridade dos pais e o retorno às unidades de ensino da modalidade: 1. a superação das histórias familiares de insucesso escolar conduzidas a uma não repetição dessa trajetória intergeracional; 2. a prospecção de um futuro possível mediante a certificação alcançada na conclusão da etapa escolar; 3. as chances de mobilidade social prometida com a certificação, convertida em melhores oportunidades profissionais associadas à transformação social.

Assim, o conhecimento formal ou livresco opera na forma de estratificação entre as pessoas da família que alcançaram um determinado nível de escolaridade e os que avançaram, a exemplo de muitos pais analfabetos dos estudantes do ensino fundamental matriculados na EJA. Em relação à etapa de formação escolar, os argumentos levam ao alcance do letramento, mas também da alfabetização (Soares, 2004), com êxito, na apreensão da leitura e da escrita, e ainda mostram o esperançar (Freire, 1992) por melhores condições de vida e trabalho.

Reflexivamente, a educação escolar, direta e indiretamente, influencia a “sociedade assalariada” (Castel, 2010) no rompimento do ciclo de exclusão e pobreza entre os mais diversos grupos sociais, à medida que a conquista materializada na certificação escolar - de modo subjetivo - “recompensa” as pessoas jovens e adultas. Dowbor (2015, p. 16) nos diz que, “com a revolução tecnológica, o conhecimento torna-se um elemento central dos processos produtivos” que justifica, quase sempre, a ascensão e a mobilidade social almejadas pelos sujeitos da modalidade.

Em Freire (1987), reconhecemos que a educação emancipatória, crítica e criativa apresenta-se como instrumento de libertação de corpos e mentes dos sujeitos-aprendentes, e mais, como uma potência na superação das armadilhas da opressão, internalizadas e naturalizadas nas histórias de vida desses indivíduos não-escolarizados. Essa afirmação ganha sentido quando compartilhamos os valores, os saberes, as experiências e as práticas que estão envolvidas no conhecimento formal, livresco e escolar apreendido nesse processo interdisciplinar.

No entanto, os estudos de Bourdieu (1998) apontam que a herança cultural transmitida pela família, direta ou indiretamente, serve de base para definição das atitudes, dos comportamentos e dos muitos valores interiorizados no sujeito, os quais influenciam no êxito da criança [no caso, jovens e adultos] na escola. Assim, o processo de retorno do estudante na modalidade de educação de jovens e adultos pode ser resultado dessas influências culturais herdadas nos grupos sociais e/ou do nível cultural mais amplo e complexo do grupo familiar.

No percurso metodológico assumido pela abordagem qualitativa, de cunho participante, a interlocução feita in loco, com os sujeitos da educação de jovens e adultos do ensino fundamental na questão acerca da escolaridade dos pais desses interessados, nos mostrou que a maioria dos pais que carregam, em suas histórias de vida, o analfabetismo absoluto ou uma conclusão parcial da primeira etapa do ensino fundamental - anos iniciais. O processo de leitura e escrita precarizado e centrado na alfabetização desses pais dos estudantes matriculados na EJA, de acordo com os argumentos, além de não ter sido instrumento de interesse pela escola, também indica que muitos dos estudantes, se não derem continuidade aos estudos, terão, possivelmente, as mesmas dificuldades de seus pais, principalmente no acesso às melhores condições de trabalho e emprego.

Pudemos constatar que dos 33 (trinta e três) respondentes, 22 (vinte e dois) estudantes informaram que seus pais são analfabetos ou passaram apenas pelos anos iniciais do ensino fundamental, com pouco conhecimento formal da leitura e escrita. Em relação aos anos finais do ensino fundamental, essa realidade é de apenas 4 (quatro) famílias que avançaram do 6º ou 9º ano e essa redução ainda é menor quando nos referimos ao ensino médio, com 3 (três) pais que alcançaram a etapa final da educação básica. No caso dos estudantes que não souberam informar a respeito do nível de escolaridade dos pais, tivemos 4 (quatro) respondentes.

Embora possa parecer de pouca relevância, conhecer a respeito do nível de escolaridade dos pais desses estudantes da EJA, com a pergunta “qual o nível de escolaridade de seus pais?”, além de tornar a relação mais próxima do sujeito-respondente com sua própria experiência de vida, o faz recuperar parte de sua história, ressignificar um intenso esforço de resistência e luta pela continuidade nos estudos e transformação de sua relação com o mundo ao seu redor. Nas palavras de Bourdieu (2003, p. 42), “mais que os diplomas obtidos pelo pai, mais mesmo que o tipo de escolaridade que ele seguiu, é o nível cultural global do grupo familiar que mantém a relação mais estreita com o êxito escolar da criança”. Nas redes familiares e sociais, especialmente nesse grupo de pessoas jovens e adultas presentes na escola, o termo “futuro” aparece entre os mais recorrentes e de maior relevância nas trajetórias dos sujeitos da modalidade.

Nosso esforço consiste não apenas em conhecer as razões pela não continuidade no ensino regular, suas expectativas, perspectivas no retorno aos bancos escolares da educação de jovens e adultos, mas em avançar na reflexão sobre a relação do nível de escolaridade desses pais e as influências geradas no regresso aos estudos. Um árduo e complexo processo de desalienação e desumanização, imposto na história da sociedade opressora, como nos lembra Freire (1987), expresso em depoimentos, como: “eu não quero desistir dos meus sonhos”; ou ainda “não posso ser a pessoa frustrada por não ter conseguido, porque na época eu era mais nova e nunca é tarde para correr atrás dos sonhos”. São afirmações que falam muito de si sobre as condições materiais e simbólicas legitimadas no processo vivido num passado de desistência, dor e violência dos opressores, mas, ao mesmo tempo, revelam o desejo de conquista da liberdade, autonomia e emancipação geradas com a formação humana.

Da baixa escolaridade dos pais, um aspecto importante na análise diz respeito à atividade produtiva em que se destaca a agricultura como a mais recorrente forma de trabalho exercido por esses pais dos estudantes consultados. As evidências de dificuldades na continuidade dos estudos, quase sempre, estão associadas às necessidades de sustento da casa, alimentação na mesa ou mesmo aspirações ligadas à propriedade - aquisição de moradia própria, automóvel etc. - sinônimo de bem-estar da família. “Era mais dificultoso naquela época que estudei, né, no passado, há 25 anos atrás. E, a caneta dele [o pai] era a enxada, o caderno era a terra, a escola dele era o campo plantando, né, e eles não tinham, infelizmente foram analfabetos”. Outro argumento é o de que: “A minha mãe fez até o quinto ano e meu pai fez até o primeiro [ensino fundamental], porque ele teve que parar porque ele, né, se juntou com a minha mãe aí ele teve que trabalhar para poder sustentar, né, então… foi por isso!” ou ainda “Minha mãe era analfabeta mesmo. Meu pai, ele estudou, que ele tinha mercearia”.

No entanto, reconhecemos que a riqueza das experiências acumuladas não está limitada à escola e comungamos com Freire (1987, p. 53) ao afirmar que as condições impostas de alienação e consciência colonizada impediram, no caso dos pais e até dos filhos da EJA, de assumir a ação rebelde de conquista da liberdade em razão de todo processo violento que “de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua ‘incapacidade’”. Num processo de aceitação docilizada, orquestrada pelo opressor, surge a impossibilidade de compreender o quão proposital é aceitar as razões que mostram, por exemplo, a fala de que “Minha mãe ficou na 2ª série e meu pai até a 4ª série. Aí eles aprenderam a ler, escrever e assinar o nome, só. Aí meu pai tinha cabeça boa para fazer conta, ele era muito bom em matemática. Ele também era agricultor, trabalhava em roça”.

Pouco a pouco, os pais desses jovens e adultos da EJA despertam, em si, a práxis genuína de uma consciência voltada para a formação do “homem novo” (Freire, 1987), aquele capaz de inaugurar, no diálogo e no ativismo, a necessária reflexão crítica. Um fato a destacar é que existe uma crença na escola como lócus de socialização, inclusão e destino bem-sucedido para as gerações dos filhos que almejam um passaporte para o futuro, com alguns argumentos que reforçam o incentivo aos filhos, como o de que foi “motivada pela mãe a voltar a estudar” ou que foi “motivada por ter pais analfabetos”, ao passo de uma “vontade antiga de querer concluir o Ensino Fundamental. Espero melhorar um pouco mais a leitura. Já facilitou muito pra mim, porque eu fiquei muito tempo parada, sem estudar”.

Nessa perspectiva intergeracional, o incentivo dos pais revela o desejo por superação das condições vividas nesse passado de dificuldades financeiras por não alcançarem o êxito necessário para a transformação cultural e a mobilidade social de suas vidas. Além disso, tem potencializado [nesses pais] a revolução nas mentes e nos corpos dos autênticos “doutores” da terra, do arado, da agricultura e do manejo dos animais, protagonistas que são de suas próprias histórias de mudança que, de maneira alguma, os tornou inferiores ou “menos”, diante dos “doutores no papel”. Notamos, também, que o provável êxito na aprendizagem do estudante, jovem e adulto na EJA, combina as expectativas de melhoria de vida com o processo de avançar na realidade intergeracional, em razão do passado de muitas desvantagens sofridas na escolarização dos pais e dos familiares. Em outras palavras, o nível escolar dos pais [ou a falta] aparece em grande parte nas conversas, a saber: “Eles não estudaram”, “Não sabe ler, nem escrever” ou, então, “Eles só têm até o ensino fundamental, não concluíram seus estudos”. Daí, se os conhecimentos formais herdados pelos pais não são suficientes para explicar o sentido de futuro profissional, jamais podemos desconsiderar que a cultura livre assume importante papel na subversão dos modelos sociais hegemônicos vigentes, adquiridos com a riqueza de herança resultante dos saberes, convicções, atitudes e valores promovidos fora da escola e transmitidos pelo processo osmótico56.

Referimo-nos à subversão da lógica que fundamenta as estruturas sociais de conservação e estratificação do capital cultural, desiguais nas culturas dominantes, na perspectiva da emancipação do sujeito social. Afirma Bourdieu (1998, p. 56) que "é a hierarquia dos valores intelectuais que dá aos manipuladores prestigiosos de palavras e ideias de superioridade sobre os humildes servidores das técnicas”. No entanto, nossa reflexão é de que a autonomia e a consciência crítica e criativa do sujeito vêm atravessadas de muita herança cultural transmitida nos saberes, valores, crenças, atitudes e comportamentos pelos pais escolarizados e não escolarizados, e que muito importa no processo de protagonismo da emancipação humana e conquista por cidadania. Aproveitamos alguns indícios de superação das desvantagens sociais e culturais deixados como motivação para os respondentes da pesquisa, expressos nas falas: “Tipo, eu quero dar orgulho para a minha mãe”; “Acabar os estudos, finalizar os estudos, todos, completo e ser alguém na vida um dia, né!”; ou, ainda, “Ter um futuro melhor!”. Notamos as recorrentes passagens de autonomia com a garantia do papel decorrente da certificação e bem material que assumem caráter simbólico de aceitação social e, sobretudo, de um futuro possível na construção de um “novo homem”.

Decorre do processo, o valor do registro formal na evolução do capital cultural pelos conhecimentos adquiridos e aprendidos na formação escolar e nas experiências socialmente promovidas pela convivência, fruto das intensas trocas e relações estabelecidas nos diferentes grupos sociais. Lovison e Glasenapp (2020, p. 39) nos mostram que a concepção de capital cultural em Bourdieu refere-se “a uma série de experiências que são oferecidas aos sujeitos socialmente e que podem facilitar o seu aprendizado, ampliando as maneiras de pensar o mundo”. No caso, a herança escolar dessas famílias ascendentes está sendo incorporada ao interesse de conhecer melhor as histórias dos estudantes que recorrem à modalidade para desempenhar melhores condições na formação. Dessa maneira, o sucesso na aprendizagem escolar ou nos rumos das atividades profissionais futuras, quando ligadas à educação de jovens e adultos, excede o processo de perpetuação da escola conservadora, forjada a reproduzir as desigualdades culturais e a determinar os destinos dos sujeitos da modalidade. Em outras palavras, o sistema de homogeneização imposto pela educação escolar e transmitido pelas culturas de elite conduz os indivíduos jovens e adultos a não perceberem ou terem a “consciência de privação” (Bourdieu, 2003), mas a se adaptarem aos mecanismos de transmissão idêntica às culturas de massa promovidas aos trabalhadores das classes populares.

Considerações finais

Longe da preocupação com a dinâmica da reprodução social no contexto familiar, o trabalho reuniu esforços para analisar a relação entre o nível de escolaridade dos pais dos estudantes matriculados na EJA, do ensino fundamental, de uma unidade de ensino no interior do Ceará, em face da realidade concreta desses jovens e adultos que buscam na escola possibilidades outras, diferentes das suas próprias relações familiares e intergeracionais.

É preciso dizer que nos deparamos com poucos estudos, pesquisas e produções acerca da temática voltada aos pais dos estudantes da educação de jovens e adultos, em condições de ampliar nossa literatura especializada na área de família, mesmo reconhecendo que a modalidade reúne estudantes, pais e mães que conduzem suas vidas de forma independente. No entanto, quando as temáticas envolvem as famílias e pais de crianças do ensino regular, a realidade das publicações recebe maior repercussão no campo acadêmico.

Num primeiro aspecto analisado, o trabalho de conhecer o nível de escolaridade dos pais das pessoas jovens e adultas da EJA rendeu o resgate de muitas histórias narradas nas conversas remetidas a um passado, assim como demonstrou a intenção no interesse de ir além dessas trajetórias familiares de insucesso escolar, de modo a não reproduzir a baixa formação e o desinteresse pela educação escolar às gerações descendentes.

O aprendizado a respeito da influência dos pais dos estudantes na educação de jovens e adultos, direta ou indiretamente, mostra que essa caminhada de formação humana e profissional vem encarnada de muitos sentimentos, valores e desejos deixados pelos pais e famílias, revelados na forma de incentivo dado para o retorno à escola. Então, a vontade expressa de “eu quero dar orgulho para a minha mãe” é algo muito simbólico e revela a tríade - sentimentos, valores e desejos -, a qual corrobora para reflexão de que, embora sejam jovens e adultos, não se descarta a presença [física ou saudosa] desses pais e famílias que contribuem [ou contribuíram] no processo de formação de homens e mulheres.

Além disso, vimos que o capital cultural em Bourdieu (2003) refere-se à herança cultural global transmitida pelas famílias cujo sistema escolar atua como aparelho hegemônico de reprodução, diferenciação e estratificação do acervo cultural quanto às desigualdades sociais. Nesse sentido, no Dicionário da Educação Profissional em Saúde, encontramos o significado do verbete “capital cultural” dado por Neves, Pronko e Mendonça (2009) como um processo instituído de reprodução e distribuição do capital cultural que “opera na relação entre as estratégias das famílias e a lógica específica da instituição escolar que outorga, sob a forma de ‘credenciais’, ao capital cultural detido pela família, suas propriedades de posição”. Do mesmo modo, o diploma, em Bourdieu, cumpre a função técnica enquanto elemento material que forja uma outra função, a social, de estabelecer a distribuição dos indivíduos com mais e menos títulos ou os que carregam a “nobreza de sangue”.

No segundo aspecto destacado, a aquisição do documento que serve de instrumento que comprova a trajetória escolar, legitima os conhecimentos apreendidos e reconhece o sujeito social de direitos. Análogo ao documento de identidade, estudamos o processo de conquista do certificado não somente pelo sentido oficial de comprovação da existência individual da pessoa como também de uma concepção de transformação do indivíduo, ao realizar-se na práxis num continuum processo humanizador.

O fato de o documento oficial, certificado ou diploma, limitar e restringir uma gama de saberes - ancestrais, culturais, familiares e humanos - que fazem parte do sujeito, mobilizou-nos a refletir acerca da invisibilidade, silenciamento e exclusão das pessoas que não obtêm o papel, nem, tampouco, conseguem subverter a adesão aos opressores ao retornarem seus estudos. Assim, fomos levados a reconhecer o quanto que a certificação possibilita o reencontro dos conhecimentos, trajetórias e experiências produzidas ao longo da vida dessas pessoas com o saber oficial, historicamente, transmitido ao longo dos tempos via educação bancária, pela escola reprodutora.

Para concluir, no terceiro e último aspecto, justifica o olhar para o nível de escolaridade dos pais, evidenciado na promessa de recompensa conquistada no processo de certificação escolar cujas chances de futuro estão associadas à apreensão dos conhecimentos necessários à mobilidade social e à conversão de melhores oportunidades profissionais e transformação social. Por isso, esperamos que o retrato de família contemporânea dos sujeitos da EJA possa ser reflexo de uma concepção de educação escolar em que a formação de sujeitos autônomos, críticos e criativos esteja alinhada à pedagogia libertadora.

Das poucas certezas que nos restam, destacamos que o regresso aos espaços de aprendizagem escolar na EJA produz efeitos, diretos e indiretos, à emancipação humana do indivíduo, protagonista da sua própria história e de seus sonhos por um futuro possível.

Como citar: FERREIRA, L. C. A escolaridade dos pais dos estudantes da educação de jovens e adultos em debate. Revista Diálogo Educacional, v. 24, n. 80, p. 230-242, 2024. https://doi.org/10.7213/1981-416X.24.080.AO04

1 Este trabalho é parte dos estudos promovidos na pesquisa intitulada de “Desafios Interdisciplinares e Intergeracionais na EJA: estudo sobre os impactos da escolaridade dos pais/responsáveis na formação humana e social dos jovens e adultos da região do Maciço do Baturité, no interior do Ceará”, com financiamento da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP (BPI 04/2022)

2A retomada da SECADI acontece no ano de 2023 com o atual governo de Luís Inácio Lula da Silva.

3 Devido às inúmeras críticas sofridas pelo Novo Ensino Médio, o governo atual, de Luís Inácio Lula da Silva, por meio da Portaria nº 399, de 8 de março de 2023, instituiu a “consulta pública para a avaliação e reestruturação da política nacional de Ensino Médio”.

4As pesquisas são: “Educação tardia e Esperança: os impactos da escolarização na Educação de Jovens e Adultos entre os sujeitos-trabalhadores e no desenvolvimento socioeconômico dos municípios do Maciço de Baturité, CE”, PROPPG 02/2022 - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - Pibic (CNPq/Unilab/Fapesb/Funcap) e “Desafios Interdisciplinares e Intergeracionais na EJA: estudo sobre os impactos da escolaridade dos pais/responsáveis na formação humana e social dos jovens e adultos da região do Maciço de Baturité, interior do Ceará”, com financiamento FUNCAP, Bolsa Produtividade em Pesquisa, Estímulo à Interiorização e Inovação Tecnológica - BPI 04/2022.

5 Na Pedagogia do Oprimido, Freire nos mostra que a práxis é a “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos” (Freire, 1986, p. 38).

6Termo tomado por empréstimo de Bourdieu (p. 46).

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Recebido: 13 de Junho de 2023; Aceito: 30 de Novembro de 2023

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