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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.24 no.80 Curitiba ene./mar 2024  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.24.080.ao09 

Artigos

Aspectos das culturas escolares da escola primária em Brasília nas colunas de Yvonne Jean (1962-1964)

Aspects of school cultures at primary schools in Brasília in the columns of Yvonne Jean (1962-1964)

Aspectos de las culturas escolares en las escuelas primarias de Brasilia en las columnas de Yvonne Jean (1962-1964)

Juarez José Tuchinski dos Anjos, Doutor em Educação1 
http://orcid.org/0000-0003-4677-5816

1Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil


Resumo

O artigo, de caráter historiográfico, tem por objetivo investigar alguns aspectos das culturas escolares da escola primária em Brasília entre os anos de 1962 e 1964, tomando por fontes os textos publicados pela jornalista Yvonne Jean no jornal Correio Braziliense. Em termos metodológicos, foram lidas as colunas assinadas por ela ao longo dos anos 1960, selecionando-se aquelas que faziam referência às culturas escolares nas escolas primárias de Brasília. Com base nessa seleção, formou-se um banco de dados temático dentro do qual, em função dos limites deste artigo, são destacados dois aspectos das culturas escolares: a formação docente e os clubes escolares. No que toca à formação de professores, observou-se que nos primeiros anos de funcionamento do sistema de ensino de Brasília, o governo do Distrito Federal, por meio de sua Fundação Educacional e servindo-se de parcerias celebradas pelo INEP com órgãos internacionais, ofereceu à suas docentes primárias, ao menos, duas oportunidades formativas: o curso do projeto número 1 da UNESCO e os cursos do PABAEE. Já os clubes escolares constituíram-se, naqueles momentos fundantes da escola primária em Brasília, em táticas adotadas por professoras e alunos para atingirem uma das finalidades da estratégia representada pela proposta de Anísio Teixeira para o ensino da capital: a socialização dos educandos. Por fim, ao enfocar esses aspectos das culturas escolares em suas colunas, a jornalista Yvonne Jean ajudava a dar visibilidade, para seus leitores, das iniciativas que se vinham tomando para a materialização do projeto educativo pensado para a nova capital.

Palavras-chave: História da Educação; Culturas Escolares; Brasília; Yvonne Jean; Correio Braziliense.

Abstract

The article, of a historiographical nature, aims to investigate some aspects of the school cultures of primary schools in Brasília between the years 1962 and 1964, taking as sources the texts published by journalist Yvonne Jean in the newspaper Correio Braziliense. In methodological terms, the columns written by her throughout the 1960s were read, selecting those that made reference to school cultures in primary schools in Brasília. Based on this selection, a thematic database was formed within which, depending on the limits of this article, two aspects of school cultures are highlighted: teacher training and school clubs. With regard to teacher training, it was observed that in the first years of operation of the Brasília education system, the government of the Federal District, through its Educational Foundation and using partnerships signed by INEP with international bodies, offered their primary teachers, at least, two training opportunities: the UNESCO project number 1 course and the PABAEE courses. School clubs, in those founding moments of primary school in Brasília, constituted tactics adopted by teachers and students to achieve one of the objectives of the strategy represented by Anísio Teixeira's proposal for teaching in the capital: the socialization of students. Finally, by focusing on these aspects of school cultures in her columns, journalist Yvonne Jean helped to give visibility to her readers of the initiatives that were being taken to materialize the educational project designed for the new capital.

Keywords: History of Education; School Cultures; Brasilia; Yvonne Jean; Correio Braziliense.

Resumen

El artículo, de carácter historiográfico, tiene como objetivo investigar algunos aspectos de las culturas escolares de las escuelas primarias de Brasilia entre los años 1962 y 1964, tomando como fuentes los textos publicados por la periodista Yvonne Jean en el periódico Correio Braziliense. En términos metodológicos, se leyeron las columnas escritas por ella a lo largo de la década de 1960, seleccionando aquellas que hacían referencia a las culturas escolares en las escuelas primarias de Brasilia. A partir de esta selección se conformó una base de datos temática dentro de la cual, dependiendo de los límites de este artículo, se destacan dos aspectos de las culturas escolares: la formación docente y los clubes escolares. En cuanto a la formación docente, se observó que en los primeros años de funcionamiento del sistema educativo de Brasilia, el gobierno del Distrito Federal, a través de su Fundación Educativa y mediante alianzas firmadas por el INEP con organismos internacionales, ofrecía a sus docentes de primaria, al menos , dos oportunidades de formación: el curso del proyecto número 1 de la UNESCO y los cursos del PABAEE. Los clubes escolares, en aquellos momentos fundacionales de la escuela primaria en Brasilia, constituían tácticas adoptadas por profesores y estudiantes para alcanzar uno de los objetivos de la estrategia representada por la propuesta de Anísio Teixeira para la enseñanza en la capital: la socialización de los estudiantes. Finalmente, al centrarse en estos aspectos de las culturas escolares en sus columnas, la periodista Yvonne Jean ayudó a dar visibilidad a sus lectores sobre las iniciativas que se estaban tomando para materializar el proyecto educativo diseñado para la nueva capital.

Palabras clave: Historia de la Educación; Culturas escolares; Brasilia; Yvonne Jean; Correo Brasiliense.

Introdução

Em 1962 chegou à Brasília a jornalista belga radicada brasileira Yvonne Jean da Fonseca (1911-1981). Tendo emigrado para o Brasil em 1940, fugindo da ocupação nazista em seu país (ArqDF, 2019), desenvolveu, dentre outras atividades, uma carreira no jornalismo carioca - com algumas incursões também na imprensa de São Paulo - dedicando-se particularmente a abordar temas ligados à arte, à cultura e à educação (Teixeira, 2018; Mineirini Neto, 2019). Sua mudança para a nova capital deveu-se a um convite de Darcy Ribeiro para atuar no setor de extensão cultural da recém-criada Universidade de Brasília (Silva, 2019). Paralelamente, continuou a dedicar-se ao jornalismo, agora escrevendo para o jornal local Correio Braziliense, órgão dos Diários Associados, o maior conglomerado de mídia daquele tempo.

No Correio, redigiu, ao longo da década de 1960, em diferentes momentos, três colunas: “Correio Estudantil”, “Ensino Dia a Dia” e “Esquinas de Brasília”, nas quais abordava, dentre outros temas de mote cultural, a educação na cidade. Nelas, de forma particular, a jornalista apresentava um acurado conhecimento sobre o que se passava no cotidiano das escolas primárias da capital, que eram por ela constantemente visitadas e sobre as quais escrevia em seus quadros editoriais. De seus textos emergem, para o historiador da educação, vestígios das culturas escolares dessas instituições - aquele “conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão destes conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas que podem variar segundo as épocas” (Julia, 2001, p. 10) - reveladoras das estratégias e táticas (Certeau, 1999) do governo do Distrito Federal, de professores e alunos no processo de ensino e aprendizagem que ali se desenrolava.1 Culturas escolares no plural, uma vez que, como defende Antonio Viñao, “cada estabelecimento docente tem, mais ou menos acentuada, sua própria cultura, características peculiares” (Viñao, 2001, p. 33, tradução livre) de modo que “há, pois, culturas específicas de cada centro docente, de cada nível educativo e de cada um dos grupos de atores que intervém na vida cotidiana das instituições de ensino” (Viñao, 2001, p. 34, tradução livre). É dessa pluralidade e diversidade que fala Yvonne Jean nos textos que levam sua assinatura.

Operando um recorte numa pesquisa de pós-doutorado em desenvolvimento2, o objetivo deste artigo é investigar alguns aspectos das culturas escolares da escola primária em Brasília entre os anos de 1962 e 1964, tomando por fontes os textos publicados por Yvonne Jean. O recorte temporal justifica-se por abarcar o período em que essas informações foram encontradas nas colunas da jornalista belgo-brasileira.

Há que se considerar, aqui, o suporte no qual os textos de Yvonne Jean eram impressos, o jornal Correio Braziliense, afinal, “não é possível lidar com qualquer fragmento de um veículo de imprensa (...) sem o reinserir no projeto editorial no interior do qual se articula” (Cruz; Peixoto, 2007, p. 260). O referido periódico começou a circular em Brasília no mesmo dia da inauguração da cidade. Sobre suas origens, vale destacar:

Diferentemente do seu homônimo oitocentista, que nasceu de interesses políticos e emancipacionistas de Hipólito da Costa, este surgia como mais um braço do maior conglomerado de mídia de então, os Diários Associados, presididos pelo empresário da comunicação Assis Chateaubriand. Embora seja difundida a anedota de que o jornal se originou do desafio feito por Chatô a JK de que se este inaugurasse Brasília dentro do prazo, encontraria, ali, um jornal dos Associados, fato é que desde 1956 estava nos planos do conglomerado fazer circular uma folha na futura capital (Carneiro, 1999).

No seu primeiro ano de funcionamento, o Correio conviveu com edições locais de jornais como o Diário Carioca-Edição Brasília e o DC Brasília (Spagna; Silva, 2020), mas foi o mais longevo e o único inteiramente produzido na própria cidade, o que aumenta sua importância histórica para quem quer entender Brasília nos seus primórdios. Acresça-se que, segundo Flávia Biroli (2010), tornou-se, com o passar do tempo, o principal diário da cadeia dos Diários Associados. Em 1963 possuía uma tiragem de 1.500 exemplares, chegando a 24.500 em 1969 (Biroli, 2010) (Anjos, 2022a, p. 43).

Acerca da ideologia do projeto editorial do Correio Braziliense é preciso dizer que

O Correio nunca teve uma posição ideológica exclusiva, mas alinhada à dos Diários Associados. Isso significa, em termos nacionais, segundo os estudos de Glauco Carneiro (1999), que esteve em alguns momentos favorável ao nacional-desenvolvimentismo de JK, em confronto com o populismo de João Goulart e abertamente pró-militares a partir do golpe de 31 de março de 1964 (embora com alguns recuos quando das investidas destes sobre os interesses comerciais dos Associados em meados da década) (Anjos, 2022a, p. 44).

Uma especificidade do Correio Braziliense no quadro dos Associados, segundo Ana Morelli (2002) foi a defesa que fez, na década de 60, da permanência da capital no Planalto Central e das necessidades da cidade em formação. Assim, apesar de ser considerado “chapa branca” “oficialista, porta-voz dos interesses dos governos locais e federal” conseguiu “desenvolver uma empatia com os leitores, mesmo nos períodos mais governistas, muito em função da falta de concorrência de peso de outros veículos locais impressos” (Morelli, 2002, p. 9). Essa preocupação do diário de “oferecer ao leitor um jornalismo de serviço com caráter informativo” (Morelli, 2002, p. 51) fez com que, dentre as demandas para a consolidação da cidade que ele defendia ou problematizava, estivessem aquelas relativas à educação3.

O sistema de ensino pensado para Brasília foi elaborado por Anísio Teixeira (que ocupava, à época, o cargo de diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - INEP) e se queria modelar para o restante do país, pela articulação entre jardins de infância, escolas-classe e Escola Parque (formando os Centros de Educação Elementar), Centros de Educação Média e Universidade de Brasília, devidamente adaptados ao plano urbanístico da cidade (Teixeira, 1961; Anjos, 2022b). Contudo, entre o proposto e o realizado houve sucessos e limitações, que faziam a educação tornar-se acontecimento digno de ser referido e apresentado aos leitores do jornal. É dentro desse quadro de implantação de um sistema de ensino dito inovador que o acompanhar suas realizações e imperativos tornou-se mote de colunas específicas no interior do Correio Braziliense, assinadas por Yvonne Jean, uma jornalista com capital intelectual e que saberia, ao longo dos anos, inserir-se no cenário educacional e cultural do Planalto Central, tornando-se, até mesmo, referência nestes setores.

Em termos metodológicos, foram lidas as colunas assinadas por Yvonne Jean ao longo dos anos 1960, selecionando-se aquelas que faziam referência às culturas escolares nas escolas primárias de Brasília. A versão consultada é aquela disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que traz a coleção completa do Correio Braziliense para o período. Para a localização das colunas da jornalista belga, recorreu-se à busca pela palavra-chave “Yvonne Jean”, cujo retorno permitiu recuperar os textos de sua autoria. Com base nessa seleção, formou-se um banco de dados temático dentro do qual, em função dos limites deste artigo, são destacados dois aspectos das culturas escolares: a formação docente e os clubes escolares.

O artigo conta com duas partes, cada uma delas dedicada a um dos aspectos das culturas escolares em Brasília acima mencionados. Ao final, é encerrado com algumas considerações, a modo de conclusão.

Deixemo-nos guiar por Yvonne Jean ao mesmo tempo em que interrogamos seu testemunho.

Estratégias de formação docente em Brasília

Conforme Dominique Julia (2001) não é possível estudar as culturas escolares sem interrogar-se sobre a ação dos docentes, uma vez que

normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores (Julia, 2001, p. 11).

Para atuar no sistema de ensino planejado por Anísio Teixeira para Brasília, por meio de um concurso nacional, foram selecionados professores oriundos de diversas regiões do Brasil. Conforme Clara do Amaral

...esse concurso incluía formulários que reuniam uma ampla e diversificada gama de questões sobre os candidatos, suas famílias e suas expectativas sobre a educação em Brasília, provas objetivas e entrevistas com psicólogos que visavam selecionar aqueles que apresentavam posições pedagógicas mais modernas e com maior disposição a participar de processos de mudanças (Amaral, 2018, p. 76).

Diante desse quadro, uma primeira preocupação sentida pela Fundação Educacional de Brasília - órgão ao qual a partir de meados de 1960 coube a gestão do sistema de ensino local - foi a de criar estratégias (Certeau, 1999) de formação docente que nivelassem e atualizassem as diferentes bagagens pedagógicas das professoras primárias com vistas ao trabalho que deveriam desenvolver nas chamadas Escolas-Classe, denominação adotada por Anísio Teixeira para as escolas primárias. Chegando à Brasília em 1962, Yvonne Jean teve oportunidade de registrar em suas colunas algumas dessas estratégias, que permitem, ao historiador da educação, apreender parcela do caldo pedagógico com que se queria nutrir aquela primeira geração de professoras primárias que veio atuar no novíssimo sistema de educação da capital federal.

Um aspecto da formação docente flagrado por Yvonne Jean em suas colunas foram os cursos de formação complementar/ especialização realizados pelas professoras primárias e supervisoras de Brasília. Uma nota foi dada na coluna de 30 de janeiro de 1963:

BOLSISTAS VOLTAM.

As professoras diretoras e supervisoras do Ensino Elementar, que passaram 6 ou 12 meses fora de Brasília para se aperfeiçoarem em diversas especialidades estão voltando agora e começarão a aplicar os novos conhecimentos nas Escolas-Classe às quais pertencem. Citamos, hoje, entre as numerosas bolsistas, que passaram uma temporada em Belo Horizonte, São Paulo e Nova Iorque, a professora Lídia Diglio Cardoso, que se aperfeiçoou em pesquisa educacional em São Paulo e a professora Lígia Oliveira que seguiu, também em São Paulo, o curso de educação para a América Latina da UNESCO (Jean, 1963a, p. 9).

Como demonstram os estudos reunidos por José Gondra e Ana Mignot (2007), as chamadas viagens pedagógicas - visitas, viagens de estudo, intercâmbios, estágios, dentre outras - foram uma prática bastante disseminada na história da educação brasileira e estrangeira, não sendo, portanto, uma novidade o caso brasiliense. A novidade, a meu ver, parece residir no tipo de formação que as professoras “diretoras e supervisoras do Ensino Elementar” foram buscar em outras capitais ou mesmo no exterior.

Tendo permanecido de seis meses a um ano fora de seus espaços de trabalho, estavam retornando em princípios de 1963 trazendo em suas bagagens determinados saberes adquiridos em cursos de formação e dali em diante começariam a “aplicar os novos conhecimentos nas Escolas-Classe às quais pertencem”. O fato de os cursos serem voltados a diretoras e supervisoras do ensino, sugere que havia, naqueles primeiros anos de existência do sistema educacional brasiliense, preocupação com a administração e supervisão do ensino, visando imprimir maior cientificidade e racionalidade ao trabalho pedagógico nas escolas-classe. Isso se confirma, ao menos, para o caso da professora Lígia Oliveira4, que seguiu em São Paulo “o curso de educação para a América Latina da UNESCO”.

De acordo com Cláudia Maluhy:

Em 1956, na Conferência Regional Latino-Americana sobre a Educação Primária Gratuita e Obrigatória, o órgão apresentou o seu projeto principal n. 1, com plano de execução previsto para um período de 10 anos. O projeto propunha como metas gerais aos países latino-americanos, a expansão do ensino primário, a erradicação do analfabetismo e a formação de professores (...)

O incentivo do governo brasileiro para a viabilização do Projeto da Unesco, ocorreu com a realização de cursos de formação de especialistas em educação, organizados por meio de convênio firmado entre o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE/SP) e a Universidade de São Paulo.

Entre 1958 e 1966, foram realizados nove cursos (...) (Maluhy, 2010, p. 13-14).

Com base nessas informações, podemos deduzir que a professora Lígia Oliveira foi enviada à São Paulo com o objetivo de capacitar-se nas áreas de atuação do curso de educação da UNESCO, que, de acordo com documento de 1967, teve como campos de especialização, entre 1961 e 1962, a formação de professores, administração e supervisão, desenvolvimento de planos e programas e currículo (Márquez, 1967). Se dedicou a uma ou várias dessas áreas, não é possível sabermos, mas fica claro que teve a oportunidade de aperfeiçoar-se em temas considerados atuais e fundamentais para o bom funcionamento de um sistema de ensino. Por fim, o fato de seu retorno e de suas colegas ser noticiado por Yvonne Jean, demonstra a visibilidade que as professoras cursistas adquiriam no contexto da educação local: voltavam com a tarefa de colocar em prática os saberes adquiridos o que, no seu caso, englobava aqueles do campo da administração escolar.

No dia seguinte, 31 de janeiro, a nota era sobre o retorno de outra leva de professoras, após uma ausência de seis meses em cursos de aperfeiçoamento:

ORIENTAÇÃO

Seis bolsistas do Programa organizado pelo INEP, em Belo Horizonte, para o preparo de orientadores voltaram para Brasília, após uma ausência de seis meses. São três diretoras de escola, uma supervisora e duas professoras. A orientação é uma das bases do plano orientador do ensino em Brasília. Houve altos e baixos na execução do Plano teórico. Desde que a importância da orientação não é mais discutida por ninguém, hoje em dia, o estágio de seis professores brasilienses em Belo Horizonte há de trazer frutos (Jean, 1963b, p. 9).

Em Belo Horizonte - cidade que também foi frequentada por algumas das professoras da nota anterior - funcionavam, sob o patrocínio do INEP, os cursos do PABAEE - Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar. Inúmeras professoras de Brasília realizaram os cursos do PABAEE, segundo apurou Valéria Rocha Melo (2016), o que reforça a interpretação de que esse tenha sido o caso das professoras mencionadas por Yvonne Jean.

Conforme Edil Paiva e Léa Paixão (2002) esse programa funcionou de 1956 a 1964 tendo “dois eixos de ação [que] orientavam aquela assistência: o treinamento de professores de escolas normais e a produção de materiais didáticos para apoio ao ensino em escolas primárias e normais de todo o país” (Paiva; Paixão, 2002, p. 8). Conforme relatório elaborado quando da finalização do Programa em 1964, entre os cursos oferecidos pelo PABAEE incluíam-se “Aprendizagem e Desenvolvimento da Criança”, “Medidas e Avaliação na Escola Primária”, “Recursos Didáticos”, “Trabalho em Grupo”, “Currículo e Supervisão”, dentre outros (PABAEE, 1964). O PABAEE produziu uma série de materiais sobre os diversos temas abordados nos cursos, com títulos abrangendo as áreas de Língua Pátria, Aritmética, Pré-Primário, Estudos Sociais, Ciências, Psicologia, Artes e Currículo (PABAEE, 1964).

Ao todo, entre 1956 e 1964, 48 professoras de Brasília realizaram os cursos em Belo Horizonte, tendo sido o ano em que as professoras mencionadas por Yvonne Jean assistiram as aulas - 1962 -, o que contou com a maior participação de docentes primárias da capital, em número de 16 pessoas (PABAEE, 1964). Era deste grupo que faziam parte as “três diretoras de escola, uma supervisora e duas professoras.” (Jean,1963b).

Ensaiando uma interpretação no campo das possibilidades históricas (Davis, 1987), a passagem das professoras brasilienses pelos cursos do PABAEE e o contato com seus materiais pode tê-las munido com o que de mais atual se dispunha no repertório pedagógico daquela época, conferindo-lhes um “capital cultural” considerável que poderia ser empregado quando do seu retorno em suas práticas de docência, orientação e direção nas Escolas-Classe de Brasília. Em especial, no caso noticiado por Yvonne Jean, com saberes no campo da orientação educacional, que segundo ela era “uma das bases do plano orientador do ensino em Brasília” e tema sensível, já que a seu ver, teria havido altos e baixos na sua execução, o que aumentava ainda mais as esperanças sobre o trabalho que as professoras formadas pelo PABAEE viriam a desempenhar no sistema de ensino de Brasília. Dessa forma, ao mesmo tempo que usava sua coluna para divulgar o retorno das professoras, a jornalista as colocava sobre um determinado conjunto de expectativas acerca das práticas que desenvolveriam em seus locais de trabalho.

Para concluir essa primeira seção, podemos afirmar, com base nas colunas de Yvonne Jean e nas interpretações históricas aqui construídas, que nos primeiros anos do sistema de ensino de Brasília, parte de suas professoras puderam beneficiar-se das iniciativas que o INEP, sob a gestão de Anísio Teixeira, capitaneava naquela época - como já observaram Ana Waleska Mendonça e Libânia Xavier (2008) e Valéria Rocha Melo (2016). De fato, tanto o curso da UNESCO como o PABAEE eram braços de convênios celebrados pelo INEP com organismos internacionais, visando a modernização do ensino brasileiro. Modernização que não deixou de ser experimentada - ou ao menos foi desejada -, também, nas novíssimas culturas escolares que se queria produzir na nova capital do país.

Os clubes escolares

Segundo as colunas de Yvonne Jean, outro aspecto que marcou as culturas escolares em Brasília foi o da socialização dos estudantes por meio de clubes escolares. Conforme Délio Freire, estudioso que escreveu em 1964 sobre esse tipo de organização escolar,

De um modo geral, as atividades dos clubes escolares procuram enriquecer a experiência vital dos nossos educandos, proporcionando-lhes oportunidades criadoras, de contatos com os diversos ramos das Ciências e das Artes, de convívio social, de desportividade etc. de maneira que eles venham a preencher sadiamente suas horas de lazer. Assim sendo, além de atenderem a um interesse recreativo do aluno, proporcionam, também, a criação de situações para a prática e desenvolvimento de inúmeras qualidades e virtudes, concorrendo desse modo para um aprimoramento mais completo e harmonioso da personalidade dos nossos educandos (Freire, 1964, p. 107-108).

Esse tipo de prática, assim, vinha ao encontro dos ideais de Anísio Teixeira para a educação em Brasília. Segundo ele, a intenção do sistema de ensino da nova capital era que este pudesse “atender a necessidades específicas de ensino e educação e, além disso, à necessidade de vida e convívio social” (Teixeira, 1961, p. 195). Os clubes, entendidos como espaços de socialização, eram mais uma tática, no sentido certeauniano do termo, a ser utilizada pelas professoras para promoverem o convívio social dos seus educandos. Como elas, associadas aos alunos, efetivaram essa faceta das culturas escolares? Deixemos que Yvonne Jean nos ajude na construção de respostas.

A prática dos clubes escolares, foi, em princípio, considerada uma das inovações da Escola Parque de Brasília. Sobre eles tratou Yvonne Jean em coluna de 28 de setembro de 1962:

ESCOLA PARQUE

Os alunos das escolas primárias que têm a sorte de poder frequentar a Escola-Parque, estão encantados com uma inovação: a fundação de clubes. Estes clubes funcionam em horários especiais, fora do horário geral. Os primeiros clubes fundados foram os dedicados à dança, teatro, música e museu escolar. As crianças escolhem as atividades de sua preferência, elegem o próprio presidente, preparam as reuniões e dedicam-se com entusiasmo a atividades diferentes das habituais e completamente organizadas por elas próprias (Jean, 1962a, p. 9).

Para governo do leitor, cabe esclarecer que a Escola Parque era uma instituição pensada por Anísio Teixeira para funcionar no contraturno da Escola-Classe (escola primária), oferecendo educação física, manual e artística, oportunizando à criança uma educação integral (Teixeira, 1961). Deveria haver uma Escola Parque para o conjunto de cada 4 Escolas-Classe, mas, na prática, ao longo da década de 1960, somente uma foi colocada em funcionamento e atendendo a somente quatro escolas-classe (Pereira; Rocha, 2011). Daí, compreende-se a razão pela qual Yvonne Jean começa seu relato mencionando “os alunos das escolas primárias que têm a sorte de poder frequentar a Escola Parque”, que eram, no quadro geral do sistema de ensino de Brasília, uma minoria privilegiada. Era para esses “sortudos”, que, segundo ela, a escola oferecia uma “inovação”: a fundação de clubes.

Por um lado, falar em inovação, na história da educação, é mover-se num terreno arriscado, já que não raro, no processo de bricolagens de que são feitas as culturas escolares, práticas adotadas num passado mais ou menos remoto são postas em movimento em outros presentes com novas roupagens, sem serem, necessariamente, novas. Os clubes escolares, sem dúvida, são um exemplo disso, pois sabe-se que já eram bastante incentivados pelos reformadores da Escola Nova trinta anos antes, como teve oportunidade de demonstrar Rosa Fátima Souza (2009) ao tratar do contexto da escola primária paulista dos anos 30 e 40. Por outro lado, a insistência de Yvonne Jean em utilizar essa expressão num texto dirigido para um público específico - os leitores do Correio Braziliense dos anos 60 - pode ser indício de que, naquele contexto, a criação de clubes tenha sido uma iniciativa nova, em relação ao que habitualmente se fazia nas escolas até então. Penso ser nesse sentido que devemos considerar os clubes uma novidade em solo brasiliense, que merecia, por isso, ser apresentada aos leitores do jornal e divulgada nas colunas dedicadas à educação assinadas por essa jornalista.

Segundo Yvonne Jean, os clubes da Escola Parque funcionavam fora do horário regular (sem deixarem, porém, de ser uma prática escolar, já que ligada à escola e envolvendo crianças na condição de escolares). Os primeiros clubes eram dedicados - à exceção do museu escolar - ao aprofundamento de matérias que eram ensinadas na Escola Parque, como dança, teatro e música. Porém, diferente das matérias que eram dirigidas pelas respectivas professoras, os clubes eram organizados pelos próprios alunos, que “escolhem as atividades de sua preferência, elegem o próprio presidente, preparam as reuniões” em atividades “completamente organizadas por elas próprias”. Havia, assim, na prática dos clubes escolares, uma oportunidade de protagonismo infantil, que funcionava como um chamariz para que os alunos com eles se envolvessem.

Porém, como nem todas as escolas-classe eram atendidas pela Escola Parque, as professoras de outras instituições parecem ter optado por incentivar seus alunos a criarem os próprios clubes, suprindo, por meio dessa tática certeauniana as fragilidades da estratégia educativa representada pelo Plano Escolar de Brasília que, na prática, não estava alcançando todas as crianças da cidade. A centralidade das crianças em um desses clubes, o da Escola-Classe 304 Sul, foi destacada por Yvonne Jean em 6 de junho de 1962 - inclusive, num período anterior à divulgação que ela faria dos clubes da Escola Parque:

A.C.R. 304

Eis a cópia de uma ata solene, lavrada em autêntico estilo de cartório pelos tabeliões João Luiz P. Felício e Ubirajara C. Bouças. Idade: 11 anos; profissão: aluno da 5ª série primário da Escola Classe 304; funções específicas: respectivamente presidente e secretário do A.C.R. 304 ou seja Atletic Club Recreativo 304, fundado em Abril e ora em pleno desenvolvimento.

“I- Reunião

Procedeu-se assim no dia 24 de abril de 1962, a primeira reunião, escrita neste caderno: o Livro de Ouro do A.C.R. 304.

I - Eu e Ubirajara, meu secretário, logo que chegamos, fomos à papelaria Eldorado, não tinha o que queríamos. Fomos na Rex. Aí que encontramos. Ficou tudo por Cr$ 205,00.

II - Voltamos para a Escola e começamos a trabalhar, enquanto Angel e Teresa ficaram fazendo bagunça.

III - Fizeram (como trabalho, além da bagunça) apenas abrir uma ou três carteirinhas, que tínhamos comprado, depois elas saíram para fora do pátio e começaram a conversar com o Elísio.

IV - Recebemos uma visita do nosso companheiro Nelson e Sérgio. Mas esta é que foi a maior, um dos diretores que nunca apareceu nas reuniões anteriores, apareceu. Hoje. Não vou citar o nome. Também trabalhou. Mas por volta das 4h20 foi-se embora.

Aqui encerro.”

(s) Belíssima e complicadíssima assinatura ilegível, como a de um verdadeiro e compenetrado tabelião (Jean, 1962b, p. 9).

Segundo se depreende do relato de Yvonne Jean, ela teve acesso à “ata” elaborada por dois dos alunos da Escola-Classe 304, de onze anos. Se trata, assim, da transcrição de uma escritura infantil, aqueles textos nos quais “emergem problemas e paradoxos da condição infantil” (Antonelli; Becchi, 1995, p. V, tradução minha) e que revelam o modo como crianças veem e interpretam o mundo, ainda que, eventualmente, contando com a mediação dos adultos.

De acordo com o relato, a primeira reunião do Atletic Club Recreativo 304 (numa clara referência à Escola-Classe que o abrigava) contou com a ida dos meninos à papelaria (tiveram que ir em duas para encontrar o que queriam); a bagunça das colegas Angel e Teresa; abertura de algumas carteirinhas para os sócios; visita de companheiros (inclusive “de um dos diretores que nunca apareceu nas reuniões anteriores” e que teve o nome omitido!) e encerramento do relato, seguido de “Belíssima e complicadíssima assinatura ilegível”, bem ao estilo notarial.

Claro está que este clube pode ter sido muito mais uma brincadeira que uma prática escolar. Mas, nem por isso deixa de ser manifestação de uma outra dimensão das culturas escolares a que Dominique Julia chama a atenção e que raras vezes é capturada pelos historiadores da educação, “as culturas infantis (no sentido antropológico do termo), que se desenvolvem nos pátios de recreio e o afastamento que apresentam em relação às culturas familiares” (Julia, 2001, p. 11).

Tratava-se, no caso em tela, de uma brincadeira, mas, ainda assim, integrante das culturas escolares, já que marcada por referências do mundo da escola: no nome do Clube, no uso da escrita para elaboração da ata, na confecção de crachás identificadores que pressupõem, além da escrita, o domínio da leitura. Uma cultura infantil atravessada pelas culturas da escola, manifesta numa brincadeira que teve por mote a realização de um clube escolar, semelhante a outros que havia na época, na cidade de Brasília e no Brasil, mas aqui, livremente vivenciada pelas crianças que, ao mesmo tempo em que brincavam, socializavam, realizando, dessa forma, os intentos da proposta anisiana para a educação da capital.

Se alguns clubes tinham caráter lúdico, outros prestavam-se a finalidades cívicas, como era o caso do Centro Cívico da Escola-Classe 114 Sul, criado em 1963 e cuja eleição de seus diretores, organizada pelos próprios estudantes, foi noticiada na coluna de Yvonne Jean de 28 de agosto de 1963:

Na semana passada, assistimos a eleições muito sérias e bem-organizadas. Quatro chapas diferentes traziam, cada uma, três nomes. Eram as chapas Azul, Vermelha, Preta e Amarela, cores que nada tinham que ver com camisas ou bandeiras e sim com a poesia da cor que, às vezes, melhor do que algarismos define agrupamentos. Uma cabine indevassável esperava os votantes. Mesários e fiscais dos quatro partidos fiscalizavam os trabalhos. Cada votante assinava o nome, entrava na cabine e colocava o voto na urna, sentindo que se comportava como convém ao cidadão que mora na capital do país e faz questão de seguir todas as normas de uma eleição parlamentar. Aliás, os dinâmicos fiscais continuam trabalhando, por esses dias, apurando os votos.

A eleição tratava de organizar o Centro Cívico da Escola Classe do Banco do Brasil. Todos os alunos da linda escola - cujos jardins, que andavam um tanto abandonados, foram, pela mesma ocasião, limpos, plantados e arrumados novamente - participaram de uma eleição que empolgou meninos e meninas (A propaganda eleitoral vinha se realizando há muito!). E agora o novo centro cívico, solene e devidamente empossado na manhã de segunda-feira, já está programando sua primeira tarefa: o preparo de todas as comemorações cívicas da escola para o Dia do Soldado, em novembro próximo. As crianças trabalham com a mesma seriedade que no dia da eleição, com o mesmo conhecimento das rotinas administrativas e com o mesmo entusiasmo de quase cidadãos. É um prazer conversar com eles, com toda seriedade que o assunto requer (Jean, 1963c, p. 9).

Diferente do que vimos na Escola-Classe 304 Sul, na Escola-Classe 114 Sul estamos diante, de fato, de um clube escolar típico em funcionamento. Yvonne Jean registra, para seus leitores, o processo de votação da diretoria do centro e seu relato nos permite observar as inúmeras funções e papéis assumidos pelos estudantes nesse processo: candidatos, fiscais, mesários e votantes. Tratava-se de uma experiência escolar na qual cada criança participante sentia “que se comportava como convém ao cidadão que mora na capital do país e faz questão de seguir todas as normas de uma eleição parlamentar”. Era uma forma efetiva de socialização, na qual os alunos iam aprendendo os valores de uma sociedade democrática, em que cidadãos escolhem seus representantes e dirigentes, por meio do sufrágio. Tudo, claro, adaptado à realidade infantil: ao invés de partidos, os candidatos dividiam-se em cores, por exemplo.

O Clube tinha um mote específico: ser um Centro Cívico. Sabe-se que o civismo é ingrediente de longa duração na escola primária republicana, sendo objeto de diferentes manifestações em distintos momentos5. Aqui, num sistema de ensino recente, ele reaparece, para alimentar sentimentos cívicos e patrióticos, adaptando o velho ao novo e produzindo culturas escolares específicas. Na cultura escolar em questão, a primeira tarefa do recém-inaugurado Clube era a preparação das comemorações do Dia do Soldado (naquela ocasião, celebrado em novembro), na qual as crianças já trabalhavam “com a mesma seriedade que no dia da eleição, com o mesmo conhecimento das rotinas administrativas e com o mesmo entusiasmo de quase cidadãos”. Quase, porque sabemos, ainda eram crianças, sem possibilidade de outra participação política além daquela propiciada pelo clube escolar.

O Centro Cívico da Escola-Classe 114 Sul foi ainda objeto de menção em 1964 - o que sugere que continuou a funcionar com regularidade - em nota dada em 12 de agosto:

CENTRO CÍVICO

O Centro cívico da Escola 114, do Banco do Brasil, está em grandes atividades, preparando, no momento, uma homenagem ao Duque de Caxias para o dia 25 deste mês, além dos programas de televisão que realiza na TV Canal 3, do hasteamento da bandeira no Senado, do seu jornalzinho e da campanha cívica realizada nas escolas primárias (Jean, 1964, p. 7).

Aqui somos mais bem informados sobre a natureza das atividades do Centro Cívico da Escola-Classe 114 sul: organizar festas cívicas, participar de programas de televisão na emissora de TV local, hasteamento de bandeira no Senado Federal, publicação de um jornal e campanhas em outras escolas. Eram diversas atividades, protagonizadas pelas crianças, por meio das quais viviam experiências de socialização e civismo, propiciadas pela escola que frequentavam através de uma prática escolar específica: o clube escolar.

Considerações finais

Este artigo teve por objetivo investigar alguns aspectos das culturas escolares da escola primária em Brasília entre os anos de 1962 e 1964, tomando por fontes os textos publicados por Yvonne Jean. Dentro do universo de temas por ela abordados, colocamos nossa atenção em dois aspectos em particular: a formação de professores e os clubes escolares.

No que toca à formação de professores, pudemos observar que nos primeiros anos de funcionamento do sistema de ensino de Brasília, o governo do Distrito Federal, por meio de sua Fundação Educacional e servindo-se de parcerias celebradas pelo INEP com órgãos internacionais, ofereceu à suas docentes primárias, ao menos, duas oportunidades formativas: o curso do projeto número 1 da UNESCO e os cursos do PABAEE. Em ambos os casos, tratava-se de “abastecer” as professoras primárias com a “bagagem” pedagógica mais atual e moderna de que se dispunha, na expectativa de que, ao retornar a Brasília, colocassem em prática os saberes adquiridos, moldando, com base neles, as culturas escolares.

Já os clubes escolares constituíram-se, naqueles momentos fundantes da escola primária em Brasília, em táticas adotadas por professoras e alunos para atingirem uma das finalidades da estratégia representada pela proposta de Anísio Teixeira para o ensino da capital: a socialização dos educandos. Recuperando uma prática já valorizada pela pedagogia da Escola Nova, nos anos 30 e 40, na Brasília dos anos 60, os clubes escolares aprofundavam conteúdos escolares (como no caso da Escola Parque), inspiravam brincadeiras infantis (como vimos na Escola-Classe 305) e difundiam valores e práticas cívicas (caso da Escola 114 Sul).

Por fim, ao enfocar esses aspectos das culturas escolares em suas colunas, a jornalista Yvonne Jean ajudava a dar visibilidade, para seus leitores, das iniciativas que se vinham tomando para a materialização do projeto educativo pensado para a nova capital. Já ao historiador da educação, que lê seus textos retrospectivamente, oferece informações valiosas sobre facetas das culturas vivenciadas nas escolas primárias daquele tempo, sendo um testemunho, ainda que indireto, das práticas ordinárias que iam construindo a educação nos primeiros anos de Brasília.

Como citar: dos ANJOS, J. J. T. Aspectos das culturas escolares da escola primária em Brasília nas colunas de Yvonne Jean (1962-1964). Revista Diálogo Educacional, v. 24, n. 80, p. 318-331, 2024. https://doi.org/10.7213/1981-416X.24.080.AO09

1Ao referir-me, neste estudo, aos conceitos de estratégia e tática o faço nas perspectivas de Michel de Certeau (1999), para quem a estratégia é “o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (...) pode ser isolado” (Certeau, 1999, p. 99) - no caso, a ação do governo e do Estado sobre a educação, propondo, a partir de seu lugar de poder, as regras gerais dentro das quais ela devia acontecer. Já as táticas são a “arte do fraco” (Certeau, 1999, p. 101), em que seu praticante “tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário” (Certeau, 1999, p. 101). São o fazer próprio dos professores e alunos, que não detendo o poder, encontram formas de subvertê-lo ou transformá-lo a partir de dentro, por meio de suas práticas ordinárias, sua “astúcia” (Certeau, 1999, p. 101).

2Trata-se da pesquisa "Culturas escolares da escola primária nas coluinas da jornalista Yvonne Jean (Brasília, década de 1960) desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia sob supervisão da profa. Dra. Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro. A pesquisa conta com apoio financeiro do DPI/DPG da Universidade de Brasília, a quem registro agradecimentos.

3Para uma visão panorâmica dos conteúdos educacionais veiculados no Correio Braziliense, ver Anjos (2022a).

4Não foi possível encontrar maiores informações sobre o curso de pesquisa educacional realizado por Lídia Cardoso em São Paulo. Provavelmente, ocorreu também no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, que oferecia, à época, além do curso da UNESCO, outros de especialização docente. Decidi, por isso, concentrar-me no curso realizado por Lígia Oliveira, sobre o qual pude obter dados mais detalhados.

5Veja-se, por exemplo, os estudos de Cleber Santos Vieira (2012) e Gisele Gatti e Décio Gatti Jr. (2018).

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Recebido: 10 de Novembro de 2023; Aceito: 22 de Janeiro de 2024

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