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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.24 no.80 Curitiba ene./mar 2024  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.24.080.ao10 

Artigos

Conhecimento como criação: subversão de tecnologia educacional na periferia do capitalismo

Knowledge as creation: subversion of educational technology in the periphery of capitalism

El conocimiento como creación: subversión de la tecnología educativa en la periferia del capitalismo

André Oliveira, Doutor em Arte1 
http://orcid.org/0000-0002-2932-0089

1Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagens e Arte, Campinas, SP, Brasil


Resumo

O presente ensaio propõe a hipótese de que, no contexto educacional, fundamentos anti-cartesianos sobre conhecimento oferecem possibilidades de subversão de tecnologias para arrefecimento das estruturas de opressão, controle e dominação. A partir de metodologia de revisão bibliográfica, o ensaio relaciona assuntos como ciência cognitiva e estudos decoloniais para pensar dois casos de tecnologias educacionais e suas implicações políticas. Para alcançar esses objetivos, o texto articula-se em três partes. A primeira delas descreve a noção de conhecimento, fundamento para quaisquer discussão sobre aprendizagem ou ensino, no contexto da área de ciência cognitiva. Três conceitos distintos de conhecimento são apresentados. Dentre eles, o mais novo pode ser considerado mais propriamente como anti-cartesiano. A etapa seguinte discute a relação entre ferramentas educacionais de tempos diferentes e seus fundamentos conceituais cartesianos enquanto definidores de suas políticas e histórias de uso. Nessa seção o texto relaciona conceitos de fenomenologia, enaccionismo e decolonialidade ao analisar aspectos do uso de duas tecnologias educacionais: o quadro negro e um aplicativo de telefone celular para alfabetização. Uma terceira parte encaminha relações e conclusões sobre possibilidades de subversão da ordem colonizadora. Nessa etapa, apresenta-se um caminho de emancipação por meio da desobediência e da criação de formas de utilizar ferramentas educacionais para narrar as próprias histórias na periferia do capitalismo.

Palavras-chave: Conhecimento; Educação e tecnologias; Enaccionismo; Decolonialidade.

Abstract

This essay proposes the hypothesis that, in an educational context, anti-Cartesian foundations on knowledge offer possibilities for subverting technologies to cool the structures of oppression, control and domination. Using a literature review methodology, the essay relates subjects such as cognitive science and decolonial studies to consider two cases of educational technologies and their political implications. To achieve these objectives, the text is divided into three parts. The first of them describes the notion of knowledge, the basis for any discussion about learning or teaching, in the context of the area of cognitive science. Three distinct concepts of knowledge are presented. Among them, the youngest can be more properly considered as anti-Cartesian.The next stage discusses the relationship between educational tools from different times and their Cartesian conceptual foundations as definers of their policies and histories of use. In this section, the text relates concepts of phenomenology, enactionism and decoloniality when analyzing aspects of the use of two educational technologies: the blackboard and a cell phone application for literacy.A third part presents relationships and conclusions about possibilities for subversion of the colonizing order. At this stage, the text seeks to present a path of emancipation through disobedience and the creation of ways of using educational tools for telling one's own stories on the periphery of capitalism.

Keywords: Knowledge; Education and technologies; Enactionism; Decoloniality.

Resumen

Este ensayo propone la hipótesis de que, en un contexto educativo, los fundamentos anticartesianos del conocimiento ofrecen posibilidades para subvertir tecnologías para enfriar las estructuras de opresión, control y dominación. Utilizando una metodología de revisión de literatura, el ensayo relaciona temas como las ciencias cognitivas y los estudios decoloniales para considerar dos casos de tecnologías educativas y sus implicaciones políticas. Para lograr estos objetivos, el texto se divide en tres partes. El primero de ellos describe la noción de conocimiento, base de cualquier discusión sobre aprendizaje o enseñanza, en el contexto del área de las ciencias cognitivas. Se presentan tres conceptos distintos de conocimiento. Entre ellos, los más jóvenes pueden ser considerados más propiamente como anticartesianos. La siguiente etapa analiza la relación entre las herramientas educativas de diferentes épocas y sus fundamentos conceptuales cartesianos como definidores de sus políticas e historias de uso. En este apartado, el texto relaciona conceptos de fenomenología, enaccionismo y descolonialidad al analizar aspectos del uso de dos tecnologías educativas: el pizarrón y una aplicación de celular para la alfabetización. Una tercera parte presenta relaciones y conclusiones sobre posibilidades de subversión del orden colonizador. . En esta etapa, el texto busca presentar un camino de emancipación a través de la desobediencia y la creación de formas de utilizar herramientas educativas para contar las propias historias en la periferia del capitalismo..

Palabras clave: Conocimiento; Educación y tecnologías; Enaccionismo; Descolonialidad.

Introdução

Para ser vendável, a educação precisa estar baseada na ideia de conhecimento enquanto conteúdo, enquanto algo que está pronto e embalado em alguma prateleira e com o preço à mostra. Tal ideia é basicamente o que Freire (2016) chamou de conhecimento bancário. É essa a noção que se encontra no centro das práticas educacionais da vida moderna, principalmente aqui na periferia do capitalismo1. Essa forma de conceber conhecimento constrói estrutura e legitima tecnologias para que a educação seja cada vez mais regida pela lógica de mercado, própria da colonialidade.

Entre as tantas tecnologias modernas envolvidas com a educação, há um conjunto de fundamentos em comum, desenvolvido pela área de pesquisa conhecida como ciência cognitiva, que introduziu estudos sobre inteligência artificial. Sistemas e aparelhos que operam por meio de tecnologias chamadas de inteligentes ganham espaço no contexto da pesquisa acadêmica em áreas diversas como as engenharias, a ciência da computação, a filosofia, as artes e a educação. Mas o que se produz em algumas dessas áreas nem sempre é entendido, ou levado em conta, naquilo que se desenvolve nas outras.

O texto que segue pretende descrever as relações entre a concepção de conhecimento não-cartesiana, própria de uma metodologia fenomenológica, com perspectivas educacionais emancipatórias e anticoloniais. Isso é feito a partir da crítica da noção de conhecimento decorrente do dualismo cartesiano entre mente e corpo e algumas relações com ferramentas educacionais2 próprias da realidade das escolas públicas no Brasil, enquanto país da periferia do capitalismo. Busca-se, mais especificamente, olhar para os fundamentos conceituais que subsidiam tais ferramentas e práticas em escolas brasileiras, sobretudo no contexto do início da segunda década do século XXI. Nesse sentido, a hipótese que aqui vai se ensaiar é a de que um caminho de descolonização da educação parece passar pela opção por uma teoria do conhecimento anti-cartesiana, para além do dualismo mente e corpo. Porque de muitas maneiras essa articulação entre modernidade, colonialidade e capitalismo precisa da perspectiva do conhecimento bancário como estratégia para suas tecnologias racistas, patriarcais e epistemicidas3.

Inicia-se apresentando um breve panorama do desenvolvimento do conceito de conhecimento em três vertentes, ou hipóteses, no campo da ciência cognitiva. As duas primeiras vertentes apontam para a ideia de que conhecimento é processamento de informações. Elas propõem a metáfora da mente como um computador, que processa símbolos e resolve problemas. Porém, uma terceira hipótese, chamada de enaccionista, abandona essa ideia central de que conhecer seja processar símbolos, e afirma que conhecer é ação de corpos específicos em lugares específicos.

A segunda parte do texto espera descrever relações possíveis entre os fundamentos apresentados na primeira seção (noções de conhecimento em diferentes paradigmas científico-filosóficos) e tecnologias envolvidas em práticas educacionais próprias das escolas da periferia do capital, como são as brasileiras. Por não se tratar de um texto decorrente de pesquisa de campo, o que segue aqui é uma reflexão acerca das experiências que vivencio enquanto docente e pesquisador atuando como formador de professoras e professores4. Essa seção aborda dois exemplos de tecnologias educacionais de tempos históricos diferentes, mas que possuem semelhanças em seus fundamentos conceituais.

Uma terceira parte desse ensaio conclui, então, apontando para uma hipótese de que relações relevantes podem aparecer entre estudos decoloniais e noções de conhecimento próprias de teorias da terceira vertente da ciência cognitiva. A partir da ideia fenomenológica de que ferramentas são narrativas e que tais narrativas são espaço de disputa, esta seção propõe que quando o conhecimento é concebido como ato criativo, abrem-se oportunidades de subversão das tecnologias em direção à libertação e à descolonização.

Educação, conhecimento e ciência cognitiva

Para a área de educação descrever o que é e como se dá o ato de conhecer é algo bastante relevante. Teorias sobre conhecimento, percepção, aprendizagem e ensino são suporte de práticas educacionais variadas e subsídios conceituais para a construção do campo de pesquisa em educação. Tais teorias são também interesse central da área chamada de ciência cognitiva, que estuda e propõe modelos experimentais de atividades mentais, como a percepção e a aprendizagem.

Considerada como área interdisciplinar, a ciência cognitiva nasce a partir de cruzamentos de diferentes disciplinas, como: Filosofia, Linguística, Computação, Psicologia, Neurociência e Antropologia (Gardner, 1996). Interessa aqui pensar no desenvolvimento de diferentes modelos de mente, propostos por essa área, a partir de diferentes concepções de conhecimento adotadas. De acordo com Gardner (1996), o termo “ciência cognitiva” passou a ser empregado com frequência no início da década de 1970, muito embora as pesquisas e os escritos de pelo menos três décadas anteriores, nas áreas citadas acima, sejam fundamentais para seu estabelecimento. Esse autor, em seu esforço de apresentar essa nova ciência da mente, afirma:

Defino a ciência cognitiva como um esforço contemporâneo, com fundamentação empírica, para responder questões epistemológicas de longa data - principalmente aquelas relativas à natureza do conhecimento, seus componentes, suas origens, seu desenvolvimento e seu emprego (Gardner, 1996, p. 19).

Em meados da década de 1990, Gardner ocupa-se em apontar certa unidade dessa ciência nascente, que busca estudar o conhecimento por meio de experimentos com modelos, algo bastante diferente do que a filosofia vinha fazendo, desde os escritos de povos da antiguidade.

Na última década do século XX, Varela, Thompson e Rosch (2003) mostraram que a ciência cognitiva passara por três momentos diferentes, envolvendo explicações e modelos distintos para a noção de conhecimento e, consequentemente, para as noções de mente, percepção, aprendizagem, memória, entre outras. Cada um desses três momentos, tratados pelos autores como as três hipóteses da ciência cognitiva, não se encerra quando o outro se inicia, eles se interseccionam em alguns aspectos e acontecem simultaneamente em paralelo, quanto a outros aspectos. Os autores supracitados apontam para o que chamam de três hipóteses da ciência cognitiva, a saber: a hipótese cognitivista, a conexionista e a atuacionista (ou enaccionista).

A primeira hipótese sobre cognição marca um deslocamento de áreas com propostas de modelos descritivos de atividades mentais. Se no início do século XX eram psicólogos e filósofos os principais responsáveis por descrever os fenômenos da mente, a partir da década de 1940 são os ciberneticistas que assumirão a frente de pesquisas. De acordo com Varela, Thompson e Rosch (2003), assim se formou a primeira vertente da ciência cognitiva, chamada de cibernética. Essa "era cibernética", ainda de acordo com os autores citados, influenciou uma grande quantidade de áreas científicas por meio do desenvolvimento de aporte matemático-computacional para estudar o sistema nervoso. O desenvolvimento dos modelos de mente enquanto processadores de informação também é uma das contribuições mais profundas e enraizadas da era cibernética da ciência cognitiva para diversas outras áreas.

Dessa maneira, para a primeira vertente da ciência cognitiva, chamada de “hipótese cognitivista” por Varela, Thompson e Rosch (2003), cognição é: "(…) o processamento de informações sob a forma de computação simbólica - manipulação de símbolos baseada em regras” (p. 54). Os autores seguem explicando que a cognição, então, funciona:

Por meio de qualquer aparato que possa abrigar e manipular elementos funcionais discretos - os símbolos. O sistema interage apenas com a forma dos signos (seus atributos físicos) e não com seu significado (Varela; Thompson; Rosch, 2003, p. 54).

Entre as três hipóteses da ciência cognitiva apresentadas por Varela, Thompson e Rosch (2003), essa é a que mais desvaloriza o corpo e os lugares (os contextos), para explicar o conhecimento. Para os teóricos que postulam essa hipótese, um computador que processe informações adequadamente enquanto representações simbólicas é um modelo adequado de como a mente humana conhece o mundo. Por esse caminho, pode-se desprezar os corpos e suas marcas peculiares na explicação sobre o que é conhecimento. Da mesma maneira, pode haver a intenção de igualar o corpo humano a um conjunto de placas e componentes eletrônicos. Essa explicação envolve a intenção da busca por uma essência, imutável e universal, do que seja conhecer. Reduz-se a ação de corpos em lugares específicos a conjuntos de operações de símbolos de forma adequada às regras propostas e que pode se dar em qualquer lugar que cumpra os requisitos de implementação.

A hipótese cognitivista clássica afirma que conhecer é manipular adequadamente representações (símbolos), e isso diz respeito à maneira de operar de um sistema, independente do lugar no qual tal sistema exista. Dessa forma, o conhecimento é tomado como universal, como algo que vale e se legitima para além dos corpos que o criaram e dos lugares nos quais tais corpos o desenvolveram e o mantêm. Esse conhecimento, próprio dessa primeira hipótese da ciência cognitiva, pronto e acabado, pode ser então embalado, precificado e exposto na prateleira do mercado para venda (transmissão). E por conta dessas características é que essa abordagem da inteligência artificial é tão popular hoje, sobretudo na cultura de opressão que se vive na periferia do capitalismo. Desconsiderar determinados corpos e seus lugares de vida é imprescindível para que se estabeleça a lógica hegemônica de controle e dominação desses corpos e lugares.

De acordo com Varela, Thompson e Rosch (2003), ainda no início das postulações sobre o que ficou conhecido como modelo da mente computacional, havia propostas de alternativas aos modelos teóricos da cibernética:

Nas conferências Macy, por exemplo, ocorreu uma prolongada discussão sobre a questão de que nos cérebros parece não haver regras, nem processadores lógicos centrais, nem a informação parece estar armazenada em localizações precisas (Varela; Thompson; Rosch, 2003, p. 99).

Dentre tais alternativas, foram sendo formuladas teorias sobre o processamento de sinais possíveis no cérebro humano que se denominaram como conexionistas, porque propõem arquiteturas computacionais diferentes daquelas dos modelos cognitivistas clássicos. Modelos como o PDP (Processamento Distribuído em Paralelo), proposto por Rumelhart, McClelland e Hinton (1986), revolucionaram em diversos aspectos a ciência cognitiva proposta há 40 anos. Entre esses aspectos estão os modelos conexionistas, principalmente as redes neurais artificiais (RNAs), que não mais explicam a cognição como o processamento dos símbolos enquanto unidades físicas, armazenáveis em lugares específicos e processadas de forma seriada por um processador central. Esses modelos, as RNAs, embora ainda sejam uma versão computacional da mente, operam de forma mais semelhante ao funcionamento do cérebro, como redes de muitos processadores dispostos paralelamente em diferentes camadas.

A segunda vertente da ciência cognitiva, de acordo com Varela, Thompson e Rosch (2003), chamada de conexionismo, entende que cognição é a: “(…) emergência de estados globais em uma rede de componentes simples (p. 111).” Essa rede funciona por meio de: “(…) regras locais de operação individual e regras de mudança na conectividade entre os elementos” (p. 111).

A abordagem conexionista da inteligência artificial apresenta algumas diferenças para a cibernética. Tais diferenças, porém, são muito mais relevantes em aspectos estruturais do funcionamento dos modelos do que dos conceitos fundamentais nos quais esses modelos estão baseados. As mudanças na arquitetura de computação dos dados ou no tipo de memória utilizada, bem como a ausência de importância dos símbolos enquanto estruturas a serem processadas, não decorrem de, nem alteram, princípios do dualismo cartesiano5 que fundamentam a abordagem cibernética. E nesse sentido, o ato de conhecer, para essa vertente da inteligência artificial, continua sendo o processamento de informações independente dos corpos que o fazem e dos lugares nos quais o fazem e vivem.

Assim, as duas primeiras vertentes do estudo da ciência cognitiva seguem apontando para esse conceito de inteligência descorporificada e dessituada, e servem muito bem à lógica de mercado que marca profundamente os estudos em tecnologias educacionais. Os equipamentos e ferramentas que operam com inteligência artificial clássica, ou com arquiteturas conexionistas, são muito utilizados enquanto produtos que se propõem a auxiliar e potencializar a educação. Eles se conformam muito bem como produtos para o consumo e, como tal, muito adequados para entregar conhecimentos corretos e prontos. Em outras palavras, tais produtos são o suprassumo moderno do projeto de educação bancária, criticado por Freire (2016) e por Mignolo (2003) e bell hooks (2017), por exemplo.

A terceira vertente da ciência cognitiva, apontada por Varela, Thompson e Rosch (2003), constitui-se por meio de um amplo conjunto de teorias6 que têm em comum a proposição de uma explicação sobre conhecer que não utiliza a noção de representação mental nem de computação (Newen, De Bruin e Gallagher, 2018). Ou, de outro modo, essa vertente entende que conhecer não é processar informações. Ainda que no ato de conhecimento possa haver algo que se chame de processar informações, o atuacionismo (um dos nomes dessa terceira vertente da ciência cognitiva) entende que esse não é o centro da explicação, nem nada parecido com algum tipo de essência do que seja conhecer ou aprender.

Entre esse grupo de teorias, embora existam divergências, há a formação nítida de um caminho paradigmaticamente diferente daquele desenvolvido pelas duas vertentes iniciais da ciência cognitiva. No paradigma nascente, ao se retirar do centro da discussão a noção de representação mental e as formas de manipulá-la (o processamento de informações), abre-se a possibilidade de voltar a tratar da experiência vivida no mundo, pelos corpos que as vivem em seus lugares específicos. Entre as teorias que dão suporte a essa concepção de inteligência, está a fenomenologia, especialmente os escritos de Merleau-Ponty, que propõem um giro nos estudos sobre o conhecimento, buscando colocar a experiência no centro do estudo sobre as experiências (Merleau-Ponty, 1996). Com isso, a noção de conhecimento pode ser vista não mais como uma essência comum, universal, genérica, a ser exportada para todos os cantos do mundo. Colocar a essência na existência é voltar a atenção à experiência vivida em cada lugar pelos corpos que ali habitam.

Em sua descrição da teoria enaccionista, ou atuacionista, da cognição, Varela, Thompson e Rosch são precisos ao afirmarem que:

(…) situar a cognição como ação incorporada dentro do contexto da evolução como deriva natural oferece uma visão das capacidades cognitivas inextricavelmente ligadas a histórias que são vividas, algo bem parecido com os caminhos que existem apenas na medida em que são abertos com o caminhar (Varela; Thompson; Rosch, 2003, p. 209).

Para os autores, uma das grandes novidades dessa vertente com relação às outras, além do que se disse nos parágrafos anteriores, é o fato de propor que cognição não é bem definida enquanto resolução de problemas por processamento de dados. Eles preferem o conceito de “deriva natural”7, que indica inteligência em procedimentos que não estão prescritos, mas que são muito mais bem descritos em uma lógica prescritiva (Varela; Thompson; Rosch, 2003, p. 209). Para os autores, essa corrente da ciência cognitiva entende o conhecimento como a ação dos corpos no mundo. Então, conhecer não é apenas resolver problemas manipulando símbolos ou sub-símbolos, mas ser o ato mesmo de viver, de se manter vivo, conforme diz Maturana (2014): “(…) o conhecer surge como um operar adequado à circunstância, de modo que essas duas condições - a organização e a adaptação à circunstância - se conservem. Por isto é que digo que viver é conhecer.” (p. 40, destaques do original). Ainda, posteriormente, vemos o autor dizer: "Quando digo que conhecer é viver e viver é conhecer, o que estou dizendo é que o ser vivo, quando deixa de ser congruente com sua circunstância, morre.” (Maturana, 2014, p. 48).

A potência e os desdobramentos de uma concepção radicalmente diferente das anteriores no contexto da ciência cognitiva acaba colocando em xeque-mate diversas noções caríssimas às duas vertentes anteriores. Noções essas que são cartesianas e fundamentam muito das crenças do senso comum, vivido aqui na periferia do capital. Nessa terceira corrente da ciência cognitiva, o conceito de representação mental fica completamente fora do foco da explicação sobre o que vem a ser conhecimento e como ele acontece. A própria ideia de inteligência artificial recebe uma crítica muito forte quando Maturana (2003) aponta que conhecimento é vida, e, portanto, a ação de seres vivos e não de máquinas não-vivas, ou não-autopoiéticas8.

Assim, Varela, Thompson e Rosch (2003) definem que, para a ciência cognitiva atuacionista, conhecer é atuação: “(…) uma história de acoplamento estrutural que produz um mundo” (p. 210). Para eles, a versão atuacionista da cognição afirma que o conhecimento funciona: “Por meio de uma rede consistindo em níveis múltiplos de sub-redes sensório-motoras interconectadas” (Varela; Thompson; Rosch, 2003, p. 210). Os autores recorrem a um conceito que também tem autoria de H. Maturana, “acoplamento estrutural”, para descrever o que é cognição. Para Maturana (2003) o acoplamento estrutural ocorre entre organismos vivos e o meio no qual vivem.

O produto das interações continuadas de um sistema estruturalmente plástico num meio com estrutura redundante ou recorrente, portanto, pode ser a seleção contínua no sistema de uma estrutura que determina nele um domínio de estados e um domínio de perturbações que lhe permite operar recorrentemente em seu meio, sem desintegração. Eu chamo esse processo de acoplamento estrutural (Maturana, 2003, p. 159).

Para os autores citados e para a terceira vertente da ciência cognitiva, conhecer é viver e se manter vivo. Enquanto se vive, se conhece, e enquanto se conhece o mundo, o organismo se mantém vivo no mundo e mantém o mundo vivo também. Tal perspectiva circular é bastante típica da abordagem fenomenológica, que está na origem dos escritos de Merleau-Ponty (1996), Maturana (2003) e Varela, Thompson e Rosch (2003).

Essa noção de conhecimento, por ser muito distinta da perspectiva cartesiana, parece possibilitar outros encaminhamentos para a educação que estão fora da lógica hegemônica do dominador. Uma das hipóteses aqui experimentadas é a de que essa acepção de conhecimento permite conceber práticas educacionais mais libertadoras e emancipatórias do que aquelas escravizadoras e opressoras, próprias da vida da maioria das pessoas nas periferias do capital, como em muitos casos de escolas públicas brasileiras. Porém, trocar uma concepção de conhecimento por outra, radicalmente diferente, é um processo longo e trabalhoso porque não se trata apenas de substituir palavras. Antes, uma troca conceitual envolve uma troca de princípios e intencionalidades. Envolve trocar formas de pensar, de agir com uma ou outra ferramenta. Trocar conceitos envolve a possibilidade de legitimar práticas e narrativas diferentes daquelas dadas pela estrutura opressora e colonizadora.

Ferramentas, intenções e histórias

Importante salientar que não se acredita e nem se espera fazer nesse estudo qualquer tipo de associação absoluta, ou relação causal direta, entre algum conceito específico e uma ferramenta, um instrumento, equipamento, ou técnica também específica. É preciso que isso fique colocado inicialmente para evitar conclusão inadequada de alguma relação aqui apontada, dada a amplitude do tema e das áreas que o estudam. Também porque isso demonstra uma posição importante para o presente trabalho, a de que conceitos e instrumentos não são neutros porque têm contextos nos quais foram criados e são mantidos, e porque são frutos de intencionalidades e desejos específicos de grupos de pessoas específicas. Entretanto, há também um campo de possibilidades de disputa no qual essas intencionalidades e desejos, mais ou menos institucionalizados, existem. E, nesse campo, os instrumentos, ferramentas, equipamentos, máquinas, assim como os conceitos e suas acepções específicas, podem ter suas intencionalidades iniciais subvertidas por novas formas de usar, (aquilo que se tem chamado de hackeamento) por um novo contexto e/ou, ainda, por finalidades distintas das iniciais.

Essa seção busca refletir sobre as relações entre determinadas ferramentas e os conceitos que fundamentam suas existências e usos. A pesquisa sobre tecnologia envolve tais questões na medida em que discute descrições das formas de se realizar uma tarefa. O estudo da techné9 envolve também a reflexão acerca de como se utiliza o mundo ao redor, para se fazer existir o próprio mundo ao redor. Ao se ocupar da compreensão do que vem a ser habilidade técnica, ou a forma de se realizar uma tarefa qualquer, o antropólogo britânico T. Ingold inicia a discussão definindo o que ele entende por ferramenta.

Nenhum objeto considerado puramente em si e por si, em termos de seus atributos intrínsecos apenas, pode ser uma ferramenta. Descrever uma coisa como ferramenta é colocá-la em relação com outras coisas dentro de um campo de atividade no qual se pode exercer determinado efeito. (..) Portanto, chamar um objeto de serrote é posicioná-lo no contexto de uma estória (…). Nomear a ferramenta é invocar a estória. Consideradas como ferramentas as coisas são suas estórias. (…) as funções das coisas não são seus atributos, mas narrativas. Elas são as histórias que contamos sobre elas (Ingold, 2015, p. 101-102).

Essa definição é relevante na medida em que se pretende compreender as relações que historicamente se fazem a partir do uso, da maneira de usar determinadas coisas nas tarefas de educar, na tarefa de conhecer. A ideia de que ferramentas e instrumentos sejam definidos por sua história, e não por seus atributos internos (estruturais), algo como uma essência, é fruto da abordagem fenomenológica de Ingold. Ela permite que se trate de ferramentas, sem ignorar que elas estão intrinsecamente envolvidas com ideias e intenções de grupos específicos em lugares e tempos específicos. Porque é nesses lugares e tempos, e por corpos específicos, que as histórias e narrativas são vividas e são contadas.

A educação, em suas muitas dimensões, pode ser entendida como certa sistematização histórica de formas de conhecer o mundo, de viver nele, de contar e escutar as histórias sobre o mundo, as pessoas e coisas. E nessa sistematização algumas ferramentas e equipamentos visam melhorar as possibilidades de conhecimento. Nesse texto, a intenção não é tratar especificamente de determinadas tecnologias com profundidade descritiva ou analítica. Antes, o que se busca é relacionar algumas das tecnologias próprias da educação (como o giz e o quadro-negro, ou aplicativos para celulares) com seus fundamentos filosóficos e conceituais envolvidos em práticas educacionais no contexto das escolas públicas do Brasil contemporâneo.

Entre tais ferramentas, uma delas ainda é amplamente utilizada na maioria esmagadora das escolas públicas brasileiras, em todas as regiões do país, e há muito tempo. O quadro-negro (e giz) constitui-se em um equipamento bastante antigo, mas também bastante versátil e eficiente, ao ponto de seguir existindo como principal recurso em muitas salas de aula já há cerca de cento e cinquenta anos, ao menos da maneira como conhecemos (Barra, 2013; Bastos, 2005). É possível se fazer muito com quadro-negro e giz para se dar suporte para outras pessoas conhecerem coisas. Mas quando olhamos, seguindo a orientação de Ingold (2015), para a história dessa ferramenta, de acordo com Barra (2013) e Bastos (2005), vemos que ela nasce com a intenção de mostrar coisas bem específicas para grupos de pessoas.

Falando sobre o quadro-negro, Barra afirma que ele:

(…) é instrumento de ensino coletivo, que aparece vinculado à simultaneidade do ensino de ler e escrever. É material escolar que marca o método de ensino de transmissão simultânea (…) (Barra, 2013, p. 126).

E aqui é relevante pensar sobre as intenções por trás do incentivo à essa tecnologia. A necessidade de massificação da alfabetização se faz crescente, entre tantos motivos, porque acompanha a crescente industrialização dos meios de produção e dos postos de trabalho. Assim, um equipamento como o quadro-negro (com giz e apagador) vai se tornar o material central de metodologias cartesianas e bancárias de educação. Ele permite que o professor escreva e o estudante copie, o que para as necessidades tecnicistas de instrução bancária, e transmissão de narrativas prontas, é o ideal.

O quadro-negro enquanto ferramenta, da maneira como se experimentou e experimenta aqui na periferia do capitalismo, conta hegemonicamente a história de controle e domínio de corpos sentados em carteiras enfileiradas em salas com muitos outros (quantos forem necessários ao mercado no momento). O quadro-negro está intimamente relacionado com outros objetos (materiais próprios das salas de aula das escolas, como mesas, cadeiras, giz, apagador, além das pessoas professoras, demais servidoras e estudantes) em um campo de atividades, ou possibilidades, no qual ele pode oferecer oportunidades de ação de acordo com as intenções das pessoas que os partilham. No contexto das escolas para instrução dos oprimidos, esse equipamento todo (o conjunto das ferramentas com quadro-negro, giz, carteiras enfileiradas, salas…) permite que muitas pessoas aprendam, simultaneamente, a contar e escrever as histórias e os nomes que os opressores querem e legitimam como relevantes. E faz isso com um custo financeiro bem baixo, o que garante e potencializa ainda o lucro do colonizador.

Essa tecnologia, ampliada há cerca de 150 anos por conta das condições gerais do país, existe muito antes do próprio conceito de inteligência artificial, ou de conexionismo. No entanto, partilha da mesma concepção cartesiana de conhecimento, com essas correntes da ciência cognitiva. Ainda que sem o requinte e instrumental da ciência do século XX, a explicação sobre o que é conhecimento que fundamenta a forma padrão de se utilizar quadro-negro (giz, carteiras, fileiras e salas) é basicamente a mesma. Conhecimento, nesse caso, é aquilo que o colonizador diz que é, algo que está pronto e precisa ser transmitido (vendido) aos colonizados, porque esses não o possuem. Para que o colonizado tenha então acesso ao conhecimento verdadeiro, aquele produzido e inventado pelo colonizador, ele deve processar adequadamente os símbolos dados. Deve efetuar as mesmas operações racionais e com a metodologia que o colonizador ensinou, para chegar aos mesmos resultados verdadeiros e legítimos para ele. Em suma, o colonizado deve aprender a contar a mesma história que o colonizador ensinou, deve ocupar o papel dado a ele na história contada pelo opressor.

O que salta aos olhos nessa altura do texto é que uma tecnologia de um tempo tão diferente do nosso possa compartilhar intenções e desejos com fundamentos de tecnologias atuais. Essa partilha entre conceitos da inteligência artificial cibernética e mesmo do conexionismo se dá por conta principalmente da perspectiva de que conhecer é processar adequadamente informações, independente dos corpos e lugares.

E é essa mesma perspectiva do que seja conhecer e aprender que subsidia um aplicativo de celular10 que, nos sombrios tempos da pandemia da Covid-19, foi tido como relevante ação de política nacional de alfabetização no Brasil. Em setembro de 2020, o Ministério da Educação apresentou ao país um software para melhorar a alfabetização das crianças de 4 a 9 anos de idade. Dentre os inúmeros problemas éticos, técnicos e estéticos que podem ser apontados em tal iniciativa, recorta-se, para os fins desse ensaio, três aspectos: a origem internacional (europeia); sua natureza digital, intermediada por telas; e seus fundamentos cartesianos. Esses aspectos servem para desvelar as histórias contadas sobre esse aplicativo e as histórias que seus criadores intencionam que sigam sendo contadas.

Uma das marcas mais nítidas daquilo que a primeira seção desse texto relacionou com a concepção freireana de educação bancária foi o fato de que tais concepções legitimam o desprezo por pessoas e lugares específicos, onde o conhecimento acontece. De acordo com os manuais de usuário disponíveis no site11 do Ministério da Educação, o aplicativo foi criado na Finlândia e traduzido para 25 línguas em cerca de 30 países. Os documentos de apresentação do material tratam como grande virtude da ferramenta o fato de que, sendo criada em um lugar específico para pessoas específicas, ela venha a ser utilizada por qualquer pessoa em qualquer lugar. Assim, como o quadro-negro, esse aplicativo legitima e valoriza sua capacidade universal, válida para qualquer território e qualquer pessoa. O que pode também ser entendido, como faz Mignolo (2003), enquanto um modo de "(…) universalization of the regional concepts of science, philosophy and knowledge”12 (p. 330).

Essa tem sido uma estratégia central da modernidade colonizadora. Constantemente a periferia do capital importa conceitos, ideias, problemas e soluções inventadas e postuladas pelo dominador, por quem está no centro do sistema do capital. E basicamente a educação bancária se encarrega de transmitir (vender) as representações adequadas, bem como suas formas corretas (de acordo com o colonizador) de interpretação. Ao criticar o aspecto representacionista da forma de conhecer, validado pela modernidade, próprio das duas primeiras vertentes da ciência cognitiva, Mignolo indica:

Assim, a preocupação com a representação do colonizado incide sobre o discurso do colonizador, esquecendo-se de perguntar como é que os colonizados se representam, como se retratam e se concebem e como falam por si sem necessidade de cronistas autodenominados, filósofos, missionários ou homens de letras para representá-los (descrever e falar) por eles (Mignolo, 2003, p. 332, tradução nossa).13

O autor aponta para uma relação bastante relevante entre concepção representacionista de cognição e o desenvolvimento da colonialidade na modernidade capitalista. E o exemplo da valorização da internacionalidade (eurocentrada) do aplicativo para celulares, aqui citado, parece ilustrar muito bem o caso. Pode-se pensar, com Mignolo (2018), que esse aplicativo funciona como atualização de ferramenta (história contada sobre ela) educacional. Seu uso atualiza a história de dominação, controle e colonialidade, na qual a periferia do capital recebe e interpreta o mundo dado de acordo com as representações elaboradas pelo colonizador.

Cabe também ao escopo desse texto se atentar ao fato de que essa ação (a disseminação do aplicativo) constitui parte de uma política pública de alfabetização que reforça a aproximação da infância às telas. As crianças são, mais uma vez, e agora por força de política pública, encaminhadas para telas e não para o mundo. Se a sala de aula isolava a criança para focar no quadro-negro, o aplicativo atualiza esse isolamento com fones de ouvido e telas. Porém, a vida, o mundo, onde se aprende conforme se vive (Maturana, 2003) não cabem nas telas ou quadros. Eles precisam estar representados nesses espaços, precisam ser reduzidas a representações bidimensionais, feitas pelas intenções do colonizador. E é com isso que a educação bancária, que partilha conceitos dualistas cartesianos com as duas primeiras vertentes da ciência cognitiva, opera: com representações do mundo, não com ele mesmo.

Enquanto a cognição como representação pressupõe um mundo fora do organismo que é representado mental ou graficamente, a cognição como enacção implica que o organismo constitui e se coloca no mundo construindo um ambiente através de um domínio dinâmico de interações - nem o mundo primeiro e a mente do organismo o representando, nem o organismo primeiro representando o que está fora dele (Mignolo, 2003 p. 333, tradução nossa).14

Uma contribuição da fenomenologia para os estudos decoloniais fica explícita na aproximação do autor da citação anterior com conceitos de autores da ciência cognitiva. O subsídio fenomenológico das teorias enaccionistas do conhecimento tem implicações políticas, que são muito bem observadas por Mignolo (2003). Essa abordagem fenomenológica ainda aproxima a vertente contemporânea da ciência cognitiva com as críticas e proposições de Freire (2016) e de bell hooks (2017), por exemplo, sobre a educação enquanto possibilidade de emancipação social. E essas perspectivas educacionais também trazem críticas sobre outra dimensão relevante, envolvida com o uso do aplicativo para celulares, a intenção de legitimar a aprendizagem (de leitura e escrita da língua materna) enquanto ação de reconhecimento e cópia, sem possibilidades de criatividade ou de qualificação das relações com o mundo que envolva a criança aprendiz. Muito longe da ideia freireana de “palavra geradora”15 e de sua perspectiva de alfabetização e democracia (Freire, 1967), a concepção que subsidia esse aplicativo entende que conhecer o mundo é copiá-lo adequadamente em algum lugar dentro da mente.

Copiar de acordo com as regras dadas pelo colonizador a história das coisas do mundo como ele contou é basicamente o que faz o aplicativo quando requer que as crianças apontem em uma tela as indicações sonoras escutadas nos fones de ouvido. A desconexão com o mundo em volta, potencializada pela representação audiovisual na tela, é completamente compatível com a alienação daquilo que se está aprendendo a ler e escrever. E isso nos casos (que não são maioria) em que as crianças brasileiras têm acesso à internet e telefones celulares com telas interativas.

Para além de discutir aspectos igualmente relevantes, sobre o tipo de imagens e sons utilizados, ou as temáticas presentes, ou ainda a ideia de jogo no qual se ganha ou se perde, o intuito aqui é descrever o conceito de conhecimento que está em seu fundamento. Porque esse conceito envolve um conjunto de valores e intencionalidades muito próprios do dominador para a manutenção de uma ampla estrutura de opressão. A partilha entre conceitos cartesianos que pode se ver com instrumentos tão antigos, como nos exemplos acima, tem sido sistematicamente atualizada por conta de desenvolvimentos intensos em tecnologias de comunicação e transmissão de dados. O advento da prensa de tipos móveis, dos impressos coloridos, da fotografia, da fonografia, do rádio, da televisão e, recentemente, da internet mostram, no contexto da educação na periferia do capital, constantes atualizações da mesma ideia, de que conhecer algo é receber algo, alguma uma instrução sobre esse algo (que já está pronto e precisa ser transmitido por tal instrução). Ou, em outras palavras, a manutenção atualizada dos pressupostos dualistas cartesianos na educação tem ocorrido por meio dessa vertiginosa lista de ferramentas usadas na comunicação e educação, o que, como foi dito anteriormente, não significa que tais instrumentos não possam ser utilizados com intenções de libertação e emancipação.

Considerações finais sobre um caminho de subversão de tecnologia educacional

Das tantas diferenças entre as ferramentas comentadas anteriormente, o quadro-negro e o aplicativo de celular, há que se observar aqui o nível do fechamento do modo de usar, muito maior na segunda do que na primeira. Esse fechamento operatório parece expressar a força da delimitação de narrativas conseguidas nos dois casos. As intencionalidades colonizadoras presentes nas narrativas originais do quadro-negro parecem ter bem mais frestas e aberturas para subversões do que aquelas que por hora aparecem no aplicativo citado. Principalmente no que diz respeito a utilizar tais ferramentas em ações que estejam subsidiadas com o conceito de que conhecer é criar, antes de se processar informações.

Com a ideia de que conhecer é copiar, e interpretar adequadamente o conhecimento pronto pelo colonizador, não há espaço para criação. Se o conhecimento está pronto e acabado, não há espaço para criar nada, apenas para repetir, reproduzir ou copiar. Menos ainda há possibilidades para entender que conhecer possa ser inventar, criar ou recriar. De forma mais ou menos fechada, as duas ferramentas comentadas antes são partes da estratégia de um conhecer mecanizado. Ao falar de alfabetização, Freire (1967) aborda esse tipo de conhecimento, que de forma mecânica reproduz o mundo dado:

Desde logo, afastáramos qualquer hipótese de uma alfabetização puramente mecânica. (…) Pensávamos numa alfabetização direta e realmente ligada à democratização da cultura, que fosse uma introdução a esta democratização. (…). Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores (Freire, 1967, p. 103 e 104).

Ao tratar de alfabetização, quando esboça seu método, Paulo Freire se coloca em oposição ao uso mecânico, ou repetitivo, ou não criativo, das ferramentas. Nesse sentido, o aplicativo de celular é ainda mais fechado para usos exclusivamente mecânicos do que o quadro-negro. Porém, ambos podem ser subvertidos a partir de uma reconsideração na história a ser contada pela ferramenta. E essa reconsideração somente ocorre se houver a possibilidade de criar outras histórias, diferentes daquelas dadas pelo colonizador para manter sua estrutura de dominação e opressão. Por sua vez, para que isso aconteça, há que se descrever o conhecer como criar, antes de o conhecer como construir, ou como processar informações.

Porque ferramenta é narrativa (Ingold, 2015), é possível viver e contar histórias diferentes com ferramentas iguais. Um caminho para uma educação emancipatória envolve a oportunidade de contar a própria história (Kilomba, 2019; Freire, 1967; hooks, 2017). Isso pode ser feito com múltiplos instrumentos, mesmo com aqueles criados e preparados para repetir a história contada pelo dominador. Para isso, é necessário subverter a forma de usar o instrumento, é necessário usá-lo com finalidade diferente daquela dada pelo opressor. Criar outra forma de usar os instrumentos, por sua vez, envolve a frequência do exercício criativo, envolve compreender o conhecimento como "ato de criação” (Freire, 1967). Nesse sentido, a discussão apresentada até aqui formula a hipótese de que conceber conhecimento como processamento de informações, ou construção de representações adequadas a um padrão importado de outros lugares e corpos, é algo que permite popularizar ferramentas (histórias sobre seus usos) e fortalecer estruturas de dominação, controle e opressão de grupos de pessoas, como ocorre intensamente nas escolas da periferia do capitalismo.

Ao descrever alfabetização (conhecimento, aprendizagem) como criação, Freire abre o caminho para a subversão de intencionalidades do colonizador nas ferramentas e seus usos. Outras e outros demais autoras e autores encontram e desdobram suas ideias nesse sentido. Grada Kilomba (2019) enfatiza a importância de escrever para contar a própria história, em um contexto de periferia que estruturalmente e estrategicamente vai sendo apagada e aniquilada, como seus corpos e lugares não-hegemônicos. Também bell hooks (2017) caminha com as ideias freireanas e aponta para a relevância do desobedecer, de subverter ordens colonizadoras, assassinas e opressoras.

Ao falar da importância de narrar sua própria história, Kilomba (2019), logo na introdução, afirma que: "Eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato político. (…) escrita como ato de tornar-se” (p. 28). Ela trata como aberta, em disputa, a ideia de Mignolo (2012), da escrita como instrumento de dominação, de “diferença colonial”. Para Kilomba, se a escrita é uma ferramenta ligada ao controle e colonização, ela pode ser descolonizada, ser utilizada para contar a própria história e se emancipar da opressão de reproduzir a história do colonizador. A autora propõe tomar a ferramenta que a oprime para usar de forma a se libertar dessa opressão colonizadora.

Tal postura, indicada por Kilomba (2019), partilha dos mesmos fundamentos fenomenológicos das postulações sobre conhecimento e aprendizagem da perspectiva enaccionista na ciência cognitiva, do pensamento de Ingold (2015), de Freire (1967) e de bell hooks (2017). Essa última autora lembra como a concepção de conhecimento enquanto criação, invenção ou reinvenção subsidiou práticas libertadoras entre seus ancestrais africanos escravizados nas Américas.

Imagino, portanto, os africanos ouvindo o inglês pela primeira vez como “a língua do opressor” e depois ouvindo-a outra vez como foco potencial de resistência. Aprender o inglês (…) foi um modo pelo qual os africanos escravizados começaram a recuperar seu poder pessoal dentro de um contexto de dominação. (…) Embora precisassem da língua do opressor para falar uns com os outros, eles também reinventaram, refizeram essa língua para que ela falasse além das fronteiras da conquista e da dominação. (…) Os negros escravizados pegaram fragmentos do inglês e os transformaram em uma contralíngua (hooks, 2017, p. 226).

Ele se dá no caso dos africanos escravizados no Brasil com a língua portuguesa e em tantos outros países nos quais a língua foi ferramenta central de dominação e opressão. A autora propõe desobedecer, romper com ordem colonizadora e inventar outras formas de utilizar as ferramentas que o colonizador impõe. E, para isso, o ato de educar tem de ser ato de criação, porque enquanto ato político, se não envolver invenção ou reinvenção, será sempre mecânico e apenas repetitivo, perfeito para contar a história pronta vendida cara pelo opressor.

Assim, o presente ensaio teve a intenção de refletir sobre desdobramentos de uma concepção dualista cartesiana de conhecimento, subsidiando ferramentas para práticas educacionais opressoras e colonizadoras. O texto iniciou mostrando o desenvolvimento da noção de conhecimento dos modelos propostos pela ciência cognitiva em três momentos diferentes. Isso porque a partir desse suporte conceitual os equipamentos e ferramentas foram desenvolvidos, e são utilizados, em um contexto específico de intencionalidades colonizadoras. Uma segunda parte aprofundou essas relações entre ferramentas, as histórias que elas contam e as intenções envolvidas. A última etapa, a partir das críticas feitas às ferramentas e seus fundamentos teóricos, conclui que quando há mudanças em conceitos como aprendizagem e conhecimento, sobretudo no sentido de se distanciar da ideia de processamento de informações e se aproximar da perspectiva de conhecimento como enacção e como criação, há possibilidades de subversão da ordem colonizadora e opressiva. Na concepção do conhecimento como ato criativo de corpos em seus lugares de vida, a subversão das ferramentas e tecnologias educacionais sustentou e segue sustentando a resistência e a luta por libertação dos oprimidos.

Entre as principais limitações que a presente pesquisa encontrou está a necessidade de transitar entre diferentes áreas do conhecimento. Especialmente porque há que se realizar um trânsito entre metodologias e referenciais conceituais, o que encontra resistências no âmbito da estrutura burocrática da escrita dos resultados da pesquisa. Isso tem implicado, ainda, no aspecto temporal de realização das tarefas da pesquisa, pois relacionar áreas diferentes demanda leituras e discussões mais amplas e complexas do que se a pesquisa estivesse circunscrita a apenas uma área de estudo.

Esse texto é o segundo ensaio produzido com os achados do projeto de pesquisa desenvolvido desde que cheguei na instituição que ora trabalho. A primeira publicação teve como foco a noção de conhecimento cartesiano e alguns desdobramentos na construção da escola da periferia do capitalismo (Oliveira, 2022). A intenção futura é seguir a pesquisa buscando caracterizar os corpos que conhecem os mundos que habitam, refletindo sobre suas potências e limites no contexto da escola da periferia do capitalismo. A sequência da pesquisa envolverá a reflexão sobre práticas artísticas enquanto oportunidades de criação de conhecimento para o aprofundamento de movimentos de emancipação e libertação nas escolas da periferia do capitalismo.

Como citar: Oliveira, A. Conhecimento como criação: subversão de tecnologia educacional na periferia do capitalismo. Revista Diálogo Educacional, v. 24, n. 80, p. 332-347, 2024. https://doi.org/10.7213/1981-416X.24.080.AO10

1O conceito “periferia do capitalismo” é bastante utilizado nas ciências sociais, filosofia e economia, por exemplo, para designar povos, grupos sociais e países que vivem às margens do capitalismo, no sentido de não participar de suas decisões centrais nem de suas benesses. Utilizo essa noção aqui de forma bastante ampla e não apenas centrada em um autor.

2Dentre tantas ferramentas, o presente ensaio escolhe usar como exemplos para a reflexão o quadro negro e um aplicativo para alfabetização.

3Me refiro à expressão “epistemicídio" conforme empregada por Carneiro (2006).

4Sou professor da XXXXX (desde 2019), atuando como professor e coordenador das Licenciaturas da Universidade. Ministro a disciplina de Estágio Supervisionado e, nessas classes, mantenho contato direto com escolas públicas enquanto campo dos estágios por mim supervisionados. Mas atuo como professor em Licenciaturas (Música e Artes) em outras universidades desde 1998.

5Tal dualismo refere-se à ideia de que mente e corpo são substâncias distintas.

6Teoria dos sistemas dinâmicos, teoria da mente corporificada, situada, estendida e enactiva, entre outras.

7Para maiores informações sobre o conceito de deriva natural, ver: Maturana e Mpodozis, 2000.

8Para informações sobre máquinas autopoiéticas, ver: Maturana e Varela, 2002.

9Palavra grega que indica técnica, ou em inglês: know-how, que quer dizer “como se faz”.

10Trata-se do software chamado Grapho-Game, que pode ser baixado gratuitamente em lojas virtuais de aplicativos para telefones celulares.

11Disponível em: https://alfabetizacao.mec.gov.br/grapho-game. Acesso em: 24 jan. 2023.

12(…) universalização de conceitos regionais de ciência, filosofia e conhecimento (Mignolo, 2003, p. 330). Tradução nossa.

13Thus, the concern with the representation of the colonized focuses on the discourse of the colonizer, and one forget to ask how the colonized represent themselves, how they depict and conceive themselves as well as how they speak for themselves without the need of self-appointed chronists, philosophers, missionaries, or man of letters to represent (depict as well as speak for) them.

14While cognition as representation presupposes a world outside the organism that is either mentally or graphically represented, cognition as enactment implies that the organism constitute and places itself in the world by constructing an environment through a dynamic domain of interaction - neither the world first and the organism’s mind representing it, nor the organism first representing what is outside of it.

15A noção de palavra geradora pode ser encontrada em Freire, 1967, p. 113 - 115.

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Recebido: 10 de Outubro de 2023; Aceito: 16 de Janeiro de 2024

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