INTRODUÇÃO
Estrabismo é uma doença ocular caracterizada pelo desvio dos olhos, devido a um desequilíbrio sensório-motor da visão. Acomete cerca de 2% a 4% das crianças. As causas do estrabismo variam, podendo ser genética, neurológica, por trauma, associada a síndromes ou anomalias oculares e por distúrbio refracional1.
Quanto à direção do olhar, o estrabismo é classificado como horizontal e vertical. O estrabismo horizontal é a apresentação mais frequente e pode ser convergente ou divergente. O desvio convergente, denominado de esotropia, ocorre quando o olho desviado está mais próximo do nariz. O desvio divergente, conhecido como exotropia, é quando o olho está desviado para fora, em direção à orelha. Os desvios verticais são hipotropia, quando o olho desvia para baixo, e hipertropia, quando desvia para cima1),(2.
O diagnóstico do estrabismo é realizado por meio do exame oftalmológico - que consiste na avaliação da acuidade visual com melhor correção ótica -, do exame na lâmpada de fenda, do exame de fundo de olho, da avaliação da motilidade ocular, de testes com oclusor e uso de prismas3.
O tratamento do estrabismo pode ser clínico (por uso de óculos) ou cirúrgico e visa ao alinhamento ocular. A cirurgia do estrabismo consiste na realização do procedimento nos músculos extraoculares por meio de técnicas que enfraquecem ou fortalecem as suas ações. O domínio da cirurgia muscular tem aplicação não apenas para a cirurgia de estrabismo, mas também para outras cirurgias oculares que envolvem a retina, o trauma e a órbita2.
Dentre as complicações da cirurgia de estrabismo, a perfuração ocular, apesar de ser rara (cerca de três casos a cada mil cirurgias), é a mais grave, porque aumenta o risco de descolamento de retina e infecção intraocular (endoftalmite), que podem causar cegueira4. Na maioria das vezes, a perfuração ocorre no momento da refixação escleral do músculo extraocular operado. Essa complicação é mais frequente quando a cirurgia é realizada por cirurgiões menos experientes, como residentes e fellows5),(6.
O ensino da cirurgia de estrabismo para os médicos residentes é realizado principalmente na sala de cirurgia, em situações reais, o que pode aumentar o risco de danos aos pacientes pelo tempo de exposição à anestesia e pelo risco de perfuração escleral no momento da reinserção do músculo na esclera. Portanto, otimizar as oportunidades de treinamento dos residentes por meio de atividades simuladas pode ajudá-los a dominar as principais técnicas cirúrgicas e minimizar os riscos para os pacientes7.
A aprendizagem ativa com ênfase no protagonismo do aluno, por meio da aprendizagem por questionamento e experimentação, pode entregar uma compreensão mais ampla e significativa. A aprendizagem mais profunda requer espaços de prática frequentes (aprender fazendo), o que estimula vários sentidos e gera conexões cognitivas e emocionais8.
Nas últimas décadas, a simulação é um tipo de metodologia ativa de ensino e aprendizagem que vem sendo cada vez mais utilizada na educação em saúde. A simulação consiste em uma estratégia de ensino que cria situações reais utilizando atividades estruturadas, as quais permitem que os alunos aprendam ou aprimorem seus conhecimentos, habilidades e atitudes em um ambiente artificial9.
Vários motivos justificam a relevância e o ganho em aprendizagem do ensino com base em simulação: rápido crescimento das informações em saúde, segurança do paciente, aumento nas possibilidades do realismo, redução da disponibilidade de determinados pacientes, crescentes demandas de aprendizagem e restrições de horários disponíveis para o ensino9.
O ensino baseado em simulação também é uma tendência nos programas de residência médica em oftalmologia. Com o avanço tecnológico, os modelos de simulação podem ser ferramentas seguras e eficazes para o treinamento e a avaliação, permitindo que os alunos melhorem as suas habilidades clínicas e cirúrgicas10.
O objetivo do nosso relato é expor a experiência de uma atividade realizada com os médicos residentes de oftalmologia utilizando a simulação como método de ensino da cirurgia de estrabismo.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
No dia 27 de março de 2022, realizamos uma oficina de treinamento em cirurgia de estrabismo com os médicos residentes do programa de residência médica (PRM) de um hospital universitário em sala de aula, com duração de duas horas. Atualmente, o nosso PRM em oftalmologia é formado por 16 residentes, sendo quatro do primeiro ano, seis do segundo e seis do terceiro.
A atividade começou a ser planejada pelos autores em fevereiro de 2022 durante o curso de Especialização em Preceptoria Médica, em que se apresentaram os conceitos e as possibilidades de ensino e aprendizagem voltados para a participação ativa dos alunos.
Escolhemos dois médicos residentes do PRM, um de segundo ano e outro de terceiro, e uma oftalmologista que está fazendo fellowship em Oftalmopediatria e Estrabismo para nos ajudar a elaborar o roteiro das atividades a serem realizadas, o modelo de olho não biológico que simulasse a presença dos músculos retos extraoculares e a lista dos materiais para a montagem e o treinamento.
A programação definida para o momento da atividade foi aplicar um teste por 15 minutos no início e no fim da atividade, dar uma aula por 30 minutos e realizar a simulação por uma hora, totalizando duas horas de atividade. Posteriormente, enviou-se por e-mail um questionário de avaliação da atividade para os residentes (Figura 1).
As questões dos testes aplicados no início e final da atividade foram elaboradas pelos residentes colaboradores e analisadas pelos preceptores, e abordavam temas sobre a cirurgia de estrabismo. As questões tinham o objetivo de avaliar o conhecimento dos residentes sobre os objetivos das técnicas de recuo e ressecção de músculos retos, o material utilizado e as possíveis complicações das cirurgias de estrabismo.
Na aula, expuseram-se a proposta da oficina, o roteiro das atividades e a técnica cirúrgica a ser treinada, com demonstração de fotos e de um vídeo dos passos cirúrgicos. O vídeo mostrava o preceptor realizando a cirurgia de estrabismo em modelo de olho não biológico, o mesmo utilizado na simulação, com a técnica cirúrgica proposta para o treinamento.
O questionário enviado por e-mail continha três questões: uma de múltipla escolha, em que o respondente deveria marcar o ano de residência que estava cursando, e duas descritivas, uma se referia às impressões positivas e/ou negativas vividas na atividade e a outra solicitava a indicação de sugestões de temas da prática oftalmológica para outras atividades de simulação.
Elaboramos e montamos um modelo de olho não biológico. O material utilizado para montar esse modelo foi bola de isopor de 5 cm de diâmetro, faixa retangular de borracha de etileno-acetato de vinila (conhecido como EVA) medindo 9 cm de comprimento e 2,3 cm de largura, cola e fita dupla-face. Na faixa de EVA, desenhou-se um círculo de 14 mm de diâmetro no meio para simular a córnea, e fizeram-se dois cortes laterais em faixa a 5 mm de distância do círculo central para simular os músculos retos extraoculares. Essa faixa foi colada na bola de isopor. No momento do treinamento, esse modelo foi fixado com fita adesiva no braço da cadeira da sala de aula para que simulasse a posição do olho do paciente durante a cirurgia e limitasse os movimentos (Figura 2).
Para o treinamento, além do modelo de olho não biológico, utilizaram-se instrumentais cirúrgicos oftalmológicos, como pinças, porta-agulha, tesoura e gancho de músculo reto, e fio cirúrgico de seda 6.0 (Figura 2).
Os residentes colaboradores treinaram as técnicas cirúrgicas propostas no modelo de olho não biológico dois dias antes com o preceptor.
Durante a simulação, os residentes foram distribuídos em três grupos para receber a orientação e o suporte dos dois residentes e da fellow de Oftalmopediatria, sob supervisão da preceptoria de oftalmopediatria e estrabismo.
Todos os 16 residentes do PRM de oftalmologia desse hospital universitário participaram da atividade de simulação de técnica cirúrgica de estrabismo, e 14 deles responderam ao pré-teste e ao pós-teste (exceto os residentes colaboradores). As notas foram maiores nos testes realizados após a atividade de simulação, em todos os grupos (primeiro, segundo e terceiro anos) de residentes. A média geral aumentou de 7,5 no pré-teste para 9,3 no pós-teste.
Observamos que os residentes apresentavam interesse em aprender como manipular os instrumentos cirúrgicos utilizados, principalmente os do primeiro ano que estavam no segundo mês do início da residência. Alguns deles ainda não tinham assistido a uma cirurgia de estrabismo e/ou participado desse procedimento (Figura 3).
O interesse em treinar as técnicas cirúrgicas propostas foi unânime. Além de realizarem a simulação com o seu modelo de olho não biológico, os residentes se preocupavam em observar e ajudar os outros colegas. Isso demonstrou um bom relacionamento em equipe.
O questionário enviado por e-mail foi respondido por dez dos 16 residentes (62,5% dos participantes). Recebemos as respostas de três residentes do primeiro ano, quatro do segundo e três do terceiro. Todos os residentes relataram experiências positivas com a atividade.
Eis o relato de uma das residentes do primeiro ano:
[...] o workshop foi ótimo, pois me proporcionou a experiência de conhecer e praticar a cirurgia de correção de estrabismo. No dia seguinte, pude participar da cirurgia na prática e não fiquei “perdida”. Intensificou o aprendizado e foi muito mais fácil para entender o passo a passo.
Em outro relato, o residente pontuou a oportunidade de “esclarecer dúvidas sobre o manejo de instrumentos cirúrgicos, repetições de técnicas básicas de sutura e sobre esclarecimento das técnicas de abordagem da cirurgia de estrabismo”.
Em relação à experiência dos residentes do segundo ano, observou-se que o “curso serviu para consolidar o conhecimento do procedimento cirúrgico e notar que os passos cirúrgicos estavam mais ‘medulares’ ao participar da cirurgia de recuo de músculo reto medial no dia seguinte”. O modelo de olho utilizado foi considerado um ponto positivo da atividade, pois os residentes mencionaram que a “prática foi realizada com protótipo similar” e que gostaram do material utilizado.
Os residentes do terceiro ano enfatizaram a importância do aprendizado ativo com esse tipo de atividade no momento da cirurgia com pacientes reais:
[...] o workshop permitiu entender e praticar a técnica cirúrgica possibilitando um aprendizado ativo.
[...] praticar no modelo faz com que percebamos detalhes da técnica cirúrgica que às vezes passam despercebidos ao assistir uma cirurgia.
[...] acho que atividades desse tipo ajudam muito na nossa prática cirúrgica com os pacientes reais.
Os pontos negativos observados pela maioria foram em relação ao pouco tempo e à restrição de material disponibilizado para realização do treinamento, sem a possibilidade de repetir os passos.
As atividades sugeridas para outras práticas simuladas foram retinoscopia (exame de refração) e os passos das cirurgias de catarata, de transplante de córnea, de exérese de pterígio e de tratamento de glaucoma.
DISCUSSÃO
A aprendizagem ativa é mais significativa quando o professor fala menos, orienta mais e o aluno participa de forma ativa. Para isso, foram desenvolvidas grandes diretrizes que orientam os processos de ensino e aprendizagem e que se concretizam em estratégias, abordagens e técnicas concretas, específicas e diferenciadas, chamadas metodologias ativas. As metodologias ativas são estratégias de ensino centradas na participação efetiva do aluno na construção do processo de aprendizagem8.
Entre as metodologias ativas, destaca-se a simulação que se apresenta como uma possível estratégia de ensino na saúde por meio da qual se podem conquistar habilidades técnicas mediante a prática repetitiva, permitindo a aquisição de habilidades cognitivas, afetivas e psicomotoras obtidas fora do local de trabalho e servindo para melhor qualificação e segurança na resolução dos problemas dos pacientes reais9.
A educação cirúrgica passou por transformações para treinar cirurgiões competentes. Com o crescimento da tecnologia e a restrição de horas de trabalho no ensino cirúrgico, houve um aumento no uso da simulação no ensino cirúrgico, de modo a deslocar o aprendizado de habilidades cirúrgicas básicas para o laboratório e preservar o tempo limitado na sala de cirurgia para a aquisição de habilidades cirúrgicas complexas11.
O ensino da cirurgia oftalmológica para residentes é uma tarefa desafiadora. Para otimizar as oportunidades de treinamento e minimizar os riscos para os pacientes, a simulação é cada vez mais utilizada nos programas de residência de oftalmologia, em que se oferece um ambiente seguro onde o residente pode praticar deliberadamente, aumentar as suas habilidades cirúrgicas e diminuir as taxas de complicações12),(13.
Nos programas de residência de oftalmologia, podemos encontrar uma variedade de tipos de simulador, desde simuladores de tecnologia avançada de realidade virtual de alta fidelidade, como o Eyesi Surgical (VRmagic, Mannheim, Germany), para treinamento de cirurgia intraocular, como cirurgias de catarata e vitreorretiniana, até os mais simples e portáteis biológicos, como olhos de porco, ou não10. Porém, por razões financeiras, o acesso a esses simuladores não é possível no nosso serviço em razão do alto custo.
Nosso modelo de olho não biológico é uma ferramenta simples, portátil, econômica e de fácil acesso que pode ajudar os residentes de oftalmologia a aprender as principais etapas da cirurgia de estrabismo antes de operarem pacientes reais. Embora os residentes tenham apontado como ponto negativo uma quantidade insuficiente desse modelo no hospital, ele pode ser confeccionado com baixo custo e reproduzido em qualquer lugar, semelhante ao modelo publicado por Malik et al.14. A portabilidade e facilidade no manuseio permitem que o residente pratique as etapas com mais frequência desenvolvendo a memória com as etapas cirúrgicas.
Essa atividade com modelo de olho não biológico não avaliou a habilidade cirúrgica do residente antes e depois do treinamento, porém há estudos que usam diferentes escalas de avaliação validadas que não mostraram diferença no aprendizado com a utilização da simulação de cirurgia de estrabismo entre os modelos biológico e não biológico10. Isso torna o nosso modelo não biológico uma alternativa para o treinamento das etapas da cirurgia de estrabismo por meio da simulação.
CONCLUSÃO
A simulação testada no experimento é uma alternativa de metodologia de ensino centrada na participação ativa do residente que pode ser utilizada nos programas de residência de oftalmologia. Essa forma de aprendizagem permite ao residente treinar repetidamente, aumentar suas habilidades cirúrgicas e diminuir as taxas de complicações dos procedimentos cirúrgicos realizados por residentes em treinamento. Os residentes consideraram a experiência excelente, principalmente pela oportunidade de um aprendizado ativo por simulação e pela utilização de modelo de olho de fácil acesso.