Introdução
Em relatório da Comissão de Nacionalização do Ensino, datado de 05 de outubro de 1940 e endereçado a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde do Governo de Getúlio Vargas, o relator Lourenço Filho tecia o seguinte comentário referente ao processo de nacionalização do Ensino em território nacional:
Pela primeira vez, na história do país, o poder público vem tomando a peito o problema da nacionalização dos imigrantes e seus descendentes. Antes de 1937 isso não teria sido possível nalguns estados, porque as instituições vigentes erigiam em forças eleitorais os núcleos de origem estrangeira, dando-lhe influência bastante para contrariar os intentos do Governo Central (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS - CPDOC, 1940, p.6)
Já o presidente da instituição eclesiástica Igreja Luterana - Sínodo de Missouri1 no Brasil, Rev. August Heine, no ano de 1942, em correspondência ao Dr. Plínio Brasil Milano, delegado do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul, enfatizava que a instituição religiosa sob a sua presidência cumpria rigorosamente, nas escolas ligadas ao referido sínodo, todos os ditames da Campanha de Nacionalização do Ensino:
É, portanto, um fato histórico que a nossa igreja já se bateu pela nacionalização, em visto de trabalhar principalmente no seio da população de origem teuto de nosso Estado, antes de ser iniciada a grandiosa campanha nacionalisadora pelo Estado Novo, executada entre nós tão brilhantemente pelo governo do Estado e principalmente pelo Dr. Coelho de Souza, meritíssimo Secretário de Educação e Saúde Pública. Seja dito de passagem que com o mesmo Secretário assinou nossa igreja um convênio que prova inequivocamente o alto prestígio que nossa corporação eclesiástica goza nos meios governamentais deste Estado (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, 1942, p.1)
Ambas as citações foram extraídas de fontes primárias2 que dizem respeito a um mesmo evento histórico: a Campanha de Nacionalização do Ensino, promovida pelo Estado Novo, e sua relação com as escolas, neste caso, ligadas a uma instituição eclesiástica protestante com forte presença entre os imigrantes alemães e seus descendentes em solo brasileiro (doravante designados de teuto-brasileiros).
Para compreender tal relação, as reflexões de Dominique Julia sobre a cultura escolar como objeto de análise histórica são pertinentes. Segundo Julia, a problematização referente à cultura escolar se faz necessária haja vista que ela está interligada com outras questões. Assim, o autor afirma:
A cultura escolar não pode ser estudada sem a análise precisa das relações conflituosas ou pacíficas que ela mantém a cada período de sua história com o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular (JULIA, 2001, p. 10).
Fazendo uma análise política e cultural do processo histórico da educação na Modernidade, Julia (2001) cita, como um dos elementos desse processo, a ênfase dada pela Reforma Protestante - e, a partir dela, pelos pastores protestantes luteranos, - ao saber ler e escrever, e como isso se refletiu na sociedade alemã e naquelas sociedades em que o protestantismo teve algum reflexo, como é o caso das escolas luteranas no Brasil. Neste sentido, afirma Julia, que “a importância concedida pela doutrina pietista à Confirmação, nas Igrejas Luteranas como afirmação pública de uma convicção interior [...] [resulta] em favor da obrigatoriedade escolar” (JULIA, 2001, p. 26).
Assim, partindo das análises de Julia, entendemos oportuno buscar compreender a relação amistosa e/ou conflituosa entre o Estado Brasileiro e o Sínodo de Missouri a respeito da nacionalização do ensino, visto que estas questões se interrelacionam e atingem ambos os grupos.
Seria conveniente analisar atentamente as transferências culturais que foram operadas da escola em direção a outros setores da sociedade em termos de formas e conteúdos e, inversamente, as transferências culturais operadas a partir de outros setores em direção à escola (JULIA, 2001, p.37).
O presente artigo procurará entender, pois, a ação do Estado Brasileiro através da Campanha de Nacionalização do Ensino para com as escolas ligadas ao Sínodo de Missouri, bem como compreender a reação do Sínodo em face das diretrizes que lhe foram impostas. Para tanto, de início, é necessário conhecer o processo denominado de Campanha de Nacionalização do Ensino para, posteriormente, perceber sua relação com a referida instituição religiosa e suas escolas.
Relembrando a Campanha de Nacionalização do Estado Novo
A Campanha de Nacionalização do Estado Novo objetivava a construção de uma espécie de nacionalismo tupiniquim, especialmente junto aos grupos de imigrantes estrangeiros e seus descendentes que residiam em solo brasileiro. As autoridades brasileiras entendiam a necessidade de “abrasileirar” os que viviam no Brasil e ainda mantinham tradições culturais, sociais, econômicas e religiosas da pátria de origem, ou seja, para que fossem brasileiros de fato e de verdade.
Schwartzman afirma que, a partir de 1938, o projeto de nacionalização tentou efetivamente tornar-se uma realidade em solo brasileiro, visto que “[...] é fértil em medidas legais e projetos identificados com a construção do nacionalismo brasileiro” (SCHWARTZMAN, 2000, p.149).
Tal processo se daria, principalmente, na área educacional, através da ação do Ministério da Educação e Saúde, chefiada pelo ministro Gustavo Capanema, auxiliado pelos respectivos secretários de educação estaduais na promoção de uma identidade genuinamente nacional. Desta forma, “a constituição da nacionalidade deveria ser a culminância de toda a ação pedagógica do ministério, em seu sentido mais amplo” (SCHWARTZMAN, 2000, p. 142).
Schwartzman (2000) ainda entende que caberia ao Ministério da Educação e Saúde a invocação de elementos pátrios na formação dos estudantes, através de uma história mitificada de heróis e instituições nacionais, do culto às autoridades governamentais, inclusive com ênfase no Catolicismo Brasileiro, considerado uma forma mais legítima de religiosidade se comparada com outros segmentos eclesiásticos no país. Ou seja, caberia ao ministério uma ênfase no ufanismo verde-amarelo, em detrimentos de outras culturas, tradições e religiões consideradas inadequadas à realidade brasileira3.
No entanto, Schwartzman (2000) também pondera que tal proposta não levava em conta a realidade nacional, pois, na composição da população brasileira, grande parte era originária de levas de imigrantes que se instalaram no Brasil a partir da segunda década do século XIX. Segundo o autor,
É difícil, e era muito mais naqueles tempos, perceber a carga ideológica da noção de que a educação deveria ser instrumento para a construção da nacionalidade brasileira, até que consideremos o fato de que o Brasil é, em grande parte, um país de imigrantes. Nunca houve por parte das diversas correntes políticas de alguma significação na história brasileira, quem defendesse para o país a constituição de uma sociedade culturalmente pluralista, que desse a cada nacionalidade aqui aportada e aos próprios habitantes primitivos do país condições de manter e desenvolver sua própria identidade étnica e cultural (SCHWARTZMAN, 2000, p.127).
Nessa perspectiva, somos lembrados que, no ano de 1824, com a fundação de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, por alemães - marco inicial das grandes migrações para o Brasil identificado pela historiografia tradicional -, grandes levas de imigrantes iriam se fixar em território brasileiro, especialmente nos três estados do sul do país: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. No entanto, significativa parcela também se fixou em outros estados, como São Paulo e Espírito Santo. Destacavam-se importantes levas de imigrantes não somente alemães, mas também italianos, poloneses, pomeranos, sírios, libaneses, entre outros, que para o Brasil emigraram.
Também Seyferth (2017, p. 592) concorda que, para as autoridades do Estado Novo, era fundamental o papel atribuído à educação e, em especial, à utilização da língua vernácula no ensino em sala de aula, como fatores de fomento a uma espécie de consciência nacional, nos moldes dos conceitos elaborados por Ernest Gellner (1983)4 e Eric Hobsbawm (1990)5.
Desta feita, conforme Seyferth (2017, p. 598-599), dentro do processo de nacionalização do ensino, as autoridades governamentais entendiam que as seguintes medidas seriam necessárias para que fossem alcançados os objetivos de “abrasileirar” a todos os residentes em solo nacional: 1) Difundir o patriotismo brasileiro; 2) Possuir um corpo docente formado na sua ampla maioria por brasileiros; 3) Lecionar em sala de aula somente em língua portuguesa; 4) Proibir o ensino em língua estrangeira para menores de quatorze anos de idade; 5) Censurar livros didáticos em outras línguas para privilegiar a língua portuguesa, via ministério da Educação; 6) Proibir que as escolas nacionalizadas recebessem subvenções de instituições e governos estrangeiros.
Bomeny (1999), ao destacar o grande projeto político do Estado Novo, que passava pela construção e valorização da brasilidade em detrimento de outras concepções de nacionalidade e cidadania, entendia que, de todos os grupos estrangeiros em território nacional, o que mais causava preocupação às autoridades era o grupo alemão: “Não havia no projeto nacionalista do Estado Novo espaço para a inclusão e aceitação de convivência com fortes e estruturados grupos culturais estrangeiros nas regiões de colonização” (BOMENY, 1999, p. 145).
Mesmo considerando outros grupos de imigrantes, como italianos e japoneses, atingidos pela Campanha de Nacionalização, a difícil assimilação por parte dos teuto-brasileiros se dava em face da manutenção de traços culturais da pátria de origem, a Alemanha, o que, conforme entendimento das autoridades brasileiras, rivalizava com o patriotismo nacional.
A título de exemplo, a respeito do pensamento das autoridades brasileiras sobre a realidade dos núcleos coloniais alemães no Brasil, considerados verdadeiros quistos étnicos, tomamos as palavras de Góis Monteiro, Chefe do Estado Maior do Exército, com base em observações relatadas pelo Comando da 5ª. Região Militar do Sul, ao Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, no ano de 1938. Góis Monteiro afirma que a situação de não-assimilação do elemento estrangeiro ao Brasil ocorria em decorrência de uma colonização mal organizada e estruturada: “[...] quanto às consequências funestas de uma colonização no nosso país, mal orientada, sem a necessária diretriz do governo e controle indispensável” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - CPDOC, 1938, p. 1).
Em face disso, Góis Monteiro entendia ser necessária a ação eficaz do Estado Brasileiro através da obra nacionalizadora, visto que “a manutenção da nacionalidade de origem, [...] que deve estar acima da pátria em que nasceram, deve constituir a principal preocupação ao iniciar qualquer campanha” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - CPDOC, 1938, p. 2).
Se a nacionalização do ensino era fundamental, em face de um aparente perigo e apego a nacionalidades difusas da brasileira, Góis Monteiro entendia que o principal grupo que se distanciava do objetivo proposto pela nacionalização era o alemão.
Achando que de todos os elementos radicados no nosso país, os mais bem organizados são os alemães, devido ao seu isolamento em que procuram viver, transmitindo aos seus descendentes língua, costumes, crenças, mentalidade, cultura e patriotismo. [...]. A colonização alemã é a mais perniciosa, porque tem atraz de si, com a política da Alemanha hoje, uma política capaz não só de encorajá-la como mesmo protegê-la, quer pela força, quer pelas injunções diplomáticas (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - CPDOC, 1938, p. 2).
Para resolver tal situação, era fundamental uma atuação efetiva do Estado Brasileiro sobre todas as instituições que não estariam colaborando no processo de fomentação de uma nacionalidade brasileira. Neste caso, as chamadas escolas paroquiais teuto-brasileiras que existiam nas regiões de colonização alemã no Brasil.
Na seção seguinte, conheceremos a realidade em que se encontravam tais escolas no período da Campanha de Nacionalização do Estado Novo, bem como de que forma estavam ou não se adaptando às medidas do Governo Brasileiro.
As escolas teuto-brasileiras no Rio Grande do Sul
O secretário de educação e saúde pública do Rio Grande do Sul, J. P. Coelho de Souza, em Conferência realizada no ano de 1941, no Rio de Janeiro, identificava a existência de cerca de 2 mil escolas nas áreas de colonização estrangeira no Rio Grande do Sul.6 Tais escolas encontravam-se basicamente ligadas a denominações eclesiásticas ou eram escolas independentes.
Entre as denominações religiosas a que pertenciam as escolas, figuram a Igreja Católica, a Igreja Luterana Alemã, a Igreja Luterana -Sínodo de Missouri e a Igreja Adventista. Segundo Coelho de Souza, “as Igrejas Luterana Missouri e Adventista, mantinham praticamente o ensino em língua portuguesa, o mesmo não ocorrendo com as Igreja Católica e Luterana Alemã em que a língua oficial era o alemão” (SOUZA, 1942, p. 17).
Kreutz (2013) entende que as chamadas escolas étnicas no Rio Grande do Sul não tiveram comportamento homogêneo, ocorrendo diferenças importantes entre elas. Um exemplo disso diz respeito à existência de escolas urbanas e escolas rurais. Havia também escolas laicas e “escolas confessionais ou paroquiais” vinculadas a instituições eclesiásticas, “sendo que no Rio Grande do Sul, a vinculação confessional das escolas de imigrantes foi bem mais expressiva do que em outros estados” (KREUTZ, 2013, p. 22262).
Ainda segundo Kreutz, tomando como base o Anuário da Associação de professores da imigração alemã no Rio Grande do Sul, verificava-se o seguinte número de escolas ligadas à imigração alemã no estado, aliás, número aquém do mencionado por Coelho de Souza.
Número de escolas teuto-brasileiras no Rio Grande do Sul na década de 1930 | |
---|---|
Escolas vinculadas à Igreja Luterana | 705 |
Escolas vinculadas à Igreja Católica | 451 |
Escolas Mistas | 169 |
Total de Escolas da Imigração Alemã | 1.325 |
Fonte: KREUTZ, 2013, p. 22262
O problema no pensamento das autoridades do Estado Novo que promoviam a Campanha de Nacionalização não era o fato da existência de tais escolas, mas a inexistência de uma educação voltada para a promoção da “brasilidade”, visto que as escolas étnicas promoviam aspectos da cultura da pátria de origem de seus antepassados.
Neste caso, chamava a atenção a situação peculiar e extremamente grave nos núcleos alemães no interior do Rio Grande do Sul. Conforme frisa Seyferth, as autoridades do Estado Novo “percebiam a escola como um dos pilares da Germanidade [Deutschtum], pois ali era ensinada a língua materna, elemento essencial da diferença cultural” (SEYFERTH, 2017, p. 586).
Nas palavras de Seyferth, podemos compreender o processo educacional que ocorria nas escolas étnicas no interior do Rio Grande do Sul e a consequente preocupação das autoridades brasileiras a respeito do assunto.
Na prática, religião, cidadania, herança cultural germânica e a realidade da colonização faziam parte da grade curricular, juntamente com o ensino em língua alemã, eventualmente da língua portuguesa, além das disciplinas de geografia, história, matemática e ciências naturais. As aulas eram ministradas em língua portuguesa, razão maior da crítica assimilacionista. Afinal, na percepção do nacionalismo brasileiro, nessas escolas era dada maior relevância à história da Alemanha em detrimento da história do Brasil, assunto que, junto com a língua, era o cerne da questão escolar “teuto-brasileira” (SEYFERTH, 2017, p. 587).
Tanto Kreutz (1999; 2013; 2014) quanto Seyferth (2017) ressaltam que a grande maioria das escolas teuto-brasileiras no Rio Grande do Sul se, por um lado, desenvolviam aspectos do Germanismo, isto é, da cultura alemã, por outro lado, entendiam também que sua função em solo riograndense era o de fomentar a cidadania brasileira sobre aqueles que estavam sob seus cuidados em sala de aula. “O hino ‘Der Deutschbrasilianer’ de Otto Meyer, que aparece em praticamente todos os manuais de leitura da escola teuto-brasileira, é um exemplo disso, professavam sua cidadania brasileira com canções alemãs” (KREUTZ, 1999, p. 152-153).
Desta forma, não restava dúvida, ao menos para parte significativa das escolas teuto-brasileiras no sul do país, de sua dupla função: manter acesas as lembranças da herança cultural alemã, mas também promover a cidadania brasileira:
A organização comunitária dos imigrantes alemães não significa desvinculação ou desconhecimento da estrutura política nacional e estadual. Eles não tiveram dúvida do pertencimento à nação brasileira. [...] percebe-se nessas publicações que o currículo, o material didático e o método usado nas escolas visavam à formação para a cidadania e a participação comunitária (KREUTZ, 2013, p. 22267).
A possível não compreensão desta mentalidade, ajustada à ideia da necessidade efetiva de um “abrasileiramento” de todos aqueles que residiam em solo brasileiro, levou a medidas em tom de prevenção e de repressão para com as escolas étnicas do sul do país. Segundo Kreutz (2014), as principais medidas preventivas escolares podem ser elencadas nas seguintes ações governamentais, que não necessariamente se concretizaram na íntegra: 1) Ampliação da rede escolar estadual; 2) Nacionalização do sistema escolar particular; 3) Criação, em 1939, do corpo de delegados escolares regionais e de orientadores técnicos; 4) Criação do maior número possível de novas unidades escolares; 5) Nomeação de professores para a rede pública estadual.
Mas as ações das autoridades do estado do Rio Grande do Sul não se limitaram apenas às de ordem preventiva, e resultaram também em medidas repressoras. “A Campanha de Nacionalização do Ensino desembocou, [...] em forte acirramento de ânimos, na prisão de professores e na destruição de obras e documentos históricos e culturalmente valiosos” (KREUTZ, 2014, p. 123).
Um exemplo disso pode ser visto no número de escolas que foram fechadas neste período, em documento do INEP que apontava para o número de escolas abertas e fechadas durante o processo de nacionalização do ensino. O documento apresentava dados dos principais estados, no sul e no sudeste, os quais detinham o maior contingente de imigrantes estrangeiros estabelecidos em seus respectivos territórios, conforme vemos na Tabela 2:
Estado | Escolas Abertas | Escolas Fechadas |
---|---|---|
Rio Grande do Sul | 238 | 103 |
Santa Catarina | 472 | 298 |
Paraná | 70 | 78 |
São Paulo | 51 | 284 |
Espírito Santo | 45 | 11 |
Total | 876 | 774 |
Fonte: Fundação Getúlio Vargas - CPDOC, 1940, p.8.
Destaque-se que, com exceção de São Paulo, estado no qual a parcela de escolas teutas era diminuta se comparada às de outras nacionalidades, por exemplo a japonesa, nos estados mais ao sul do Brasil e ainda no estado do Espírito Santo, segundo levantamento do INEP, ocorreu um acréscimo no número de escolas em face das já existentes. No entanto, percebeu-se também um número elevado de escolas que foram fechadas no mesmo período.
É necessário, no entanto, que novas pesquisas aprofundem o grau de eficiência dessas escolas, no período em análise. Para Quadros, porém, é perceptível que “data, portanto, da nacionalização do ensino, razão pela qual não deve ser subestimada pela historiografia educacional, o processo de organização de um sistema escolar estatal no Rio Grande do Sul” (QUADROS, 2017, p. 4).
Santos e Cecchetti (2018, p. 300) entendem que, apesar de o governo ter fechado um grande número de escolas teuto-brasileiras, o que mais ocorreu no período foi uma adaptação destas ao nacionalismo proposto pelo Estado Brasileiro. Ou seja, o que ocorreu foi uma aceleração das transformações históricas com uma gradual expansão da oferta de escolas públicas, a partir das primeiras décadas do século XX, e uma crescente integração entre a população teuta e o mundo exterior a essa população.
Convém ainda compreender, mesmo que brevemente, o processo de formação destas escolas, bem como a questão de serem ou não incentivadoras da manutenção do Germanismo (Deutschtum) em terras brasileiras.
As escolas do Sínodo de Missouri e a questão da fomentação do Germanismo em terras sul riograndenses
A relação entre a Igreja Luterana e a educação vem de longa data. O Reformador Martinho Lutero, no século XVI, havia demonstrado em seus escritos a importância do ensino escolar. Segundo Santos e Cecchetti (2018, p. 293), especialmente em dois dos escritos de Lutero é possível atestar a valorização do ensino escolar: No primeiro, de 1524, intitulado “Aos Conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs” e, posteriormente, no escrito “Uma prédica para que mandem os filhos à escola”, de 1530. Beck afirma que “estes escritos não chegam a formular uma teoria cristã da educação. Servem, porém, para justificar o empenho por boa educação que tem caracterizado as comunidades e os líderes desde a Reforma” (BECK, 1995, apud, SANTOS; CECCHETTI, 2018, p. 293).
Novamente, as análises de Julia nos auxiliam na compreensão da importância da Reforma Protestante no setor educacional, quando este afirma que “A Reforma Luterana funda-se, no entanto, na ideia de que os estados devem criar e manter escolas: é efeito necessário [...] ensinar às crianças os princípios de uma vida cristã” (JULIA, 2001, p. 29).
E realmente essa foi uma premissa do Sínodo de Missouri, não somente em território brasileiro, senão desde a sua fundação, no ano de 1847, nos Estados Unidos da América. Steyer afirma que o alvo do Sínodo de Missouri nos Estados Unidos poderia ser sintetizado na afirmativa: “ao lado de cada congregação uma escola” (STEYER, 1999, p. 36).
Ainda segundo Steyer, tal ênfase encontrava-se presente também nos discursos daqueles que iniciaram o trabalho missionário do sínodo em terras brasileiras. Steyer cita o Relatório de outubro de 1900, ano da chegada do Sínodo de Missouri ao Brasil, no qual se declara: “Se realmente queremos fixar-nos e expandir-nos, devemos dar ênfase especial à escola” (STEYER, 1999, p. 36). Assim, em 26 de agosto de 1900, foi fundada a primeira escola paroquial evangélica luterana, na Colônia São Pedro, no interior de Pelotas/RS, com 30 alunos matriculados. “Assim, a escola foi, nessa época de implantação, a grande estratégia de expansão do Sínodo de Missouri entre os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul” (STEYER, 1999, p.54).
Steyer (1999) ainda pontua que, no ano de 1903, fora fundado também o Instituto Concórdia, na localidade de Bom Jesus, interior do município de São Lourenço do Sul/RS. Tal instituição seria responsável, no Brasil, pela formação de pastores e de professores para as escolas do sínodo. O ensino, apesar de ser realizado em território brasileiro, era basicamente em língua alemã. Nas palavras de Steyer,
No currículo constava português, alemão, matemática, história e geografia. Três horas semanais para o alemão. Para a língua portuguesa era dedicado uma hora semanal. Se bem que em língua portuguesa os alunos sabiam mais do que o próprio professor, por isso este apenas supervisionava esta atividade (STEYER, 1999, p. 90).
Mas qual era a posição do Sínodo de Missouri sobre a questão da propagação de ideias germanistas em solo brasileiro? Entendia-se o sínodo também responsável pela propagação da cultura alemã em solo brasileiro, ou que a sua função era apenas de ordem espiritual?
Pesquisas a respeito do assunto apontam que o Sínodo Riograndense, de origem alemã, e que trabalhava também entre os teuto-brasileiros no Rio Grande do Sul, entendia como uma das suas premissas a manutenção da ligação indissociável entre Germanismo e Igreja no Brasil. Autores, como Dreher (1981), Gertz (1987; 1998), Magalhães (1998), Prien (2001), destacam o papel que o germanismo possui como discurso do Sínodo Riograndense entre a sua membresia. Conforme se dizia na época: “Luthertum ist Deutschtum [Luteranismo é Germanidade]” (Magalhães, 1998, p. 172).
Por outro lado, pesquisadores, como Gertz (1987; 1998) e Marlow (2013), apontam que o Sínodo de Missouri, no Brasil, entendia que, em primeiro lugar, a sua função como instituição eclesiástica era o de anunciar a Palavra de Deus às pessoas, neste caso também, majoritariamente, os teuto-brasileiros. Ao mesmo tempo, o sínodo entendia que não lhe cabia a ênfase no Germanismo, ou seja, na divulgação da cultura alemã em terras brasileiras, visto que essa prática pertencia, no entender de autoridades ligadas ao sínodo, dentro da doutrina dos dois reinos em Lutero, ao reino secular7. “O Sínodo de Missouri sempre se negou com veemência a ser instituição fomentadora do Deutschtum [Germanismo]” (GERTZ, 1998, p. 35).
Marlow (2013), por sua vez, lembra o documento do Sínodo de Missouri, datado do ano de 1937, no qual se reiterava não ser da competência do sínodo a propagação de ideais germanistas:
Em virtude da publicação reiterada de relatórios falsos ou deturpados de diferentes partes quanto ao posicionamento de nosso Sínodo referente ao Volkstum8. [...] O mesmo decidiu na Convenção deste ano [1937], em Porto Alegre/RS, fazer a seguinte declaração:
Nossa Igreja reconhece a existência do Germanismo e cultivo de coisas pertinentes ao povo (manutenção do idioma e costumes). Tais são assuntos da vida dos cidadãos e, portanto, atribuições do arranjo da vida em sociedade (governo, partidos, associações, etc.);
A Igreja como tão não tem o direito nem a incumbência de praticar Volkstum. Em vista disso, nossa Igreja desaprova toda forma de Volkstum, como sendo missão sua, deixando-a entregue aos arranjos que o exercício da cidadania venha a criar. [...]. Nossa Igreja concede liberdade aos seus congregados, professores e pastores quanto a sua vida como cidadãos na questão do cultivo das coisas do povo, enquanto se mantiverem afastados do espírito mundano, muitas vezes ligado a isso, e da “misturança religiosa”, contrária às Escrituras e às Confissões [Luteranas]. De seus pastores e professores nossa Igreja, espera, evidentemente, que se abstenham de atividades políticas. (KIRCHENBLATT, 15/03/1937, apud MARLOW, 2013, p.72).
Mas, e quanto às escolas do Sínodo de Missouri? Estas poderiam ser incentivadoras do Germanismo entre seus alunos? Pesquisas a esse respeito ainda precisam ser realizadas a fim de apresentar visão mais clara do papel das escolas do sínodo. No entanto, considerando as pesquisas já divulgadas, apesar de não tratarem diretamente o assunto, apontam na mesma direção do que foi exposto em relação à instituição religiosa.
Sobre isso, tanto Weiduschadt e Tambara (2016) quanto Albrecht (2019) pesquisaram as cartilhas utilizadas pelo Sínodo de Missouri em suas escolas paroquiais. Os autores detalham que o material escolar das referidas escolas se originava ou da Casa Publicadora Concórdia, do próprio sínodo, ou, em alguns casos, da Editora Rotermund, ligada ao Sínodo Riograndense.
Se, por um lado, as cartilhas retratavam uma realidade mais próxima da Alemanha do que propriamente do Brasil, entendem os referidos pesquisadores que estas não tinham intenção de valorizar questões étnicas e raciais. Além disso, Weiduschadt e Tambara explicam que as cartilhas eram em língua alemã, mas a ênfase era doutrinária e bíblica, não propriamente ligada a questões germanistas, ou seja, étnico-culturais.
Apesar de o Sínodo estar instituído nos Estados Unidos, o livro, ao abordar esse texto, mantêm certa preferência em acentuar a relação com a Alemanha por se considerar um sínodo que usa a língua alemã. Daí se pode reforçar a necessidade do uso da língua e da questão étnica. Esta relação também se deve ao fato do projeto do sínodo em valorizar a doutrina luterana, apoiada pelo uso da língua germânica (WEIDUSCHADT; TAMBARA, 2016, p. 289).
Segundo Warth (1979, p. 219), que traça um panorama histórico do Sínodo de Missouri, é exatamente na década de 1930, pressionado por medidas nacionalizantes, que a Editora Concórdia publica literatura em língua portuguesa com mais expressividade. Apesar de não trazer informações adicionais, Warth lembra da série Ordem de Progresso lançada na década de 1930. Inclusive, como veremos adiante, no relatório apresentado pelo Sínodo de Missouri ao secretário J. P. Coelho de Souza, faz-se menção a essa série. Conforme Kuhn e Bayer, “para as aulas de matemática, foram publicadas duas séries: A série Ordem e Progresso, lançada na década de 1930, e a série Concórdia, lançada na década de 1940” (KUHN; BAYER, 2017, p. 152).
Enfim, qual a relação das escolas do Sínodo de Missouri e da secretaria de educação e saúde do Rio Grande do Sul, no que tange à nacionalização do Ensino? Como a secretaria de educação, e especialmente, o seu principal representante, J. P. Coelho de Souza, via a situação das escolas ligadas ao sínodo no que diz respeito à Nacionalização? E, da mesma forma, como o Sínodo procurava se posicionar nessas questões? É o que se responde na próxima seção.
Ação e reação do Estado Brasileiro e do Sínodo de Missouri frente à Nacionalização das escolas paroquiais.
Apesar de entenderem que as escolas do Sínodo de Missouri estavam aparentemente se nacionalizando, isso não impediu que autoridades do Estado Brasileiro, e mais especificamente do estado do Rio Grande do Sul, se pronunciassem sobre o assunto, gerando em contrapartida importantes argumentações em defesa da referida instituição eclesiástica a respeito da nacionalização de suas escolas.
O que se percebe através de correspondências de ambas as partes é que havia, por parte das autoridades que ditavam as diretrizes da nacionalização, uma certa desconfiança para com o Sínodo de Missouri, visto que, por trabalhar majoritariamente com os teuto-brasileiros e usar predominantemente a língua alemã, poderia não estar colaborando de forma efetiva para o empreendimento nacionalizador do ensino em suas escolas.
Percebemos esse pensamento nos termos da correspondência enviada pelo secretário de educação e saúde pública do Rio Grande do Sul, J. P. Coelho de Souza, ao presidente do Sínodo de Missouri no Brasil, Rev. Augusto Heine, datada de 10 de julho de 1941.
Apesar de Coelho de Souza tratar na correspondência mais detidamente da questão do ensino religioso em língua alemã, sobre o que era enfaticamente contrário, também na missiva o secretário elogiava a atuação educacional do Sínodo de Missouri.
pois embora não professe a mesma confissão religiosa, me é sobremaneira agradável, como secretário, reconhecer e apreciar a contribuição do trabalho luterano, no terreno educacional. Os modelares estabelecimentos de ensino ligados à rede religiosa superentendida por V; Excia. são eloquente testemunho de um espírito de elevada compreensão e a demonstração segura do desejo de cooperação, junto à ação governamental. [...] em face do moderno panorama político-social quando a secretaria atende ao problema da nacionalização do ensino, a atitude da Igreja Luterana, se evidencia em manifesto espírito de colaboração com a assinatura do convênio firmado no ano próximo passado (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E SAUDE PÚBLICA DO RIO GRANDE DO SUL, 1941, p. 1).
Coelho de Souza entendia a colaboração do Sínodo de Missouri ao processo de nacionalização do ensino, mas, no entanto, reforçava que o ensino religioso através do Ensino Confirmatório deveria ser realizado na língua vernácula, a língua portuguesa:
Não me parece, porém, necessário que a instrução religiosa seja ministrada em língua estrangeira, ou com o seu auxílio, pois corresponde, precisamente, ao período escolar, no qual a criança aprende a manejar o idioma pátrio. Julgo que o ensino do Catecismo, ministrado em língua estranha, não contribuirá, inevitavelmente, para anular a ação da escola (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E SAUDE PÚBLICA DO RIO GRANDE DO SUL, 1941, p. 2).
O secretário concluía afirmando a respeito da colaboração entre o Sínodo de Missouri e a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul: “mais uma vez, quero dizer a V. Excia., que os ministros da rede confessional que dirige, serão recebidos nas escolas do Estado, para o Ensino Religioso, com toda a satisfação” (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E SAUDE PÚBLICA DO RIO GRANDE DO SUL, 1941, p. 3). Ao que parece, um convênio entre ambas as instituições havia sido recentemente selado para que professores do Sínodo de Missouri lecionassem Ensino Religioso nas escolas das colônias teuto-brasileiras, evidentemente em língua nacional. Tal documento não foi encontrado, mas será também mencionado pelo sínodo, como veremos posteriormente.
Se, na correspondência endereçada ao Sínodo de Missouri, em julho de 1941, o clima era amistoso, o mesmo não pode ser dito a respeito da conferência realizada por Coelho de Souza, na Associação Brasileira de Educação, datada de novembro daquele mesmo ano. Posteriormente, tal conferência seria publicada, no ano de 1942, com o título Denúncia: o nazismo nas escolas do Rio Grande.
Na referida conferência, Coelho de Souza (1942) tece considerações sobre a situação das escolas étnicas no interior do Rio Grande do Sul, enfatizando a realidade por ele encontrada. Havia nas áreas rurais do Rio Grande do Sul, no que diz respeito às escolas paroquiais ligadas a instituições religiosas, uma pequena parte que estava se nacionalizando, um grupo minoritário que atendia aos anseios do Nacional Socialismo Alemão, e uma grande maioria, denominada por Coelho de Souza de “tradicionalistas”, que aparentemente estava se nacionalizando, mas que precisava ser constantemente vigiada.
Para Coelho de Souza, antes de mais nada, cabia ao Estado Brasileiro o devido cuidado de imbuir o sentimento da nacionalização. “De iniciativa exclusivamente particular, foram surgindo as instituições: [...] comunidades religiosas, sociedades recreativas, e uma vasta rede escolar. Cumpria, pois, ao governo brasileiro nacionalizá-las e não destruí-las” (SOUZA, 1942, p.15).
Ao mesmo tempo, era neste grupo que estava se nacionalizando, - os tradicionalistas -, mas que deveria ser constantemente vigiado, que Coelho de Souza insere os pastores e membros do Sínodo de Missouri no Brasil e, no caso também, as escolas paroquiais ligadas a esse sínodo.
Constituem-no os católicos e a parte dos luteranos que o nazismo não conseguiu empolgar. [...] No setor luterano, orientam-nos os pastores dissidentes da Igreja Alemã. Não alimentam intenções políticas, conservam a tradição, antes, por motivos de ordem espiritual. Acreditam que na tradição reside o espírito da disciplina da gente de origem alemã - base de sua religiosidade (SOUZA, 1942, p. 16).
No entanto, Coelho de Souza vai adiante em sua argumentação afirmando que “a ausência de um ideal imediato não o torna inofensivo” (SOUZA, 1942, p. 18). E compara com o caso da Áustria que, segundo Coelho de Souza, permitiu que a ideologia imperialista do Terceiro Reich Alemão lá imperasse, não devendo o mesmo acontecer por aqui, justificando uma constante e intensa vigilância.
O [grupo] dos tradicionalistas, não deve ser hostilizado, e, sim, educado, como processo de preservação, já que a ausência de um ideal político imediato não o torna inofensivo - pois um ambiente desnacionalizado pode servir de meio de cultura para as mais perigosas ideologias. Mas, cumpre acentuar, o processo indicavel, como disse, é o educativo e não o repressivo; desdobramento da rede escolar estadual; nacionalização rigorosa do sistema escolar particular; uso da língua nacional nos atos religiosos e proibição de publicações periódicas em idioma estrangeiro (SOUZA, 1942, p. 18).
A resposta do Sínodo de Missouri, no entanto, não tardou a vir, visto que, se não conseguimos localizar no documento a data correspondente do seu envio, infere-se que é posterior à conferência realizada por Coelho de Souza, em novembro de 1941, conforme mencionado no documento. Tal correspondência, datada de 1942, não é endereçada a Coelho de Souza, mas ao Delegado da Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul, Dr. Plinio Brasil Milano, e tem como remetente o presidente do Sínodo de Missouri no Brasil, Rev. August Heine.
A correspondência inicialmente procura esclarecer que a “desconfiança” que porventura possa existir para com o Sínodo de Missouri deve-se ao fato da existência do outro sínodo luterano, o Sínodo Riograndense que, segundo Heine, não seguia os preceitos da nacionalização. “Muito lamento que, ao menos por enquanto, nossa igreja seja considerada suspeita de atividades inconfessáveis” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, 1942, p.1).
Posteriormente, o presidente do Sínodo de Missouri destaca a conferência realizada por J. P. Coelho de Souza, congratulando o mesmo pela excelente explanação, mas não deixando de demonstrar estranheza pelo fato de como o sínodo fora classificado: “Emitiu aí o ilustre conferencista o seguinte conceito a respeito de nossa igreja. Pertencer ao segundo grupo: o tradicionalista” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, 1942, p. 2).
Heine, desta forma, deixa claro sua insatisfação ou incômodo com o conceito atribuído à instituição eclesiástica a que pertence, sem, no entanto, argumentar o porquê de seu descontentamento com tal classificação.
Causou-nos muito pesar ter o Sr. Dr. Coelho de Souza afirmando na mesma conferência não podermos ser considerados “inofensivos”. No entanto fundamenta o conferencista o seu ponto de vista sobre o fato de poder haver um ambiente alemão servir de meio de cultura para as ideologias imperialistas e de poder o sentimento religioso ceder passo a um ideal racista. (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, 1942, p.2).
Apesar de não apresentar dados estatísticos na correspondência, Heine é enfático ao defender o Sínodo de Missouri afirmando que o mesmo encontra-se em processo de nacionalização e que isso já vinha ocorrendo desde o início das medidas impostas pelo Estado Brasileiro: “Ao ser empreendido no ano de 1938 pelo Estado Novo a mui louvável obra de Nacionalização, ofereceu a nossa Igreja imediatamente a mais decisiva colaboração” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, 1942, p. 2).
É interessante pontuar, neste momento, as palavras do relatório do Secretário Executivo de Missões do Sínodo de Missouri, Dr. F. C. Streufert, citado por Rehfeldt, que, em visita ao Brasil, apresentava o seguinte panorama da situação das escolas ligadas ao sínodo:
Apesar do fato de que numa investigação da Quinta Coluna, no Denuncio [isto é, o livro: Denúncia de J. P. Coelho de Souza) é claramente afirmado que não podemos ser confundidos com a “Igreja Riograndense”, que era apoiada pela Alemanha [...] e apesar do fato de que os investigadores falem com entusiasmo sobre as nossas escolas, como já tendo sido nacionalizadas há vários anos, e apesar do “convênio” e do acordo entre o Departamento de Educação e o nosso Distrito Sinodal concernente às nossas escolas, uma acusação feita por um inimigo desconhecido pode levar o pastor à prisão ou os seus membros diante do Tribunal e da prisão (STREUFERT, apud REHFELDT, 2003, p.143).
Neste relatório, Streufert vai na mesma linha de pensamento que Heine, relatando a questão da igreja luterana alemã como propagadora do germanismo, que o sínodo de Missouri está se nacionalizando, bem como cita o convênio realizado entre o sínodo e a secretaria de educação do Rio Grande do Sul.
Mas, provavelmente, o documento que melhor marca a posição do Sínodo de Missouri a respeito de sua aderência à Campanha de Nacionalização do Governo Vargas encontramos no Relatório das Escolas Paroquiais da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Composto de 10 páginas com fotos e ilustrações, o documento é endereçado ao “Exmo. Snr. Dr. Coelho de Souza D. D. Secretário da Educação e Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 1).
Um dado que chama a atenção diz respeito aos signatários deste relatório: os pastores Paulo Schelp e Francisco Carchia, o primeiro de origem norte-americana e o segundo de nacionalidade italiana, ou seja, demonstrando claramente que não eram, em princípio, alemães ou mesmo teuto-brasileiros os responsáveis pelas informações. Apesar de não apontar uma data para sua publicação, entende-se que o relatório deve ter sido compilado entre os anos de 1939 e 1941, haja vista que o processo de nacionalização do Ensino já ocorria no Rio Grande do Sul e nenhuma menção o relatório traz sobre a conferência realizada por Coelho de Souza, nem sobre o convênio com a secretaria de educação e saúde do Rio Grande do Sul (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 10).
O Relatório está dividido nas seguintes seções: 1) Apresentação; 2) O Sínodo Evangélico Luterano e sua doutrina; 3) Relação entre o Estado e a Igreja; 4) Escolas do Sínodo Evangélico Luterano do Brasil: 4.1) Número de escolas paroquiais nos vários Estados; 4.2) Sedes das Escolas no Rio Grande do Sul; 4.3) Os professores; 4.4) Os alunos das escolas paroquiais; 4.5) Edifícios e livros escolares; 4.6) Cursos Pedagógicos; 5) Os professores da Igreja Luterana e as novas leis; 6) Solicitação.
Inicialmente, o documento apresentava o Sínodo de Missouri no Brasil, destacando sua presença do Rio Grande do Sul até o estado de Minas Gerais. E mais, enfatizava que as escolas ligadas ao Sínodo estavam se nacionalizando, e que em muitos momentos o que ocorria era a confusão com outros sínodos luteranos ou até mesmo de outra linha protestante:
Tendo conhecimento do Decreto de Nacionalização de Ensino e acatando-o com o maior respeito, declaramos a V. Ex. que o Sínodo Evangélico Luterano do Brasil não tem nenhum interesse em cultivar outra ideologia a não as nacionais, tendo sido por isso repetidas vezes hostilizado e até secreta e francamente perseguido por ministros de outras igrejas protestantes, e que está pronto a empreender tudo o que for necessário para as suas aulas paroquiais satisfazerem as exigências do novo decreto (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p.1-2).
Um dado apresentado pelo Relatório dizia respeito ao total de escolas sob a responsabilidade do Sínodo, bem como o número de alunos matriculados, conforme a Tabela 3:
Estado | Escolas | Alunos |
---|---|---|
Minas Gerais | 3 | 61 |
Espírito Santo | 17 | 268 |
Distrito Federal | 3 | 110 |
São Paulo | 3 | 300 |
Paraná | 1 | 60 |
Santa Catarina | 10 | 232 |
Rio Grande do Sul | 108 | 3267 |
Total | 145 | 4298 |
Fonte: IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 4
Percebe-se, pelos números, que a ampla maioria das escolas ligadas ao Sínodo de Missouri localizava-se no estado do Rio Grande do Sul, número também proporcional de alunos que estavam matriculados nestas escolas. O Relatório também apontava para a localização destas escolas no estado mais sulino do Brasil.
Sede | Número de Escolas |
---|---|
Porto Alegre | 2 |
Pelotas | 1 |
Ijuí | 1 |
Getúlio Vargas | 1 |
Novo Hamburgo | 1 |
Campo Bom | 1 |
Canoas | 1 |
[...] [Interior] | 101 |
Total | 109 |
Fonte: IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 5.
Chama a atenção o expressivo número de escolas localizadas na área rural do estado do Rio Grande do Sul, exatamente naquelas localidades nas quais muitas vezes faltava a presença efetiva do Estado, bem como aquelas que mais dificuldade teriam de se adaptar às regras de nacionalização, visto que, em muitos casos, o pastor local falava apenas em alemão e era também o diretor e/ou professor da escola.
O Sínodo de Missouri, no entanto, procurava, no Relatório, demonstrar justamente o contrário, de que grande parte dos seus pastores ou eram brasileiros ou eram casados com brasileiras. A respeito dos pastores que atendem às escolas, o relatório descrevia que, “dos professores das escolas primárias paroquiais 55% são brasileiros natos, aproximadamente 20% são naturalizados, outros não conseguiram naturalizar-se por falta de recursos, apesar de estarem no Brasil há vários anos” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p.5).
O Relatório pontuava que não somente crianças de origem alemã ou teuto-brasileira frequentavam as escolas ligadas ao sínodo, apesar de não dimensionar proporções. E mais, reforçava tal ideia apontando para a presença de um pastor negro no Sínodo de Missouri, pastor J. Alves, atuante em Pelotas/RS, bem como descrevia que o ensino em sala de aula buscava promover a igualdade entre todos.
As escolas da Igreja Evangélica Luterana do Brasil são frequentadas por crianças brasileiras de diferentes raças ou origem. As aulas dirigidas pelo Rev. J. Alves - pastor de côr - são frequentadas por meninos de côr, outras aulas por crianças luso-brasileiras ou teuto-brasileiras. Todos os alunos, apesar de serem de diferentes origens, são instruídos na mesma religião, na língua do país, na história pátria e corografia do Brasil. Isto é provado pelo horário da escola paroquial de Pôrto Alegre quê acompanha êste memorial, (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 6).
O Relatório apontava também para os livros didáticos utilizados, destacando as produções da editora Concórdia, enfatizando a “brasilidade” de seu responsável: “dos livros adotados no ensino, alguns são os mesmos usados nas escolas públicas, outros publicados pela tipografia da Igreja Luterana - Casa Publicadora Concórdia [...] cujo gerente é o Snr. Guilherme Goerl, brasileiro nato” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL s/d, p. 5).
O documento destacava também, conforme a Figura 1, a Série Ordem e Progresso, em língua portuguesa: “os livros de leitura, da Série Ordem e Progresso, dão testemunho de aptidão pedagógica, cultura e alto patriotismo. A série de livros de Aritmética apresentam-se elaborados com cuidado e perfeição” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 6).
Por fim, o Relatório reforçava novamente o desejo do Sínodo de Missouri de separação entre Igreja e Estado: “[...] as quais, marchando separadas, levam ao mesmo elevado destino - à educação do povo” (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 8).
No entanto, o Relatório alertava e apontava para as dificuldades que poderiam passar as escolas do sínodo, tendo em vista a questão financeira precária de algumas escolas e a necessidade da presença de um professor que lecionava em língua portuguesa, algo que aparentemente não ocorreria na maioria dessas escolas:
Com o Memorial supra-exposto mostramos o desenvolvimento e o estado atual das nossas escolas paroquiais e pedimos a V. Ex. queira dignar-se permitir aos professores destas escolas provarem a sua competência no ensino das matérias exigidas pelo novo decreto. Pois, ao contrário, muitas comunidades seriam obrigadas a fechar as suas aulas em virtude de sua situação financeira precária, que não lhes permite a subsistência de dois professores, e assim, evidentemente muitos professores, brasileiros e pais de família, ficariam desempregados e sem recursos, (IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, s/d, p. 10).
No entanto, fica claro também que, apesar do Sínodo de Missouri estar se nacionalizando, algo de certa forma verificado pelas autoridades, por exemplo, por J. P. Coelho de Souza, muitas das escolas ligadas ao sínodo foram fechadas entre os anos de 1938 a 1941. Rehfeldt destaca o fechamento de 48 escolas do sínodo neste período, ou seja, cerca de 35%, conforme expressam os números da Tabela 5.
Também o número de alunos diminuiu, de cerca de “4.159 alunos, em 1937, para 3.554 alunos, em 1941” (REHFELDT, 2003, p. 140). No entanto, conforme afirma Rehfeldt (2003), a perda de alunos não foi maior porque o fechamento da maioria das escolas ocorreu no interior no estado, onde se tinha um número menor de alunos se comparado às escolas em municípios que conseguiram satisfazer às exigências do Estado Brasileiro.
Considerações Finais
Desde a sua chegada ao Brasil, no ano de 1900, o Sínodo de Missouri no Brasil deu importância à educação. Como herdeira do processo da Reforma Protestante, além da esfera religiosa, também atuou na esfera educacional, esta objetivando servir àquela.
Ao trabalhar basicamente com imigrantes alemães e seus descendentes em território brasileiro, os teuto-brasileiros, da mesma forma, como no âmbito religioso, também utilizou majoritariamente a língua alemã em suas atividades escolares. No entanto, numa perspectiva da separação entre Igreja e Estado, a liderança do sínodo entendia que a utilização da língua alemã, seja na igreja, seja na escola, não deveria ser usada como agente fomentador do germanismo em terras brasileiras, mas apenas como meio de interligação com sua membresia.
Ao que parece, o posicionamento do Sínodo de Missouri não necessariamente ficou claro para as autoridades brasileiras do período do Estado Novo, que objetivavam “abrasileirar” todos que aqui viviam. Na verdade, pelo contrário, esse fato levou a que autoridades brasileiras também suspeitassem do Sínodo de Missouri no Brasil, em suas práticas educacionais. Isso fica bastante claro, na fala e nas correspondências trocadas pelo então secretário de educação do Rio Grande do Sul, Coelho de Souza, com as autoridades do respectivo sínodo.
Por outro lado, o Sínodo de Missouri procurou defender-se do estigma de ser um possível propagador do Germanismo, afirmando categoricamente que estava se nacionalizando. Na realidade, o sínodo começa a concretizar essa nacionalização apenas na década de 1930, e com extrema dificuldade, visto que muitas das suas escolas não conseguiram se adaptar à nova realidade, tendo de fechar as portas.
Concluímos afirmando que a temática proposta neste artigo inspira a necessidade de ampliação das pesquisas a respeito do tema, para trazer resposta a muitas questões em aberto. Por outro lado, tal pesquisa se mostra extremamente necessária ainda hoje, conforme as análises feitas por Julia, tendo em vista a importância da cultura escolar em todos os seus aspectos como objeto do conhecimento histórico.