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Childhood & Philosophy

versión impresa ISSN 2525-5061versión On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.20  Rio de Janeiro ene./dic 2024  Epub 31-Ene-2024

https://doi.org/10.12957/childphilo.2024.75501 

Pesquisas / Experiências

Escola desinteressada: poesia como um caminho libertador e transformador na escola pública

The disinterested school: poetry as a path to emancipation and transformation in public schools

Escuela desinteresada: la poesía como camino liberador y transformador en las escuelas públicas

maria onete lopes ferreiraI 
http://orcid.org/0000-0003-1357-9202

Iuniversidade federal fluminense, rio de janeiro, brasil - E-mail: molferreira@id.uff.br


resumo

Este texto oferece uma reflexão nascida de uma experiência com literatura, poesia e também filosofia na escola, com turmas do ensino fundamental nos anos iniciais. A experiência foi iniciada em 2011 e deu origem a um projeto de pesquisa, ensino e extensão, hoje em curso em escolas públicas. O projeto tem como fundamentação teórico-metodológica pensamentos críticos à escola voltada para a formação compreendida como utilitarista. Concepção esta que segue dominante, a despeito das inúmeras mudanças na base curricular, ao longo do tempo. Não parece razoável que a preocupação que promove as mudanças na organização curricular tome por base aspectos como o baixo rendimento na aprendizagem refletido em reprovações e “fracassos” ou no próprio abandono e evasão precoce da escola, sem que se questione as razões inerentes à experiência escolar. Diante desse fato, a reflexão aponta para a defesa de uma escola que possa ser compreendida como desinteressada na perspectiva de Gramsci e recorre à literatura e poesia como dispositivos para impulsionar o fazer pedagógico transformador. O estudo da literatura sobre poesia, assim como os resultados obtidos pela experiência em questão, permitem pensar uma concepção de escola revolucionária no sentido gramsciano e libertadora como propugnava Paulo Freire. Nesse sentido, propõe conexões com a felicidade, que conjuga o propósito da escola desinteressada com a filosofia de Epicuro. Na pesquisa, a poesia é compreendida como um caminho para se contemplar a valorização do lúdico, que é um aspecto dos mais relevantes para a aprendizagem nas infâncias.

palavras-chave: escola desinteressada; poesia; literatura; educação pública

abstract

This article offers a reflection that arose as a result of an experience with literature, poetry, and philosophy in school, specifically in early-grade primary school classes, starting in 2011. This experience led to a research, teaching, and professional development project that is now in progress in public schools. The project’s critical-methodological basis is a critique of schooling that is directed toward utilitarian ends. This approach has remained dominant, despite innumerable changes to the curriculum over the years. It is unfortunate that the concern that motivates curricular changes tends to be based on factors such as poor learning outcomes as reflected in students who fail grades, skip school, or drop out, without considering how these trends might be the product of their experience of school itself. In light of this, this article advocates for the type of schooling that Gramsci described as disinterested and proposes literature and poetry as tools to advance the transformative pedagogical project. A study of the scholarship on poetry, along with the insights gained from the experience in question, enables us to develop a conception of revolutionary schooling in the Gramscian and emancipatory sense as proposed by Paulo Freire. The article therefore proposes connections to happiness, which combines the objective of the disinterested school with Epicurean philosophy. Poetry is understood as a path through which to envisage the valorization of the ludic, which is among the most important aspects of childhood learning.

keywords: disinterested school; poetry; literature; public education

resumen

Este texto ofrece una reflexión nacida de una experiencia con la literatura, la poesía y también la filosofía en la escuela, con clases en los primeros años de la escuela primaria. La experiencia comenzó en 2011 y dio origen a un proyecto de investigación, enseñanza y extensión, actualmente en marcha en escuelas públicas. El proyecto tiene como fundamentación teórico-metodológica reflexiones críticas sobre la escuela que se vuelca a la formación entendiéndola como utilitaria. Concepción ésta que sigue siendo dominante, a pesar de los numerosos cambios en la base curricular a lo largo del tiempo. No parece razonable que la preocupación que promueve los cambios en la organización curricular se base en aspectos como el bajo rendimiento en el aprendizaje reflejado en reprobaciones y “fracasos” o en el abandono y deserción escolar precoces, sin que se cuestionen las razones inherentes a la experiencia escolar. Frente a este hecho, la reflexión apunta a la defensa de una escuela que pueda entenderse como desinteresada desde la perspectiva de Gramsci y recurre a la literatura y a la poesía como dispositivos para impulsar una práctica pedagógica transformadora. El estudio de la literatura sobre poesía, así como los resultados obtenidos a partir de la experiencia en cuestión, permiten pensar una concepción de escuela revolucionaria en el sentido gramsciano y liberadora como propugna Paulo Freire. En este sentido, propone conexiones con la felicidad, que combina el propósito de la escuela desinteresada con la filosofía de Epicuro. En la investigación se entiende la poesía como un camino para contemplarse la valorización de lo lúdico, que es un aspecto de los más relevantes para el aprendizaje en las infancias.

palabras clave: escuela desinteresada; poesía; literatura; educación pública

escola desinteressada: poesia como um caminho libertador e transformador na escola pública

introdução

A aflição motivada no início do isolamento físico em decorrência da pandemia do coronavírus em março de 2020 certamente afetou a todos nós de diferentes maneiras. Muitos de nós padecemos de uma certa angústia diante das incertezas sobre o enfrentamento e as consequências da Covid-19. As notícias nos jornais me inquietavam o corpo e a mente e eu procurava coisas, as mais diversas, para me ocupar e tentar me manter em paz. Certo dia, resolvi limpar estantes e livros. Enquanto fazia a tarefa, lutava para encontrar no pensamento um mote original para escrever um artigo sobre Paulo Freire, para um dossiê. Numa das estantes encontrei um libreto que eu nem lembrava de havê-lo comprado: Carta sobre a felicidade (a Meneceu) (2002), de Epicuro.

A carta do fundador da escola conhecida como Jardim de Epicuro não apenas mudaria o rumo que eu daria ao artigo sobre Freire, como também vem oferecendo aberturas novas no meu pensamento sobre a pedagogia e a escola. Epicuro caiu nas minhas mãos no momento mais oportuno: as adversidades negativas advindas da pandemia do coronavírus. Por si mesma a pandemia, já no seu início, nos exigia pensar sobre aquela realidade que se apresentava e sobre o retorno à vida no mundo como ele era. Talvez, por isso, o título do livro esquecido na estante tenha chamado minha atenção: era um contraste significativo demais para o momento, vindo de um autor a quem eu conhecia muito pouco, cuja lembrança mais recente decorria da leitura em curso, naqueles dias, de uma biografia de Karl Marx.

Na qualidade de professora do curso de Pedagogia e permanentemente consciente de que se trata de um curso que forma professores para os primeiros tempos da vida escolar, portanto, profissionais que irão trabalhar com a primeira experiência educacional na escola, este livro despertou, sobremodo, o meu interesse. Um tipo de interesse provavelmente distinto daquele que me levou à sua aquisição, sem ainda tê-lo sequer lido. Imagino que o comprei porque tinha curiosidade acerca do pensamento de Epicuro; não obstante, apenas uma curiosidade acerca de sua filosofia, que atraíra ninguém menos que Karl Marx. O encontro do livro, nessa outra época, que sinaliza nitidamente o viés fascista da sociedade, ofereceu-me uma interrogação nova: de que modo este autor me ajudaria a pensar e esperançar uma superação desta realidade, tendo em vista que o desejo de mudar a realidade é a principal motivação de quem é militante no terreno da justiça social?

Minha vida militante por uma sociedade mais justa e minha profissão docente me fazem ver na escola um instrumento de luta e resistência social. Por esta razão, a escola constitui a instituição pela qual a formação humana não pode prescindir de meios libertadores quanto às armadilhas ideológicas, úteis ao mercado. É por isso que, desde que me tornei professora da universidade pública, comecei a desenvolver projetos com as crianças dentro da escola. Antes disso, eu também estive na escola por muito tempo como professora. A literatura sempre foi o tema dos projetos com os quais trabalhei e permanece aliada ao desejo de tornar real a felicidade na experiência escolar. Daí, a motivação das ações, bem como a escolha de trabalhar com a arte que se projeta pelas letras, mais do que por outros aspectos, me direcionaram para a literatura e a poesia. Nesse sentido, uma carta sobre a felicidade, escrita por um filósofo, era tudo que eu precisava.

Depois de trabalhar alguns anos com a contação de histórias, abandonei as histórias e passei para a poesia. Transição ocorrida meio por acaso. Por demanda da escola, o projeto passou por uma mudança de público-alvo: migrei do 4º ano para o 3º. Como no 3º ano as crianças ainda não dominavam a leitura, o projeto não se encaixava tão bem. No primeiro encontro, testei a leitura de um poema de Fernando Pessoa. Foi uma enorme surpresa para mim perceber o resultado daquela experimentação. Desde a atenção ao texto à curiosidade revelada, passando pela qualidade da participação das crianças, meu espanto estava caracterizado. Ali mesmo ficou decidido pela equipe que as histórias seriam substituídas pela poesia. E de lá para cá se passaram mais de meia dúzia de anos.

O lugar especial dado à literatura e poesia se explica porque nelas reconheço a possibilidade de promover o desabrochar das potencialidades lúdicas, criativas, imaginativas e afetivas nas crianças. Se a poesia, conforme venho observando, permite todas essas possibilidades (tão fartas nas infâncias, que até levam a pensar na poesia como uma condição imanente às infâncias), é preciso respeitá-las no processo formativo. Enfatizo ainda que observar tais capacidades seja importante para tornar a escola mais acolhedora, mais atraente e alegre, para, assim, cumprir o seu papel de, verdadeiramente, ensinar.

É nesta prerrogativa que o projeto leva para a escola, uma vez por semana, atividades poéticas pensadas e planejadas a partir da realidade da escola. E, como regra, estas atividades são realizadas em outros ambientes diferentes da sala de aula, prioritariamente em espaços abertos, como o pátio. Devo ressaltar que não há a pretensão de fabricar poetas ou escritores, mas sim desenvolver o gosto pela leitura, o amor pelas artes e sua resposta na personalidade e conduta das pessoas.

Aliás, os estudos e as descobertas ao longo do desenvolvimento do projeto já permitem pensar que nascemos poetas, mas o mundo, ao nos formatar com vista aos anseios do capital, deleta de nossa alma a poesia que nela habita já antes de nascermos.

sobre o lugar da poesia numa escola desinteressada

No traçado da minha inspiração, as ideias políticas de Gramsci oferecem o caminho que me leva a Epicuro e Paulo Freire. Esses autores são os alicerces de uma pedagogia que adjetivo de “amorosa” porque o amor aparece em suas obras como combustível que move a potência revolucionária humana. Vejo esse aspecto amoroso, por exemplo, ao ler bell hooks (2020). Em seu livro Ensinando a transgredir, a autora conta também como ela aprendeu a interpretar Paulo Freire, numa perspectiva não apenas de método, mas também para romper com o modo desagradável - fruto de sua própria experiência como estudante - com que ela encarava a profissão docente, que havia recusado seguir. Paulo Freire a ensinou a ver a docência com outros olhos e ela usou de sua vocação literária para criar uma experiência e uma escola diferente.

A escola desinteressada pode se conectar, mais sutilmente, com o aluno por meio de uma pedagogia que coloque no centro do processo de ensino-aprendizagem estratégias traçadas com linhas tingidas de poesia e pontos feitos com arte.

Nessa direção, entendo que estratégias de tal natureza são materializadoras do tipo de escola que Gramsci chamou de omnilateral1, por se tratar de uma escola portadora de um tipo de formação traçada a partir dos fundamentos de um humanismo crítico ao modelo moderno.

Nesse desenho de escola, a cultura encontra um peso tão especial quanto os demais conteúdos. O currículo, nessa perspectiva, não se limita aos conhecimentos em si mesmos, valorizados pelos defensores de uma abordagem educacional que prioriza as demandas mercadológicas, como fazem os entusiastas do Novo Ensino Médio, que de “novo” só tem o nome, pois aposta no velho esvaziamento da formação crítica e desinteressada. E como dizem as vozes em defesa do “Revoga o Novo Ensino Médio”, o modelo é excludente e elitista, pois afasta os estudantes filhos da classe trabalhadora do acesso à universidade, na medida em que esvazia a escola dos conteúdos necessários para as formas de acesso, sejam os vestibulares seja o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Na atual conjuntura nacional, se tomarmos como elementos centrais para a análise a realidade política, desde a derradeira eleição no país, não é possível ignorar a forte presença da extrema direita no cenário. Sobretudo, cabe ressaltar o protagonismo ativista desta população, que não hesitou em levar a cabo uma tentativa de tomada de poder no dia 8 de janeiro de 20232. Em especial, chamo atenção para o fato de que a maioria dos ativistas daquele 8 de janeiro era constituída de pessoas adultas e maduras3. Isto é, de pessoas que já saíram da escola, fato que nos faz perguntar acerca do tipo e qualidade de educação que receberam.

O quadro eleitoral também parece indicar que quase metade das pessoas que foram às urnas e escolheram indicar uma opção para Presidente da República não aprenderam na escola, tampouco na família, sobre humanidade e acerca da política como arte de governo. Nesse sentido, uma reforma no tipo de ensino que se proponha a apontar para uma nova sociedade não pode repetir os mesmos erros. Dentre estes erros está a ideia de escola que flerta, em demasia, com a empregabilidade indicada pela tendência que vem do mercado. Ademais, a tentativa recente de implementar, através da legislação, um projeto escolar chamado de Escola sem Partido4 revela que a escola brasileira parece prisioneira daquele modelo, mais do que de uma escola freireana, a quem os defensores do referido projeto condenam.

Além disso, no momento atual de nossa travessia no tempo, é importante olharmos para a crise que vem se arraigando na escola desde que o neoliberalismo foi vendido como resposta ao esgotamento do fordismo, pois esse distanciamento temporal favorece o avanço da crítica. A falência da promessa salvacionista do neoliberalismo - que na educação já era criticada no próprio nascedouro, conforme era amplamente abordada pelos teóricos atentos: Gentilli, Silva, Apple, Frigotto, etc. (1994) - confirma que, longe de oferecer uma solução, a novidade acirraria os problemas já existentes. Como apontado na crítica dos anos de 1990 e hoje - realidade confirmada -, as ideias neoliberais não só reduziram as possibilidades de “prosperidade econômica”, mas também debilitaram ainda mais a capacidade da classe trabalhadora de compreender o mundo que estava sendo moldado pelo neoliberalismo enquanto salvação da lavoura dos ricos.

A crítica à escola, portanto, não pode deixar de levantar os aspectos históricos que pautaram a promessa de uma escola que era mais abstrata do que concreta. O entusiasmo que definia as políticas para a educação precisa ser tomado em conta ontem e hoje. Mesmo porque esse entusiasmo com uma escola salvadora, todavia de cara para o mercado, já estava presente inclusive no Manifesto dos Pioneiros em 19325, e ainda hoje não trouxe a solução.

No seio de um debate conjuntural, no qual temas como racismo e fobias estão presentes de forma inédita, também a cultura precisa ser pontuada como condição básica da estrutura social. É nesse patamar da cultura que entra a poesia. Literatura, música, cinema e teatro são expressões da arte, que me parecem filhos da poesia, entendida como linguagem dos sonhos. São os sonhos que movem o mundo, pois é do sonho que nasce a utopia. E é a utopia que produz a crítica. O olhar que desaprova o real existente, com vistas ao novo, é um olhar poético. O artista é esse poeta.

A história nos ensina que é na cultura e na arte que está a resistência. É por isso que a escola precisa ser constantemente reprojetada para o ideal de um mundo novo. Ela deve ser redesenhada sob a medida de uma sociedade justa, tendo em vista um cenário que se abre a novas possibilidades, em vez de um cenário tributário de receitas. A história da educação revela isso quando mostra que, a cada novidade na economia, a escola mudava, ajustando-se a cada promessa de novidade6. E essas mudanças eram radicais, ocasionando, no século XI, o surgimento da Universidade no Ocidente. O problema é que o sujeito histórico que sempre deu o tom dessa promessa de novidade foi a classe dominante. Via de regra, os intelectuais que influenciavam os modelos eram tradicionais da classe dominante. Os modelos dos intelectuais críticos ao sistema só adquirem visibilidade depois de virada a página da história. É o caso de Epicuro, que não era um pensador da ordem.

A reforma do ensino médio está em pauta porque a escola se encontra corroída no próprio fundamento dado a ela pelo capital. O mais grave é que, hoje, o projeto neoliberal não parece ter pudor de se aliar ao neofascismo para preservar a riqueza nas mãos de poucos, ao mesmo tempo em que, como antecipou Marx em O capital (2011), a miséria do trabalhador cresce exponencialmente.

No presente, como nos tempos de Gramsci, a escola se coloca entre os temas cuja disputa de interesses na luta de classes oferece, talvez, uma chance especial para uma mudança de rumo numa perspectiva de ruptura de modelo.

O debate sobre a escola, além de oportuno, precisa pautar experiências que se revelam exitosas. Esse é o caso do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), que produziu uma infinidade de experiências ricas e transformadoras na escola. Foi esse programa que possibilitou a implicação da experiência com a poesia, a qual oferece os resultados geradores dessa reflexão7.

A preocupação que motiva o meu trabalho, incluindo a pesquisa com a poesia na escola, tem um leque diversificado de sintonias. Dentre elas, destaco autores como Ordine (2016), pela belíssima defesa dos saberes inúteis; Jean (1986) por sua fundamentação irrefutável do lugar da poesia na escola; e Moisés (2007), porque nos ensina que a poesia tem um valor imprescindível para nos salvar do tédio que o mundo mercantil produz como ninguém. Além destes, preciso citar Walter Benjamin nas Teses sobre História, especialmente a leitura feita na tradução comentada de LOWY (2005), que, pela singularidade de suas ideias no plano do pensamento marxiano, nos ajuda a compreender os malefícios do progresso espetacularmente vendido pelo projeto iluminista como promessa de redenção da humanidade.

Vale ressaltar que Ordine (2016), ao fazer a crítica à corrosão da sabedoria levada a cabo pelo senso supremo do culto ao utilitarismo como alma do mercado, corrobora em demasiado para a defesa da poesia. Nesse culto, […] um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro” (Ordine, 2016, p. 12). Óbvio que neste modelo social é sempre mais legítimo defender a eficácia de um utensílio do que o bem que faz a música, a literatura ou a arte, dirá o autor.

Não é, portanto, por acaso que em momentos de crise acontecem movimentos culturais que revolucionam uma sociedade ou determinados grupos sociais. A arte por sua natureza de repelência às regras e convenções, por sua rebeldia, seu entusiasmo, sua paixão, remete sempre ao novo. A natureza libertária e transgressora de todo artista exorta contra a ordem rígida do que já está instituído e que, no senso comum, assumiu uma aura de “natural”.

É notório, neste momento, a barbárie se escancarando e ditando a perda do sentido do enraizamento histórico e da desvalorização do passado como memória. Por isso se impõe a resistência. Resistir exige intervir com arte nos espaços educativos, culturais e formativos, dentre os quais a universidade e a escola pública se alocam.

É com esse olhar que capta a tradição sob o sentido benjaminiano8 que evoco a poesia, pois, segundo Jean (1986), a poesia não deve ser vista apenas como versos rimados e marcados de emoção, mas como uma linguagem diferente: a linguagem dos sonhos; e os sonhos, conforme já frisado, remetem às utopias. E nada é mais emblemático do desejo coletivo de rupturas do que o estado de poesia, que, nos momentos de crise civilizacional, mesmo sufocado, insiste em não morrer. Quem nunca se encantou e viu desfeita a amargura ao encontrar uma folha caída no chão, numa tarde melancólica, que atire a primeira pedra. É o estado de restabelecimento da alma, movido pela poesia, que inspira resistência.

A poesia é aquele derradeiro suspiro que estava aprisionado no pulmão, já acostumado à poluição, que, teimoso, rompe a cápsula para nos salvar desta selva, nem que seja como oásis esporádico; que, às vezes, eleva a nossa reflexão para produzir pensamentos e ideias que contêm a força revolucionária que não estamos acostumados a ver na arte.

Estamos acostumados a ver a arte como produto de criação de artistas. Mas será que a arte é isso mesmo? A arte precisa do artista ou é o artista que precisa da arte? Os rótulos não nos impedem de enxergar uma perspectiva mais ampla, na qual as representações são essenciais para alcançarmos uma compreensão mais profunda? Quando observamos melhor esse acostumar-se, descobrimos que ele nos condiciona a dar respostas imediatas. Afortunadamente, os nossos ancestrais indígenas ainda estão aqui para nos ensinar. Ao serem inquiridos, eles sempre pensam alguns minutos antes de proferirem respostas. Refletem, elaboram primeiro e depois falam. E quando nossas perguntas são sobre as certezas da experiência, as respostas que recebemos nos surpreendem. Foi o que aconteceu quando um indigenista, numa situação recente, oferecia a uma liderança indígena ensinamentos de brancos sobre construção de casas mais duradouras. Diante da oferta, esse líder agradeceu, comunicando que a sabedoria de seu povo se perderia, caso eles mudassem seus hábitos9. Foi um agradecimento poético.

Por sua natureza redentora, a poesia nos ensina a desver, dirá Manoel de Barros (1996), para que tornemos a ver como se fosse “a primeira vez”, completaria Moisés (2007), para quem o modo de ver, ensinado pela poesia, pede a negação, ao menos provisória, do conhecimento entendido como resultado, para que se possa pôr em evidência o próprio ato de conhecer enquanto disponibilidade do pensamento. Ato que deve ser reconectado incansavelmente a cada objeto, coisa ou ideia com que nos deparamos. Moisés (2007) afirma que, se tivermos capacidade de entender a lição da poesia para enxergarmos as coisas, não mais reconheceremos os objetos como algo definitivo, pois todos eles estarão sempre suscetíveis a redescobertas.

Pensar uma escola com poesia, naturalmente, me remete a pensar numa pedagogia que nos conecta com Epicuro, Paulo Freire, bell hooks, Gramsci, Benjamin e Marx. Essa conexão está no amor, nem tão óbvio nas obras de tais autores, nem aos olhos acostumados aos imediatismos das coisas. Nesse imediatismo simbolizado na pseudo concreticidade do real, o amor está exclusivamente associado ao seu aspecto romântico como afeto entre corpos que se atraem.

por uma escola revolucionária como propunha Gramsci

Numa perspectiva histórica, a escola é o local pensado para levar os conhecimentos que não estão devidamente disponíveis na formação no seio da família ou do grupo social de pertencimento das crianças. Este ideal, no tempo contemporâneo, foi cimentado pelo desejo utilitarista que emana do mercado. Tal arcabouço de escola, no entanto, não tem que ser eterno. É urgente desnaturalizar a ideia de que a escola se deve apenas à necessidade de formação para o trabalho, questão bastante contemplada nas anotações de Gramsci (2006), desde o cárcere.

As pessoas não se resumem à sua atividade produtiva. Ainda que o próprio Marx tenha explicado o papel da atividade produtiva na existência humana, ele não descartou a sensibilidade e a espiritualidade como complemento da existência. E como sabemos, sua explicação sobre a atividade material criadora e produtiva fala especialmente do trabalho em sua natureza concreta, ao passo que a generalização de toda atividade transformadora da natureza num único conceito, traduzido pela palavra trabalho, faz referência ao trabalho no sentido abstrato.

À escola também cabe o dever de problematizar estas diferenciações. Tarefa que deve ser iniciada o mais cedo possível se quisermos evitar o fim do mundo, numa boa referência a Krenak (2019). Importa dizer que a expressão “ideias para adiar o fim do mundo”, usada como título de um livro, foi uma provocação de Krenak para chamar a atenção de como a sociedade vem caminhando numa perspectiva por demais alienante e alienada, que nos direciona para a morte do planeta. O autor aproveitou sua brincadeira para nos fazer pensar sobre a necessidade de uma reflexão acerca de nossa apartação intencional (desejo do capital) de uma formação mais ampla e, ao mesmo tempo, conectada com a necessidade de preservação da sabedoria ancestral, que não é reconhecida pela ciência que interessa ao mercado.

Para começo de conversa, a escola vigente já deixou de cumprir, há muito tempo, aquele papel histórico a ela endereçado pelo mercado. No momento em que vivemos, de acordo com o resultado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conforme amplamente divulgado em noticiários, mais da metade dos indivíduos em situações de empregabilidade está na informalidade; portanto, não servem ao mercado em sua definição stricto sensu. E muitos destes que atuam fora da formalidade que a estatística contempla têm escolaridade compatível com as exigências para a empregabilidade, mas simplesmente não acham vagas disponíveis para suas áreas de trabalho, ao passo que outros trabalhadores computados como empregados desempenham ocupações não compatíveis com sua formação escolar. Por exemplo, motoristas de aplicativos, função que agrega advogados, engenheiros e jornalistas, dentre outras categorias.

Se não formos capazes de enxergar - quiçá com os olhos da alma, que são os olhos do amor - que estes dados traduzem desumanização, então nossa caminhada será encurtada e não haverá, realmente, chances de adiar o fim do mundo. A promessa de felicidade, portanto, nos desampara enquanto humanidade, ao percebermos que, por diferentes motivos, a maioria das pessoas está dela apartada, excluída. E, por esse motivo, eu penso em Epicuro, na sua carta, que fala de uma pedagogia voltada para a aprendizagem da felicidade como sentido da vida. Em sua carta, Epicuro faz referência ao estudo de filosofia, uma vez que a escola se confundia com a própria filosofia. Sobre estudar, destaca o autor da carta que jovens e velhos devem passar pela escola, porque os estudos servem:

[…] para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la (Epicuro, 2002, p. 21).

Também Paulo Freire, ainda na juventude, tempo histórico em que a maior parte da vida no Brasil acontecia no campo e sob relações sociais medievais, pois predominavam situações de profunda miséria, decorrente da exploração e opressão promovida pela minoria privilegiada, percebeu esta infelicidade. Para ele, era inconcebível fingir que aquilo era normal. Alguma coisa tinha que ser feita para que o oprimido obtivesse a condição de libertar a si mesmo (Freire, 1986). Ele responsabilizou a escola por essa tarefa. Isto é, ele não separou o papel de educar do papel de criticar as estruturas, de modo a superá-las, por meio da capacidade de mudar a forma de ver e ler o mundo, para a qual a escola poderia contribuir. Essa forma de enxergar a realidade só é acessível se a lente do amor estiver em funcionamento.

Paulo Freire, assim como Epicuro, ensina que os próprios educandos, e não terceiros em seus nomes, deveriam agir para o alcance da libertação. Entretanto, aprisionados que são os estudantes, em função da própria formação social brasileira, que é elitista e racista10, faz-se necessário uma intervenção do Estado no sentido de apontar caminhos. Caminhos que a escola pode oferecer, ao ofertar uma educação voltada para a libertação. Possibilidade nunca devidamente colocada em prática e que hoje se reduz um pouco mais, haja vista o “Novo Ensino Médio”, que vai na contramão dessa orientação, na medida em que aponta para o aligeiramento da formação, por tomar como parâmetro o mercado da informalidade “empreendedora”.

Desse modo, uma escola que se volte para a implementação de um processo de ensino-aprendizagem que contemple a arte como possibilidade educativa, ao propor que não era preciso abdicar de toda a escola existente para salvar a escola, dialoga diretamente com Gramsci. Hoje, basta renovar as tintas.

uma pedagogia amorosa

Somente é capaz de enxergar as atrocidades e mazelas da sociedade como consequência das injustiças sociais quem olha para o mundo com os olhos de amor como sentimento sublime. Apenas o amor que se faz presente na utopia e na luta militante, como comprovam fartamente Gandhi, Che Guevara e Paulo Freire, dentre outros, é capaz de abrir os olhos do coração e da mente porque se trata do amor à justiça, do amor à verdade e do amor à humanidade, como dizia Che11. É nesse sentimento de amor revolucionário pela humanidade que encontro o elo entre Paulo Freire e Epicuro. Em ambos, a filosofia é sustentada pelo amor como expressão de compaixão pelo outro.

Contudo, importa destacar que eu não atribuo exclusivamente aos professores e às professoras a tarefa de mudar a escola. Entretanto, observei, nas vastas experiências com projetos, com destaques para o PIBID, possibilidades de a escola poder caminhar no sentido da utopia revolucionária de construção de um mundo novo.

Nesse sentido, penso que o enxugamento do currículo apresentado na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a emergência de novas formas de trabalho nos dizem que devemos apostar em inovações oriundas de experiências bem-sucedidas. Trabalhar com poesia na escola é fundamental porque motiva as sensações lúdicas que suscitam o prazer, que simboliza o gozo da vida. E a possibilidade poética ou o dom para gostar de poesia está em nós como um traço da existência. A arte em geral se situa nessa porção necessária do prazer. O que chamamos de talento é apenas a preservação dessa porção numa dose mais elevada ou, quem sabe, em sua totalidade. É por essa razão que, quando colocadas em contato com a poesia, as crianças, desde a mais tenra idade, reagem de forma surpreendente, pois na infância esta potência permanece latente de modo mais superficial. À flor da pele, como se diz.

Observando atentamente a nossa reação à leitura de um poema, é possível notar que, abruptamente, somos afetados e esboçamos um tipo de emoção muito peculiar, que, na maioria das vezes, resulta em lágrimas inexplicáveis. Possivelmente, a poesia aciona a região do cérebro que lida com as emoções e, ao que parece, fazendo agora mesmo um link com os estudos que desenvolvo na pesquisa, se esta região tem uma abrangência maior numa pessoa, esta pessoa reage de forma mais intensa. Afortunadamente, todos nós que preservamos uma dose de sabedoria solidária e desinteressada compartilhamos da mesma sorte de ainda nos deixarmos afetar pela poesia12. Por isso, somos também a parcela que aprecia o teatro, um filme considerado cult, uma boa leitura, curtimos uma boa música etc. Enfim, somos os amantes da arte como criação da resistência e não como mercadoria para consumo.

Falar de poesia, nessa direção, não é propriamente fazer menção ao texto poético pura e simplesmente. Envolve, para além disso, a emoção que é despertada e que pode ser demonstrada seja através de versos, imagem, som ou qualquer outra forma de expressão. Quando prestamos atenção nas coisas com os olhos da alma, somos tocados. É esse sentimento que chamo de poético, em sintonia com os estudos da literatura que fundamenta o presente estudo.

Foi por isso que no dia em que li Mar de Portugal, de Fernando Pessoa, para as crianças do 3º ano e exploramos coletivamente o poema, elas responderam, desde o comportamento à participação, de modo surpreendente para mim e para os bolsistas do projeto. Até o brilho nos olhos das crianças expressava uma alegria que não é comum. Era notória a satisfação que as tomava diante do ineditismo do acontecimento: falar de poesia na escola, sem que o texto fosse pretexto para conteúdos pura e simplesmente, mas para, em primeiro lugar, compreender a própria natureza da poesia. Sua linguagem e poder de comunicação: coisa que, naquele momento, eu tampouco compreendia. Foi exatamente aquele impacto que despertou o interesse por este estudo. Era necessário compreender aquele poder desconhecido da poesia.

E como a criação popular, que não me deixe mentir um Ariano Suassuna13, é a arte em seu estado mais puro, dentro do projeto, um ramo especial da poesia tem se revelado ainda mais capaz de motivar as crianças. Estou me referindo ao cordel. Nos estudos desta pesquisa, observo também que a literatura de cordel vem tendo uma enorme aceitação no trabalho escolar, especialmente no Nordeste14. O que torna a literatura de cordel mais atraente é, exatamente, sua relação profunda com a vida cotidiana das camadas sociais que estudam na escola pública. Essa vinculação atrai as crianças porque as toca de forma pessoal. O cordel gera um elo, um tipo especial de identidade com a vida das crianças, porque os assuntos e os temas abordados nascem dos dramas e dos problemas que elas conhecem ou experimentam no seio de suas relações na família ou na comunidade. E, por essa razão, a literatura de cordel oferece a possibilidade de trabalhar com conteúdos escolares bem diversos. Com as crianças menores, o cordel funciona tanto por causa da rima fácil, quanto porque os versos evocam uma sonoridade melódica atraente.

Além disso, a obra poética, como a poesia ou a literatura de cordel e até mesmo as pinturas, permitem a proposição de jogos e brincadeiras que externalizam o lúdico e, portanto, facilitam a aprendizagem, pois despertam a imaginação criativa, assim como permitem o desenvolvimento do afeto e do amor ao outro, que devem ser também assuntos trabalhados da escola.

a experiência com a poesia e seus frutos

Olhando para os bons resultados do trabalho com poesia na escola, penso que estes se devem ao fato de que a poesia desencadeia uma ebulição de sensações necessárias para processar a aprendizagem. O raciocínio se faz acessível porque a poesia possibilita a junção dos elementos estruturais do texto, através dos aspectos poéticos peculiares, que remetem à sensibilidade, à criatividade, à curiosidade, e resultam na fantasia e na emoção a ela associadas, na geração de uma resposta plausível. Nesse sentido, a presença da poesia, no contexto da infância, influencia ou atua também na construção da personalidade da criança, porque conecta os aspectos biológicos da personalidade às condições concretas da sociabilidade, ao promover o processo de aprendizagem.

Não cabe apontar, tampouco enumerar, as possibilidades de uso da poesia ou do cordel no cotidiano escolar. Essas possibilidades dependem do objetivo para o qual a poesia é utilizada, bem como dependem da criatividade no momento do planejamento. Todavia, vale frisar algumas dicas advindas da experiência e dos estudos. Se a intenção for ampliar o vocabulário das crianças, pode-se lançar mão de jogos com palavras, rimas e versos a partir de sugestões criativas, como por exemplo: objetos de uma determinada espécie; sons silábicos; adjetivos para descrever a beleza de alguma coisa; nomes associados a rimas de improviso; classificar as palavras por um tipo de rima indicado e mesmo “montar poemas”. Se a ideia for estimular o hábito de leitura, pode-se brincar de saraus, com momentos de recitação ou apenas de escutas de poemas clássicos. Para trabalhar a imaginação e a criatividade, explora-se o texto no tocante ao conteúdo; sugere-se que seja modificado; associa-se a fatos históricos; a situações da vida, através de perguntas exploratórias etc. Para o encantamento e fruição da emoção, promove-se escutas e meditação, antes de uma conversa espontânea.

A imaginação fértil e o sentimento amoroso que se oferecem a professores e professoras, sempre que requisitados pelo desejo de fazer o melhor e mais comprometido trabalho docente, devem, a meu ver, mais do que nunca neste momento histórico que atravessamos, se tornar aliados da docência.. Como professores e professoras, precisamos ousar para que, de algum modo, nossos saberes e nossos fazeres driblem as formalidades oriundas da burocracia autoritária, na maioria das vezes a serviço de uma concepção de sociedade excludente e violenta. Mesmo sem infringir as normas legais, podemos encontrar meios de transgredir o instituído e, de forma consciente e comprometida, atuar para impedir ou reverter o objetivo jamais explícito - de preservação da exploração, portanto, perpetuação da pobreza -, que as classes dominantes almejam para a escola das crianças pobres.

Já testemunhei, nessa experiência, de formas diversas e frequentes, os resultados aos quais me refiro. Ouvi depoimentos das professoras com cujas turmas eu desenvolvi o projeto com os bolsistas - inclusive durante os anos de coordenação de área no PIBID - de que a escola havia passado por uma verdadeira transformação. Era notável e reconhecido o êxito das crianças também no desempenho escolar. Fato comprovado pela própria direção da escola, que, além de solicitar a continuidade do projeto e nos convidar para ministrar minicursos às professoras e aos professores, solicitou uma bibliografia para estudos.

E para não ficar apenas nas palavras, apresento aqui a poesia de uma menina, quase adolescente, que aos 11 anos de idade fazia, pela terceira vez, o 3º ano, pois não conseguira até então aprender a ler e escrever, condição necessária para a promoção ao 4º ano. Contudo, em aproximadamente um mês participando do projeto, ela logo supriu essa defasagem. Pois bem, a poesia a fez não apenas descobrir o sentido da escola, como também despertou seu poeta adormecido, mas preservado e, portanto, ver uma criança, para quem a escola até os 11 anos não havia se revelado como algo necessário, escrever poemas é algo que me ajuda a pensar sobre a natureza da poesia na existência humana.

Esta criança, aqui chamada de Samara, surpreendeu-me logo de início. Ao vê-la na turma no primeiro dia do projeto, soou em mim um alerta negativo: devido à idade discrepante para com o resto da turma, imaginei que ela talvez não engajasse nas atividades. Contudo, para minha felicidade, das crianças que se manifestaram naquele primeiro dia, ela foi uma das primeiras a não apenas interagir na exploração, como também, depois, manifestou seu desejo de ser poeta.

A poesia a fez descobrir uma razão para a existência da escola na sua vida. Dali em diante, a escola passou a fazer sentido para ela que, ao aprender a ler, passou a frequentar a biblioteca e se tornou também uma leitora.

Eis o poema de Samara:

A emoção de um poeta A emoção do poeta é mais forte que o mundo! O mundo precisa de um poeta Um poeta precisa de um poema Que venha do coração E que a emoção venha da alegria e da poesia Que do coração se cria (Samara, 11 anos em 2013).

considerações finais

Falar sobre o tema literatura na escola torna inevitável dizer duas ou três coisinhas sobre fatos do acaso que o projeto também motiva no cotidiano. Desta vez, contarei sobre uma memória muito especial.

Certo dia, uma colega professora de biologia, que comigo caminhava numa rua do bairro em que se situa a escola na qual desenvolvo o projeto, teve uma reação muito surpreendente, decorrente de um encontro casual que tivemos com um ex-aluno do projeto. O menino havia passado de ano, portanto, sua turma não participaria mais do projeto. Sabendo disso, ele perguntou quando eu “iria começar o projeto de literatura” na sua sala, o que revela os resultados do projeto.

Para aquela colega, professora de biologia, que também se dedica a formar professores e professoras, a partir de uma concepção de docência comprometida com uma escola transformadora, a pergunta de uma criança de 10 anos, na rua, sobre um projeto de literatura, fora um acontecimento inusitado e lhe causou enorme e gratificante espanto. Por isso, desencadeou uma conversa sobre a escola existente.

A seu ver, era demasiado extraordinário ver a palavra literatura na boca de uma criança da periferia, ainda mais numa esquina qualquer do mundo. E essa criança era apenas uma das tantas que remetem aos resultados colhidos no projeto. Teve outra criança. Uma menina, me recordo agora, que, ao me encontrar casualmente também na rua e, igualmente indo para a escola, parou-me, abriu a sua mochila, retirou dois livros que carregava com ela e me explicou, orgulhosa, que os havia pego emprestados na biblioteca comunitária do bairro. Essa menina era a autora do poema citado.

Para uma professora que se reconhece no seu trabalho pelos resultados que ele gera, um fato como este não é apenas motivo de satisfação pelo dever cumprido. É a certeza de que a escola pode fazer a diferença na luta revolucionária.

E se é em defesa de uma pedagogia amorosa que reflito, não poderia deixar de dizer dos abraços espontâneos e surpreendentes que recebo de crianças, em encontros inesperados nos pontos de ônibus e nas lanchonetes e padarias do bairro, que causam perplexidades aos pais e mães que não me conhecem. Como explicar a delícia de ouvi-las justificando aos acompanhantes, chocados pelas cenas, que sou sua professora de poesia?

Todavia, além dos episódios citados, é necessário dizer que precisamos ainda mais da poesia para sermos professoras e professores, porque atravessamos uma fase em que se faz imprescindível ver, de novo, as coisas já vistas e conhecidas. O momento histórico está a exigir de nós um ver de novo como se fosse a primeira vez, no dizer de Moisés (2007).

A poesia, ao nos tocar, nos ensina, desse modo, a olhar para o velho como se novidade fosse. Ela atiça os sonhos, nutre a imaginação e faz brotar a fortaleza que nos encoraja para o enfrentamento das lutas.

Permitamos que a poesia nos ensine seu modo de ver, para que, assim, aprendamos a negar, pelo menos provisoriamente, o conhecimento das coisas como resultado definitivo e cristalizado. Deixemos que o ato de conhecer se manifeste, em sua disponibilidade, como ato de reconexão com as coisas, com o óbvio.

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Recebido: 03 de Maio de 2023; Aceito: 04 de Dezembro de 2023

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