Introdução
Apesar do contexto atual enfrentado pelas universidades brasileiras, com expressivas transformações, em especial, no que tange ao apoio para o desenvolvimento de pesquisas no âmbito da pós-graduação, observa-se um movimento crescente das produções acadêmicas dessas instituições de ensino, pesquisa e extensão, com inegáveis repercussões em rankings nacionais e internacionais. Dentre essas produções, inserem-se às relativas ao campo da educação, que tratam da diversidade de temas, tais como formação de professores, processos de ensino e aprendizagem, práticas pedagógicas, gestão escolar, entre outros, sob os mais distintos referenciais teórico-metodológicos (MAIA,2020; NOVELI; ALBERTIN, 2017; TREBIEN,SOUZA,OLIVEIRA e SILVA, 2020).
O enfoque psicanalítico nessas produções em educação, no entanto, é menos frequente, em que pese o seu crescimento nos últimos anos (PEREIRA; SILVEIRA, 2015). Muito embora as investigações sobre os processos formativos e pedagógicos, as relações professor-aluno e os processos de ensino e aprendizagem, entre outros, utilizem o aporte teórico da psicanálise, o uso da memória educativa como um dispositivo metodológico ainda é escasso.
A memória educativa como um dispositivo pode ser compreendida com base em Foucault (2003). Para o autor, dispositivo é entendido como fusão de objeto e método de pesquisa, assim como um elemento de resistência e estratégia, de ruptura e oposição, como conjuntura propiciada pela arqueologia e genealogia para analisar as vertentes do saber, do poder e da subjetividade, essencialmente de potencial conflito entre si. Nesse sentido, o dispositivo representa um vetor estratégico desses três núcleos de conflitos.
O dispositivo da memória educativa tem contribuído com pesquisas no âmbito da pós-graduação em educação. Em geral, esses estudos visam compreender a constituição da subjetividade e suas implicações para a formação de professores, com base no fundamento teórico-epistemológico da conexão entre psicanálise e educação. Esse campo, atualmente, sustenta pesquisas acadêmicas no Brasil, na França e na Argentina, dentre outros países.
No Brasil, segundo Pereira e Silveira (2015), o enfoque da psicanálise e educação está presente em grupos cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa da plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e em universidades públicas e particulares do país. Esses grupos estão presentes nos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte. Acrescentam-se a estes, Distrito Federal, Goiás e São Paulo.
Sobre as pesquisas produzidas a partir de 1980, fundamentadas na conexão entre psicanálise e educação, Oliveira (2009) avalia como bom sinal esse conhecimento ter-se originado na universidade, ainda que:
A ênfase na conexão da Psicanálise com a educação decorre da constatação de que nessa área os avanços foram especialmente significativos nas últimas décadas, diferentemente das publicações de trabalhos sobre interfaces entre arte, literatura, cinema e Psicanálise, já tradicionalmente conhecidos (OLIVEIRA,2009, p. 170).
De outro modo, Kupfer et. al (2010, p.290) acrescentam que essa “(...) conexão agora não é mais apenas uma justaposição, não é uma intersecção, mas uma associação de dois campos que dá origem a um terceiro”.
Importante reconhecer que este campo da psicanálise, articulada à educação, é utilizado nos cursos de formação de professores e emerge como um caminho para que, dentre outras possibilidades, os sujeitos possam repensar as vivências, as práticas e as relações sociais experienciadas desde seus primeiros anos de escolarização até sua prática pedagógica atual. Para Freud, “nenhuma das aplicações da psicanálise excitou tanto interesse e despertou tantas esperanças, e nenhuma, por conseguinte, atraiu tantos colaboradores capazes, quanto seu emprego na teoria e prática da educação” (FREUD, 1996, p. 307). Sobre o encontro da psicanálise com a educação, se posicionou:
Existe um tema, todavia, que não posso deixar passar tão facilmente - assim mesmo, não porque eu entenda muito a respeito dele, e nem tenha contribuído muito para ele. Muito pelo contrário: aliás, desse assunto ocupei-me muito pouco. Devo mencioná-lo porque é da maior importância, é tão pleno de esperanças para o futuro, talvez seja a mais importante de todas as atividades da análise. Estou pensando nas aplicações da psicanálise à educação, à criação da nova geração. Sinto-me contente com o fato de pelo menos poder dizer que minha filha, Anna Freud, fez desse estudo a obra de sua vida e, dessa forma, compensou a minha falha. (FREUD, 1996, p. 144-145).
Nessa perspectiva, é importante lembrar-se dos escritos de Freud, quando este se refere à postura e às influências de Charcot, como pesquisador e professor em sua carreira, inclusive solicitando a participação de seus alunos em seus trabalhos:
Eis o que nos falou sobre seu método de trabalho. Costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas dia-a-dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em sua visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua dos mesmos sintomas cedia então lugar à ordem: os novos quadros nosológicos emergiam, caracterizados pela combinação constante de certos grupos de sintomas. Os casos extremos e completos, os “tipos”, podiam ser destacados com a ajuda de uma espécie de planejamento esquemático e, tomando esses tipos como ponto de partida, a mente podia viajar pela longa série de casos mal definidos - as “formes frustes” - que, bifurcando-se a partir de um ou outro traço característico do tipo, desvaneciam-se na indistinção. Ele chamava essa espécie de trabalho intelectual, no qual ninguém o igualava, de “nosografia prática”, e se orgulhava dele. Podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova - isto é, reconhecê-la como nova; e insistia repetidamente na dificuldade e na importância dessa espécie de “visão”. Costumava indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver. Falava em como era maravilhoso que alguém pudesse subitamente ver coisas novas - novos estados de doença - provavelmente tão velhas quanto a raça humana, e em como tinha que confessar a si mesmo que via agora nas enfermarias hospitalares inúmeras coisas que lhe haviam passado despercebidas durante trinta anos (FREUD,1996, p.22).
O posicionamento freudiano em relação à postura do pesquisador diante do trabalho de investigação nos inspira a pensar em uma possível torsão, outro olhar para o campo educativo. Especificamente, sobre a posição e a postura do pesquisador frente a sua própria trajetória e ao objeto de pesquisa. Observa-se que, desde os anos 20, as pesquisas desenvolvidas nas ciências humanas e sociais fizeram uma guinada subjetiva, especialmente, as que tratam da temática da formação de professores. A esse respeito, Sarlo (2007) faz referência ao uso de autobiografias, de entrevistas, de biografias, das histórias de vida e das memórias em pesquisas nessas áreas. Cabe ressaltar, ainda, que em 1984, Adam Abraham publicou a obra intitulada O professor é uma pessoa. Esta obra ofereceu um novo olhar para os trabalhos de pesquisa acadêmica tendo os professores como sujeitos, considerando os elementos subjetivos constitutivos no âmbito pessoal e profissional ao longo da docência.
Diante do exposto, o presente trabalho apresenta o dispositivo da memória educativa como espaço biográfico e de possibilidade, para que o professor, como sujeito de pesquisa, inscreva-se como pessoa. Ao utilizar o dispositivo como instrumento de pesquisa, o pesquisador permite ao pesquisado-sujeito retornar a arquivos de memória próprios, que se manifestam de maneira consciente e inconsciente. Nesse processo, apenas o sujeito pode escrever ou se inscrever e operar sobre sua própria escrita. Escrita essa, que pode ser atualizada, de modo a trazer o passado no momento presente de maneira singular.
Nesse sentido, considera-se importante tratar do conceito de memória na perspectiva psicanalítica freudiana, a fim de que se possa compreender o seu potencial nas pesquisas em educação. A seguir, discorre-se sobre Metapsicologia e Memória - pressupostos teóricos e metodológicos.
Metapsicologia e Memória - pressupostos teóricos e metodológicos
É inegável reconhecer que o tema memória tem sido objeto de estudo em diversas áreas do conhecimento, como a neurociência, a psicologia, a história e a arquitetura, entre outras. Porém, na obra freudiana ocupa lugar princeps. Desde A interpretação dos sonhos (1996), Freud revelou que as experiências infantis eram fundantes do psiquismo e estabeleceu o desamparo infantil e outros rudimentos como constitutivos da subjetividade. Das transcrições e inscrições no psiquismo como marcas de suas experiências infantis, pontuou que:
somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não mais entendemos a nossa própria infância. Nossa amnésia infantil prova que nos tornamos estranhos à nossa infância. A Psicanálise trouxe à luz os desejos, as estruturas de pensamento e os processos de desenvolvimento da infância (FREUD,1996, p.190).
Neste sentido, Freud retoma a questão das origens dos processos de desenvolvimento da infância para construir a teoria psicanalítica. Em sua hipótese, para explicar como o aparelho mental desempenha sua função perceptual, Freud (1996), em seu texto Uma Nota sobre o Bloco Mágico, recorreu à analogia com um pequeno invento conhecido na época como bloco mágico que à semelhança de uma lousa permitia que a escrita sobre o celulóide da folha de papel da cobertura se apagasse quando levantada, enquanto traços permanentes do escrito ficavam retidos sobre a prancha de cera, ou seja, o aparelho mental possui uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e, não obstante, registra delas traços mnêmicos permanentes, embora não inalteráveis(ALMEIDA,2001).
Freud tratou da questão da memória em diversas de suas obras. Dentre elas, pode-se destacar Estudos sobre a histeria (1996), em especial, o capítulo sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos, com o subtítulo, Comunicação Preliminar, a partir da afirmação de que “os histéricos sofrem de reminiscências” (FREUD,1996, p.43) que são acionados em momentos posteriores.
Na obra o Projeto Para Uma Psicologia Científica (1996), proferiu que toda teoria psicológica forneceria “uma explicação para a memória”(FREUD,1996, p.351) como também na emblemática Carta 52 (1996), quando relata o Caso Dora e as marcas mnêmicas deixadas por suas experiências de infância. Assim, ressaltou o valor da memória para sua teoria, uma vez que, em psicanálise, o retorno ao passado, por meio da memória em repetição, pode contribuir para a superação do trauma. Descrito por Seligmann-Silva (1991, p.84) como “uma ferida na memória”, que também faz marcas e acompanha o sujeito em toda sua história.
Alinhado a essa perspectiva, Lajonquière (2010) sinaliza que é preciso saber do passado para não morrer subjetivamente. Já Tanis (1995, p.32) acrescenta que “compreender o passado” nos permite “suportar o presente e projetar o futuro”, em uma junção de tempo e memória, que, segundo o autor, são elementos constitutivos do sujeito.
É preciso reconhecer, portanto, que a teoria psicanalítica, nomeada por Freud de Metapsicologia, e descrita por Taubman (2007, p.4), em The Beautiful soul of Teaching, como teoria que ajuda a compreender as práticas educacionais e o ato de ensinar, de modo a “ver como o passado vive no presente”, tem uma contribuição significativa para a compreensão dos processos subjetivos implicados no ato pedagógico. Por conseguinte, a memória assume um papel central nesse processo e, em especial, a memória educativa. A seguir, apresenta-se a memória educativa como um singular dispositivo de pesquisa.
O Dispositivo da Memória Educativa
A memória educativa é identificada, por vezes, como método, instrumento ou técnica de pesquisa(BAGNATO; COCCO, 2006).Nessa perspectiva, restringe-se a uma ferramenta que permite coletar os dados, em consonância com o objeto de pesquisa, ou produzir intervenções em processos formativos e pedagógicos. Como dispositivo, possibilita aos sujeitos da pesquisa uma escrita de si, do que os constituiu subjetivamente, conforme reconhecido por Foucault (1992). Sob o enfoque da psicanálise articulada com a educação, o dispositivo se constitui em um meio singular de expressão da subjetividade para a construção da identidade do educador (Almeida, 2002).
Com base na leitura psicanalítica dos escritos dos sujeitos pesquisados é possível reconhecer que comparece uma enunciação mínima do sujeito inconsciente. Essa concepção é fundamental para o uso do dispositivo como método de leitura e de interpretação das memórias educativas, de modo que:
(...) é possível pensar a escrita da Memória Educativa como a palavra contida na enunciação mínima do professor, com poder de construir uma verdade histórica e produzir uma nova relação a partir de suas vivências, reconstruindo sua identidade de educador, com repercussões no ensinar e aprender, e ressignificando sua prática independente do cenário pedagógico em que atua (ALMEIDA & BITTENCOURT, 2018, p. 02).
É nessa perspectiva que a memória educativa, fundamentada na conexão psicanálise e educação, vem sendo utilizada para investigações no campo da educação, no âmbito da Universidade de Brasília. Neste sentido, as produções acadêmicas disponíveis no repositório institucional desta universidade foram consideradas, para fins de ilustração, de como a memória educativa pode se constituir como um dispositivo, capaz de ressignificar a atuação docente. Assim, pretende-se reconhecer os sentidos subjetivos (des)velados no percurso das produções acadêmicas, os saberes e as práticas dos pesquisadores, a partir da experiência de pesquisa com o dispositivo da memória educativa.
A Escrita de si no Dispositivo Memória Educativa
O dispositivo da memória educativa sugere que o pesquisador permita ao sujeito pesquisado retornar ao passado. Nesse processo, lembranças referentes ao cenário pedagógico são reavivadas, de modo que seja permitido um re-olhar sobre sua trajetória discente e/ou docente. Assim, momentos, pessoas, experiências, situações são resgatadas na memória. Esse movimento de retorno, possibilita ao sujeito sistematizar criticamente suas representações e seus sentimentos, a partir de sua experiência como aluno, em relações educativas pessoais e/ou profissionais como docente. A figura abaixo ilustra o processo metodológico de construção da memória educativa.
Fonte: Inspirado no Módulo Comum. Imersão no Processo Educativo das Ciências e da Matemática. Programa de Aperfeiçoamento de Professores de Ensino Médio (Pró-Ciências 1997- 1998), Universidade Aberta do Distrito Federal -UNAB, Brasília, Brasil
Para ativar essas memórias, os pesquisadores oferecem um roteiro orientador ao sujeito pesquisado, que é baseado na estrutura apresentada na figura 1, acima. Assim, facilita o registro de seu percurso desde as primeiras experiências de infância em contexto escolar até a universidade. Para aqueles que já atuam como professores, o dispositivo permite ir além, visitando e redimensionando o vivido, ao trazer à tona também suas experiências como docentes. Neste papel, possibilita dizer das relações com seus pares, dos conteúdos, das metodologias, das atividades e avaliações utilizadas, bem como da família, da sociedade e da dimensão político-social vivenciada, podendo acrescentar, inclusive, momentos que lhe trouxeram prazer ou desprazer. Ao final desse processo, o sujeito pesquisado é solicitado a se posicionar sobre a escolha da profissão, considerando sua trajetória como aluno e como professor.
No processo de escrita da memória educativa é possível utilizar imagens, desenhos, fotos e filmes, sem delimitação de números de páginas, a critério do sujeito de pesquisa. Se necessário, o pesquisador pode sugerir, inclusive, o uso de outros dispositivos ou técnicas de pesquisa que permitam aprofundar esse processo de resgate da memória associada às questões educacionais, conforme o objeto da pesquisa. Entende-se que “tanto a psicanálise como a educação não podem parar de rever seus métodos em função de seus objetivos, e não rever seus objetivos em função de seus métodos” (KUPFER et.al, 2010, p.294).
A seguir, apresenta-se o levantamento das produções acadêmicas em educação, que utilizaram a memória educativa como um dispositivo de pesquisa, a fim de ilustrar e apontar as contribuições desse dispositivo para a ressignificação da atuação docente.
O uso do dispositivo Memória Educativa em pesquisas de educação sob enfoque psicanalítico - uma meta-análise
O levantamento das produções acadêmicas que utilizaram o dispositivo da memória educativa foi feito no repositório da Universidade de Brasília e compreendeu o período de 2007 a 2019. Para tanto, foram utilizados os descritores memória educativa, psicanálise e educação, que resultaram na identificação de 23 dissertações de mestrado e 2 teses de doutorado. Todas usaram a memória educativa sob o enfoque psicanalítico com a educação e foram produzidas no âmbito da Faculdade de Educação.
Os temas abordados por esses estudos foram gestão escolar, cenário pedagógico, ação pedagógica, prática pedagógica, inclusão escolar, docência, formação do pedagogo, identidade docente, ambiente virtual de aprendizagem, profissão docente, educação para o trânsito, relações professor-aluno, entre outros. No total, esses estudos tiveram a participação de 264 sujeitos, que elaboraram, individualmente, as suas memórias educativas, seguindo o mesmo roteiro padrão.
As análises destas 264 memórias educativas foram organizadas em três eixos temáticos:Eixo 1 - Implicações na formação do profissional docente; Eixo 2 - Subjetividade e identidade na prática pedagógica; eEixo 3 - Transferência, afeto e mal-estar no cenário pedagógico. A análise refinada desses eixos fez emergir categorias conceituais que permitiram compreender como os processos subjetivos se desvelam na escrita da memória educativa.As principais categorias encontradas, correspondentes a cada eixo, estão apresentadas no quadro a seguir:
Eixo 1 | Eixo 2 | Eixo 3 |
---|---|---|
memória | identidade | transferência |
inconsciente | subjetividade | afeto |
identificação | identificação | mal-estar |
subjetividade | ambivalência | saber |
estilo de ensino | sedução | poder |
infantil | desejo | autoridade |
marcas | ||
vicissitudes |
Fonte: As autoras
Entre essas categorias conceituais pode-se observar que os termos identificação e subjetividade se repetem nos eixos 1 e 2. Ambos os eixos têm proximidades, uma vez que a formação docente está intimamente conectada à subjetividade e à constituição da identidade do ser professor e do fazer pedagógico. Nessas memórias educativas, foram reveladas experiências e reminiscências das relações dos participantes com seus pais e os seus professores, em um processo de identificação com eles. Para a psicanálise, a identificação é primordial na constituição do sujeito e está presente desde os primeiros momentos de constituição do Ser, sendo destacada ao longo da obra freudiana. Sob esse fundamento, as primeiras experiências se instauram no aparelho psíquico, representadas por traços de memória e pelo próprio inconsciente. Estas podem advir tanto das relações parentais quanto das relações com seus educadores, como evidenciado pelos pesquisadores, a partir do uso da memória educativa e de sua leitura.
Com relação à categoria conceitual subjetividade, ela emergiu nos estudos que envolveram a relação com o tempo, abordada a partir das temáticas memória e memorial, destacando aquilo que se inscreveu no passado, em tempo outrora. Esse resultado se alinha à compreensão da problemática do tempo para a subjetividade, conforme Birman (2000). Para o autor, nessa relação “o que está em pauta aqui é como o tempo é constitutivo e modulador das formações subjetivas, por um lado, assim como a subjetividade é o lugar para o relançamento de novas formas de temporalidade, pelo outro” (BIRMAN, 2000, p.12). No que se refere ao contexto educacional e pedagógico, o tempo revivido na elaboração da memória educativa modula subjetividades e relança novas formas de temporalidade. Ao reviver seu tempo de discente, o professor modula a sua subjetividade, via dispositivo, em um tempo em que se posiciona como docente.
Já a categoria memória revela a construção realizada pelos sujeitos de pesquisa, por meio de percursos que envolveram marcas, inscritos e escritos, traços, temporalidade, entre outros elementos. Essa construção aponta o tempo e os restos mnêmicos que os marcaram, que comparece em escrita consciente e inconsciente. Uma vez que “a superfície sobre a qual essa nota é preservada, a caderneta ou folha de papel, é como se fosse uma parte materializada de meu aparelho mnêmico que, sob outros aspectos, levo invisível dentro de mim” (FREUD, 1996, p.255). Esse invisível emerge do inconsciente, aparecendo em destaque como categoria de estudo em pesquisas identificadas neste levantamento (SILVA NÉTO, 2008; MALDANER, 2009). O inconsciente, considerado como principal objeto da psicanálise, retorna a traços mnêmicos, àquilo que não se admite na consciência, como chistes, transferências, sonhos, atos falhos, que também se fazem presentes no contexto educativo. O dispositivo da memória educativa permite que ele se revele e se expresse.
No eixo 1, portanto, constata-se que as categorias conceituais que tratam das implicações do profissional docente remetem a sua trajetória escolar e pessoal. Estas, por sua vez, são representadas como marcas subjetivantes, que demarcam o estilo e o desejo de saber (CHARLOT,2000). Sob o enfoque da metapsicologia, compreende-se que essas marcastambém são transmitidas por seus antigos professores.
Com base nas leituras e análises das memórias educativas desses sujeitos pesquisados é possível identificar elementos importantes, que permitem compreender que o processo da escrita sobre o passado fez com que esses sujeitos refletissem sobre seu fazer pedagógico no presente. Ao retornarem ao passado e pensarem sobre as relações constituídas no processo de ensinar e aprender, esses sujeitos relataram que, ao escreverem suas memórias, também pensaram sobre sua prática docente. Ressalta-se que:
A escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade contrastiva; ou, mais precisamente, uma maneira reflectida de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirmar e a particularidade das circunstâncias que determinam o seu uso(FOUCAULT, 1992, p.141).
Além disso, estes sujeitos apresentaram resquícios mnêmicos, que possibilitaram a compreensão de que as relações de infância com familiares e outros sujeitos interferiam na escolha de sua profissão. Com isso, revela-se que o infantil é elemento central na constituição da subjetividade e da identidade do docente.
A esse respeito, Squarisi, Almeida e Bareicha (2017) afirmam que nos escritos freudianos, o conceito de infantil coloca-se como campo de ligação. Nele conflui a estrutura como campo de possibilidades, definida a partir de uma história, recuperada a partir do nãotempo do inconsciente. Além de seu caráter determinante na constituição psíquica, é, também, o mais antigo, o mais precoce, tanto no sentido daquilo que é mais remoto quanto no sentido daquilo que está em conexão com modos arcaicos do funcionamento psíquico.
Sobre a escolha da profissão, Nóvoa (1992) chama a atenção para se pensar a pessoa do professor em suas dimensões pessoal e profissional. Para o autor, “Urge (...)(re)encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida” (Nóvoa, 1992, p.13). O dispositivo da memória educativa possibilita esse espaço de reflexão e de interação pessoal e profissional. Assim, além de deixar que o professor conte sua história de vida, permite-lhes recordar, elaborar e reelaborar a sua própria história, a partir dos resquícios e traços de memória.
Com relação ao eixo 2, que trata da subjetividade e da identidade na prática pedagógica, pode-se depreender dos estudos que a categoria conceitual subjetividade é elemento constitutivo da prática pedagógica. A subjetividade, nesse contexto da prática, é expressa nos relatos e nas identificações dos sujeitos com seus discentes e docentes, bem como, quando discorreram sobre seus contextos educativos e os aspectos relacionais que os constituíram. Dentre os elementos apresentados por esses sujeitos em suas memórias educativas, destacam-se o fracasso escolar, o sentimento de desamparo, a angústia e a fantasia, entre outros que permeiam o campo educativo. Percebe-se que estes sujeitos compreendem as possíveis marcas que sua atuação docente poderá deixar em seus discentes, assim como identificam as que seus professores deixaram neles. Nesse processo, ressignificam sua prática pedagógica.
Por fim, no eixo 3, que trata de transferência, afeto e mal-estar no cenário pedagógico, destacam-se as categorias relacionais associadas ao contexto educativo. Na obra freudiana o fenômeno da transferência assume um papel central em situações que envolvem aspectos relacionais e contextos sociais. No âmbito educativo, a transferência permeia as relações e acontece fora e dentro do ambiente escolar. Nesse processo de transferência ocorrem, também, circunstâncias de mal-estar, que podem estar representadas por sentimentos de desamparo, fracasso, fantasia, dentre outros. Nesse sentido, Voltolini (2008) afirma que a relação professor-aluno é marcada pela incompletude:
Que a “relação professor-aluno não exista”, numa paráfrase do aforisma de Lacan (1972-73), indicando o engodo de uma relação assim abstrata, ideal, tal como prescrita nas teorias pedagógicas atuais, é a condição de possibilidade para que existam relações entre professores e alunos reais, relações estas sempre marcadas pela incompletude e pelo impossível (VOLTOLINI,2008, p.122).
Do fenômeno transferencial no campo pedagógico, Oliveira (2007) sugere que podem advir os possíveis sucessos ou insucessos da relação pedagógica. Segundo a autora, o mal-estar dos professores “fez emergir o lugar de ‘bom professor’, para minimizar o irredutível mal-estar que se instalou em sua atuação” (OLIVEIRA, 2012, p.7). Implicações que interferem na subjetividade, por meio dos fenômenos de transferência, afeto e mal-estar, comparecem nas pesquisas como elementos que cerceiam o profissional docente no cenário educacional e em sua prática pedagógica cotidiana.
Interessante observar aproximações entre esses resultados e a pesquisa desenvolvida por Kupferet al (2010), com o intuito de identificar o estado da arte nos estudos que abordaram a articulação entre psicanálise e educação, a partir de 1980, no Brasil. Os autores apresentaram cinco eixos temáticos, a saber: a transferência no campo educativo; formação de professores e psicanálise; psicanálise, discurso pedagógico e educação na contemporaneidade; alunos e professor na relação com o saber; e tratar e educar.
No presente estudo, há semelhanças conceituais dos três eixos encontrados a partir do uso do dispositivo da memória educativa, em especial, quando se trata das contribuições para pensar a formação de professores. Destaca-se, ainda, que também no caso dos trabalhos que utilizaram este dispositivo, Kupferet. al (2010, p.290) afirmam que os pesquisadores intencionaram colocar os pesquisados como sujeitos: “O campo educativo que resulta dessa associação é uma educação voltada para o sujeito do desejo e ampliada de forma a conceber seu ato como sendo mais abrangente que o ato pedagógico.”
Desse modo, além da intenção do material/conteúdo de análise, os pesquisadores desejavam que os pesquisados fossem além do ato pedagógico e pensassem também sua posição como sujeitos. Assim, “faz-se imprescindível considerarmos os processos subjetivos, pela via da dimensão pessoal, no âmago da constituição de uma subjetividade docente, para a geração de mudanças qualitativas nas relações educativas” (PRAZERES,2007, p.202).
Nessa perspectiva, defende-se pensar a formação de professores a partir do campo de pesquisa fundamentado na articulação entre psicanálise e educação. Pensar para além dos métodos e das técnicas, na relação dos sujeitos implicados, uma vez que se entende a formação como algo da ordem do desejo, que também envolve questões psíquicas internas. Silva (2017) se posiciona diante dos dilemas do eixo formação de professores, reconhecendo que:
aprendi que para os professores apaixonados, isto é, aqueles que são entusiasmados pela arte de formar, formar é: ser um mediador, facilitador ou catalisador. Para eles a relação que se estabelece no processo de formação é mais importante que o conteúdo a ser transmitido, pois formar é levar o aluno a achar seu próprio caminho, a se transformar, a evoluir, a refletir, a se mover, a se relacionar. Processo que se dá internamente tanto por parte do aluno como do professor. É como um jogo lúdico, de muito prazer em que também está se formando, se movimentando, se transformando, evoluindo, se relacionando com trocas ricas e significativas. E, ainda, com disponibilidade para o inesperado, o desconhecido, o que implica o manejo das diferenças, das divergências, presentes em todas as relações humanas (SILVA,2017, p.56).
Corroborando com os resultados encontrados no presente estudo, Pereira e Silveira (2015) destacaram 13 eixos temáticos associados às pesquisas produzidas no Brasil, no período entre 1987 e 2012, fundamentadas na relação entre psicanálise e educação. O quadro 2, abaixo, apresenta esses eixos com a respectiva quantidade de trabalhos que os evidenciaram.
Eixos | Quantidade |
Subjetividade | 113 |
Psicanálise e Educação | 92 |
Infância | 80 |
Relação professor-aluno | 74 |
Formação de professores | 65 |
Aprendizagem | 60 |
Inclusão | 60 |
Mal-estar docente | 58 |
Adolescência | 54 |
Saúde mental, autismo, TDAH | 37 |
Violência | 28 |
Linguagem | 24 |
Fracasso escolar | 20 |
Fonte: As autoras com base nos trabalhos de Pereira e Silveira (2015).
Destacam-se, desse trabalho, os eixos subjetividade, formação de professores e mal-estar docente, para além da pluralidade dos temas. A partir do tema subjetividade, os autores ressaltam a constituição da subjetividade do aluno-sujeito. Enfatizam, ainda, o quanto a escola é fundamental no processo de subjetivação, bem como os vínculos estabelecidos no percurso de escolarização.
Com base nesses resultados, pode-se reafirmar que, no dispositivo de escrita da memória educativa, os sujeitos pesquisados escrevem e inscrevem seus processos de subjetivação. Tais processos perpassam desde a infância, passando pela adolescência e alcançam a fase adulta, retomando, assim, o processo de escolarização discente e de ação docente, de modo consciente e inconsciente. A esse respeito, Vila Verde (2012, p.112) ressalta que “(...) ainda que a própria elaboração da escrita cria um espaço de enunciação mínima do sujeito, no qual o inconsciente comparece, por isso a Memória Educativa constitui material riquíssimo de investigação que o autor oferece ao pesquisador”.
Considerando a relevância desse dispositivo para investigações centradas na subjetividade docente, fundamentadas no olhar psicanalítico articulado à educação, cabe apresentar um último aspecto, relativo às justificativas expostas pelos pesquisadores para a escolha da memória educativa no desenvolvimento de suas pesquisas. A síntese dessas justificativas é apresentada a seguir.
A trajetória de escolha do dispositivo como caminho para a pesquisa e a produção de dados
Sabe-se que a escolha do método deve ser coerente com o objetivo da pesquisa e o referencial teórico adotado pelos pesquisadores. Nesse sentido, espera-se que as pesquisas interessadas na subjetividade docente, sob o enfoque da articulação entre psicanálise e educação, utilizem métodos qualitativos que permitam aprofundar vivências e processos subjetivos, a partir do olhar do próprio sujeito da pesquisa. A escolha do dispositivo da memória educativa nessas pesquisas, então, está em consonância com esses pressupostos. O quadro 3, abaixo, ilustra os principais argumentos apresentados pelos pesquisadores para justificar sua opção pelo uso da memória educativa como dispositivo de investigação, de produção e de análise de dados.
Ano | Autor | justificativa |
---|---|---|
2007 | PRAZERES | reconhecer na constituição da identidade do professor os fatos e as experiências afetivas que vivenciou como aluno. |
2008 | CHAUVET | poderá gerar transformações, superações e movimentos de criação, de ordem pessoal/profissional. |
2008 | BARROSO | proporcionou escavar e trazer à tona os frutos do desejo das professoras, possibilitou a reflexão, a reelaboração e como vimos, possivelmente, a ressignificação de lembranças e fatos passados que marcaram, que fizeram sofrer, que causaram profunda angústia nas professoras pesquisadas, mas que por meio dessa mesma angústia pudemos constatar que é possível sair do sofrimento. |
2011 | SEGUNDA | possibilita o regate de vivências, experiências, sensações sentimentos. |
2012 | VILA VERDE | produz efeitos para além daqueles que pretendemos conscientemente. Refere-se à nossa própria constituição. É a produção de uma narrativa endereçada ao Outro e a si mesmo, dando-nos a possibilidade de vislumbrar uma aproximação entre trabalho psicanálise e trabalho pedagógico via elaboração da escrita da Memória Educativa. |
2015 | SANTOS | constitui-se como um dos dispositivos mais valiosos e estimulantes de pesquisa, lugar de expressão da subjetividade do percurso atravessada por pessoas e experiências que ajudaram na constituição de sua identidade como. educador, um material do qual, como sujeito histórico, somente ele possui os registros. |
2015 | FERREIRA | como dispositivo de pesquisa tendo em vista que o efeito que se produz: o tempo da memória vai atualizando as marcas e dando um novo sentido a essa história. Resgata-se nesse processo os vestígios das marcas vividas e ressignificadas na atualidade. |
2017 | SQUARISI | a memória educativa não é simplesmente um texto documento, mas dispositivo (enunciação mínima do sujeito inconsciente). |
Fonte: As autoras com base no Repositório Institucional da Universidade de Brasília - Banco de Teses e Dissertações- Faculdade de Educação - PPGE.
É possível depreender desses argumentos que os pesquisadores consideram essencial o uso de uma escuta sensível para se tratar os dados escritos, nesse caso, analisar o dito e o latente nas memórias descritas. A análise da memória educativa, com suas marcas simbólicas e subjetivações, traz a possibilidade de novas significações das vicissitudes do sujeito.
Nessa perspectiva, a escrita da memória educativa, além de se configurar como um singular e valioso dispositivo de pesquisa em si mesmo, pode ser útil e complementar nas pesquisas interessadas em processos subjetivos em geral, independente do campo. Ressalta-se, em especial, seu potencial para os estudos em educação, sobretudo os que têm como sujeitos os profissionais atuantes em instituições escolares e não escolares e os voltados para a formação de discentes e docentes, na proposta de formação inicial ou continuada de professores.
Considerações finais
O presente estudo inscreveu-se a partir da análise do material produzido por pesquisadores, que utilizaram em suas investigações a memória educativa como um dispositivo de pesquisa. Esta singularidade da memória educativa possibilita a produção dos dados, a coleta de informações e a leitura sensível de possíveis resultados em profundidade. Nesse caminho, emergem os processos subjetivos conscientes e inconscientes, não só dos sujeitos da pesquisa como dos próprios pesquisadores, a partir da identificação com as escritas e das análises das mesmas. Em um movimento que remete a uma espiral, circular e aprofundado, percebe-se um processo de construção e reconstrução da identidade por parte dos discentes e dos docentes pesquisados. Nesse percurso, escrevem, inscrevem e deixam marcados traços de vivências, experiências, sensações e sentimentos, por meio de evocação de imagens, lembranças, associação e ressignificação desses conteúdos. Como um todo, esse processo representa o desejo e os conteúdos mnêmicos, de modo a revelar modelos, princípios, discursos e práticas pedagógicas, carregados de afeto, que se projetam no vínculo professor-aluno.
Apesar de se restringir ao levantamento de estudos desenvolvidos no âmbito de uma única instituição, o presente trabalho contribuiu para destacar a relevância da memória educativa como um dispositivo de pesquisa. O alcance e a ampliação de pesquisas que se originam no campo da articulação entre psicanálise e educação permite inferir que a escrita da memória educativa, nessa perspectiva, pode contribuir de forma original e emblemática para um novo olhar na compreensão da singularidade e na constituição da subjetividade docente. Em alinhamento com os trabalhos de Kupferet.al (2010) e Pereira e Silveira (2015) para além dos métodos e das técnicas pedagógicas, considera-se que a memória educativa pode facilitar o processo de reconciliação com a criança dentro de cada sujeito envolvido nas pesquisas e resgatar sua capacidade de criar.