SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46A arte da desaparição como experimentação tateante de pensamento: contribuições à pesquisa educacionalMapeamento das medidas de exigibilidade coletiva para garantia do direito à educação infantil no Paraná índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 12-Dic-2023

https://doi.org/10.5902/1984644444454 

Artigo Demanda Contínua

Educação em Direitos Humanos e Educação Intercultural: apontamentos e aproximações freireanas

Education in Human Rights and Intercultural Education: freirean notes and approaches

Márcia Maria Rodrigues Uchôa1  , Professora e Pesquisadora nas áreas de Currículo, Interculturalidade e Fronteiras. Pós-doutoranda
http://orcid.org/0000-0003-0939-5646

1Professora e Pesquisadora nas áreas de Currículo, Interculturalidade e Fronteiras. Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. profa.uchoa@gmail.com


RESUMO

O artigo tem como objetivo delinear as peculiaridades da Educação em Direitos Humanos e da Educação Intercultural, ao mesmo tempo em que busca estabelecer suas convergências através da pedagogia freireana. Trata-se de uma pesquisa de cunho bibliográfico, com aporte teórico em documentos da Organização das Nações Unidas - ONU (1948, 1966a, 1966b, 1993) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - Unesco (2002, 2006), dos teóricos Boaventura de Sousa Santos (2014), Vera Maria Candau (2013), Paulo Freire (1987, 1999, 2011), entre outros. A Educação em Direitos Humanos e a Educação Intercultural constituem se em um projeto educacional democrático, includente e libertador, que, materializado no currículo, aponta perspectivas para a equidade social. Espera-se que o trabalho possa contribuir para a ampliação do debate acerca de uma educação cidadã, que reconheça e valorize as diferenças e a diversidade.

Palavras-chave: Educação em Direitos Humanos; Educação Intercultural; Currículo; Pedagogia freireana

ABSTRACT

The article aims to outline the peculiarities of Education in Human Rights and Intercultural Education, at the same time that it seeks to establish their convergences through freirean Pedagogy. This is a bibliographic research, with theoretical support in documents from the United Nations - UN (1948, 1966a, 1966b, 1993) and the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - Unesco (2002, 2006), theorists Boaventura de Sousa Santos (2014), Vera Maria Candau (2013), Paulo Freire (1987, 1999, 2011), among others. Education in Human Rights and Intercultural Education constitute a democratic, inclusive and liberating educational project, which materialized in the curriculum points to perspectives for social equity. It is hoped that the work can contribute to the broadening of the debate about citizen education, which recognizes and values differences and diversity.

Keywords: Human Rights Education; Intercultural Education; Curriculum; Freirean pedagogy

Introdução

Os direitos humanos visam à garantia da dignidade humana, observados os diversos aspectos inerentes à vida em sua totalidade. Ao longo da história, vários eventos ocorridos demonstraram a preocupação com a proteção da dignidade humana, mas, foi com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, que esta pauta ganhou preocupação internacional.

A Educação em Direitos Humanos pretende o desenvolvimento de uma cultura de paz entre os diferentes povos, sociedades e culturas, o fortalecimento das instituições democráticas e a garantia da dignidade humana, considerando a vida na sua totalidade.

Analogamente, a Educação Intercultural, ao afirmar a diferença como riqueza cultural e ao valorizar o diálogo entre os diferentes sujeitos (individuais e coletivos), constitui-se em uma proposta educacional voltada para a construção de identidades plurais, para a democratização do saber e para o desenvolvimento da justiça social.

Nosso objetivo, neste trabalho, é contextualizar e caracterizar a Educação em Direitos Humanos e a Educação Intercultural, entendo-as como conquistas de processos de lutas e não como dados históricos. Evidenciaremos suas particularidades e objetivos, ao mesmo tempo em que reconhecemos, na pedagogia freireana, a intersecção entre ambos os projetos educacionais.

O artigo está dividido em cinco partes: na primeira apresentamos os Direitos Humanos na contemporaneidade e os seus marcos históricos; na segunda parte, abordamos a Educação em Direitos Humanos no cenário internacional e os seus desdobramentos no Brasil; na terceira, destacamos a Educação Intercultural, partindo do seu surgimento na América Latina e no Brasil, bem como suas demandas e sua materialização no currículo; na quarta, recorremos à pedagogia freireana, como o encontro entre a educação em direitos humanos e a educação intercultural; na parte final, explicitamos as considerações acerca das temáticas em discussão.

Os Direitos Humanos na Contemporaneidade

A Declaração dos Direitos Humanos, pactuada entre os Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU), em Paris - França, em 10 de dezembro de 1948 foi o primeiro documento que compreende direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais e traz no seu artigo 1º que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (ONU, 1948).

Casali (2018, p. 3) destaca que a Declaração Universal dos Direitos Humanos “tornou-se a pedra angular do reconhecimento do Outro na contemporaneidade”, evidenciando com isso uma preocupação com a dignidade humana.

Em 16 de dezembro de 1966, através da Resolução n.º 2.200 A (XXI), da Assembleia Geral das Nações Unidas, foram adotados o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos os documentos reforçam o compromisso dos Estados-membros em assegurar a homens e mulheres igualdade no usufruto de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos apresenta diretrizes direcionadas para a liberdade do indivíduo e proteção de violações do Estado, que incluem: direito à vida, à liberdade e à segurança do indivíduo; direito às liberdades de opinião, expressão, pensamento, consciência e religião; direito à participação política e às liberdades de associação e de reunião etc. (ONU, 1966a).

Evidencia-se que a primeira geração de Direitos Humanos tem o Estado como violador de Direitos, daí a luta da sociedade civil pelas liberdades individuais e pela proteção aos indivíduos diante das arbitrariedades e atos violentos praticados pelos órgãos estatais.

Já o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais apresenta direitos orientados para a segurança e bem-estar dos indivíduos, incluindo direitos: à educação; ao trabalho; à alimentação; à habitação; à saúde etc. (ONU, 1966b). Para que tais direitos sejam positivados é preciso que haja um esforço e comprometimento dos Estados, desempenhando ações afirmativas na vida dos indivíduos.

Este Pacto reconhece, no seu Artigo 13, o direito de toda pessoa à educação. Os Estados-Nações concordam que

(...) a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz (ONU, 1966b, p. 6).

Ao longo da história, várias agências das Nações Unidas foram criadas com o objetivo de defender os Direitos Humanos, além de organismos internacionais, dentre eles: Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco); Anistia Internacional; Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH); Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur); Serviço Paz e Justiça na América Latina (Serpaj-AL), além de outros.

No ano de 2002, a Unesco proclamou a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, reafirmando o seu compromisso com a DUDH de 1948 e reconhecendo em seu preâmbulo, a cultura como centro do debate contemporâneo sobre as identidades e:

Afirmando que o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais, Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais, (...) (UNESCO, 2002).

É preciso destacar que a luta pelo estabelecimento de direitos que visam a garantia da dignidade humana nasceu a partir de atos de barbárie e violência que marcaram a história contemporânea. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) surge em um cenário de pós-guerras, com o intuito de trazer paz a todas as nações do mundo.

A esse respeito, o autor italiano Norberto Bobbio (2004, p. 9) afirma que:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi - e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos - que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas (...) (BOBBIO, 2004, p. 9).

Boaventura de Sousa Santos (2014), por sua vez, destaca que a Declaração Universal dos Direitos Humanos deve ser vista mais como uma derrota histórica, que uma vitória da humanidade, considerando as brutalidades ocorridas nas duas grandes guerras do século XX.

Santos enfatiza que é incontestável a hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana. “No entanto, esta hegemonia convive com uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discursos de direitos humanos” (2014, p. 31).

O autor convoca-nos a buscar uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos, partindo de uma hermenêutica de “suspeita em relação aos direitos humanos tal como são convencionalmente entendidos e defendidos” (2014, p. 31), no que diz respeito às concepções dos direitos humanos, mais diretamente a sua matriz liberal e ocidental, já que a modernidade ocidental foi construída a partir de um pensamento abissal, que dividiu o mundo entre sociedades metropolitanas e coloniais, que impediam de enxergar o pensamento do outro lado da linha.

O teórico português pontua que os direitos humanos foram concebidos historicamente para vigorar do lado de cá da linha abissal, nas sociedades metropolitanas. Essa linha abissal produz exclusões radicais, que não foram eliminadas com o fim do colonialismo, mas que surgem com outras roupagens: neocolonialismo, racismo, homofobia, xenofobia etc.

(...) É, pois, fácil ser-se levado a pensar que a hegemonia de que hoje gozam os direitos humanos tem raízes mais profundas e que o caminho entre então e hoje foi um caminho linear de consagração dos direitos humanos como princípios reguladores de uma sociedade justa. (...) (SANTOS, 2014, p. 32, grifos nossos).

Sob essa ótica, o autor é contundente em defender os direitos humanos a partir de uma versão contra-hegemônica, que se fundamenta em três movimentos: 1) afirmação de novos direitos, dentre eles: direito à terra, direito à água, direito à saúde coletiva etc.; 2) convocação de diferentes conceitos de representatividade pública, desmitificando a ideia de que as minorias devem se curvar às maiorias; 3) articulação de lutas que se encontram separadas, dentre elas: luta ambiental com a luta dos povos indígenas e quilombolas, luta pelos direitos econômicos e sociais com a luta pelos direitos cívicos e políticos, luta pelos direitos individuais com a luta pelos direitos coletivos etc. (SANTOS, 2014).

Por fim, urge considerar que a pauta dos Direitos Humanos coloca o Estado numa posição central, ora como principal violador de direitos (civis e políticos), ora como o órgão responsável pela positivação dos direitos (econômicos, sociais, culturais etc.), ou seja, sendo aquele que garante os direitos humanos. Diante dessa centralidade, importa reconhecer que em sociedades marcadas pela desigualdade social e alta concentração de renda, como o são as sociedades capitalistas, o Estado tem um papel indispensável na vida dos indivíduos, sobretudo àqueles que foram excluídos e têm suas identidades negadas pelo sistema capitalista.

A Educação em Direitos Humanos

Internacionalmente, a Educação em Direitos Humanos (EDH) começou a ser discutida no ano de 1993, embora o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 tenha dedicado um artigo para a questão da educação. Entretanto, foi a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em junho de 1993, em Viena - Áustria, que resultou na aprovação da Declaração e Programa de Ação de Viena, com apresentações efetivas de práticas educacionais para a questão dos direitos humanos. Constam no documento, vários artigos, dos quais destacamos dois:

33. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que os Estados estão vinculados, conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional sobre os Direitos econômicos, Sociais e Culturais e noutros instrumentos internacionais de Direitos Humanos, a garantir que a educação se destine a reforçar o respeito pelos Direitos Humanos e liberdades fundamentais. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realça a importância de incluir a questão dos Direitos Humanos nos programas de educação e apela aos Estados para o fazerem. A educação deverá promover a compreensão, a tolerância, a paz e as relações amistosas entre as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, e encorajar o desenvolvimento de atividades das Nações Unidas na prossecução destes objetivos. Assim, a educação em matéria de Direitos Humanos e a divulgação de informação adequada, tanto teórica como prática, desempenham um papel importante na promoção e no respeito dos Direitos Humanos em relação a todos os indivíduos, sem distinção de qualquer tipo, nomeadamente de raça, sexo, língua ou religião, devendo isto ser incluído nas políticas educacionais, quer a nível nacional, quer internacional. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos observa que as limitações de recursos e a falta de adequação das instituições podem impedir a imediata concretização destes objetivos (ONU, 1993, p. 9, grifos nossos). 80. A educação em matéria de Direitos Humanos deverá incluir a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça social, conforme definidos nos instrumentos internacionais e regionais de Direitos Humanos, a fim de alcançar uma compreensão e uma consciencialização comuns, que permitam reforçar o compromisso universal em favor dos Direitos Humanos (ONU, 1993, p. 20, grifos nossos).

Nesse sentido reconhece-se com a Conferência Mundial de Viena, a importância da Educação para o desenvolvimento de uma cultura mundial de direitos humanos, pela promoção da paz, pelo debate e pelo respeito aos diferentes povos, sem distinção de qualquer natureza, ao tempo em que afirma o compromisso dos Estados em incluir nos seus programas educacionais a questão dos Direitos Humanos.

Em consequência da Declaração e Programa de Ação de Viena, a Organização das Nações Unidas instituiu a década da Educação em Direitos Humanos entre 1995 e 2004, ao término desse período lançou o Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos (PMEDH), em duas fases: a primeira de 2005 a 2009, que apresentou recomendações, referências e metas direcionadas para a Educação Básica; a segunda fase do programa, de 2010 a 2014, foi voltada ao Ensino Superior, para a formação de professores e de profissionais dos sistemas de segurança e justiça.

No PMEDH constam as seguintes implicações e concepção de uma educação em direitos humanos.

A educação em direitos humanos pode ser definida como um conjunto de atividades de educação, de capacitação e de difusão de informação, orientadas para criar uma cultura universal de direitos humanos. Uma educação integral em direitos humanos não somente proporciona conhecimentos sobre os direitos humanos e os mecanismos para protegê-los, mas que, além disso, transmite as aptidões necessárias para promover, defender e aplicar os direitos humanos na vida cotidiana. A educação em direitos humanos promove as atitudes e o comportamento necessários para que os direitos humanos de todos os membros da sociedade sejam respeitados (UNESCO, 2006, p. 6, grifos nossos).

Pautados no documento, podemos concluir que a Educação em Direitos Humanos nos remete ao cotidiano, aos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais de todos os indivíduos. Ela pretende uma educação para e pela cidadania e convoca-nos a lutar pela democracia, lidar com os conflitos decorrentes do convívio nos espaços plurais e a ter atitudes de respeito, orientadas pelo princípio da alteridade.

Os Direitos Humanos no Brasil

O debate acerca dos Direitos Humanos no Brasil é recente, começa em 1985, após os 21 anos do Regime Ditatorial Militar e tem como marco a aprovação da Constituição Federal de 1988, que firma o pacto com a DUDH (ONU, 1948), reforçando a valorização da dignidade humana.

A Constituição Cidadã de 1988 resultou da luta de vários organismos e movimentos que atuaram conjuntamente para o estabelecimento do Estado Democrático de Direitos, anulados na Ditadura Militar, período marcado por atos de violências, protagonizados pelo Estado nacional, como: torturas, mortes, desaparecimentos de presos políticos e exílio daqueles que se opuseram aos desmandos do militarismo.

Os Direitos Humanos entram na pauta das políticas do Estado brasileiro, especificamente no ano de 1995, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, que construiu uma agenda para essa discussão, criando em 1996 o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que apresentou políticas públicas para proteção e promoção dos Direitos Humanos no Brasil a curto, médio e longo prazos, para responder às graves violações dos direitos humanos praticadas pelo Estado na década de 1990, dentre elas: o Massacre do Carandiru (1992), a Chacina da Candelária (1993), o Massacre de Corumbiara (1995), o Massacre de Carajás (1996), além dos altos índices de violência contra a mulher, as populações negras periféricas e os povos indígenas.

No prefácio do PNDH consta:

Não há como conciliar democracia com as sérias injustiças sociais, as formas variadas de exclusão e as violações reiteradas aos direitos humanos que ocorrem em nosso país. A sociedade brasileira está empenhada em promover uma democracia verdadeira. O Governo tem um compromisso real com a promoção dos direitos humanos.No dia 7 de setembro, fiz um apelo a todos os brasileiros para uma mobilização ampla em favor dos direitos humanos. Criamos um Prêmio dos Direitos Humanos. E prometemos preparar um Programa Nacional dos Direitos Humanos, tal como recomendava a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, cujo Comitê de Redação foi presidido pelo Brasil. Iniciamos juntos, o Governo e a sociedade, uma caminhada para pregar os direitos humanos, como um direito de todos, para proteger os excluídos e os desamparados. Realizamos uma campanha contra a violência sexual e convidamos para um debate em Brasília as mais altas autoridades de segurança e do Judiciário dos estados. Participei pessoalmente das comemorações relativas ao terceiro centenário da morte de Zumbi. Naquela ocasião criei um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (BRASIL, 1996).

Assim como a pauta dos Direitos Humanos passou a ter preocupação internacional a partir de atos de barbárie e violência praticadas contra a humanidade, no Brasil as motivações foram as mesmas e assim permaneceram nos primeiros anos que sucederam a aprovação da Constituição Federal, ou seja, a violência produzida pelos órgãos estatais era o disparador da ação governamental, evidenciando com isso a atuação pela dimensão negativa e punitiva.

A Educação em Direitos Humanos no Brasil

A Educação em Direitos Humanos só entra efetivamente no plano das políticas públicas no país no ano de 2003, com a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, que instituiu uma política pública de Educação em Direitos Humanos, e no mesmo ano deu início ao processo de elaboração do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), com a criação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, formado por especialistas, representantes da sociedade civil, instituições públicas e privadas e organismos internacionais.

A primeira versão do PNEDH foi lançada pelo Ministério da Educação e pela Secretaria de Direitos Humanos, ainda em 2003, para orientar a implementação de políticas, programas e ações comprometidas com a cultura de respeito e promoção dos direitos humanos (BRASIL, 2007).

Em 2004, o PNEDH foi divulgado e debatido em encontros, seminários e fóruns em âmbito internacional, nacional, regional e estadual. Já em 2005, foram realizados encontros estaduais, com o objetivo de difundi-lo, que resultaram em contribuições de representantes da sociedade civil e do governo para o aperfeiçoamento e ampliação do documento. Mais de 5.000 pessoas, de 26 unidades federadas, participaram desse processo de consulta que, além de incorporar propostas para a nova versão do plano, resultou na criação de Comitês Estaduais de Educação em Direitos Humanos e na multiplicação de iniciativas e parcerias nessa área (BRASIL, 2007).

A conclusão do trabalho ocorreu em 2006, sob a responsabilidade de uma equipe de professores e alunos de graduação e pós-graduação, selecionada pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição vencedora do processo licitatório. A equipe sistematizou as contribuições recebidas dos encontros estaduais de educação em direitos humanos, apresentou-as ao Conselho Nacional de Educação em Direitos Humanos, coordenou os debates, em seminário organizado no Rio de Janeiro, e formulou uma versão preliminar do PNEDH (BRASIL, 2007).

Coube ao Comitê Nacional a análise e a revisão da versão que foi distribuída para os participantes do Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos, realizado no mês de setembro de 2006, em Brasília. A partir daí, o documento foi submetido à consulta pública via internet e posteriormente revisado e aprovado pelo Comitê.

No ano de 2007, o PNEDH foi aprovado, resultante de um esforço conjunto de vários órgãos estatais: poder executivo, organismos internacionais, instituições de educação superior e a sociedade civil organizada, tendo em vista a concretização dos direitos humanos (BRASIL, 2007).

Direcionado pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, o Estado brasileiro tem como princípio a afirmação dos direitos humanos como universais, indivisíveis e interdependentes, assim todas as políticas públicas devem considerá-lo na perspectiva da construção de uma sociedade baseada na promoção da igualdade de oportunidades e da equidade, no respeito à diversidade e na consolidação de uma cultura democrática e cidadã.

Dentre alguns dos objetivos do PNEDH, mencionamos:

a) destacar o papel estratégico da educação em direitos humanos para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito; b) enfatizar o papel dos direitos humanos na construção de uma sociedade justa, eqüitativa e democrática; c) encorajar o desenvolvimento de ações de educação em direitos humanos pelo poder público e a sociedade civil por meio de ações conjuntas; d) contribuir para a efetivação dos compromissos internacionais e nacionais com a educação em direitos humanos;

(...)

f) propor a transversalidade da educação em direitos humanos nas políticas públicas, estimulando o desenvolvimento institucional e interinstitucional das ações previstas no PNEDH nos mais diversos setores (educação, saúde, comunicação, cultura, segurança e justiça, esporte e lazer, dentre outros); g) avançar nas ações e propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) no que se refere às questões da educação em direitos humanos;

h) orientar políticas educacionais direcionadas para a constituição de uma cultura de direitos humanos; (...) (BRASIL, 2007, p. 26-27).

No referido Plano constam ações programáticas a serem executadas em cinco campos de atuação: Educação Básica; Educação Superior; Educação Não-Formal; Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança, e; Educação e Mídia. Estas ações partem do princípio de que há uma transversalidade na questão da Educação em Direitos Humanos, que ultrapassa os espaços educativos formais, entendendo que a formação de uma cultura de direitos humanos é um empreendimento coletivo promovido pela formação dos diversos setores sociais.

Os Sistemas de Segurança e de Justiça do país constituem-se como grandes violadores de direitos humanos, considerando que a dignidade humana tem sido muito negada dentro de nossas instituições carcerárias. Muitas prisões não têm mais a oferecer aos seus detentos do que condições sub-humanas, o que constitui a violação dos Direitos Humanos.

É necessário destacar também que a violência policial que se faz presente em nosso país e vigora há muito tempo, tornou-se realmente explícita durante o Regime Militar (1964-1985), onde o alvo eram aqueles que não aceitavam a forma de poder ditatorial ou questionavam os atos de seus governantes. Já na Redemocratização, entre as principais práticas violadoras de Direitos Humanos, destaca-se a permanência de índices intoleráveis de violência, o que reforça a necessidade de uma Educação em Direitos Humanos para os servidores que atuam nestes setores.

Há que se considerar ainda que a grande maioria da população brasileira não é contemplada pelos direitos humanos, considerando as situações precárias e sub humanas de moradia, nas regiões de periferia das grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro ou no Norte e Nordeste do país, onde a maioria das moradias não tem sequer saneamento básico. Outro agravamento é o índice crescente da população em situação de rua, que não tem, ao menos, onde morar. Destaca-se também como agravo aos Direitos Humanos no país, a violência doméstica, os altos índices de feminicídio, de mortes por homofobia, de violência contra a população negra nas regiões de periferia etc. Todos esses agravos corroboram para a necessidade de uma Educação em Direitos Humanos, que tenha como matriz a garantia da dignidade humana, pela universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.

A Educação em Direitos Humanos é um processo em curso no país, haja vista, que mesmo com a aprovação do PNEDH (BRASIL, 2007) e suas reformulações ao longo dos anos, ainda há uma luta para sua implementação, sobretudo, na atualidade, com a ascensão ao poder de um governo de extrema direita que possui uma pauta deliberada de oposição aos Direitos Humanos, o que se materializou com: a extinção de vários Conselhos no ano de 2019, que arrefeceu a democracia participativa nas políticas públicas e os seus discursos autoritários, negando a história e reforçando o senso comum de que “os direitos humanos é um projeto de esquerda em defesa de bandidos”. Em decorrência do nefasto cenário que vivemos no país, mais do que nunca a Educação em Direitos Humanos é uma pauta a ser lutada e defendida em todos os espaços sociais, notadamente, nos espaços educacionais, tendo em vista uma formação cidadã, que acolhe e respeita as diferenças e a diversidade, pela empatia ao Outro.

A Educação Intercultural materializada no currículo

Em conformidade com Fidel Tubino (2016), professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru e coordenador da Rede Internacional de Estudos Interculturais (Ridei), a Educação Intercultural surge na América Latina relacionada à educação bilíngue dos povos indígenas, consequentemente está envolvida por um viés linguístico e indigenista, tendo a superação dos estigmas tribais como o seu maior desafio na atualidade.

A educação intercultural, a qual é marcada pelo diálogo horizontal entre as várias culturas que permeiam o ambiente educacional, tem como ponto partida, a identificação das causas do não diálogo, ou seja, é necessário problematizar as razões que provocaram a hierarquização, a invisibilidade das populações marginalizadas e os seus papéis sociais.

A partir dessa perspectiva, o diálogo intercultural implica em reconhecer sem pré-julgar, as diversas concepções de mundo e hierarquias de valores que estão em jogo. Dessa forma, implica em reconhecer as diversas sensibilidades e espiritualidades, que pessoas, de diferentes horizontes culturais, possuem. (...)

A formação para o diálogo e a deliberação intercultural na educação devem promover nos educandos, a visibilização dos estigmas e “projeções”, a partir das quais percebem e se relacionam com o “outro”. Esse é o ponto de partida (TUBINO, 2016, p. 30, grifos do autor).

Nesse sentido, professores e alunos devem reconhecer que o legítimo diálogo intercultural pressupõe a ausência dos estigmas e a manifestação de afinidades compartilhadas, para isso é preciso evitar a folclorização das culturas, que reduz, limita e apresenta uma visão superficial das manifestações culturais, ocultando as subjetividades presentes nessas culturas (TUBINO, 2016).

Na legislação brasileira, a Educação Intercultural surge também associada à educação dos povos indígenas, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.º 9.394/96 explicita:

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias. Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. § 1º Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas. § 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos: I - fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade indígena; II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas; III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades; IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado (BRASIL, 2017, p. 49-50, grifos nossos).

Destarte, há que se ampliar as discussões acerca da Educação Intercultural no Estado nacional, a partir de políticas públicas que reconheçam e valorizem a realidade multicultural do país, o contexto de fronteira com os países sul-americanos e a miscigenação étnica como marca identitária do povo brasileiro, com desdobramentos nas práticas curriculares.

A pesquisadora Daniela Valentim coloca-se a favor da interculturalidade, pois ao tempo em que fortalece a formação de identidades dinâmicas e plurais, questiona a visão essencializada de sua constituição. Para a autora, a interculturalidade potencializa o processo de empoderamento dos sujeitos inferiorizados e marginalizados, ao mesmo tempo em que “estimula os processos de construção da autonomia num horizonte de emancipação social, de construção de sociedades onde sejam possíveis relações igualitárias entre diferentes sujeitos e atores socioculturais” (2016, p. 147).

A educação intercultural, ao abrir espaços para a manifestação das diferenças e da diversidade cultural, constitui-se em uma proposta humanitária e um caminho para a garantia de direitos humanos básicos.

Uchôa (2019) apresenta, a partir da metodologia da trama conceitual1, o Currículo em uma perspectiva de Interculturalidade, pela articulação dialética e recíproca com outros conceitos, explicitada na Figura 1.

Fonte: Uchôa (2019), p.101)

Figura 1 Trama Conceitual centrada no Currículo Intercultural  

A figura 1 traz o Currículo Intercultural como centro da explicitação esquemática, articulado a outros conceitos e significados, que explanam: demanda, objetivo, implicação, exigência, consideração e possibilidade de uma Educação Intercultural.

Assim, a perspectiva intercultural no currículo: a) requer a intraculturalidade, isto é, o adentramento na própria cultura, o conhecimento dos processos constitutivos culturais e a apropriação do arbitrário cultural, em vista do empoderamento e construção da identidade dos/as sujeitos/as socioculturais; b) objetiva o diálogo entre as culturas inseridas no contexto escolar, sob uma ótica freireana, com horizontalidade, que não subordina e nem hierarquiza os saberes; c) implica o reconhecimento da incompletude cultural, isto é, ao reconhecer que nenhuma cultura é completa e suficiente, o diálogo surge como uma estratégia de interação, conhecimento e aprendizagem mútua; d) exige a desconstrução de estigmas, que são as marcas e os rótulos depreciativos, atribuídos aos grupos socioculturais, a partir de ideias preconcebidas e que devem ser desnaturalizadas; e) considera e respeita a alteridade, pois entende que a identidade não se opõe à diferença, mas se constrói a partir dela, o Outro passa a ser compreendido como sujeito diferente, mas não inferior;

essa diferença passa a ter uma conotação positiva e a ser um elemento de troca e interação; f) possibilita a libertação dos sujeitos, a partir de um pensamento crítico que questiona, problematiza e resiste às práticas monoculturais, que historicamente predominaram no contexto educacional, ao tempo em que resgata e desoculta os saberes das culturas negadas (UCHÔA, 2019).

O Currículo pautado na Interculturalidade constitui-se em uma proposta focada na materialização de uma Educação em Direitos Humanos, pois reforça a luta pela democracia, lida com conflitos decorrentes do convívio com a pluralidade, promove a criação de atitudes de respeito e empatia ao Outro e promove a libertação dos sujeitos oprimidos.

A pedagogia freireana: o encontro da Educação em Direitos Humanos e da Educação Intercultural

Embora formalmente as discussões acerca da Educação em Direitos Humanos tenham iniciado na primeira década do século XXI no Brasil, com a ascensão de um governo popular ao poder, é importante destacar que antes disso, o educador Paulo Freire, durante o período em que esteve exilado no Chile, denunciou a educação que resulta na desumanização dos sujeitos e apresentou diretrizes de uma educação que valoriza a dignidade humana.

Sua obra “Pedagogia do Oprimido”, escrita em 1968, traz importantes contribuições para uma educação voltada à concretização dos direitos humanos. Nesta literatura, que é referência mundial, o autor denuncia o que chama de “educação bancária”, uma prática educativa antidialógica, pautada no autoritarismo e na violência. O conhecimento nessa concepção é confundido com um ato de depósito, de transferência de “quem sabe” (o educador) para “quem não sabe” (o educando), anulando a criação e estimulando a reprodução. Esse modelo de educação antidialógica, tolhe a criticidade, subsume a palavra do aluno ao programa de ensino e impede a sua tomada de consciência e libertação.

Para Freire, a desumanização, mesmo sendo um fato concreto na história, resulta de uma ordem injusta, da violência dos opressores contra os oprimidos, segundo ele: “Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, o que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro” (1987, p. 23). Ou seja, a violência nasce com a exploração e a alienação dos sujeitos pelos sistemas opressores, não são os oprimidos que a produzem, pelo contrário, são violentados quando, pela exploração e alienação, deixam de ser sujeitos de suas vidas.

Para romper com a violência e com essa ordem injusta de exploração e coisificação humana só uma educação fundada na dialogicidade, que para Freire (1987) é a essência da educação como prática de liberdade.

Para Apple, Au e Gandin (2011), Paulo Freire é a figura mais central para o desenvolvimento de uma educação crítica e libertadora, considerando que a pedagogia freireana torna professores e alunos conscientes das suas realidades e das condições reais e materiais de existência, por isso mesmo, sujeitos críticos.

McLaren (2000) também destaca o nome de Paulo Freire como expoente maior de uma educação crítica, ao ressaltar que seu trabalho contribui para que os sujeitos interroguem criticamente seus contextos sociais e traz reflexões acerca dos conceitos de educação e libertação.

Ratificando os teóricos supracitados e destacando o diálogo como ponto central da pedagogia freireana, diálogo que essencializa a humanidade e afirma a existência pela palavra pronunciada, através da problematização imbricada nesse pronunciamento que o sujeito transforma sua realidade e o mundo. O diálogo é assim o elemento primordial para o estabelecimento de uma educação crítica e libertadora.

O diálogo freireano nasce a partir do reconhecimento do ser como um sujeito incompleto e inacabado, ele é nutrido pelo amor, humildade e fé na humanidade, por via de uma relação horizontal, que converge na confiança recíproca (FREIRE, 1987). O amor não se restringe a um conceito piegas, comumente utilizado, mas corresponde a um amor pelo outro humano, pelo compromisso e responsabilidade com sua vida e causas. A humildade se manifesta pelo reconhecimento do sujeito inacabado e inconcluso e pela necessidade do aprendizado recíproco. A na humanidade resulta na vocação de ser mais, em acreditar que o ser humano pode criar, recriar e transformar sua situação concreta (FREIRE, 1987). Todos esses elementos são precípuos para a humanização, onde reside a utopia freireana.

O diálogo que é fundamentado na tríade: amor, humildade e fé proporciona um pensar crítico e verdadeiro, que se opõe à concepção de “educação bancária”, que Freire (1987) destaca ser marcada pelo silêncio, objetificação e submissão do educando ao educador. É a partir do conceito de “educação bancária”, que Freire estabelece sua crítica às teorias curriculares que supõem neutralidade educacional, ao tempo em que propõe uma educação crítica e libertadora, sedimentada por um currículo que tenha como princípio a realidade e a experiência dos educandos, em vista de um processo de ensino e aprendizagem dotado de significados e que proporcione a libertação dos sujeitos.

A experiência histórica, política, cultural e social os homens e das mulheres jamais pode se dar “virgem” do conflito entre as forças que obstaculizam a busca da assunção de si por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças que trabalham em favor daquela assunção. A formação docente que se julgue superior a essas “intrigas” não faz outra coisa senão trabalhar em favor dos obstáculos. A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado (FREIRE, 2011, p. 42-43, grifos do autor).

A educação libertadora se materializa por via de um currículo numa perspectiva intercultural, como destacado na Trama Conceitual (Figura 1), a qual segundo Candau (2013) apresenta as seguintes características: promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais em uma sociedade; concebe as culturas em contínuo processo de construção e elaboração; considera a hibridização cultural nos diferentes grupos socioculturais; as relações culturais são construídas na historicidade, destarte, estão cruzadas por questões de poder, por preconceitos e discriminações de grupos subalternos; não desvincula as questões da diferença e da desigualdade.

A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas (CANDAU, 2013, p. 23).

Para Candau e Leite (2006) a perspectiva intercultural ganha materialidade na pedagogia freireana, pois o reconhecimento do repertório cultural do educando não é tão somente uma estratégia metodológica, mas é

(...) um modo de lidar com a diferença cultural que se aproxima daquele atualmente proposto pela perspectiva multi/intercultural: mais do que um respeito distante e asséptico por essa diferença, mais do que tolerância, enfatiza-se e estimula-se a troca entre os sujeitos das relações pedagógicas. (...) (CANDAU; LEITE, 2006, p. 7).

Para compreender as particularidades da abordagem cultural em Paulo Freire, as autoras destacam que é imperioso explorar o conceito de cultura com o qual trabalha, que é vinculado a toda produção humana.

Similarmente, Candau e Russo destacam Freire como pioneiro da perspectiva intercultural, de modo que suas contribuições se constituem “uma das referências ineludíveis das buscas de construção de propostas educativas que tenham presente os diferentes contextos socioculturais e o diálogo entre diversos saberes” (2010, p. 162).

Paulo Freire tem a cultura como ponto de partida do processo educacional dos sujeitos, suas práticas pedagógicas nos Círculos de Cultura, em Angicos - Rio Grande do Norte, no ano de 1963, demonstraram que as experiências dos educandos são basilares para a sua tomada de consciência e libertação, a partir do reconhecimento enquanto sujeito histórico e social e das suas condições existenciais.

Assim, temos em Freire (1999) que sem a conscientização é impossível uma formação ética libertadora, daí a importância de o educador proporcionar o deslocamento da consciência ingênua do sujeito para uma consciência ético-crítica, a partir do seu contexto e mudando sua própria realidade.

Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático e permeável, em regra. Tanto mais democrático, quanto mais ligado às condições de sua circunstância. Tanto menos experiências democráticas que exigem dele o conhecimento crítico de sua realidade, pela participação nela, pela sua intimidade com ela, quanto mais superposto a essa realidade e inclinado a formas ingênuas de encará-la. A formas ingênuas de percebê-las. A formas verbosas de representá-la. Quanto menos criticidade em nós, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente os assuntos (FREIRE, 1999, p. 95-96).

O ato pedagógico que se constrói na dialogicidade e no despertar de uma consciência crítica, originária dos próprios oprimidos, materializa-se em uma práxis de transformação, destarte, de libertação dos sujeitos.

Pela conscientização, transformação e libertação dos sujeitos, temos em Freire o encontro de uma educação democrática e cidadã, por isso mesmo, de uma Educação em Direitos Humanos com uma Educação Intercultural, que se converge em um currículo intercultural e se apresenta como uma proposta que rompe e transcende a colonialidade histórica impregnada nas sociedades latino-americanas, que hierarquiza e subordina o poder e o saber.

Considerações finais

Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade,e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo

(MELLO, 1964).

O poeta amazonense Thiago de Mello, em 1964, publicou o poema “Os Estatutos do Homem”, durante o período em que esteve exilado no Chile, em consequência da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Essa narrativa, que expressa os desejos do poeta, remete-nos a pensar em ideais democráticos de liberdade e justiça, pelo seu conteúdo, mas também em leis e decretos, pela sua forma.

A obra poética traz consigo leveza e estética singulares, propícia ao estudo de temáticas sérias e pontuais, como a que nos propomos discutir neste texto, a Educação em Direitos Humanos e a Educação Intercultural, interseccionada na pedagogia freireana, haja vista que o desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos, voltada para o exercício da cidadania, de respeito às diferenças e à diversidade cultural, exige o desenvolvimento da empatia.

A Educação em Direitos Humanos pauta-se na afirmação dos direitos humanos como indivisíveis e interdependentes, em vista da construção de uma sociedade baseada na equidade social, no respeito à diversidade e na consolidação de uma cultura democrática e cidadã.

A Educação Intercultural, em similitude, ao propor o diálogo horizontal entre as diversas culturas e afirmar o valor positivo das diferenças, constitui-se em uma proposta humanitária e um caminho para a garantia de direitos humanos básicos.

Por conseguinte, a pedagogia freireana, que agrega ambas as pautas supracitadas, converge-se em um projeto formativo humano, que reverbera na transformação social, pela tomada de consciência e libertação dos sujeitos, enquanto seres históricos e sociais.

Por fim, a luta por uma educação democrática e inclusiva, pautada na concretização dos direitos humanos e na interculturalidade curricular, deve fazer parte de um empreendimento coletivo, uma vez que abre perspectivas para fazer avançar a justiça social, ao considerar e respeitar a alteridade e promover a libertação dos sujeitos.

Referências

APPLE, Michael; AU, Wayne; GANDIN, Luís Armando. O mapeamento da educação crítica. In: APPLE, Michael; AU, Wayne.; GANDIN, Luís Armando (Orgs.). Educação crítica: análise internacional. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 14-32. [ Links ]

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. [ Links ]

BRASIL. Decreto n.º 1.904, de 13 de maio de 1996. 1996. Institui o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH. 1996. Disponível em: Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1996/decreto-1904-13-maio-1996-431671-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: 14 maio 2020. [ Links ]

BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Unesco, 2007. [ Links ]

BRASIL. LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017. [ Links ]

CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria (Orgs.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 13-37. [ Links ]

CANDAU, Vera Maria; LEITE, Miriam S. Diálogos entre diferença e educação. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 121-39. [ Links ]

CANDAU, Vera Maria; RUSSO, Kelly. Interculturalidade e educação na América Latina: uma construção plural, original e complexa. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, vol. 10, n. 29, p. 151-69, jan./abr., 2010. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/3076 . Acesso em: 10 jul. 2017. [ Links ]

CASALI, Alípio. Direitos humanos e diversidade cultural: implicações curriculares. R. Educ. Pública 549-572, Cuiabá, v. 25 n. 65/2, p., maio/ago. 2018. Disponível em: Disponível em: http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/view/6883 . Acesso em: 11 set. 2019. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Educação como Prática de Liberdade. 23. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. [ Links ]

MELLO, Thiago de. Os estatutos do homem. 1964. Disponível em: Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/12844/os-estatutos-do-homem . Acesso em: 18 maio 2020. [ Links ]

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: Disponível em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf . Acesso em: 26 mar. 2018. [ Links ]

ONU. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. 1966a. Disponível em: Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Pol%C3%ADticos.pdf . Acesso em: 4 out. 2019. [ Links ]

ONU. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 1966b. Disponível em: Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20Econ%C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf . Acesso em: 4 out. 2019. [ Links ]

ONU. Declaração e Programa de Ação de Viena. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. 1993. Disponível em: Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1993%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20Ac%C3%A7%C3%A3o%20adoptado%20pela%20Confer%C3%AAncia%20Mundial%20de%20Viena%20sobre%20Direitos%20Humanos%20em%20junho%20de%201993.pdf . Acesso em: 6 maio 2020. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos: ilusões e desafios. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUI, Marilena. Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2014. p. 31-85. [ Links ]

SAUL, Ana Maria; SAUL, Alexandre. Referenciais freireanos: o projeto político pedagógico e a formação de educadores. 2014. Disponível em: Disponível em: http://eadconsultoria.moodlelivre.com/file.php/1/palestras/ArtigoReferenciaisFreireanosParaPPP.pdf . Acesso em: 08 maio 2017. [ Links ]

TUBINO, Fidel. Porque a formação cidadã é necessária na educação intercultural. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016. p. 22-36. [ Links ]

UCHÔA, Márcia Maria Rodrigues Uchôa. Currículo Intercultural na Fronteira: um estudo sobre a Política e as Práticas de Currículo na fronteira Brasil/Bolívia do estado de Rondônia. Orientador: Alípio Márcio Dias Casali. 2019. 163f. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019. Disponível em: Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22278 . Acesso em: 18 maio 2020. [ Links ]

UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. 2002. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf . Acesso em: 28 mar. 2018. [ Links ]

UNESCO. Plano de ação - Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos. Paris: Unesco, 2006. [ Links ]

VALENTIM, Daniela F. D. Educação intercultural crítica e ação afirmativa: avanços e desafios. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016. p. 144-158. [ Links ]

11 A trama conceitual é uma proposta metodológica empregada por Ana Maria Saul e Alexandre Saul (2014) a partir da articulação de conceitos freireanos. Ela é trabalhada na Cátedra Paulo Freire, da PUC-SP desde o ano de 2001, sob a coordenação da professora Ana Maria Saul. A trama consiste numa explicitação esquemática de articulações vinculadas a um conceito central, como ponto norteador de uma reflexão.

Recebido: 22 de Maio de 2020; Aceito: 13 de Outubro de 2020; Publicado: 30 de Setembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons