Introdução
Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão (ADORNO, 2003, p.117).
O termo globalização faz parte do vocabulário das pessoas e das instituições e tem sido utilizado com frequência ou para designar processos que ultrapassam as fronteiras nacionais ou para representar o progresso científico e tecnológico atual, ou, ainda, como sinônimo de mundialização, sociedade global, era da globalização, universalização, sociedade em rede (URQUIZA; RIBEIRO, 2018). Contudo, a globalização não é um fenômeno recente, como apontado por Contel e Lima (2007), ela remonta aos séculos XV e XVI quando o mundo tornou-se global com as grandes navegações, embora tenha se consolidado nas últimas décadas do século XX. Ainda, segunda essa mesma autora, é um fenômeno complexo e não deve ser reduzido somente às suas dimensões econômicas.
Estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo (LIMA, 2007, p.43).
Essa mesma visão é compartilhada por Urquiza e Ribeiro (2018), que incluem a dimensão ecológica nesse conceito, além dos aspectos políticos, culturais, econômicos e sociais que cada vez mais intensificam o vínculo entre os atores internacionais, ressaltam a interconexão das informações e acontecimentos e a interdependência que se vai criando entre os países cêntricos e aqueles periféricos. Conceito polêmico e aplicado às mais diversas áreas, a globalização caracteriza-se pela interdependência crescente entre as várias regiões do mundo resultante do rápido aumento do fluxo de bens, serviços, capital, pessoas e informação (LAUS, 2012). Assim, a globalização pode ser interpretada por diferentes prismas, seja pelo campo ideológico ou de disciplinas específicas, que trazem noções de homogeneização e hibridismo de culturas (CELANO; GUEDES, 2014).
À luz desses confrontos, podemos também considerar que o conceito de globalização pode ser, na verdade, um conjunto de diferentes processos de globalização e, em última instância, de diferentes globalizações por vezes contraditórias. O que geralmente chamamos "globalização" consiste, de fato, em diferentes conjuntos de relações sociais que dão origem a diferentes fenômenos da globalização (CELANO; GUEDES, 2014, p.48).
A globalização e as transformações políticas e econômicas das últimas décadas que trouxeram mudanças no campo econômico e social também influenciaram de maneira especial a educação e, em particular, o ensino superior. As universidades, como espaço de conhecimento, tiveram e continuam a ter um papel relevante nas transformações tecnológicas que propiciaram uma melhoria nas comunicações e na velocidade com que as informações circulam pelo mundo globalizado, aproximando os povos e gerando um acelerado processo de internacionalização. Nogueira, Aguiar e Ramos (2008) reforçam que a globalização serviu como força motivadora da internacionalização do conhecimento por meio da abertura dos espaços e fronteiras educacionais. Nesses dois processos, embora possam ser vistos como relacionados, existem distanciamentos e aproximações entre ambos. Para alguns autores são considerados até como fenômenos antagônicos: enquanto a globalização é impulsionada para a busca do crescimento econômico, a internacionalização promove a reciprocidade entre pessoas e ideias a partir do reconhecimento e aceitação das diferenças culturais (GUO; CHAE, 2011).A internacionalização implica desenvolver atividades além-fronteiras, mas seu conceito é objeto de muita discussão. Por conseguinte, a internacionalização estaria relacionada à disseminação de novos paradigmas e conceitos que, supostamente, dariam maior eficácia às políticas educacionais (AKKARI, 2011 apud LIBÂNEO, 2012). A educação superior, inserida num contexto sócio-histórico e econômico mundial ímpar, além de desempenhar suas especificidades com relação ao ensino, pesquisa e extensão de qualidade, precisa enfrentar os desafios e demandas locais num contexto global (MOROSINI, 2014).
A crescente importância do conhecimento e a valorização do capital intelectual dos indivíduos, a revolução da informação e dos meios de comunicação e a responsabilidade na criação e na manutenção do entendimento entre os povos e do espírito de solidariedade com os países menos desenvolvidos passam a ser questões permanentemente discutidas nos fóruns internacionais e foram claramente apresentadas na Conferência Mundial sobre Educação Superior realizada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em Paris, no ano de 1998 (STALLIVIERI, 2009, p. 13).
Na Conferência Mundial sobre Educação Superior realizada pela UNESCO, em 1998, citada por Stallivieri (2009), foi preconizado que as instituições de ensino superior deveriam direcionar seus esforços para desenvolver uma educação com qualidade e incentivar a cooperação internacional que esteja a serviço da ordem mundial, que aspire à construção de uma sociedade melhor, mais justa, equitativa, tolerante e solidária. Assim, as instituições de ensino superior são direcionadas a desenvolver, em seus estudantes, uma consciência global e a formar pessoas que saibam atuar em diferentes ambientes pluri e multiculturais, entrando na rotina das universidades temas como: mobilidade acadêmica internacional, proficiência em línguas estrangeiras e comunicação intercultural (GONÇALVES; STALLIVIERI, 2015). A internacionalização já está institucionalizada no ensino superior em graus variados em programas de intercâmbio acadêmico, em políticas nacionais, nas estruturas de ensino e investigação, as quais ganharam forças ganhou força a partir do desenvolvimento econômico-cultural do século XX (SILVA, 2018). A pesquisa sempre teve como pano de fundo o conhecimento alimentado pela mobilidade entre os acadêmicos e as parcerias internacionais sempre foram buscadas como fator positivo ao desenvolvimento da instituição universitária.
Esse aspecto internacional das universidades estava inerente desde sua origem, na Idade Média, com as escolas europeias. Essas instituições eram constituídas por professores e estudantes de diferentes regiões e países e tinham como objetivo a busca pelo conhecimento (STALLIVIERI, 2009). Além da aquisição do conhecimento, as tradições humanistas dessas escolas, de cunho internacional, também estavam centradas na formação do caráter (GACEL-ÁVILA, 2005). Outra concepção que se tem de universidade é de um local que propicia os avanços científicos e tecnológicos e a efetiva integração dos povos, respeitando as diferenças e as especificidades de cada nação, suas culturas e seus valores (BATISTA, 2009; SENA et al., 2014).
Partindo desse pressuposto e em concordância com Carvalho e Gonçalves Neto (2004), a internacionalização do ensino superior deveria ter como papel promover o respeito pelas diferenças e o reconhecimento da identidade cultural. Além disso, como apontada por Stallivieri (2009), a internacionalização é um agente facilitador do estabelecimento de redes de professores pelo mundo e pode atuar na melhoria da qualidade da pesquisa e da extensão universitária, por meio de diversos processos de cooperação. No sentido de complementar o papel positivo da internacionalização, Zamberlan et al. (2009) ressaltam que ações nesse sentido podem incentivar a cultura solidária institucional, dar relevância à docência e contribuir para abrir oportunidades de trabalho para os egressos. Ainda, segundo os mesmos autores, a internacionalização favorece a construção e a socialização do conhecimento além-fronteiras. “Essa mesma construção é multifacetária e não se processa de maneira idêntica em nenhuma parte do mundo” (ZAMBERLAN et al., 2009, p.24).
Essa visão positiva da internacionalização e sua relação com a melhoria da qualidade do ensino e pesquisa também é abordada por Sena et al. (2014). Segundo esses autores, a internacionalização da educação superior deve estar fundamentada na ideia do valor universal do conhecimento e da formação. Sua efetividade ocorre a partir de diversas formas de cooperação entre instituições, pesquisadores, professores e estudantes. Sena et al. (2014) salientam também que as trocas de experiências acadêmicas tendem a gerar capital humano e cultural mais qualificado.
Outro ponto que aparece nos discursos que apoiam a internacionalização do ensino superior é a sua capacidade de promover o multiculturalismo, por meio da interação constante de pessoas de origens étnicas e culturais distintas. Esse tem sido um aspecto ressaltado pela UNESCO e discutido por Lima e Maranhão (2011), que colocam as instituições de ensino como o epicentro das transformações sociais, criando condições para o desenvolvimento dos países que, em última análise, poderiam trazer uma vida mais igualitária para todos. Nesse panorama, a cooperação educacional é valorizada principalmente por estar envolvida com a formação de capital humano, ação fundamental para fortalecer as instituições envolvidas, em especial as dos países em desenvolvimento (AVEIRO, 2015).
Para os países em desenvolvimento, a cooperação é elemento essencial para sua inserção internacional. Nas palavras do ex-chanceler, Antônio Patriota, a cooperação internacional não é um fim em si mesmo. Por trás dos números e das metodologias aqui apresentados, estão nações e vidas humanas em busca de desenvolvimento econômico e social, com reflexos positivos sobre as sociedades e sua inserção na comunidade internacional (AVEIRO, 2015, p.90).
Entendendo que a sociedade vive em um mundo cada vez mais globalizado, a construção de uma política de internacionalização para a educação superior deve contemplar uma gama de enfoques no contexto socioeconômico da nação e das tendências globais, como a formação de profissionais mais qualificados e capazes de atuar em qualquer parte do mundo, em diferentes ambientes, que tenham fluência linguística, que sejam tolerantes e respeitem a diversidade e outras culturas, e que consigam ter flexibilidade para enfrentar situações adversas, além de compartilhar os avanços científico e tecnológico (STALLIVIERI, 2009; GONÇALVES; STALLIVIERI, 2015; MIRANDA; STALLIVIERI, 2017; STALLIVIERI, 2017).
A partir dos trabalhos de Knight (2003), uma das principais estudiosas da área, tem-se adotado o conceito de internacionalização do ensino superior como um processo que ocorre em nível nacional, setorial e institucional, no qual se integra uma dimensão internacional, intercultural ou global nos propósitos, funções e oferta de educação pós-secundária. Essa autora também preconizou os fatores que justificam a internacionalização do ensino superior, como exemplo, a mobilidade dos estudantes e professores; a troca de experiências culturais; o aumento da cooperação e da colaboração internacional nos processos de docência e pesquisa possibilitando a melhoria dos padrões de qualidade acadêmicos; o aprimoramento dos currículos e a integração continental passam a constar na pauta das instituições de ensino superior; e o aumento da diversidade de estudantes nos cursos (KNIGHT, 2005).
Outros autores têm apontado e ampliado o leque de fatores que justificam a internacionalização das IES. Zamberlan et al. (2009, p.31) ressaltam a possibilidade de cooperação entre as universidades, desenvolvendo programas com dupla diplomação; o surgimento de universidades corporativas, implementadas nas ou pelas empresas; educação à distância, impulsionada pelo desenvolvimento das inovações tecnológicas e, numa postura bem otimista, a cooperação entre países pelos novos conhecimentos, que permitiria a diminuição das diferenças entre nações e a diminuição das diferenças entre as nações pela interdependência que se desenvolve em razão das tecnologias da informação e da educação.
Knight (2005 apud Pessoni, 2018, p.97) também abordou as razões que impulsionam a internacionalização do ensino superior classificando-as em quatro grupos, descritos a seguir:
1. Motivos políticos - envolve segurança nacional, promoção da paz e compreensão mútua entre nações, formação de identidade nacional e regional.
2. Motivos econômicos - que abrangem a busca por crescimento econômico e aumento da competitividade, o desejo de atender às mudanças no mercado de trabalho, incentivos financeiros e geração de receita adicional.
3. Motivos socioculturais - visam ao desenvolvimento de cidadania, desenvolvimento comunitário, promoção de entendimento intercultural e formação de uma identidade cultural nacional.
4. Motivos acadêmicos - levam à inclusão da dimensão internacional no ensino e na pesquisa, à busca por melhoria da qualidade acadêmica, à tentativa de conquistar padrões e status internacionais, à promoção da ampliação dos horizontes acadêmicos e ao desenvolvimento da própria IES (Instituições de Ensino Superior).
Para Stallivieri (2017), a internacionalização deve ser inserida em todos os ambientes das instituições de ensino superior ampliando o tripé: ensino, pesquisa e extensão. A internacionalização não é mais uma questão além da vida acadêmica, deve estar no âmbito das políticas e decisões estratégicas dos conselhos institucionais superiores. Ela deixa de ser uma opção e se transforma em uma meta a ser alcançada, com razões evidentes para isso (STALLIVIERI, 2017, p.19).
Assim, essa autora amplia as razões para a internacionalização do ensino superior levantadas por Knight (2005), considerando também um aspecto mais mercadológico.
A necessidade de ganhos financeiros e o aumento da margem de lucro são indicadores confiáveis de boas razões para a internacionalização das instituições de ensino superior, especialmente para aqueles que são, por definição, exclusivamente escolas privadas, com fins lucrativos. Em um mercado de educação altamente competitivo, estes podem ser identificados não apenas como boas razões para buscar uma vantagem competitiva, mas também considerados adequados para a aceitação diferencial dos estudantes (STALLIVIERI, 2017, p.20).
Além do aspecto econômico, a autora também destaca que a projeção nacional e internacional que uma IES obtém com a internacionalização podem alavancar o desenvolvimento regional onde a instituição está inserida e, em última análise, o próprio país.
Uma vez que um país pode contar com instituições de ensino superior internacionalizadas, “certamente irá apontar para níveis mais altos de desenvolvimento, o crescimento de sua economia, a expansão de sua projeção intelectual, maior participação ativa e participação nos fóruns globais, a melhoria da importância do papel dos pesquisadores no cenário global” (STALLIVIERI, 2017, p.20). A reputação das Instituições de Ensino Superior, com ênfase a sua competência internacional já havia sido apontada por Knight (2005), mas tem aparecido com mais força em trabalhos recentes. Fang (2012) também tem observado que, dependendo da atuação principal da universidade, o enfoque na internacionalização poderá ser direcionado para os motivos acadêmicos, caso das instituições voltadas, principalmente, à pesquisa ou por motivos econômicos, caso das IES voltadas ao ensino, possibilitando uma competição exitosa no oferecimento dos serviços educacionais e na captação de alunos.
As políticas e a cultura organizacional das IES devem ser readequadas para incorporar a dimensão da internacionalização. Essa ação não é exclusiva do gestor (reitor), mas sim de todos os colaboradores que devem estar informados, convencidos e articulados para essa ação (GACEL-ÁVILA, 2005). As instituições de ensino utilizam inúmeras estratégias para incorporar a dimensão internacional nos seus processos, conforme elencado por Pessoni (2018, p.97), a saber: mobilidade de estudantes, docentes e pesquisadores; Programas de colaboração científica e tecnológica internacional; presença de estrangeiros e estudantes-convênios num determinado campus; consultorias internacionais; internacionalização do currículo; modalidade de educação à distância; estudo de idiomas; aberturas de novas unidades no exterior (filiais ou franquias).
Dados recentes sobre a implementação de políticas de internacionalização nas IES foram apresentadas na IV Edição do IAU Global Survey sobre internacionalização do ensino superior (IAU 4th Global Survey, 2014 ). A partir de questionários online, 1.336 instituições de ensino superior (sendo 114 na África, 164 na Ásia e Pacífico, 604 na Europa, 141 na América Latina e Caribe, 60 no Oriente Médio e 253 na América do Norte), localizadas em 131 países, levantaram informações sobre o desenvolvimento da internacionalização do ensino superior além da sua importância, das atividades e das prioridades deste processo; os valores e princípios, bem como os potenciais benefícios e riscos dessa tendência para as instituições e para a sociedade. Com base nesse relatório foram identificados os principais resultados, apresentados no quadro 1.
Fonte: Elaborado pela autora a partir do Relatório da IAU - 4º. Edição do IAU Global Survey International Association of Universities - 2014
Os resultados apresentados no quadro 1 corroboram as informações relatadas anteriormente, que a internacionalização já se encontra incorporada nas instituições de ensino superior e que a preocupação com a formação dos discentes é um dos focos principais nas políticas institucionais. Essa questão também já havia sido discutida por Mückenberger e Miura (2015), que mencionam uma posição mais humanista da internacionalização, focada na formação de docentes e discentes para atuarem em um mundo multicultural, incentivando uma atitude proativa para participação em projetos de colaboração com instituições de diferentes países e a mobilidade internacional. Segundo esses autores (e outros citados no artigo), a internacionalização tende a valorizar os cidadãos (profissionais), uma vez que eles poderão interagir e compreender as pessoas de outras culturas, que concebem o mundo de formas diferentes, com outros sentimentos e emoções. Além disso, Morosini e Ustárroz (2016) destacam que diante da crescente necessidade de se educar para a cidadania global e de oferecer aos estudantes uma experiência universitária internacional, as IES se veem obrigadas a cada vez mais desenvolverem políticas e estratégias institucionais, nas quais o processo de internacionalização também esteja inserido nas atividades de ensino e nas práticas docentes. Segundo Stallivieri (2017), esse é um dos principais desafios para a educação e para os gestores das IES:
É evidente que um dos desafios significativos para as instituições de ensino superior para os educadores e para os líderes que dirigem instituições educacionais é definir como os professores, estudantes e pesquisadores podem desenvolver uma consciência global. Mais além, como promover o desenvolvimento de habilidades de comunicação intercultural, aprender sobre as culturas de outros países, melhorar as habilidades para trabalhar em ambientes multiculturais e transformar-se em pessoas internacionais, preparadas para os desafios futuros (STALLIVIERI, 2017, p.18).
A colaboração internacional em pesquisa foi indicada por 24% dos entrevistados como uma das atividades mais importante da internacionalização (IAU, 2014). Deve-se ter em mente que os acordos de cooperação por si só não são suficientes. A assinatura de acordos não é garantia de desenvolvimento de projetos em colaboração. Nesse particular, o envolvimento do pesquisador (docente e/ou discente) e suas relações interpessoais são fundamentais para efetivação da pesquisa ou de ações acadêmicas entre as diferentes instituições (DUARTE et al., 2012). Esse fato provavelmente explica o alto índice de pesquisadores/docentes trabalhando no exterior e o envolvimento desses profissionais nos processos de internacionalização. Com relação à política de internacionalização das IES tem-se acordo à necessidade de fortalecimento de redes de pesquisa e produção compartilhada do conhecimento, ressaltadas por Morosini e Corte (2018):
A internacionalização de uma instituição de ensino superior não está relacionada, somente, à realização de atividades de intercâmbio, participação em eventos internacionais como congressos, seminários, entre outros. É preciso avançar para que a IES adote uma política de internacionalização voltada para elementos de sinergia entre o ensino, a pesquisa e a extensão, reconhecendo as potencialidades do país de origem e dos países parceiros nos processos de cooperação internacional (MOROSINI; CORTE, 2018, p.114).
Os processos de internacionalização também têm proporcionado uma reflexão crítica por parte de diferentes autores, que abordam os aspectos de uma sociedade contemporânea e capitalista e suas influências na educação (PESSONI, 2018). A crítica sobre a internacionalização também aparece nos dados levantados com as IES quando se referem à mercantilização de educação como um dos riscos potenciais mais significativos para a sociedade (IAU, 2014) e reforça as observações de Celano e Guedes (2014), que apontam que no cenário caracterizado pela globalização econômica, financeira e comercial, a internacionalização da educação encontra respaldo dos organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio, que visam à abertura de novos mercados e as taxas de lucros. Nesse contexto, a internacionalização da educação se aproxima cada vez mais de um mecanismo mercadológico, considerando a educação como serviço e se distancia das propostas de cooperação bilateral (LIMA; CONTEL, 2011). Para contextualizar, a educação foi categorizada como um serviço e regulamentada pela OMC - Organização Mundial do Comércio como apontada por Morosini (2006). Além da inclusão da educação nas regras do GATs (Acordo Geral sobre Comércio e Serviços) abarcadas também pela OMC.
Com base nas regras da OMC, a educação passa a ser alvo de reformulação conceitual, se constituindo em objeto de disputa por parte dos países-membros. Nessa perspectiva, a educação é concebida como um serviço como outro qualquer, passível de ser regulado pela lógica do lucro e da competição (BORGES, 2009, p. 86).
Ainda com base nos resultados obtidos pela IAC (2014), os entrevistados norte-americanos identificam como risco para a internacionalização o foco excessivo no recrutamento de estudantes universitários que pagam taxas. Esse aspecto negativo da internacionalização já havia sido sinalizado por Altbach e Knight (2007), que verificaram que a busca pelo lucro impulsionava a internacionalização das instituições de ensino, em particular, as IES privadas ou que formam conglomerados educacionais mundiais. Ainda, segundo esses autores, alguns países utilizam a mobilidade estudantil para propósito da obtenção de recursos financeiros, sendo essa prática considerada como capitalismo acadêmico. Nesse sentido, Mello e Dias (2011) abordam a dualidade de concepção da educação:
Esta realidade provoca uma tensão permanente entre duas concepções da educação: a que persiste em acompanhar os objetivos tradicionais da educação - formação de cidadãos, educação como instrumento de promoção social - e outra, ao contrário, que, estimulando a competição, serve para promover a venda de produtos educacionais (MELLO; DIAS, 2011, p. 420).
Destarte, tem-se considerado que a internacionalização da educação superior não se resume à mobilidade de estudantes, docentes e pesquisadores motivados pela busca de novos conhecimentos e experiências, mas também pode ser vista como um elemento da globalização, permitindo a movimentação de milhares de dólares em todo o mundo, contribuindo, portanto, para uma dinâmica na economia mundial (BEZERRA, 2017). Assim, duas formas de educação se destacam: a educação transnacional ou à distância: nesse caso os alunos estão localizados em um país diferente daquele onde a instituição está alocada; e a modalidade empresarial, que está relacionada com a compra total ou parcial de IES em outros países por uma instituição educacional que atua no mercado internacional e, assim, abre a possibilidade de oferecer programas presenciais ou à distância em outros países que não na sede (WILKINS; HUBMAN, 2012; MÜCKENBERGER; MIURA, 2015). Na lógica do capital, o ensino superior passou a ser tratado como produto (como outro qualquer), em um mercado dinâmico, competitivo e certificado por instrumentos de avaliação. E a universidade, dada à ênfase da sociedade do conhecimento, como a sua principal geradora (SANTOS, 2011). Esses aspectos também foram abordados por Franca e Padilla (2016):
É fundamental reconhecer que o processo de internacionalização do ensino superior atual dá-se de forma mais acelerada e tem como base não somente o entendimento da universalização do conhecimento, mas sim, a possibilidade de comercialização da educação. As estratégias de internacionalização postas em prática pelas instituições de ensino superior justificam-se como sendo táticas para responder e adaptar-se aos desafios da globalização. Intercâmbios de discentes e docentes para outros países, projetos de pesquisas internacionais, acordos de cooperação acadêmica, internacionalização dos currículos, publicação em revistas internacionais, promoção de cursos e estabelecimento de campi virtual no estrangeiro são alguns exemplos (FRANCA; PADILLA, 2016, p.60).
Essa visão antagônica da educação, provocada pela internacionalização, também já havia sido ressaltada por Lima e Maranhão (2009), ao se acreditar que a internacionalização iria promover a pluralidade cultural e o desenvolvimento de currículos mais críticos. Ao contrário, tem-se verificado que ela promove a hegemonia, não se desvinculando de um sistema político neoliberal, aspecto também discutido por Morosini (2014):
Estamos diante de uma bipolaridade, de um lado o modelo tradicional de uma educação superior voltada ao bem social, na qual a ciência e a tecnologia estão orientadas para o desenvolvimento científico, para a promoção da cultura e do serviço à comunidade e onde a gestão institucional prioriza o acadêmico sem controle da produção. Do outro o modelo tipo ideal neoliberal de uma universidade orientada ao bem individual e espaço de realização pessoal, satisfazendo os perfis do mercado de trabalho, centrada na transferência de tecnologia demandada pelo setor produtivo e pela prestação de serviços ao setor estatal e com gestão priorizando a eficiência e o autofinanciamento (MOROSINI, 2014, p.387).
Outro aspecto negativo da internacionalização da educação é discutido por Lima e Maranhão (2009, 2011). Segundo essas autoras, a mobilidade acadêmica, como expoente da internacionalização, favorece o domínio cultural, uma vez que esse processo está diretamente ligado às hierarquias geopolíticas e econômicas internacionais.
Dessa forma a solidariedade acadêmica vem sendo substituída pela competição por estudantes solvíveis, que se mostram importantes recursos materiais e humanos para as instituições de ensino superior. A atração de estudantes internacionais passa a representar divisas, seja pela imposição de taxas escolares, despesas que os estudantes (por meio de bolsas de estudo ou investimento proveniente de suas respectivas famílias) precisam arcar (transporte, habitação, alimentação, saúde, lazer etc.) durante a temporada de estudo no exterior, e principalmente pelo potencial de promover o país de acolhimento (língua, cultura, interesses políticos e econômicos etc.) no país de origem (LIMA; MARANHÃO, 2009, p. 588).
Por esse viés, a internacionalização da educação superior passa a assumir características de um processo estratégico ligado à reestruturação do poder (ZAMBERLAM et al., 2009). Os processos de internacionalização como reprodutora das desigualdades e assimetrias sociais e como um projeto dos países desenvolvidos para disseminar suas ideologias também foram discutidos por Marrara e Rodrigues (2009) e Lima e Maranhão (2009). Esses autores descrevem os processos de internacionalização a partir de dois conceitos: a internacionalização ativa e a passiva. Na internacionalização ativa, as instituições de ensino recebem os recursos humanos e desenvolvem pesquisas, mediante políticas de atração de alunos, professores e pesquisadores visitantes e de publicação de artigos em seus veículos de divulgação, além de definir e divulgar os procedimentos burocráticos para a participação dos diferentes agentes nas suas atividades acadêmico-científicas. Na passiva, a internacionalização ocorre a partir da mobilidade de pesquisadores, docentes e discentes para as instituições estrangeiras ou pela publicação das pesquisas dos seus atores em veículos de divulgação externos.
Consequentemente, a internacionalização reproduz a desigualdade entre os países desenvolvidos, que possuem grande influência no cenário político-econômico internacional e países pouco desenvolvidos e subdesenvolvidos, com pouca influência internacional. Por seu turno, a internacionalização ativa pode ser praticada por poucos países (centrais), com condições de exercer influência sobre o sistema mundial de educação. A internacionalização passiva fica restrita aos países periféricos que se submetem a interesses comerciais reforçando o histórico desequilíbrio existente entre os países do Norte e do Sul (PESSONI, 2018).
Em síntese, como observaram Chaves e Castro (2016, p.123), a internacionalização da educação, embora aparentemente o interesse seja acadêmico, voltado para o intercâmbio de conhecimentos e da cooperação, os processos de internacionalização da educação podem estar sujeitos às relações econômicas de dominação em dois sentidos: no recrutamento de estudantes dispostos a pagar taxas associadas à políticas internacionais de competitividade econômica, favorecendo o desenvolvimento geral das exportações; na dominação do saber, cuja relação se dá por meio de subordinação do conhecimento, de países com alto grau de desenvolvimento das tecnologias de informação, pela venda dos “pacotes educativos” aos países periféricos.
Percebe-se, então, uma complexidade nas relações de internacionalização e uma possibilidade de diferentes leituras, de um lado um processo que promove o respeito e a cooperação entre os povos, como um dos aspectos mais positivos. Do outro lado, como uma face negativa, se mostra como uma nova forma de polarização global.
Nessa concepção, as oportunidades e os riscos da internacionalização da educação superior dependem da habilidade dos países em desenvolver políticas e regulações para integrar as políticas mundiais dentro do sistema nacional de educação superior, o qual poderá ser capaz de cumprir ou não com as metas sociais, culturais e econômicas. As políticas nacionais adotadas determinam as ações e os programas a serem destinados aos seus cidadãos e evidenciam seus objetivos sociais: inclusão ou exclusão; liberdade ou opressão; submissão ou emancipação (GUIMARÃES-IOSIF; ZARDO, 2015, p. 46).
Assim, é neste contexto que se inserem os programas de mobilidade acadêmica, uma das principais formas de internacionalização do ensino superior, alimentado pela valorização do conhecimento, pela ideia disseminada por políticos, investidores, empresas e organizações internacionais como OCDE que ter uma experiência internacional aumentam o capital cultural, a empregabilidade e o sucesso profissional (IORIO, 2014). Os relatórios da OCDE têm demonstrado uma intensificação da internacionalização, com aumento significativo em 2015 alcançando uma marca de 4,6 milhões de indivíduos que estudam fora do seu país. Os países que mais recebem estudantes entre os que participam da OCDE são os EUA (30%), Reino Unido (14%) e Austrália (14%), com um aumento estimado de 6,4% entre os anos de 2013 e 2015. Já os que mais enviam são China (20%), Índia (7%) e Alemanha (4%) (OECD, 2017). Esses dados confirmam a disparidade na distribuição do número de estudantes internacionais. Ainda, com base no relatório da OCDE, os países de língua inglesa são os mais procurados pelos estudantes. De forma geral, os países têm reduzido as barreiras para a migração com fins educacionais e implementado diferentes programas de financiamento estudantil, o que pode explicar o aumento da mobilidade acadêmica. Ao mesmo tempo, fatores como transporte - o acesso e a diminuição dos custos dos voos internacionais, tecnológicos - a difusão da Internet e das redes sociais e culturais - como uso do inglês como língua de trabalho, também têm contribuído para tornar a mobilidade internacional mais acessível.
Não se pode desconsiderar o impacto econômico decorrente da mobilidade acadêmica, uma vez que os países que possuem a maior captação de alunos estão localizados geralmente no Hemisfério Norte e fazem parte do G7, a exemplo dos EUA e o Reino Unido. Percebe-se um paralelo entre poder político e econômico e atração acadêmica (PESSONI, 2018).
Com base nos dados da Association of International Educators - NAFSA (NAFSA, 2017 ), os estudantes internacionais que estudam em faculdades e universidades dos EUA contribuíram com US$ 36,9 bilhões para a economia desse país no ano de 2016. A título de comparação e para exemplificar os valores envolvidos com a mobilidade acadêmica, o Brasil investiu R$ 5,8 bilhões (~US$ 1,56 bilhões) em faturas a universidades estrangeiras que receberam estudantes brasileiros entre 2011 a 2016 com o Programa de intercâmbio estudantil Ciências sem fronteira (CsF) (MARQUES, 2017). Esses dados corroboram a visão mercantilista da mobilidade acadêmica (AZEVEDO, 2015):
Neste sentido, o que se tem chamado de internacionalização da educação superior é, em grande medida, transnacionalização da educação superior, pois a mobilidade de estudantes tem se fundado, majoritamente, no comércio de serviços de educação terciária, o que contribui para a formação de um mercado mundial de educação superior e menos para a construção de um campo social global de educação superior. Porém, sempre resta, nos campos de educação superior e em outros campos sociais, lutar para que a educação, a cultura, a ciência e o conhecimento sejam tratados como bens a serem solidariamente compartilhados ou como bens públicos, conforme a preconiza a Conferência Regional de Educação Superior - CRES/2008 (AZEVEDO, 2015, p. 74).
Outro aspecto que contribui para essa polarização e que reforça o histórico desequilíbrio existente entre os países do Norte e do Sul é a baixa capacidade instalada de recursos materiais e humanos e desenvolvimento acadêmico mais recente, ou com sistemas de ensino e pesquisa menos consolidados que os países periféricos possuem para oferecer serviços educacionais, continuando como agentes exportadores de estudantes/pesquisadores reforçando a dominação acadêmica e dependência cultural (SILVA, 2018).
As políticas de internacionalização formuladas por governos e universidades tendem a reforçar determinado sistema de ensino já hegemônico, apesar do discurso de valoração da multiculturalidade. Elas funcionam como ferramentas da indústria cultural, em favor da manutenção do status quo. Isso pode ser encontrado nos programas de internacionalização orientados pela padronização e não pela diversificação de experiências educacionais (LIMA; MARANHÃO, 2011, p. 590).
Nesse panorama, ficam cada vez mais distantes as razões e justificativas apontadas por Knight (2005) para se desenvolver a internacionalização no ensino superior: o desenvolvimento sociocultural ou compreensão mútua e a organização com base nos arranjos multiculturais. Em trabalhos mais recentes, essa autora enumera alguns mitos e contradições com relação à internacionalização como a ideia da internacionalização como substituta da qualidade do ensino ou o número de acordos institucionais e de certificação internacional como indicadores do nível de internacionalização da IES. Apresentam algumas considerações sobre a internacionalização que, sendo um processo que se adapta aos interesses institucionais, além dos benefícios da cooperação entre as instituições envolvidas, pode também trazer riscos, como “títulos fraudulentos oferecidos por fábricas de diplomas ou a ascensão de indústrias de certificação que aprovam operações questionáveis” (KNIGHT, 2012, p.1).
Percebe-se, então, que a internacionalização é um processo complexo, que envolve diferentes agentes, governos, agências nacionais e internacionais, instituições públicas e privadas e recursos humanos, com motivações distintas, não se restringindo aos aspectos científicos e acadêmicos, mas estreitamente relacionado com as demandas da sociedade, seja no nível social, cultural ou econômico. Além disso, o número de estudantes em mobilidade acadêmica reforça a importância da internacionalização, embora esse processo deve-se tornar mais igualitário tendo, assim, acordo com Maués e Bastos (2017), como a forma que a internacionalização que deveria se inserir nos processos de mobilidade estudantil e na educação superior:
É importante que se continue a implementar políticas públicas para que o ensino superior se internacionalize, numa concepção de interculturalidade, de solidariedade e de repartição. Mas para tal, é preciso considerar a importância do conhecimento como um vetor fundamental para a libertação humana e não como uma força produtiva a serviço do mercado (MAUÉS; BASTOS, 2017, p.431).
Foi apresentado, até o momento, um panorama teórico sobre a internacionalização e a dualidade envolvida em torno desse tema: de um lado os aspectos positivos como a cooperação, o compartilhamento de conhecimentos científicos e tecnológicos e o respeito à diversidade cultural. Do outro, os aspectos negativos, da dominação cultural e econômica e do mercantilismo educacional. Foi proposta, também, uma visão ideal de internacionalização para que as universidades se tornem comunidades de espírito internacional. No próximo item será abordada a internacionalização nas instituições brasileiras.
Internacionalização das Instituições Brasileiras de Ensino e a Mobilidade Acadêmica
A peregrinação acadêmica, partir em busca do conhecimento, é um fenômeno antigo e faz parte da história da universidade. Esse movimento pode ser considerado como um dos primeiros indícios de internacionalização das IES (DUARTE et al., 2012). Segundo dados da Education Indicators in Focus (2013 ), o número de estudantes matriculados em curso de graduação fora do seu país de origem aumentou de 1,3 milhões em 1990 para 4,3 milhões em 2011, e as expectativas eram de crescimento contínuo mesmo diante da crise mundial.
Em 2013, a Comissão Europeia lançou um comunicado intitulado “O Ensino Superior Europeu no Mundo”, com o intuito de promover o desenvolvimento de estratégias de internacionalização que permitam à Europa responder aos desafios globais de forma mais eficiente e assim concretizar os objetivos da estratégia Europa 2020 (CARVALHO; MAIA, 2014). Diante desse panorama global, não é de se surpreender que no Brasil, no Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014), com vigência por 10 (dez) anos, a contar da data de publicação, a internacionalização da educação seja uma das estratégias contempladas:
Estratégia 12.12 - consolidar e ampliar programas e ações de incentivo à mobilidade estudantil e docente em cursos de graduação e pós-graduação, em âmbito nacional e internacional, tendo em vista o enriquecimento da formação de nível superior (PNE, Lei nº 13.005, 25/6/2014).
A internacionalização, também no Brasil, é um fenômeno antigo. Entre os anos de 1970 e 2000, de acordo com Mazza (2009), 16.000 brasileiros, das áreas das Ciências Humanas, Exatas e Biológicas, oriundos de diferentes Estados e instituições, realizaram parte da sua formação profissional com bolsa de estudos em outros países obtendo esses dados a partir das listas nominativas de bolsistas no exterior, fornecidas pelas agências de fomento: CAPES - agência ligada ao Ministério da Educação; o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) - órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia; e a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) - ligada ao governo do Estado de São Paulo. A partir de 2001, com as “parcerias universitárias” e “consórcios de universidades”, o país acelerou a inserção internacional das universidades brasileiras, originando programas bilaterais que financiam projetos conjuntos de pesquisa (IORIO; FERREIRA, 2013).
A evolução do número de estudantes no exterior, de 1999 a 2013, conforme dados publicados pelo Instituto de Estatística, da UNESCO (UNESCO-Institute for Statistics ) está apresentada na Figura 1.
Em 2013, havia 32.051 estudantes brasileiros estudando no exterior, na educação superior (Fig.1). Um aumento de 97% no número de alunos em mobilidade no período analisado. Também, segundo dados da UNESCO (Institute for Statistics ), os dez principais países de destino são: Estados Unidos (12.631), Portugal (5.218), França (4.032), Alemanha (2.520), Reino Unido (2.184), Espanha (1.346), Austrália (962), Canadá (915), Itália (877) e Cuba (674).
Com base no Relatório CAPES (2015, p.52), no âmbito dos programas de ações de cooperação e fomento à mobilidade acadêmica internacional (ação orçamentária 0487) foram beneficiados, ao longo de 2015, 7.499 bolsistas. Os principais países de destino foram França (1.061), Portugal (1.090), Estados Unidos (674), Espanha (504) e Reino Unido (434). Nesse caso, incluindo alunos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado).
Em 2011, com a implantação do programa “Ciência sem Fronteiras”, que visava à mobilidade para universidades estrangeiras de estudantes, professores e pesquisadores mediante bolsa de estudo, houve uma expansão muito maior (FERREIRA, 2012. p. 459). Criado pelo Decreto nº 7.642, de 13 de dezembro de 2011, o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF) tinha por objetivo geral, nos termos do art.1º do documento legal, “propiciar a formação e capacitação de pessoas com elevada qualificação em universidades, instituições de educação profissional e tecnológica e centros de pesquisa estrangeiros de excelência”. O CsF foi colocado sob a responsabilidade da CAPES e do CNPq, agências governamentais que já dispunham de experiência na concessão de bolsas de pós-graduação no exterior, além de bolsas de diversas naturezas no Brasil. O número e a distribuição de bolsas concedidas no Programa CsF de 2011 a 2014 estão apresentados na Figura 2.
No âmbito do Programa CsF, 13 chamadas de graduação sanduíche, lançadas em 2014, tiveram o desenvolvimento das atividades dos bolsistas no exterior ao longo de 2015. Em 2015, a CAPES manteve 35.223 bolsas ativas no exterior no âmbito do referido Programa (CAPES, 2015, p.51).
Pode-se verificar que há mais de 100 mil brasileiros estudando no exterior, com algum tipo de bolsa de estudo financiada pelo governo (Fig. 2 a,b). Esse número pode chegar a mais de 250 mil, conforme Maura Leão, presidente da Associação Brasileira de Organizações de Viagens Educacionais e Culturais (Belta ). Essa associação reúne as principais instituições brasileiras que trabalham nas áreas de cursos, estágios e intercâmbio no exterior.
O custo para estudar fora do país é elevado, principalmente para estudantes que não possuem financiamento. A título de comparação, na Figura 3 estão apresentados os valores aproximados de anuidades das principais universidades do mundo, segundo avaliação do World University Rankings by Subject (2016).
Os dados apresentados na Figura 3 podem dar uma indicação dos valores gastos pelo governo brasileiro com o Programa CsF. Segundo a análise efetuada por Marques (2017), entre os anos de 2011 e 2017 foi aplicado um montante de R$ 13,2 bilhões para a concessão de 104 mil bolsas. Do total desse recurso, R$ 6,4 bilhões foram recursos investidos em bolsas e R$ 5,9 bilhões foram faturas pagas às universidades parceiras. Esse valor deve chegar a aproximadamente R$ 15 bilhões até 2020, quando se encerram todas as bolsas vigentes. O Programa CsF foi encerrado em abril de 2017. Com o término desse programa também se observou decréscimo significativo das bolsas de intercâmbio para estudantes de graduação, principalmente nas universidades públicas. Para o vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Carlos Roberto Cury, essa redução é um desfecho cruel da crise econômica.
A cooperação internacional e a mobilidade acadêmica são aspectos estratégicos do desenvolvimento de um país, motivo de serem componentes de fundamental importância das agências de fomento, a exemplo da CAPES.
A internacionalização é encorajada de uma maneira ampla, não apenas através da mobilidade de discentes e docentes, mas também na troca de ideias, na integração da dimensão internacional ao ensino, pesquisa e extensão, funções das instituições de ensino superior (CAPES, 2017, p.6).
Esse fato reforça ainda mais a necessidade de uma avaliação rigorosa dos programas de internacionalização financiados pelo governo e seus impactos no desenvolvimento tecnológico, de serviços e inovações.
Considerações finais
Este artigo trouxe, no seu escopo, um cenário sobre a internacionalização, em especial, a internacionalização do ensino superior. Mostrou também alguns dados sobre a mobilidade acadêmica no Brasil e os valores envolvidos nesses processos, tendo como exemplo um dos programas recentes mais conhecidos - Ciência sem fronteira (CsF). Partindo dos conceitos sobre internacionalização ativa e passiva apresentados nesse trabalho e com as informações mostradas sobre o CsF, pode-se perceber que o país tem assumido muito mais uma política passiva de internacionalização, uma vez que o investimento estava centrado na mobilidade de docentes e discentes para o exterior, do que o inverso.
Em consequência, há uma nova pressão para a diferenciação no mercado de trabalho, revestido pela globalização: o estudante/profissional precisa ter experiência internacional e, de preferência, um diploma de uma universidade estrangeira. As famílias com melhor poder aquisitivo conseguem financiar essa formação diferenciada. Os jovens provenientes das classes sociais menos favorecidas ficam em defasagem nesse quesito.
Se de forma direta as administrações anteriores beneficiaram instituições internacionais com o investimento em políticas de financiamento aos alunos no exterior, sem uma devida contrapartida por parte dos discentes, na administração atual, a fonte parece ter secado. Gastou-se muito e mal, e o investimento que passa a ser quase nulo no atual governo, agravado ainda mais pela questão da pandemia do Covid-19, indica que o fosso entre aqueles que podem estudar no exterior e os que não podem mais tende a ser ampliado.
As instituições de ensino precisam ficar atentas para não se orientarem somente pelas demandas de mercado incluídos nas políticas de internacionalização e deixar que o ensino e a pesquisa cedam seus espaços para os interesses econômicos em detrimento de uma formação mais humanista, democrática e ética. As verbas públicas não podem deixar de ser canalizadas como investimento para programas de intercâmbio, mas há de se prestar atenção se os alunos serão os principais beneficiados e que esses, após capacitarem-se em outros países, façam a devolutiva em forma de conhecimento e ensino para a sociedade que os banca por meio de impostos.