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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 09-Abr-2024

https://doi.org/10.5902/1984644443454 

Artigo Demanda Contínua

Prolegômenos de uma Teoria Enunciativa da Educação Popular

Prolegomena of an Enunciative Theory of Popular Education

Marcos Angelus Miranda de Alcantara1  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0003-0276-3397

Erenildo João Carlos2  , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0001-7272-2748

1Professor doutor na Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, Paraíba, Brasil. marcos84angelus@gmail.com

2Professor doutor na Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, Paraíba, Brasil. erenildojc@gmail.com


RESUMO

A Educação Popular (EP) é uma pedagogia que aparece na teia social da América Latina. Do ponto de vista da experiência histórica, seus princípios sustentam os trabalhos de base nos anos 1960 e 1970, conforme Freire (1987), Brandão (2006) e Carrillo (2013) afirmam. Este escrito compartilha alguns resultados da tese de doutoramento Elementos para uma Teoria Enunciativa da Educação Popular. Seu objetivo geral consiste em introduzir elementos sígnicos para formulação de uma teoria enunciativa da EP. No plano teórico/metodológico a análise toma por base algumas das ideias de Michel Foucault (2008) e está centrada nos elementos constitutivos em um conjunto de enunciados da EP. Dessa análise resulta a ideia de que o discurso atravessa a camada linguística e sócio-histórica desses enunciados. Verifica-se que o discurso analisado produz modos de falar, de articular e de escrever sobre EP, identificáveis mediante uma série de signos, vinculados à EP. Os resultados apontam, portanto, que o discurso da EP na América Latina se assenta em uma série de princípios éticos, políticos e epistemológicos que lhe conferem um modo de existência particular.

Palavras-chave: Educação Popular; Análise Arqueológica do Discurso; Teoria Enunciativa

ABSTRACT

Popular Education (PE) is a pedagogy that appears on the social web of Latin America. From the point of view of historical experience, its principles underpin the grassroots work in the 1960s and 1970s, as Freire (1987), Brandão (2006) and Carrillo (2013) state. This paper shares some results of the doctoral thesis Elements for an Enunciative Theory of Popular Education. Its general aim is to introduce syntactic elements for the formulation of an enunciative theory of PE. At the theoretical/methodological level, the analysis is based on some of Michel Foucault's ideas (2008) and is focused on the constitutive elements in a set of PE statements. From this analysis comes the idea that discourse cuts across the linguistic and socio historical layer of these utterances. The discourse analysed produces ways of talking, articulating and writing about PE, identifiable through a series of signs linked to PE. The results point out, therefore, that the discourse of PE in Latin America is based on a series of ethical, political and epistemological principles that give it a particular mode of existence.

Keywords: Popular Education; Archaeological Discourse Analysis; Enunciative Theory

Introdução

Reconhecemos a Educação Popular como uma pedagogia articulada por princípios que visam o estabelecimento de uma sociedade menos injusta, a partir da superação de contradições que gerem relações de opressão, conforme enuncia Freire (1987), em sua Pedagogia do Oprimido. Do ponto de vista da experiência histórica, esses princípios se sustentam no trabalho de libertação através da educação nos anos 1960 e 1970 na América Latina, conforme Brandão (2006) e Carrillo (2013). Política e historicamente, há também um vínculo com as lutas pela democratização do saber escolar, por exemplo, nos 1930, no contexto nacional de industrialização brasileira, descritas em Saviani (1999) e Brandão (2006). Contudo, consideremos que suas raízes mais profundas estejam no processo geral de desenvolvimento do saber humano, em tempos remotos, mencionados em Pinto (1979) e Brandão (2006).

O debate sobre a construção de novos paradigmas emancipadores na Educação Popular tem sido levantado pelo Conselho de Educação da América Latina e do Caribe. Em revisão teórica, Carrillo (2013) identifica alguns avanços a partir do início da primeira década do Século XXI, que apontam para a necessidade de atualizar as categorias de análise para melhor visualizar esse campo educacional. A Educação Popular, no âmbito do pensamento latino-americano brasileiro, conceitualmente, pode ser definida como uma pedagogia “(…) a partir da qual os coletivos sociais leem e se relacionam com a realidade e na qual as subjetividades são primordiais” (CARRILLO, 2013, p. 15). Para contribuir com essa construção teórica precisamos ampliar o debate corrente além do pensamento marxiano ou fenomenológico. Daí, a proposta deste escrito de introdução a uma teoria enunciativa da Educação Popular.

Esta pesquisa tomou como pressuposto a existência de uma relação entre a Educação Popular e linguagem. Isto implica dizer que sua dimensão discursiva é o centro da preocupação. Inspirada nos estudos arqueológicos foucaultianos, ganha centralidade nesta análise a dimensão enunciativa do discurso. Não se trata de negar a dimensão histórica, pedagógica e política da Educação Popular, mas de tomar por objeto a sua dimensão enunciativa, a partir dos campos de domínio que permitem a coexistência dos signos enunciativos educação e popular.

Nesta perspectiva, aqui são apresentados alguns resultados relativos à tese de doutoramento Elementos para uma Teoria enunciativa da Educação Popular. Trata-se de uma pesquisa que buscou identificar o contributo da Análise Arqueológica do Discurso ao campo investigativo desta pedagogia. Sua especificidade incide precisamente em um olhar particularizado à dimensão do enunciado. Em suma, o texto discorre sobre o modo como os signos enunciativos estão dispostos e atravessa as camadas linguísticas e sócio-histórica do discurso que constitui modos de se falar sobre Educação Popular. Portanto, o objetivo geral deste escrito consiste em introduzir elementos sígnicos para formulação de uma teoria enunciativa da educação popular.

A Análise Arqueológica do Discurso como abordagem teórico metodológica para escavação dos signos enunciativos da Educação Popular

Michel Foucault (2008), em sua arqueologia, utiliza essa ideia de função para definir a noção de enunciado e apresenta as seguintes características da função enunciativa: 1) impossibilidade de uma descrição formal, semântica ou lógica; 2) relação não convencional entre enunciado e sujeito - não há autores, mas lugares a ocupar, posições que o indivíduo pode ou não assumir; 3) necessidade de um domínio associado ou campo de domínio; e 4) existência material, que também vai determinar sua identidade.

Se o signo enunciativo está presente em um texto jurídico, em uma obra literária, em um tratado filosófico, em um relatório de pesquisa ou em uma obra de arte, isso vai determinar a materialidade ou o status desse enunciado. Conforme assevera Foucault (2008), é necessário, no entanto, estarmos atentos ao regime de materialidade repetível dos enunciados. Em relação a essa existência material dessas funções enunciativas, consultamos textos que acionam discursos políticos (Manifesto Comunista, 1848; Declaração Universal dos Direitos da Mulher e da Cidadã, 1791), textos que acionam discursos filosóficos (Emílio, 1995; A República, 1997) e textos que acionam discursos jurídicos (Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, 2013; LDB 9394/06; Constituição Federal de 1988).

Ao nos ocuparmos da dimensão enunciativa dos signos constitutivos da Educação Popular, buscamos analisar seus correlatos, que segundo Foucault (2008, p. 102) trata-se de “(…) um conjunto de domínios em que tais objetos podem aparecer e em que tais relações podem ser assinaladas”. O correlato de um enunciado é diferente do correlato de uma frase, de uma proposição ou de um ato de fala (FOUCAULT, 2008).

Enquanto uma frase tem, no sentido ou no significado, seus correlatos, a proposição os tem nos referentes; os atos de fala têm na ação, e o correlato de um enunciado será sempre outro enunciado, desde que este possa estabelecer com aquele um tipo de relação peculiar. Assim como uma frase se define pela existência de sentido, o correlato é um elemento fundamental para a própria existência do enunciado.

Outro aspecto constitutivo dos signos enunciativos da Educação Popular que analisamos foi seu conjunto de regularidades. Segundo Foucault (2008), trata-se de uma espécie de autorização, de regulação, portanto, um jogo no qual são estabelecidas uma série de regras. Nessa perspectiva arqueológica, a regularidade não pode ser confundida com recorrência nem com a frequência de dado acontecimento, neste caso, do aparecimento de um enunciado em certa ordem discursiva.

Do ponto de vista procedimental da análise, não importa, por exemplo, a quantidade de vezes que determinada frase, imagem, expressão, palavra-chave ou ideia apareça em determinado documento consultado. O enunciado não terá uma maior ou menor regularidade por causa de sua repetição. O aparecimento frequente não é causa, no máximo, podemos dizer que se trata de um efeito. Nessa perspectiva, “renunciaremos, pois, a ver no discurso um fenômeno de expressão - a tradução verbal de uma síntese realizada em algum outro lugar; nele buscaremos

antes um campo de regularidade (…)”, conforme assevera Foucault (2008, p. 61).

Significados, significantes e referentes como camadas constitutivas dos signos enunciativos da Educação Popular

Mediante a formulação da tese de que a Análise Arqueológica do Discurso pode contribuir com elementos para a constituição de uma teoria enunciativa da Educação Popular foi preciso um processo arqueológico de análise discursiva do enunciado, que, por definição, é uma série de signos aos quais podemos atribuir “(…) modalidade de existência própria (…)” (FOUCAULT, 2008, p. 121). Essa particularidade que permite a existência enunciativa do signo não se dá como estrutura nem como partícula atômica, mas como função.

Escavar o enunciado, pressupõe percorrer a série sígnica Educação Popular. Isso implica identificar os significantes (marcas empíricas, gráficas, sonoras, pictóricas, nesse caso específico, a palavra escrita e falada), os significados (as ideias mobilizadas mediante o significante) e os referentes (objetos concretos que a relação significado/significante aciona) (SAUSSURE, 2006), (PEIRCE, 2008),

(FREGE, 2010) e (SANTAELLA, 2012).

O signo enunciativo da educação

Ao tomarmos como ponto de partida o elemento significante educação, verificamos que esta palavra foi dicionarizada tanto na língua portuguesa quanto na castelhana, pelo menos desde o Século XVII. Em língua francesa (éduquer), está dicionarizada, no mínimo, desde o Século XIV. Ainda assim, seu uso formal era raro até o Século XVIII. Até o ano de 1900, o Dictionnaire Général não a classificava como pertencente à norma-padrão da língua. Seu emprego começa a ser disseminado no romance Emílio, do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1762). Contudo, não podemos perder de vista que determinadas “(...) idéias de Progresso, implícitas no Iluminismo, difundidas pela Encyclopédie e, em última instância, associadas à Revolução Francesa, traduzem-se e se condensam (sic) no verbo educar” (BARBOSA-LIMA et al, 2006, p. 241).

Do ponto de vista etimológico, identificamos algumas variantes latinas que dão origem ao significante em questão: educationem, educatio, educare, educere. Todas conservam a partícula educ, que na língua latina é constituída pelos seguintes radicais: e - duc. O primeiro diz respeito ao prefixo ex. Ele expressa as ideias de exterioridade, de externalidade, de saída, enfim de estar do lado de fora. Em sua origem, este significante está articulado à noção de um lugar determinado, que é o lugar externo, o lado de fora, o oposto ao interior. Esse interior poderia ser um determinado lugar de origem, o clã, a família, o indivíduo em sua subjetividade etc. Esse lugar é externo a cada um desses outros lugares e ao mesmo tempo passaria por eles.

É igualmente necessária atenção para o segundo elemento componente deste significante: o radical duc, que exprime, em língua latina, pelo menos, três noções: levar, conduzir e trazer. Embora, por terem em comum a noção de movimento, possam ser considerados sinônimos, nessa análise, essa relação sinonímia é dispensável. Isto porque a primeira noção opera o movimento para longe (levar), retira o objeto de sua posição inicial, leva-o e retira da presença daqueles que ficam, que continuam em repouso. É uma noção que considera o ponto de partida, a imagem de uma estação ferroviária com a locomotiva partindo, levando pessoas, animais, bagagens etc. A segunda noção expressa o movimento em processo (conduzir). É a imagem no ponto de vista de quem embarcou e está sendo conduzido pela locomotiva. A terceira configura-se como um movimento, de certo modo, oposto (trazer) e não considera o que fica nem o que vai, mas o que aguarda. É a chegada da locomotiva trazendo os passageiros para a estação! Portanto, há um movimento que leva, outro que conduz e um terceiro que traz. Todos eles articulados ao prefixo ex, levam, conduzem e/ou trazem alguma coisa para o exterior.

Em termos de significado, a análise prossegue tomando como ponto de partida essa mesma dimensão etimológica do significante. Esse movimento de condução para o exterior (educ) correlaciona significados como os que são mencionados na alegoria da caverna, de Platão em A República. Trata-se de um movimento que leva, que conduz e que traz para o lado de fora. Esse diálogo socrático constrói a imagem mental de uma caverna com prisioneiros que passaram a vida inteira imobilizados e acorrentados em seu interior. E como estavam com as cabeças voltadas para os fundos da caverna, confundiam as sombras com os objetos reais que estavam do lado de fora e eram projetadas no interior por causa da luz que atravessava sua entrada/saída. Nesse diálogo entre Sócrates e Glauco, é cogitada a possibilidade de um dos prisioneiros ser libertado, mesmo que à força, e conduzido para o exterior da caverna.

Sócrates pensou nas possibilidades dos efeitos dessa condução ao exterior (educ). O então ex-prisioneiro, inicialmente, sofreria: teria sua visão ofuscada pela luz do sol, sentiria medo, ficaria confuso e pensaria que a realidade era o que estava no interior da caverna. Porém, em pouco tempo, seus olhos se acostumariam com a iluminação abundante do lado de fora, ele ficaria mais tranquilo, começaria a observar com mais calma os objetos e se daria conta de que, dentro da caverna, só tinha acesso à penumbra, às projeções e à reverberação dos ruídos produzidos no exterior da gruta. Nesse momento, conjecturam Sócrates e Glauco, ele pensaria na situação dos outros prisioneiros que ainda estavam no interior da caverna.

O significado constitutivo do signo educação, ou seja, as ideias, as abstrações e os esquemas conceituais que são mobilizados mediante o significante de que já falamos, estão vinculadas à noção de apropriação do conhecimento, com uma série de desdobramentos, desde o caráter propriamente gnosiológico até o político. A apropriação de conhecimentos é um requisito fundamental à constituição do homem moderno, à ascensão social, à participação política, enfim, ao desenvolvimento local, regional, nacional e global. Significados! Enquanto no significante está impresso o movimento do êxodo, o significado agrega o momento de ruptura, de esforço, de cegueira momentânea, de ofuscamento, de redirecionamento do olhar para o objeto real, enfim, de tomada de consciência da distinção entre o objeto e sua projeção, entre o que é real e o que é sua representação. Uma série de significados pode ser atribuída ao signo educação: condução para a tomada de consciência da realidade; capacidade de distinguir o real da ilusão e condução do ser para os objetos reais. Grande parte desses significados pressupõe um movimento de exteriorização e desloca o indivíduo de seu isolamento subjetivo.

O ângulo sígnico correspondente ao elemento referente está correlacionado ao acontecimento histórico, concreto e sociocultural do signo educação. Embora exista uma relação sígnica entre seu significante e seu significado, discutir sobre a dimensão referencial desse signo pressupõe uma incursão no próprio fenômeno educativo. Ou seja, seu acontecimento situado no âmbito da relação humana, que carrega uma historicidade, uma politicidade e uma intencionalidade individual e social.

Cambi (1999) situa bem o fenômeno educacional no âmbito da história, no mundo antigo, na época medieval, na época moderna como também na época contemporânea. Esse referente, no mundo antigo, caracterizou-se pela cultura helenística, pela noção de paideia, pela formação como contato direto com o mundo (condução para o lado de fora da caverna, redirecionamento do olhar para os objetos reais e distinção de suas representações/sombras e reverbs).

A educação, como um fenômeno no mundo antigo, estava situada do Oriente ao Mediterrâneo. Na Grécia, era destinada à formação do cidadão para viver na pólis. Enquanto isso, em Roma, embora houvesse uma influência da cultura grega, a educação ocupava a função social de formação bélica para expandir o Império. Ainda no mundo antigo, o cristianismo emerge como religião que traz uma revolução educativa, seja com o Novo Testamento, com o nascimento da Igreja, mesmo com as concepções legatárias do pensamento grego, concepções de família etc. Estavam abertas as portas da Época Medieval.

Na Idade Média, a educação era caracterizada de modo distinto do período anterior. Embora esse período seja marcado por conceitos como idade das trevas, de regressão da civilização, de retorno às condições de vida do tipo arcaico, caracterizado por migrações e pela expansão da pobreza, Cambi (1999, p. 142) assevera que essas afirmativas não resistem a uma análise historiográfica mais cuidadosa. Nesse sentido, os séculos medievais são definidos como “(...) época da formação da Europa cristã e da gestação dos prerrequisitos do homem moderno (formação da consciência individual; do empenho produtivo; da identidade supranacional etc.) (…)”.

O referente educação é também caracterizado no contexto medieval. É uma educação articulada às instituições eclesiásticas e que lança o gérmen da instituição escolar que temos até hoje em dia: um professor que ensina, os alunos que aprendem, a lição a ser dada e tomada, o exercício a ser praticado, a arguição proferida, o disciplinamento a ser aplicado, entre outras. A educação medieval também é caracterizada pela articulação entre fé e razão. É nesse entremeio que a escolástica emerge com base cristã e filosófica da educação. Enquanto na Alta Idade Média a educação é caracteristicamente feudal, na Baixa Idade Média, ela é urbana. Os pregadores, os artistas e, até a literatura educam. Pelo menos na parte ocidental da Europa, educação e cristianização eram dimensões inseparáveis de um mesmo processo (CAMBI, 1999).

A chegada da Época Moderna também pode ser caracterizada pelo início das grandes navegações, ou seja, a saída da Europa. Quem leva, quem conduz e quem traz a civilização europeia para o lado de fora do velho continente não é mais somente o saber explicativo, contemplativo, humanista, filosófico e escolástico. Embora todo esse saber vá na bagagem como um instrumental de colonização e dominação dos povos do novo mundo, quem opera esse movimento (educ) para fora da Europa é o saber técnico-científico. E, apesar de ter começado a nascer nesse período, é gestado antes, e isso possibilita as navegações em todos os seus aspectos de saberes - cartográfico, naval, matemático, astronômico, meteorológico, físico etc.

Um dos primeiros laços desatados na modernidade é o que unia a religião ao Estado. A educação e a cristianização deixam de ser dimensões inseparáveis de um só movimento, e o saber do humanismo filosófico vai cedendo lugar ao técnico científico. Se, no período anterior, a finalidade da educação era de redirecionar o olhar para o objeto e para a distinção entre o real e suas sombras, na modernidade, visa um saber explicativo e vale-se do saber com base em métodos, por meio dos quais se possa não só explicar, mas também, operar tecnologicamente sobre a natureza. A noção de domínio não está atrelada somente à de explicação, mas de manipulação do mundo para “(...) transformá-lo em proveito do homem (como dirão Bacon e Galileu)” (CAMBI, 1999, p. 196).

É, sobretudo, a partir do reconhecimento da infância como fase imatura da vida humana, que a relação entre família e escola se rearticula na modernidade e passa a ser uma relação privada. Há, de certa maneira, um movimento inverso de preservar a criança no seio familiar. Isto é, rompe com a noção de conduzir para o lado de fora. A educação, como elemento referente do signo, movimenta-se na história e, nesse período moderno, em sentido inverso. Sua institucionalização é uma espécie de preservação da infância em espaços controlados pedagogicamente. Em suma, o referente rompe com o significante educ, ao conservar, fazer permanecer, enfim, preservar o educando dentro da instituição.

A partir da Revolução Francesa (1789) que alguns historiadores demarcam o final da Modernidade e o início de uma época contemporânea, porque, em geral, há uma ruptura na forma absolutista de se conceberem os Estados centrados nas figuras dos monarcas, em que se passa a entender o Estado como coisa pública, enfim, como repúblicas. Isso, de certo modo, favorece o entendimento de um Estado de direito, materializado em convenções e declarações internacionais que afirmam ser a condição humana algo suficiente para se reconhecer o indivíduo como portador de direitos. É nesse novo contexto em que o referente educação desloca sua centralidade dos métodos e conteúdos para os sujeitos educativos. “Esses novos sujeitos foram três: a criança, a mulher e o deficiente. Seguidos depois - mas em épocas mais próximas de nós - pelas etnias e pelas minorias culturais” (CAMBI, 1999, p. 386).

No caso específico do Brasil, a educação é institucionalizada algumas vezes, no período imperial e também com a República no século XX. Mas, contemporaneamente com a Constituição Federal de 1988 e com a LDB 9394/96. De modo geral, esse marco define dois níveis educacionais: o básico e o superior. A Educação Básica é constituída pela Educação Infantil, pelo Ensino Fundamental (séries iniciais e finais) e pelo Ensino Médio. Essas etapas se desdobram em modalidades descritas na forma da Lei: Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial, Educação Escolar Indígena, Educação do Campo, Educação Quilombola e Educação Profissional.

Em algumas situações, essas modalidades podem se entrecruzar, a depender da especificidade do sujeito. Considerando a Educação Superior, há os Cursos de Graduação em Licenciatura, em Bacharelado e em Tecnologia. Cada qual regulamentado por diretrizes próprias, no âmbito do Conselho Nacional de Educação. Há, ainda, as pós-graduações lato sensu (formação de especialistas) e stricto sensu (formação de mestres e doutores) e uma série de regulamentações e diretrizes próprias de cada nível, etapa e modalidade, além de diversos programas federais, estaduais e municipais que implementam determinadas políticas de financiamento dos sistemas educacionais.

A educação brasileira, como referente, acontecimento social, histórico, portanto, concreto, também ocorre fora desses espaços que são legitimados, regulados, financiados e executados institucionalmente, isto é, ela também ocorre à margem dessa institucionalidade. É o caso da educação existente no interior dos movimentos sociais populares, por exemplo, com suas intencionalidades, suas escolhas, suas pedagogias próprias, enfim, com todas as suas místicas que lhes são características.

Diversas dessas experiências, quando são sistematizadas, registram os saberes que são produzidos em seu interior e que podem servir de parâmetros para a formação até mesmo institucional, em nível superior, de professores, de pedagogos, enfim, de pesquisadores da área de Educação. Muitos desses profissionais, quando atuam nos espaços regulados institucionalmente, operam um movimento que retroalimenta o acontecimento da educação, seja nos espaços institucionais ou não. Isso evidencia a complexidade desse acontecimento social, histórico e concreto desse referente.

O signo educação tem uma complexidade evidenciada por essa incursão em sua tricotomia. Por meio desse movimento, constatamos que o significante, a partir de sua etimologia latina, já aparece como condição de possibilidade de articular seu significado nas noções de levar, de conduzir e de trazer o educando para o lado de fora, seja de seu mundo subjetivo, seja da caverna de Platão. O significado da educação estaria nessa ideia de redirecionar o olhar para o real e distinguir sua reprodução, suas sombras e seus ecos. A esse duplo, agrega-se o referente, que produz e posiciona sujeitos concretos. O referente está além da abstração, porquanto está presente na história, na política, na economia, nas instituições, em suma, na vida.

O signo enunciativo popular

Na etimologia, originária do significante popular, deparamo-nos com a expressão latina populus, que também está conectada a alguns outros significantes: povo, povoado, povoamento, povoar, população, popularidade etc. Enfim, grande parte das palavras latinas que originam as línguas modernas e contemporâneas -

português, francês, espanhol, italiano etc. - relacionadas ao signo popular trazem em seu significante, total ou parcialmente, a origem em populus. Isso implica dizer que, em sua gênese, esse significante está vinculado à noção de povo. Tal articulação ocorre com base na ideia de população, de comunidade, enfim, de gente, pessoas ou de determinado coletivo que tem algo em comum, que compartilha certo território, algum traço étnico, aspecto histórico, linguístico, cultural, social, entre outros.

As características amplas desse significante - ou vagas - favorecem as condições de emergência de um amplo significado para o signo popular. Ou poderíamos falar em significados? No senso comum, encontramos significados que, se, de um lado, restringem as ideias de o que é popular, de outro, apresentam-se de modo difuso, sem muita clareza e com certa medida de incoerência com o próprio significante. No plano político e no acadêmico, ocorrem movimentos semelhantes entre si. Todavia, cada qual restringe a noção e aprofunda o significado em sua respectiva direção.

No senso comum, os significados relacionados são veiculados pelos meios de comunicação: na televisão, no rádio, no cinema, na internet etc. e circulam nas falas cotidianas, tanto em lugares públicos quanto privados. Também são objeto de análise no campo acadêmico (PELUZZO, 1998 apud MELO NETO, 2003). Nessa linha de entendimento, quem nunca escutou a expressão carro popular, para designar um automóvel mais acessível economicamente? Também é recorrente dizer que determinado programa de televisão tem apelo popular porque sua linguagem é de fácil compreensão ou porque sua programação é de utilidade pública (exibe fotografias de pessoas desaparecidas, comunica vagas de emprego disponíveis no mercado de trabalho, faz denúncias etc.). Nos filmes estadunidenses, reprisados continuamente na televisão aberta, é recorrente a ideia de que a garota loira que veste uma roupa da moda é a mais popular do colégio. Na maioria das vezes, essa personagem é a aluna mais rica da escola, líder de torcida e seguida por um grupo de outras garotas que tendem a imitá-la.

Há, ainda, nessa seara de significados que se proliferam, o do sujeito boa praça, que conhece todas as pessoas de seu bairro, é simples, anda de bicicleta, veste camiseta, bermuda e usa chinelos, cumprimenta a todos por onde passa etc. Todos gostam dele porque é um sujeito popular. Essa mesma noção serve para determinados políticos e/ou líderes comunitários que são consideradas pessoas simples, que sempre estão perto do povo, andam pelas feiras livres dos bairros e cumprimentam as pessoas.

Também é recorrente a definição de música popular brasileira (MPB), que envolve canções com uma construção harmônica e melódica distinta de outros estilos que, nem sempre, são categorizados como MPB, como, por exemplo, o funk, o forró, o samba, entre outros estilos. Há os significados que relacionam o popular ao folclore ou às expressões culturais de um passado longínquo ao qual buscam ser resgatadas (mitos, lendas, danças, comidas típicas, festas, folguedos, brincadeiras etc.).

No campo político, há significados que chamam à atenção, desde as siglas partidárias, das plataformas eleitorais ou de seus planos de atuação, não necessariamente partidários. No Século XIX, Marx (2008), no Manifesto do Partido Comunista (1848), vincula a esse significado conceitos como trabalhador, classe operária e proletariado. Ele é um dos que agrega a esse signo o significado de classe social. Melo Neto (2003), ao investigar o conceito popular, aponta para alguns significados políticos, presentes em diversos programas partidários do Século XX na América Latina. Na Frente Popular do Chile, o significado popular estava atrelado à ideia de envolvimento de outros setores sociais, além da classe operária na política. No Partido Popular do México, o significado era atribuído a um grupo político que cooperava com o governo. Para a Unidade Popular, o termo significava camponeses, favelados, trabalhadores e esquerda política. O Partido Comunista do Brasil atrelou a esse significado a noção de “guerra popular”, por entender que a luta armada contra a ditadura militar era de interesse das classes trabalhadoras. O Partido dos Trabalhadores, em sua criação nos anos 1980, concebeu o “(...) popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da classe trabalhadora na construção da democracia” (MELO NETO, 2003, p. 9).

Ainda no plano político, existem alguns significados que Canclini (2004) chama de reducionistas, anacronizantes, e que trazem o modo de ver a direita partidária. Ou seja, há um significado que ele chama de biológico/telúrico. Isso quer dizer que o popular significa o povo unido exclusivamente pelo espaço geográfico ou por características étnico-raciais. Nessa linha e classificado como estadista, o popular é definido como o Estado que se coloca como agência, que aloja os valores nacionais (democracia, trabalho, transparência, eficiência, zelo pelos recursos etc.), reúne todas as classes sociais e concilia seus interesses (até os mais antagônicos), sempre encontrando soluções populares que satisfaçam a todos os setores.

No plano acadêmico, os significados, em parte, são resultantes de análises sobre o senso comum e sobre o campo político. Calado (1999 apud MELO NETO, 2003) caracteriza vários movimentos como populares a partir do elemento da subversão, da resistência e da luta contra alguma forma de opressão. Freire (1987), ao discutir sobre as relações entre opressão e liberdade, define o termo popular como a condição de sujeito oprimido. Em Manfredi (1980 apud MELO NETO, 2003), significa uma prática, uma espécie de saber/instrumento que direciona para determinada luta política e o exercício da cidadania, uma classe social e um agir coletivo (WANDERLEY, 1980; BEZERRA, 1980; BRANDÃO, 1980; BEISIEGEL, 1992 citados por MELO NETO, 2003). Em suma, trata-se de um significado que aciona ideias como:

(...) o segmento social dinâmico, aberto e também conflitivo, sendo, portanto, histórico e dialético, enquanto que se dinamiza e se atualizada de forma permanente (...) Algo é popular se tem origem nos esforços, no trabalhado do povo. (...) Mas a origem apenas não basta. Essa, inclusive, pode nascer de agentes externos, evitando-se, contudo, todo tipo de populismo que porventura possa surgir. Todavia, é preciso ter-se conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. É preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias.

(...) Ser popular, portanto, significa estar relacionando as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação. É estar se externando através da resistência às políticas de opressão e adicionadas com políticas de afirmação social. Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político (MELO NETO, 2003, p. 10-17).

O primeiro elemento constitutivo do significado que Melo Neto (2003) traz é a origem. Algo é popular se tem origem popular. À primeira vista, esse é um axioma lógico e óbvio. Todavia, considerando que determinadas ações podem ser de interesse popular, (do povo), mas, não necessariamente, ter origem no povo, é possível a seguinte dedução lógica: tudo o que se origina do povo é popular, mas nem tudo o que é popular se originou do povo. O terceiro elemento agregado a esse significado é o conhecimento da direção que essa ação está tomando. Partindo ou não do povo, para uma ação ser popular, ela deve beneficiá-lo. O significado que Melo Neto (2003) apresenta, grosso modo, considera que, independentemente da origem da ação, ela será popular se atender conscientemente aos verdadeiros interesses do povo, não somente em suas finalidades, mas também em seus meios.

Convém deixar claro que estamos falando do signo popular (CANCLINI, 2004). Em outras palavras, assim como o signo educação tem uma dimensão histórica, concreta, com efeitos reais na vida das pessoas, constituindo subjetividades e, ao mesmo tempo, inserido dialeticamente na macroestrutura, o signo ‘popular’ também tem sua dimensão referencial, portanto, não é pura abstração, está situado no tempo e no espaço. Ao recorrer ao poeta Hesíodo, Melo Neto (2003) apresenta algumas referências, desde a Antiguidade, a trabalhadores camponeses. Também menciona a própria organização grega de Estado, fundada em valores marcados pelo princípio do direto para todos, que alicerçavam a polis na cidadania grega e, ao mesmo tempo, organizava a vivência comunitária.

Ainda na Antiguidade, exemplificamos, junto com Melo Neto (2003) e Cambi (1999), alguns episódios narrados na Bíblia, que se configuram como um referente do signo popular. Trata-se do povo judeu, praticante do Judaísmo. Segundo a tradição bíblica, é um povo originário da Tribo de Judá, uma das doze tribos de Israel (aquele que luta com Deus, em sua etimologia hebraica). Israel foi o nome dado pelo deus dos hebreus a Jacó, um dos patriarcas do povo de Israel ou da nação israelita. Historicamente, todavia, esse povo semita/hebreu/israelita ou designado pelo nome de uma de suas tribos, ou genericamente judeus, tem uma trajetória de luta e resistência contra a opressão de impérios antigos. Em suma, esse povo se constituiu de

(...) populações nômades que viviam do pastoreio, ligadas a uma religião totalmente diversa daquela dos vizinhos e contemporâneos, monoteísta e que concebe Deus como espírito absolutamente transcendente, não representável e não nominável (é apenas “aquele que é”); um Deus que fez, porém, um pacto com seu povo (Israel), ao qual revelou sua gênese ao mundo e as tábuas da lei e que o assiste na sua história, que é de sofrimentos impostos por Deus para pôr à prova seu próprio povo, mas também de espera: de um Libertador, de um Messias, de um guia que fará Israel triunfar sobre todos os seus inimigos (CAMBI, 1999, p. 69).

Se o episódio do Êxodo, com as pragas lançadas pelo deus hebreu ao grande Egito, e o cajado milagroso de Moisés, que conduzia o povo para a abertura do Mar Vermelho, tudo narrado cinematograficamente na Torá e no Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), são fantasiosos e literários, admitamos, ao menos, que sejam metafóricos. Até a parte referente aos quatro séculos de escravidão no Egito carece de registros historiográficos suficientes. Contudo, pelo menos, toda essa narrativa (embora pobre de referências e rica de significados) serviria de inspiração política para que esse povo conservasse suas tradições, seus saberes, suas práticas religiosas, enfim, seu anseio por liberdade e outras formas de resistência ao período de cativeiro na Babilônia (600 AC) sofrido pelo antigo Reino de Judá, para que suportasse a invasão romana liderada pelo General Pompeu (63 AC) à cidade de Jerusalém e a destruição do Templo de Jerusalém (70 DC) pelo General Tito. Esses são fatos que constam da historiografia e constituem concretamente um modo de ser popular do povo de Israel, que lutou, seja com seu próprio deus, metaforicamente falando, seja contra invasões e exílios registrados pela historiografia na Antiguidade.

Na Idade Média, alguns movimentos de contestação ao poder da Igreja (HOORNAERT, 1986) também constituem o referente do signo popular. Como esse é um período marcado pelo domínio do clero em todos os setores - político, econômico, social e cultural - essa instituição detinha o poder de vida e de morte sobre as pessoas, e sobre o destino dos que morriam, emitia salvo conduto para expiar seus pecados e garantir sua entrada no paraíso - as indulgências. Ela se colocava como o único caminho que poderia levar a deus: fora da Igreja não há salvação. Em outras palavras, quem não seguia suas doutrinas, seus dogmas ou não compartilhava dos seus valores, sofreria determinadas consequências, em todos os sentidos, não apenas espiritual, mas político, social e econômico.

É nesse contexto sócio-histórico em que “(...) se afirmava cada vez mais central o problema da liberdade” (CAMBI, 1999, p. 144), que se configurou como mais um ambiente propício à afirmação do popular como forma de resistência que fazia contraponto a todo esse poder. Calado (1999, apud MELO NETO 2003, p. 7) refere-se à “(...) indignação diante da ordem religiosa vigente (...) movimentos compostos de gente simples, das classes populares (...)” marcados pelo elemento da subversão ou desobediência civil à ordem estabelecida.

Caminhando, um pouco mais, no curso da história a fim de entender a rede que tece a dimensão referente ao signo enunciativo popular, deparamo-nos com a Revolução Francesa (1789-1795), um entrelaçamento de eventos que demarca uma cisão entre a modernidade e a contemporaneidade. Embora seja mais um episódio de referencialidade para o signo popular, está longe de ser considerada uma revolução popular em seu mérito, por causa de sua marca burguesa e liberal inscrita no ideário de liberdade, igualdade e fraternidade. Contudo, ela envolve setores populares, igualmente inspirados nos ideais iluministas de luta contra o absolutismo, contra o esquema aristocrático e a estrutura social vigente, que oprime tanto a burguesia quanto os setores mais subalternizados socialmente.

Como exemplo desses setores populares, destacamos, junto com Morin (2009), a participação ativa das mulheres, que é de fundamental relevância para o processo revolucionário francês. Sua ação política tem como eixo o próprio reconhecimento como cidadãs e a resistência à recusa de seus direitos políticos. Se, de um lado, a Revolução está provocando avanços civis, de outro, as mulheres continuam lutando pelo direito ao voto. Elas lutam contra as tradições que lhes atribuíam, de modo estereotipado, algumas características consideradas naturais e incompatíveis com o exercício pleno da cidadania. A participação feminina é notável também em momentos como a Marcha para Versalhes, organizada, principalmente, por elas. Merecem ser ressaltadas nesse movimento as “(...) mulheres-soldados, que se alistavam individualmente no exército, muitas vezes disfarçadas, para defender a ‘pátria em perigo’ ou acompanhar maridos, amantes e irmãos enviados para o front” (SAES, 2014, p. 464). De maneira geral,

(...) podem ser distinguidos, em diferentes momentos, focos revolucionários onde, seguidamente ou não aos movimentos populares dos anos (17)80, abrem caminho flamejantes, insurreições que testemunham o eco da Revolução Francesa. Do país de Liège à Renânia, a Genebra e ao país de Vaud e a Valais, mas também a Saxe, a Piemont e à Polônia é claro, e ainda nos anos (17)93-94 aos territórios Habsbourg, da Áustria à Boêmia ou à Hungria, de acordo com diferentes graus de mobilização ou de tomada de consciência, manifestam-se as repercussões do fato revolucionário (VOVELLE, 1987, p. 36-37).

A Revolução Francesa abala as estruturas sociais, econômicas e políticas de toda a Europa e subverte a soberania do divino, do absoluto, ainda legatário do medieval. Também inspira muitas outras revoluções liberais no Século XIX, o que marca a ascensão da classe burguesa. De revolucionária a burguesia passa a ser conservadora de uma nova ordem social emergente, o capitalismo. Isso gesta as condições de emergência de novas referências para o popular, o proletariado.

Aquele espectro que ronda a Europa, no Século XIX, anunciado por Marx e Engels (2008) e denominado de comunismo, configura-se como mais uma expressão do referente popular: a classe trabalhadora, seja da nascente indústria, seja do campo. Enfim, o proletariado, que começa a se organizar de maneira sistemática, contrapõe-se à ordem burguesa estabelecida desde o final da Revolução Francesa. Os trabalhadores se distinguem da burguesia como classe social, através de sua relação estabelecida historicamente com os meios de produção.

Enquanto a burguesia reproduz uma relação de propriedade, o proletariado vende sua força de trabalho para sobreviver. Assim, a burguesia acumula, cada vez mais, capital, favorecendo condições de geração e apropriação da mais valia, o que resulta no acúmulo de mais capital. Concretamente, isso gera condições opressivas de vida para a classe trabalhadora que, ao se organizar como categoria, empreenda várias lutas por melhores condições de trabalho, de salários e de vida. No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Marx e Engels mobilizam, entre várias coisas, um discurso político sobre esse movimento popular e sugerem que essa luta deve acontecer no âmbito internacional.

Apesar de ser inegável que essas lutas populares classificadas como socialistas tenham inspirado muitas outras formas de resistência à opressão, na Europa, na África e na América Latina, temos movimentos populares ocorridos em nosso continente que são anteriores, ainda no Século XVIII e concomitantemente ao comunismo do Século XIX e do XX. Vivemos períodos de intensos conflitos, em maior parte de nossa América, por causa da colonização espanhola ou portuguesa e dos efeitos nocivos que o capitalismo gera ao seu redor. Mesmo antes que o capitalismo aqui chegue, seja instalado e se estabeleça de vez, já há movimentos classificados como revoltas, motins e insurreições.

No Brasil, esses movimentos ocorrem de norte a sul, com movimentos religiosos messiânicos, separatistas e conspiracionistas. No Século XX, esses movimentos continuam - o cangaço, no Nordeste; a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, ou os influenciados pelo Marxismo, pelo Anarquismo e pela Revolução Russa de 1917: temos a Coluna Prestes, a criação do Partido Comunista etc. No final do Século XX, os movimentos se diversificam, outros tipos de atores sociais ganham visibilidade e pautas diferenciadas emergem: gênero, etnia, sexualidade, geração, cultura entre outros (GOHN, 2007). O fato é que todos esses e outros movimentos ocorridos na América Latina que podem mobilizar e propor situações de enfrentamento às mais variadas formas de opressão são referentes para o signo popular.

Portanto, esse signo se constitui, tricotomicamente, partindo de seu significante, com origem em populus, isto é, palavra latina que correlaciona todas as noções de gente e coletividade e que articula vários significados, na dimensão do senso comum, na dimensão política e na acadêmica. O terceiro vértice desse signo, o referente, está na história, nas práticas sociais de resistência a toda e qualquer forma de opressão. Pode ser identificada desde a Antiguidade até os dias de hoje. Enfim, o referente do signo popular é um coletivo de gente, que se rebela, que luta e que resiste a qualquer situação que tende negar a condição humana.

Considerações finais

Analisamos a série signos enunciativos da educação popular, não com o intuito de averiguar ou determinar conceitos preexistentes, mas para explicitar o modo como suas partes constitutivas - significante, significado e referente - estão dispostas e interagem no campo da linguagem. Diferentemente de um conceito que restringe a categoria a um campo determinado, o signo apresenta uma configuração diferente. Suas partes constitutivas não funcionam como elementos delimitadores, mas como pontos articuladores que permitem adentrar a ordem do discurso existente, porque aciona o próprio discurso por meio de domínios diversos, de regras constituintes e de posicionamentos de sujeitos.

A dimensão significante da série de signos analisada permite centrar a análise no que Foucault (2008) chamou de positividades, campos de domínio, regularidades, correlatos, funções enunciativas e posições de sujeitos. Não é o referente nem o significado, porque é o significante que, devido ao seu caráter livre das regras já aceitas convencionalmente, que estabelece correlações diversas e modos particulares de existência do signo. Devido à ruptura que o significante pode estabelecer com os significados e com os referentes, que fazem aparecer o enunciado e um campo de possibilidades analíticas, adentramos às condições de existência do enunciado da Educação Popular.

Em outras palavras, só é possível articular, traçar ou formular qualquer sentença correlata à Educação Popular por causa da anterioridade dos signos enunciativos. Ele aciona campos de domínio que associam saberes diversos: linguísticos, filosóficos, historiográficos etc. Desse modo concluímos que a análise empreendida demarca o território arqueológico do enunciado da Educação Popular.

Nos escritos foucaultianos, ao menos de modo disperso, a categoria discurso é caracterizada pela noção de objetividade. Isso foi evidenciado no decorrer da análise. Essa existência objetiva independe da individualidade dos educadores, dos educandos, das pessoas que integram os movimentos sociais populares, de pesquisadores e de qualquer outro ente envolvido com essa prática educativa. Embora esses discursos sejam produzidos socialmente e não estejam relacionados somente às experiências, mas também, sobretudo, a outros discursos presentes em outros espaços e tempos históricos diversos, não podemos perder de vista sua dimensão produtiva dessas e de outras práticas.

Isto implica dizer que essa enunciabilidade da Educação Popular, a um só tempo é produzida e produz as lutas dos movimentos, as experiências educativas, em suma, os processos históricos. Embora uma coisa seja correlacionada a outra, sua coexistência também conserva uma relativa autonomia. O fato é que a existência concreta da Educação Popular já está posta nas experiências educativas, na história, nas práticas sociais, enfim, nas lutas para superar as condições sócio-históricas e culturais que determinam a desigualdade ou qualquer outra forma de opressão.

Pretendemos com essa investigação contribuir com o processo de transição/ampliação teórico/conceitual da Educação Popular que ocorre na América Latina, ao menos nas últimas três décadas. Isto aparece tanto do ponto de vista do entendimento dos espaços públicos como lugares possíveis de se pensar/fazer Educação Popular, quanto na multiplicidade de sujeitos e temáticas que aparecem dos debates políticos e acadêmicos em torno da questão. No relatório “La educación de personas jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe: prioridades de acción em el siglo XXI (2000)”, por exemplo, são apresentadas ações diversas que trazem esse redimensionamento teórico e apontam para questões culturais e para a emergência de uma diversidade de sujeitos: a mulher, o negro, o indígena, o jovem da periferia, o LGBT etc.

Analisar a Educação Popular como uma série de signos enunciativos nos possibilitou adentrar as camadas do enunciado. Os domínios, as regras, as instituições, os correlatos e as posições de sujeito apareceram para identificar as condições de possibilidade de existência do enunciado em questão. A leitura sistemática dos documentos identificados durante a análise trouxe elementos para pensarmos sobre uma construção teórica de uma pedagogia alinhada ao enfrentamento de qualquer tipo de relação de opressão. Além disso aponta possibilidades de investigações e formulações de objetos de estudo no campo discursivo que abrangem domínios pedagógicos como a docência, a gestão, a extensão e a pesquisa em seus múltiplos desdobramentos.

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Recebido: 09 de Abril de 2020; Aceito: 20 de Maio de 2021; Publicado: 04 de Novembro de 2021

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