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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 29-Nov-2023

https://doi.org/10.5902/1984644461420 

Dossiê – Políticas educativas, mediações e educação de jovens e adultos: olhares de resistência - 2021

Formação continuada de professores para as escolas em unidades de privação de liberdade

Continuing teacher training for schools in liberty deprivation units

Luciana Ferreira da Silva Moraes1 
http://orcid.org/0000-0002-7215-6747

Elenice Maria Cammarosano Onofre2 
http://orcid.org/0000-0002-3623-4728

1Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. E-mail: lucianaferreiramoraes@gmail.com.

2Professora na Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, São Paulo, Brasil. E-mail: eleonofre@ufscar.br.


RESUMO

O presente artigo apresenta resultados de pesquisa que teve como objetivo investigar as necessidades formativas de professores da EJA que atuam em salas de aula de unidades de privação de liberdade. Insere-se no entrecruzamento das temáticas de formação continuada, docência e educação, fundamentada na Pedagogia Libertadora de Paulo Freire. Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa na perspectiva dialógica da observação participante em reuniões formativas com os professores e de entrevistas narrativas. Após a coleta e organização dos dados em notas de campo, recorreu-se à análise de conteúdo, utilizando-se dos passos sugeridos por Bardin (2016): pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Emergiram com base nos indicadores de frequência dois focos de análise do estudo: os dizeres dos professores sobre a formação continuada e as expectativas de aprendizagem dos docentes. Elegeram-se para as reflexões deste artigo os dizeres dos professores para a busca da formação continuada e que indicam a melhoria da prática educativa, novos conhecimentos e a permanência ou ascensão no mercado de trabalho. Os professores sinalizam como referenciais específicos para a docência nas salas de aula de unidades prisionais o amor e o sonho, que, compartilhados nos encontros formativos, potencializam o compromisso e engajamento para dar continuidade, apesar dos desafios e condições objetivas e subjetivas do trabalho, à atividade docente com pessoas momentaneamente afastadas do convívio social.

Palavras-chave: educação escolar em prisões; formação de professores; docência e prisões

ABSTRACT

This article presents research results that aimed to investigate the formative needs of EJA teachers who work in classrooms of liberty deprivation units. It is inserted in the intersection of the themes of continuing education, teaching and education, based on the Liberation Pedagogy of Paulo Freire. This is a qualitative research in the dialogical perspective of participant observation in formative meetings with teachers and narrative interviews. After data collection and organization in field notes, content analysis was used, based on the steps suggested by Bardin (2016): pre-analysis; scanning of the material; treatment of results, inference and interpretation. Two focuses of study analysis emerged based on the frequency indicators: the teachers' statements for the search for continuing education and teachers' learning expectations. The teachers' statements for the search for continuing education were chosen for the reflections of this article, which indicate the improvement of educational practice, new knowledge and the permanence or rise in the labor market. The teachers indicate love and dream as specific references for teaching in prison classrooms; these, shared in the formative meetings, enhance the commitment and engagement to carry on, despite the objective and subjective challenges and conditions of work, with the teaching activity with people momentarily removed from social life.

Keywords: school education in prisons; teacher training; teaching and prisons

Introdução

A literatura disponível sobre formação de professores tem abordado, na maioria das vezes, concepções normativas que indicam o perfil ideal dos professores e que passam ao lado de suas necessidades, na perspectiva do desenvolvimento profissional. As necessidades formativas sugeridas pelos próprios professores se constituem em elemento chave na formação, na medida em que, ao trazer seus conhecimentos e experiências para os projetos formativos, garantem a construção de concepções potencializadoras para o trabalho pedagógico.

Pensar a formação docente como processo educativo do desenvolvimento profissional dos professores em exercício, que ocorre ao longo da vida, possibilita um desempenho profissional com autonomia, compromisso e criatividade. Nessa perspectiva, estamos nos colocando ao encontro da formação que se inicia muito antes do curso de formação inicial de professores - a licenciatura − e que não se esgota em cursos de formação continuada. Trata-se de uma busca contínua, situada em um contexto de desenvolvimento de qualidades intelectuais, afetivas e éticas com seus pares e cultivadas com seus alunos.

Estas assertivas nos levam a questionar a que distância está as ações formativas dos professores da realidade de suas práticas pedagógicas em escolas que acolhem pessoas em situação de privação de liberdade.

Trazer para o âmbito de reflexões os desafios postos para a formação do professor para atuar em um espaço tão peculiar e regido por normas específicas, como é a prisão, nos tem levado a estudos que possam de alguma forma contribuir com este campo ainda emergente na formação de professores. Parece-nos relevante trazer para a pauta das discussões da Educação de Jovens e Adultos - EJA - este recorte específico da formação docente, com o intuito de contribuir com indicativos de possibilidades para se deslocarem do lugar onde estão, em busca da construção de uma prática crítica e contextualizada.

Destacar a especificidade da EJA nos espaços de privação de liberdade é, portanto, determinante para a adequada formação de professores, a partilha da produção de seus saberes e o compromisso com uma ação politicamente consciente das dificuldades e dos limites que seu trabalho enfrenta. Esse grupo de professores sustenta seu trabalho muito mais em função do compromisso com a EJA, com a educação popular, do que com vantagens para a carreira docente.

As reflexões que trazemos neste artigo se constituem em desdobramentos da pesquisa de doutorado, concluída em 2020, que analisa as necessidades formativas que emergem nos processos de vivências e nos dizeres dos professores que atuam em salas de aulas nas unidades prisionais Mato Grosso - MT.

Recorrendo a um dos focos de análise do estudo, este texto segue o seguinte encadeamento: primeiramente, abordamos o conceito de formação continuada como prática social, com base em nossos estudos nos Orientativos da Secretaria da Educação - SEDUC/MT - e políticas públicas para os espaços formativos em Mato Grosso. Num segundo momento, descrevemos o método escolhido para a pesquisa, ancorada em aportes da pesquisa qualitativa por meio da observação participante e os achados do estudo e, por último, o foco escolhido para este texto: os dizeres dos professores sobre a formação continuada.

Formação continuada como prática social

Pensar a formação continuada como prática social nos leva a caracterizar o nosso entendimento de práticas sociais como um entrelace dos diferentes saberes de cada professor.

A construção de saberes docentes no processo de formação continuada resultante da interação que acontece no interior do grupo de professores se configura como uma prática social porque as práticas sociais “decorrem de e geram interações entre os indivíduos e entre eles e os ambientes natural, social e cultural em que vivem” (OLIVEIRA et al., 2014, p. 33). Elas nascem e firmam-se na e pela interação humana, e esse movimento se constitui em aprendizagens que os autores denominam processos educativos.

No caso da formação continuada, os processos educativos advêm do movimento de aprender uns com os outros, pelo desenvolvimento do saber escutar. Trata-se, pois, de um processo de “tecer com” os pares uma rede de saberes, a partir da troca de experiências e “propor com” o grupo novas estratégias educativas. Tais estratégias, aliadas a outras tantas, são indispensáveis à formação almejada pelos docentes.

A inserção das pesquisadoras na prática social da formação continuada parte do pressuposto de que a integração e participação em práticas sociais com o objetivo de compreender os processos educativos que são ali desencadeados promovem a formação dos participantes da pesquisa enquanto sujeitos que pesquisam juntos e, neste ato, humanizam-se e firmam-se cidadãs e cidadãos (OLIVEIRA et al., 2014).

Posto isto, as nossas inserções nas reuniões formativas se constituíram em possibilidade de pensar com os professores, a partir de suas experiências vivenciadas na sala de aula, e refletir com eles sobre os desafios que se apresentam à prática educativa e também em sua formação. Na mesma perspectiva de Oliveira et al. (2014), entendemos a formação continuada como uma prática social, na qual os professores expõem suas angústias e experiências, de maneira espontânea.

Nessa perspectiva, o diálogo se apresenta como o principal elemento para a construção de uma formação continuada libertadora. É por meio dele que podemos libertar as angústias vivenciadas pelos professores solitariamente na sala de aula, passando-as de uma perspectiva individual para um âmbito coletivo. Uma vez assumidas coletivamente, o grupo toma consciência dos reais desafios que se apresentam, e juntos buscam possibilidades para enfrentá-los. Essa dinâmica formativa se assemelha à educação libertadora proposta por Freire (2011).

O diálogo na perspectiva de Freire (2011) permite que as interações humanas que acontecem no interior de práticas sociais se desenvolvam numa perspectiva da humanização, da coletividade e da constante busca pelo ser mais.

Nesse sentido, promover ações formativas que permitam o protagonismo docente e o respeito a sua singularidade, de modo a respeitar a sua fase de desenvolvimento profissional, sua história de vida e seu modo ímpar de desenvolver o trabalho docente, se constitui como um dos maiores desafios das políticas para os espaços formativos: “propor uma formação que atenda às ‘diferenças professorais’, para que os docentes sejam capazes de entender melhor e, assim, dar sentido à sua profissão” (FAVRETTO, 2006, p. 34).

Para vencer os desafios que se apresentam à formação continuada, o diálogo permanente com os professores pode representar uma das possibilidades para contribuir para a mudança da prática educativa, uma vez que os processos educativos advêm do movimento de aprender uns com os outros, pelo desenvolvimento do saber escutar. Trata-se, pois, de um processo contínuo e inconcluso.

Na esteira do conceito de formação continuada como prática social, a Educação de Jovens e Adultos em espaços de privação de liberdade apresenta algumas particularidades: i) é desenvolvida em um contexto marcado por normas e disciplinas que atravessam e submetem a identidade dos estudantes e daqueles que atuam em processo de aprendizagem, os professores; ii) trata-se de estudantes separados do convívio social, afastados do convívio familiar, de bens culturais, roupas e pertences pessoais e de sua rotina, o que pode lhes provocar baixa autoestima; iii) são estudantes alvos de preconceito por parte da sociedade e terão que lidar com o estigma de ex-detentos ao retornarem ao convívio social.

Tais particularidades do espaço nos levam a perguntar: O que podem fazer os professores nos encontros de formação continuada? Buscamos em Onofre (2011) referenciais sobre a docência na prisão. Ao trazer a inserção profissional da docência na prisão, a autora se utiliza da expressão “duplamente iniciantes” para enfatizar que muitos desses professores nunca estiveram em um espaço de privação de liberdade e nem possuem experiências anteriores com o exercício da docência. Por esse motivo, esses profissionais aprendem com os seus pares (os professores mais experientes) e com o contexto.

Nessa direção, o desafio da articulação entre teoria e prática na formação continuada proposta para diversos contextos e realidades, o contexto no qual se desenvolve a prática educativa, a prisão, as considerações feitas por Onofre (2011) e Onofre e Julião (2013) sobre a formação dos professores para os espaços de privação de liberdade nos moveram a inquietações sobre a formação desses profissionais.

Em acréscimo, nosso envolvimento com as políticas públicas para os espaços formativos em Mato Grosso e a SEDUC/MT nos levaram à busca de compreensões sobre as necessidades formativas dos professores que atuam nos espaços de privação de liberdade e como são contempladas no processo de Formação Continuada do estado.

Em vista disso, selecionamos o local para nossa investigação, a saber, a Escola Estadual Nova Chance/MT, e as reuniões formativas do projeto denominado Pró-Escolas Formação na Escola - PEFE, para a coleta de dados. Nossos colaboradores de pesquisa são os professores que lecionam nas cidades de Cuiabá e Várzea Grande/MT e participam das reuniões formativas na Escola Estadual Nova Chance, unidade escolar que atende estudantes jovens e adultos que estão em espaços de privação de liberdade, em vários municípios do estado. No primeiro momento da coleta de dados, participamos das reuniões formativas com os professores. No segundo momento, estiveram conosco oito professores que aceitaram o convite para participar das entrevistas narrativas, sendo que cinco atuam em salas de aula, dois são orientadores pedagógicos e uma é professora formadora do Centro de Formação e Atualização Profissional dos Profissionais da Educação Básica - CEFAPRO, responsável pelo acompanhamento das reuniões formativas.

A pesquisa qualitativa numa perspectiva dialógica

Pensar a pesquisa qualitativa numa perspectiva dialógica envolve comprometimento, a mobilização do diálogo como um encontro em que se solidarizam o refletir e o agir (FREIRE, 2011) e, ainda, a devolutiva dos dados para os professores, para que possam partilhar do conhecimento construído e, se necessário, opinar sobre os dados recolhidos e considerações feitas pelas pesquisadoras.

De igual forma, a postura dialógica é enfatizada por Oliveira et al. (2014, p. 122), quando propõem romper com a verticalidade e o dualismo implicados na relação pesquisador-pesquisando, partindo do pressuposto de que, no ato de pesquisar, “as pessoas não devem ser percebidas como objeto de estudo, mas sim como participantes da pesquisa que co-laboram com a investigação realizada”.

Partindo desse entendimento, optamos pela observação participante, com registros em diários de campo e entrevistas narrativas com os professores que participaram da formação continuada desenvolvida no PEFE, ancorando-nos na pergunta: em que podemos ajudar?

O conceito de observação participante está fundamentado, neste estudo, em Appolinário (2011, p. 136), para quem observação participante é um “processo de observação no qual o pesquisador participa ativamente como membro do grupo que ele próprio está estudando, utilizando esta posição para obter informações acerca desse grupo”. Trata-se, pois, de uma perspectiva de pesquisa que não se reduz a uma contemplação, ou somente ao ato de registrar, mas implica manter um papel reflexivo e atento aos acontecimentos e interações.

Esse conjunto de informações obtidas nos encontros formativos com os professores da Escola Nova Chance foi registrado em notas de campo, tanto descritivas como reflexivas. A partir das orientações de Bogdan e Biklen (1994) sobre a utilização de notas de campo e seu conteúdo, entendemos que, durante a pesquisa qualitativa podemos utilizar as notas de campo para registrar o explícito, aquilo que é evidenciado por meio de ações dos colaboradores de pesquisa, e o implícito, aquilo que o gravador não pode captar.

Destarte, considerando que o “gravador não capta a visão, os cheiros, as impressões e os comentários extras” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 150), acreditamos que esse conjunto de notas de campo comporá o diário de campo, um recurso importante, principalmente para registrar as ações formativas dos professores e o que pensam sobre esse processo, além de suas expectativas de aprendizagem. Organizamos também anotações de cunho pessoal, incluindo, assim, os sentimentos das pesquisadoras, suas impressões e os processos educativos vivenciados, como também os comentários referentes às entrevistas realizadas.

As entrevistas narrativas, realizadas após o período de inserções nas reuniões formativas com os professores, se constituíram como um dos instrumentos de coleta de dados, como uma das ferramentas na construção de um conjunto de informações de modo a alcançar o nosso objetivo de pesquisa.

De acordo com Jovchelovitch e Bauer (2015), a preparação da entrevista narrativa inclui a exploração do tema que se pretende pesquisar com o objetivo de conhecê-lo e, ainda, a preparação das questões que refletem o interesse do pesquisador. Essas questões são denominadas por esses autores de pergunta gerativa de narrativa. Por sua vez, Flick (2009, p. 165) sinaliza que “é fundamental certificar-se de que a questão gerativa seja realmente uma questão narrativa”. À vista do exposto, organizamos o roteiro narrativo com perguntas que estimulassem as narrações dos colaboradores, iniciando-as com verbos do tipo: conte, relate, descreva.

De posse do roteiro narrativo enviado previamente por e-mail aos colaboradores, iniciávamos as conversas. Foi possível perceber que os vínculos de confiança criados durante o convívio nas reuniões formativas, nos horários do café, em encontros nos corredores da Escola Nova Chance, favoreceram as entrevistas narrativas. Desse modo, a escolha pela técnica de entrevista narrativa conferiu aos participantes a liberdade no modo de dizer a sua palavra para o mundo e sobre o mundo.

De posse das anotações organizadas em diários de campo nos momentos das reuniões formativas, via observação participante, e das entrevistas narrativas com os participantes, procedemos à análise dos dados coletados, com a opção da análise de conteúdo, embasada em Bardin (2016). Fizemos essa opção pela oportunidade de “superação da incerteza” em nossas interpretações e possibilidade de “enriquecimento da leitura” dos materiais que emergiram durante a coleta de dados (BARDIN, 2016, p. 35).

Seguimos as orientações da autora e os passos sugeridos: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Iniciamos com a “leitura flutuante”, objetivando revistar as anotações construídas nos diários de campo e as entrevistas transcritas. Nesse momento, nos deixamos “invadir por impressões e orientações” (BARDIN, 2016, p. 126). Selecionamos excertos dos diários de campo, resultantes da observação participante nas reuniões formativas e de todas as ações às quais tivemos acesso no decorrer da coleta de dados.

Emergiram, com base nos indicadores de frequência, duas categorias que indicamos como focos de análise do estudo: os dizeres dos professores sobre a formação continuada e as expectativas de aprendizagem dos docentes. Para fins deste artigo, e para atender ao escopo deste Dossiê, elegemos o primeiro: os dizeres dos professores sobre a formação continuada.

Os dizeres dos professores sobre a Formação Continuada

Os dizeres e saberes dos professores que participaram do estudo emergiram da construção realizada com base nos dados coletados, embasada na análise de conteúdo proposta por Bardin (2016). Para compreender as necessidades formativas indicadas pelos professores, é preciso entender o caminho percorrido em suas vivências docentes e formações anteriores.

No decorrer das entrevistas narrativas, ao solicitarmos aos professores que descrevessem suas aprendizagens no processo de formação continuada, explicamos que não nos referíamos somente àquela ocorrida no espaço escolar, mas a todos os cursos realizados após a graduação. Nesta seção, fazemos destaques de trechos transcritos das narrativas e utilizamos nomes fictícios para preservar a identidade dos colaboradores.

No que diz respeito à aprendizagem dos docentes, os cursos oferecidos pelo Cefapro também são citados como possibilidade de aprimoramento da técnica de ensinar pela Professora Atena:

São tantas [...]. Se eu voltar lá no começo e voltar lá no CEFAPRO tinha aquele professor de Matemática que ministrava os cursos, eu aprendi muito como aprimorar a técnica de levar o conhecimento de Matemática para a sala de aula, isso me marcou muito porque foi um divisor de águas. Eu sou formada em Biologia eu tive as Ciências, mas a Matemática foi muito superficial. (Entrevista narrativa com a professora Atena).

É importante salientar que o período a que a professora se refere por Cefapro compreende os anos de 2008 a 2010, aproximadamente, o que corresponde à fase inicial de sua carreira docente. Professora Atena ainda destacou aprendizagens de temas relacionados à sua área de formação, Biologia, dessa vez, em um curso oferecido pela Universidade Federal:

O REINTEA na UFMT me marcou muito por falar mais de bichos, da Natureza, Fauna e Flora, me abriu um leque também. Já teve um que eu fiz no Centro de Eventos Pantanal que era sobre o Meio Ambiente também me marcou muito porque falava muito de animais silvestres e levantava muito a questão da caça ilegal, da carne saborosa do jacaré e de outros animais. Eu não tinha noção daquele mundo, então, eu aprendi muito. (Entrevista narrativa com a professora Atena).

Para a professora Gea, a construção e ampliação dos conhecimentos dos docentes também acontecem a partir da interação com profissionais de outras áreas, em cursos pontuais, com temas específicos e oferecidos por outras secretarias; nesse caso, a docente se refere à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, a Sejudh/MT:

Eu acho que o mais importante pra mim foram essas diversas visões de sujeitos envolvidos neste sistema e é aquilo que eu estava falando e cada um dentro da sua formação tem uma visão de um objeto. Então, cada um estuda esse objeto de acordo com a sua perspectiva de formação e isso tudo somado é muitíssimo interessante para gente. Então, quando eu vi lá o psiquiatra falando, a psicóloga falando, o advogado do sistema, gente! É uma riqueza tão grande! Lá estava Ministério Público [...]. Então, cada um nesse balaio que é o sistema, cada um que trabalha ali dentro, ele tem uma visão de acordo com a sua formação e todas essas visões, elas são modificadas quando você fica ali dentro. (Entrevista narrativa com a professora Gea).

Ao sinalizar para essa integração entre diferentes profissionais - advogados, psicólogos, médicos psiquiatras, entre outros - Professora Gea indica que a construção dos saberes docentes não se dá somente a partir da interação com seus pares, os colegas de profissão, mas também na/pela interação com outros especialistas.

Quando se trata da educação escolar na prisão, Onofre (2009) defende a integração de diversos profissionais no processo de ensino e aprendizagem de homens e mulheres que estão em privação de liberdade. Para a autora, a prisão deveria se constituir em uma comunidade de aprendizagem na qual todos os profissionais se reconheçam como educadores. Se pensarmos a formação continuada dos professores que atuam nesses espaços a partir desta perspectiva, a construção dos saberes dos docentes poderia acontecer em parceria com os diversos profissionais e secretarias.

Nessa perspectiva, professor Chronos sinaliza o Fórum como um evento importante para a troca de conhecimentos e aprendizagem dos docentes:

[...] por exemplo, a oportunidade de estar aqui na Nova Chance e apresentar o trabalho no Fórum, tenho a oportunidade de estar apresentando pelo menos uma vez em cada semestre o trabalho que envolve o Aulão. (Entrevista narrativa com o professor Chronos).

O fórum é um momento propício para a troca de experiências entre os professores e uma possibilidade de dialogar sobre a prática educativa. Trata-se de um evento no qual podem participar professores de vários municípios do estado de Mato Grosso; é um espaço democrático e propício para o debate sobre a educação escolar desenvolvida nos espaços privação de liberdade. De um modo geral, os dizeres dos professores apontam que os Cefapros, os Fóruns e a Sejudh são ambientes que lhes proporcionaram aprendizagens e destacam aquelas sobre conceitos e assuntos da área educacional e conteúdo específico de sua área/disciplina de formação e/ou atuação.

Imbernón (2011) alerta que o conhecimento objetivo, aquele relacionado às disciplinas, não é suficiente para um professor em contexto de mudanças sociais e econômicas que atravessam nossa sociedade. Isso exige novas competências dos professores, entre elas a autonomia, o poder de tomar decisões sobre os problemas profissionais da prática. Todavia, para o autor, tais características ainda são insuficientes, pois a profissão tem outras funções: “motivação, luta contra a exclusão social, participação, animação de grupos, relações com estruturas sociais [...]. E é claro que isso requer uma nova formação: inicial e permanente” (IMBERNÓN, 2011, p. 14).

Para conviver com a mudança e a era de incertezas anunciada por Imbernón (2011), os professores apresentam alguns motivos que os fazem buscar os cursos de formação continuada, sendo um deles a demanda por novos conhecimentos, conforme relatou professora Afrodite:

Eu acho que quando aparecem esses cursos, a gente sempre procura ir para poder aprender mais, né, ver a experiência do outro, você conhecer mais, acho que esses cursos são para você ficar por dentro [...] o professor nunca para de estudar, né. Aí você vai lá e vê coisas novas acontecendo e você vai aprendendo [...]. (Entrevista com a professora Afrodite).

A expressão “ficar por dentro” nos leva a inferir sua possível compreensão: os cursos de formação continuada podem ser uma possibilidade de atualização do profissional participante, e a aprendizagem nesses cursos pode ser construída pela observação e/ou escuta da experiência do outro, pois é importante “para a docência a aprendizagem da relação, a convivência, a cultura do contexto e o desenvolvimento da capacidade de interação de cada pessoa com o grupo, com os pares e comunidade em que se desenvolve a prática educativa” (IMBERNÓN, 2011, p. 14). Logo, a interação com o Outro é uma possibilidade de aprendizagem.

No entanto, Nascimento et al. (2019, p. 59) alertam que “muito falta ainda para que a troca de experiências entre os pares se torne um princípio fundante na aprendizagem do adulto professor”, pois isso requer dele um olhar sensível sobre as teorias e pesquisas educacionais e sua profunda capacidade de transformar em conhecimento os dizeres e as reflexões.

Se o aprender com o outro é um desafio, a melhoria da prática educativa é um estímulo que leva os professores a buscarem cursos de formação continuada a fim de atender as demandas do processo de ensino e aprendizagem dos estudantes, conforme o dizer da orientadora pedagógica Hebe:

Quando você vai em uma formação e ela não vem ao encontro com sua prática, ela não motiva mais [...]. A formação continuada é para melhorar a minha prática, aquilo que eu preciso e que eu posso melhorar, isso que motiva mais estar participando. (Entrevista com a orientadora pedagógica Hebe).

A melhoria da prática é o motivo de busca pela formação continuada por parte da orientadora pedagógica Hebe. O dizer dessa professora se assemelha aos resultados do estudo realizado por Nakayama (2011). Ao analisar as necessidades de formação continuada de docentes que atuam em uma escola Supletiva da Penitenciária de Florianópolis, a autora identificou que

[...] as principais necessidades estão relacionadas à compreensão do/a aluno/a como um sujeito adulto [...] e principalmente elementos metodológicos. Entre esses elementos, citam modos de lidar com os sujeitos, a avaliação e o uso de metodologias diferenciadas como estratégias que possam subsidiar a realidade encontrada na escola. (NAKAYAMA, 2011, p. 145).

Partindo do pressuposto de que existe uma realidade na qual se desenvolve a prática educativa (os espaços de privação de liberdade) e de que os professores estão preocupados em melhorar a sua prática, o seu modo de ensinar, eles vão para os cursos de formação continuada com o intuito de buscar novos conhecimentos que possam ajudá-los no aprimoramento de sua prática, que permitam a preparação de um cardápio pedagógico diferenciado com a inclusão de novos ingredientes. Isso pode ser observado no dizer da professora formadora Héstia, em especial, no uso das expressões em destaque:

Buscar leituras diferenciadas, né, porque a gente ficava muito focada no livro didático e eu queria achar outras formas de trabalhar aquele conteúdo que não fosse só através do livro didático. Então esses cursos de formação me motivavam para que eu pudesse fazer algo diferente, eu sempre quis que os alunos aprendessem. Eu acho que quando a gente estuda na escola pública e a gente vive esse viés como professor depois, a gente sempre tem essa preocupação de que eu preciso levar algo melhor, eu preciso levar alguma coisa diferente. (Entrevista com a professora formadora Héstia).

Apesar de estar designada para a função de professora formadora, Héstia trabalhou muitos anos na sala de aula, e seu relato se refere a sua experiência como docente em escolas públicas. Seu dizer aponta a preocupação com a melhoria da prática educativa por meio da busca de novas leituras, tendo em vista a necessidade dos estudantes frente ao mercado de trabalho competitivo que sempre exigirá deles novos conhecimentos.

Héstia também afirma que gostaria de encontrar outras formas de trabalhar os conteúdos e isso nos remete à ideia de formação continuada como uma oportunidade para a construção do conhecimento pedagógico do conteúdo. Para que os alunos possam aprender, os professores precisam ter compreensões de um conjunto de conhecimentos distintos referentes à sua disciplina e/ou área de atuação, o que Shulman (2005) denomina de categorias do conhecimento. Entre elas, destaca-se o “conhecimento de conteúdo”, um dos conhecimentos necessários ao professor para o exercício da docência.

O dizer dessa professora nos levou à compreensão de que as exigências do mercado de trabalho tornam-se ameaças para aqueles que não se qualificam profissionalmente e não têm os conhecimentos necessários. As tendências desse mercado exigem mão de obra qualificada e, por esse motivo, aqueles que atuam na área da educação começam a sentir esses efeitos, sendo a possibilidade de permanência ou ascensão no mercado de trabalho uma das razões que os levam à busca de cursos de formação continuada.

Professor Eros enfatiza que os professores precisam compreender que a participação em cursos de formação continuada pode garantir a sua permanência na unidade escolar:

Porque a educação continuada vai te dar aula o ano que vem, se eu to fazendo uma educação continuada é porque eu quero continuar o ano que vem e tem professor que não entende isso, eles acham que a educação continuada é pra encher linguiça e não é isso! É uma necessidade porque na educação continuada vou aprender didaticamente como trabalhar com meus alunos, vou criar didáticas, metodologias novas, vou aprender coisas novas, né? (Entrevista narrativa com o professor Eros).

Professor Eros não só indicou alguns motivos citados pelos demais docentes entrevistados que os levam à busca por cursos de formação continuada, mas ainda acrescentou um desafio a ser vencido por aqueles profissionais que não são concursados: como garantir a continuidade do emprego no ano seguinte? Eis aqui um dos motivos para a busca e participação nos cursos de formação continuada.

O Orientativo da SEDUC para a formação continuada no ano de 2018 explicita que os professores efetivos participantes do PEFE terão direito a pontos a serem contados na atribuição de aulas para o ano de 2019. Professores com 75% de frequência receberiam 5 pontos, com 85% de frequência adicionariam 6 pontos, aqueles que tivessem 95% teriam 7 pontos, e, por fim, 100% de participação renderiam 10 pontos. Os professores contratados não são citados diretamente, todavia esse documento explicita: “Situações não contempladas neste documento serão analisadas posteriormente pela SUFP” (MATO GROSSO, 2018, p. 21). No ano de 2019, o Orientativo indica: “Todos os profissionais que participarem do Projeto de Formação da/na Escola terão direito a pontos a serem contados na atribuição de aulas” (MATO GROSSO, 2019, p. 14).

Em síntese, os dizeres dos professores sinalizam três principais motivos de busca de cursos de formação continuada: a melhoria da prática educativa, novos conhecimentos e a permanência ou ascensão no mercado de trabalho.

Trazendo nossas lentes para as escolas de unidades de privação de liberdade, ao analisar as ações formativas e os dizeres desses professores, encontramos duas referências específicas destacadas para a docência: o amor e o sonho. Professora Afrodite defende a necessidade de se conjugar o verbo amar com as estudantes que estão no espaço de privação feminino:

Ela acrescentou que para a Penitenciária Feminina é necessário um trabalho pedagógico diferenciado, falou da necessidade de se conjugar o verbo amar e o verbo perdoar. E, de acordo com a educadora, é necessário pensar como vai trabalhar cada verbo de modo a ‘atingi-los’. A professora acrescentou que suas alunas são talentosas. (DIÁRIO DE CAMPO, julho de 2018).

Nos anos subsequentes ao período da coleta dos dados que compõem este estudo[1], assim como afirma a professora Afrodite, na formação continuada em Mato Grosso (em especial, as ações formativas desenvolvidas no espaço escolar), tornou-se necessário e urgente conjugar os verbos sonhar e amar. Devido à pandemia causada pelo coronavírus que resultou na doença chamada Covid-19, em 2020, a escola deixou de ser o espaço formativo de troca de saberes entre os pares. Em virtude do isolamento social, as reuniões formativas se resumiram a cursos pontuais on line (voltados para o uso das novas tecnologias na educação) ofertados pelos Cefapros. Além disso, nesse mesmo ano, os diretores dos 15 Centros foram convocados para uma discussão com o secretário estadual de Educação sobre a sua reestruturação[2], em Cuiabá.

O novo contexto exigiu que mobilizássemos o amor como sinônimo de comprometimento com o outro (homens e mulheres); essa amorosidade trouxe também o reconhecimento da necessidade de ações dialógicas que, no caso da Formação Continuada, configuraram-se como uma busca, por parte dos professores, pela autoformação e pela aprendizagem das tecnologias digitais para lidar com essa nova realidade.

Além de ser um dos elementos que compõem o diálogo, na perspectiva de Freire (2011, p. 110), “o amor é, também, diálogo”. Na formação continuada, esse diálogo entre os professores e a Secretaria de Educação deve ser alimentado pelo sonho de que, apesar dos desafios[3], as ações formativas não sejam terceirizadas, mas permaneçam mantidas e administradas pelo Estado, por meio dos Centros de Formação e seus professores formadores (os professores efetivos), atendendo, assim, aos pressupostos de Imbernón (2011) de que as ações formativas devem considerar a comunidade e de que o professor precisa ser sujeito de sua formação. Eis aqui a importância de uma formação continuada feita pelos professores das escolas estaduais, e não para eles. O sonho é a convicção de que professores e a Secretaria de Educação, juntos, podem vencer e modificar as situações-limite que se apresentam à Formação Continuada.

Já na prática educativa desenvolvida em espaços de privação, o amor é um sentimento presente no coração, nos diálogos e nas ações dos professores que ali atuam. O amor pode se desenvolver a partir do fazer docente e do estar com os estudantes, conforme afirma a professora Gea:

E é verdade, se transforma, endurece o professor, banaliza aquilo ali, aí, você começa a tolerar muito mais do que você deveria [...]. Você fica brutalizado [...]. Ali dentro tem uns paradoxos que torna difícil entender aquilo ali. Para mim, não é fácil porque eu me questiono muito. Eu não sou libertadora, eu não tenho essa característica [...], entro ali e até esqueço, às vezes, que eu estou dentro de um presídio. Isto é imperdoável (risos). Você desenvolve uma empatia tão grande com eles que, às vezes, você não se dá conta. (Entrevista narrativa com a professora Gea).

Embora os espaços de privação de liberdade sejam descritos pela professora Gea como um ambiente paradoxal e que tende a brutalizar as pessoas que neles adentram, na sala de aula, a professora desenvolveu empatia com os estudantes. Fica claro, em nosso entendimento, que nesses espaços a prática educativa deve ultrapassar a transmissão de conteúdo, para dar lugar ao nascimento de uma compreensão emocional do professor para com o estudante. O amor é definido por Freire (2011, p. 111) como “um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens”; nesse sentido, a amorosidade desses professores se manifesta quando declaram comprometimento e satisfação em sua participação na libertação dos oprimidos, conforme afirma a professora Atena:

Desde esse período, eu me apaixonei porque [...] eu falei: Nossa, eu não sabia disso! Deus sempre nos dá uma chance de mudar de vida e eu queria participar disso! (Entrevista narrativa com a professora Atena).

Logo, o amor como sentimento, como comprometimento, é essencial para a existência do diálogo. Nesse sentido, Freire (2011, p. 111) afirma: “se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo”. Portanto, sem amor, a prática educativa não se faz dialógica e sem prática educativa dialógica não se vislumbra possibilidade de mudanças. À luz do pensamento de Freire (2011, 2014), não basta se comprometer com a causa dos oprimidos; é necessário acreditar, por meio da fé, que a libertação e a mudança são possíveis, dada a incompletude humana e o seu poder de vir a ser. Porém, a continuidade da existência e de sua modificação só é possível devido ao sonho.

Para Freire (2014, p. 126), “não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança”. É preciso sonhar com a humanização, a partir do poder de vir a ser do ser humano, e isso nos remete à contribuição da educação para a transformação dos estudantes como um sonho possível. A educação como possibilidade de os estudantes vivenciarem novas experiências dentro dos espaços de privação e ao retornarem ao convívio social é evidenciada no relato do professor Zeus sobre a sua maior realização profissional:

Olha, eu vou te falar, não é ser convencido não. São os meus alunos que vêm e me cumprimentam, tem aluno que falou: professor, eu te agradeço! Professor, agora eu tô entendendo o que o senhor quer dizer. Tem um que foi lá e falou: professor, você é o cara que fez eu mudar de pensamento. Hoje, ele trabalha na Seduc, ele é funcionário. E dentro do sistema prisional eu tenho aluno que fala: professor, você fez eu mudar de pensamento. Tem mais um dentro do ônibus que falou: professor, quando eu melhorar a condição eu vou fazer o curso de História. (Entrevista narrativa com o professor Zeus).

O sonho do professor é pequeno perante os imensos desafios que se apresentam à educação escolar desenvolvida nos espaços de privação de liberdade e à formação continuada daqueles que nela atuam, porém é a liberdade de o barco navegar que faz com que a sua chegada seja um sonho possível. Apesar dos paradoxos e mecanismos de controle que existem nesses espaços, o sonho se torna possível quando o professor conta com o reconhecimento dos estudantes sobre o seu trabalho, quando os encontra na rua trabalhando e, ainda, demonstram a vontade de dar continuidade aos estudos.

Esses professores, movidos pela amorosidade e sonho de uma prática educativa que contribua para a libertação dos estudantes que se encontram nos espaços de privação de liberdade, no decorrer das reuniões formativas do PEFE, prosseguem com a tessitura da docência nas escolas das unidades prisionais. Ao analisar os seus dizeres, identificamos que há uma linha tênue entre a Formação Continuada e a prática educativa; seja nas entrevistas, seja no decorrer das reuniões formativas, os professores sempre se referem à prática educativa remetendo às vivências formativas ou profissionais. Assim sendo, o sonho e a amorosidade descritos por Freire (2014) permeiam ambas as práticas: a formativa e a educativa.

Nossas considerações nada finais, porque esperançosas...

O artigo apresentado teve como proposta trazer algumas reflexões em relação à formação continuada de professores que atuam em escolas de unidades prisionais. Para tanto, abordamos inicialmente o conceito de formação continuada como prática social situada em contexto; em seguida, apresentamos a abordagem do estudo concluído em 2020, no curso de doutorado, e na terceira parte elegemos um dos focos de análise para a tessitura deste texto: os dizeres dos professores sobre a formação continuada.

A formação de professores para a EJA vem desafiando formatos dos cursos de licenciatura para outras configurações em função de conhecer em profundidade quem são os jovens e adultos que buscam a escola e, por outro lado, estabelecer a relação entre EJA e outras modalidades de educação básica. Estes desafios demandam responsabilidade pública, intencionalidade política e pedagógica, com algum descaso em tempos debrazis, pandemia, desconexão econômica, social e política.

Somos convocados, de diferentes formas, a buscar convergências e sinalizar possibilidades. À academia cabe articular ações sociais e políticas e, por outro lado, problematizar, alavancar, organizar formas propositivas para temáticas pouco visíveis e fragilizadas, como uma de suas pautas. Tomar, portanto, a EJA, que durante muito tempo foi um “construir-se às margens”, e a formação de seus professores “sempre um pouco pelas bordas”, como indica Arroyo (2006, p. 17), nos parece uma contribuição, neste momento em que a educação escolar como um todo procura suas margens... Somos marinheiros mortos? Não! Fazemos a resistência!

Como estudiosas da educação escolar em unidades de privação de liberdade, mesmo inseridas na modalidade EJA, somos um terreno ainda baldio; nos compete estar presentes, com ações afirmativas, propositivas e esperançosas. Trazer a formação continuada de professores que atuam em escolas de unidades de privação de liberdade como problemática, neste momento de recuos, interrupções, rupturas e inseguranças de toda ordem, constitui-se para nós uma atitude de andar, andarilharcomos professores, nossos colaboradores de pesquisa, que reafirmam a esperança como necessidade ontológica. Utilizamos o prefixocom-para garantir a ideia de compromisso que pode significar prometer-se consigo e com o outro.

Esperançamos, com as palavras de Martí (1976, p. 77): “A educação há de ir para onde vai a vida, para afirmar-se em seguida que: Se educação precisa ir onde vai a vida, ela deve, em primeiro lugar, ir onde estão as pessoas” - os professores que buscam condições subjetivas de trabalho, em processos de formação continuada, como os que neste artigo apresentamos, que fazem acontecer aprendizagens significativas em suas salas de aula improvisadas, salários injustos, com escassas condições objetivas de trabalho, e acolhem pessoas em situação de privação de liberdade, fazem educação para/com a vida.

E eles continuam, continuam, continuam ... E isso não é pouco!

Referências

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Notas

01A coleta de dados aconteceu entre os meses de fevereiro e agosto do ano de 2018.

02Seduc promove encontro com representantes de regionais dos Cefapros de Mato Grosso. Disponível em: http://www2.seduc.mt.gov.br/-/15912523-seduc-promove-encontro-com-representantes-de-regionais-do-cefapros-de-mato-grosso. Acesso em: 26 nov. 2020.

03O maior desafio da Formação Continuada é a articulação entre a teoria e prática. Todavia, tal desafio não está restrito somente às ações formativas desenvolvidas nos espaços escolares em Mato Grosso, já que se estende para outros contextos e realidades formativas

: de ; Recebido: 12 de Outubro de 2020; : de ; Aceito: 02 de Dezembro de 2020; : de ; Publicado: 30 de Março de 2021

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