Introdução
A pandemia de covid-19 ressaltou inúmeras fragilidades, visto que percebemos que não estávamos minimamente preparados para lidar com um evento tão adverso. Vários setores, das mais diversas áreas das atividades humanas foram impactados, ao ponto que tivemos que lidar com questões, procurar soluções, e adequar-se à nova realidade, o “novo normal”, do dia para noite.
Não obstante, a educação foi uma das atividades humanas que mais foi impactada, tendo que ser reelaborada a “toque de caixa”, uma vez que as escolas tiveram que tomar decisões rapidamente, muitas vezes com planejamento limitado, tudo para atender as necessidades impostas por essa dura realidade, que afetou a vida de bilhões de pessoas e ceifou outras tantas.
De repente, percebemos que as escolas, que conservavam seu modo operacional intacto desde muitas décadas, eram agora, totalmente inadequadas ao contexto atual, e mais de 1,7 bilhão de alunos em todo o mundo tiveram seu processo educacional, momentânea ou permanentemente interrompido pela pandemia, em um nível nunca visto antes desde a Segunda Guerra Mundial (BRITO; CZOLPINSKI; RAUPP, 2021; DIETRICH et al, 2020).
Particularmente em nosso país, os desafios educacionais tomaram uma proporção ainda maior, agravadas por uma infraestrutura precária e desigual, bolsões de pobreza e ainda uma política pública desencontrada, pouco assertiva e não condizente com a gravidade da pandemia. E assim, abruptamente, as crianças e jovens, em todo país e em todos os níveis de ensino, foram impedidos de ir à escola e passaram para o ensino remoto.
Porém, se os desafios inerentes a educação e a essa nova realidade exigem um esforço gigantesco, estes crescem exponencialmente quando analisamos o contexto da educação Especial, e mais especificamente a educação de surdos, seja no Brasil (SHIMAZAKI; MENEGASSI; FELLINI, 2020) ou em outros países como Arábia Saudita (ALSADOON; TURKESTANI, 2020), Portugal (ALVES; PINTO; PINTO, 2020), Estados Unidos da América (CHARMATZ, 2020; JOHNSON, 2020), Grécia (MANTZIKOS; LAPPA, 2020) e Itália (TOMASUOLO et al., 2021).
E, tendo em vista especialmente o ensino de física para alunos surdos, este artigo visa discutir como tem ocorrido o ensino neste tempo de pandemia para esse público, traçando um paralelo com a realidade enfrentada por um professor de física de uma escola de surdos de Porto Alegre, em relação a realidade descrita por outros pais, professores e alunos surdos, em diferentes países, que foi descrita em outros trabalhos encontrados em nosso levantamento bibliográfico.
A ideia descrita aqui é inferir, não de forma prescritiva, um conjunto de sugestões, que podem ajudar esses alunos neste momento difícil de distanciamento físico, ensino remoto e/ou híbrido. São relatadas as adversidades encontradas, as soluções implementadas e as nossas perspectivas e a desses profissionais, para o ensino remoto de alunos surdos. E, mantendo a coerência com a necessidade de distanciamento físico, todas as entrevistas ocorreram por meio de videoconferência, trocas de mensagem e questionários eletrônicos. Destaca-se que esse artigo, é um recorte de uma pesquisa de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, aprovado pelo Comitê de Ética sob protocolo número CAAE: 26499019.8.0000.5349.
Como referencial metodológico adotamos a perspectiva da Pesquisa Social Interpretativa de Rosenthal (2018), buscando saber como o professor pesquisado, vem vivenciando o processo de ensino de surdos na Pandemia de Covid-19.Escolhemos realizar entrevistas abertas, como principal método para a coleta de dados, pois permitiu que o entrevistado nos dissesse o que ele experimentou de acordo com suas próprias relevâncias e suas próprias perspectivas. Observando as questões éticas de anonimato, identificaremos o professor pesquisado como "professor P".
A seção a seguir contextualiza o leitor sobre o local de pesquisa, as seguintes trazem nossos apontamentos sobre os desafios e adversidades no ensino remoto para surdos bem como as soluções, lições e perspectivas futuras para o ensino remoto desses alunos.
Características da população e do local de pesquisa
Para este trabalho foi selecionada uma escola especial para surdos de Porto Alegre-RS, que conta com 20 professores, dos quais 18 são ouvintes e 2 surdos. No ensino médio, a escola conta com 2 turmas de 1° ano, uma com 12 alunos surdos, e outra com 6 alunos surdos e com outra deficiência como Deficiência intelectual e/ou cadeirante. A escola, tem ainda 1 turma de 2 ° ano com 12 alunos surdos, e 1 turma de 3° ano com 6 alunos surdos.Todos os alunos são maiores de 18 anos, tendo idades entre 20 a 40 anos, apresentando, portanto, uma distorção idade-série.
Como principal participante desta pesquisa, temos o professor P, que é formado em Física, e possui duas pós-graduações em Libras, e atua desde 2009 como professor de ensino médio na rede estadual de Porto Alegre, ele também atua como professor na rede particular de ensino, em nível superior, participando na formação de professores em um curso de Libras.
Desafios e adversidades no ensino remoto para surdos
a. A comunicação em tempos de pandemia
Sem sombra de dúvida o primeiro grande desafio a ser discutido no contexto da educação de surdos em tempos de pandemia, é o da comunicação.
O que é possível observar, é que, sendo o ensino promovido presencialmente o professor P interage com cada aluno surdo sem mediadores de qualquer espécie. Mas dado o contexto de distanciamento físico necessário para controlar o avanço da pandemia, o ensino que era presencial passou a ser realizado de forma remota.
E neste caso, conforme o relato do professor P, várias dificuldades surgiram, das quais podemos destacar em primeiro lugar o acesso à Internet ou a má qualidade da velocidade de conexão, a figura a seguir traz a evidência da experiência vivida de um problema técnico, que culminou no cancelamento de uma aula online síncrona, devido a problemas de conexão.
É importante observar que esse primeiro fator, têm grande impacto na vida dos alunos surdos, pois afeta diretamente na forma como ocorre o processo de estabelecimento da comunicação.
A má qualidade da velocidade de conexão ocasiona ruídos na comunicação, considere por exemplo o contexto da sinalização em Libras, e que em um dado instante, a conexão falha e o aluno perde um sinal de um termo importante, requisitando, portanto, a repetição por parte do professor. Destacamos que isto pode ocorrer tanto do lado da conexão do professor, como do aluno, aumentando a frequência de repetições por aula, ou até mesmo, o que é pior, a desistência do aluno surdo em acompanhar a aula. A figura a seguir, apresenta o registro de uma aluna, que informa pelo Chat do Google Meet, que o vídeo está travando, enquanto para o outro aluno não estava.
Junta-se a esse processo também a falta de tradução de conceitos científicos para Libras, algo salientado como um problema para o ensino de Física, de acordo com Picanço, Andrade Neto e Geller (2021).Como evidência desta situação destacamos uma fala do professor P, ao relatar sobre uma de suas aulas online para o 1° ano do ensino médio.
Durante esta aula, ao tratar do conceito de gravidade (força gravitacional), e explicar o mesmo para os alunos, porém fazendo a datilologia da palavra gravidade, um dos alunos se confundiu e achou que o professor se referiu a palavra gravidez, e fez o sinal desta palavra, outro aluno argumentou que conhecia um sinal para esse termo. Daí então o professor P perguntou que sinal ele conhecia, o mesmo fez o sinal de grave (ou perigo) em Libras.
Em ambos os casos o professor P explicou que, os dois sinais indicados por esses alunos, não tinha relação com o conceito físico de gravidade, explicando o mesmo.
E como ocorreu o processo de ensino para alunos sem acesso à Internet? Bom nesse caso a situação pareceu ainda mais precária, pois a estes alunos foi oferecido material escrito, que foi impresso e entregue na escola em plantões realizados de 15 em 15 dias, que dependiam da liberação das autoridades competentes, de acordo com o modelo de distanciamento controlado.
b. Limitações das plataformas de videoconferência
Conforme expomos na seção anterior, falhas na comunicação entre computadores por meio da internet são comuns; contudo, os dispositivos são programados para lidar com estas falhas por meio de algoritmos de correção de erros e, no caso de videoconferência, priorizar um canal (áudio) em detrimento do outro (vídeo). Isto evidencia uma ruptura entre o canal preferencial para ouvintes (som) do canal preferencial dos surdos (vídeo) para a continuidade da comunicação.
Sendo assim, ao que parece, as plataformas de videoconferência disponíveis atualmente não foram projetadas visando atender universalmente todas as pessoas, havendo, portanto, uma evidente necessidade de melhorias para os surdos, a fim de garantir uma comunicação eficaz para estes.
Pois,ao priorizar o áudio ao invés do vídeo e mostrar sempre a janela da pessoa que está falando (ou simplesmente a que está com o canal de microfone aberto), cria-se um problema de grande impacto na educação dos alunos surdos.
Nesse aspecto, o professor P, relatou uma situação que ajuda a ilustrar essa observação.
Ao verificar a gravação de uma reunião feita pelo Google Meet, e que seria disponibilizada para os alunos posteriormente, observou-se que o que foi registrado, foi a janela de um dos participantes que estava com o microfone aberto (apenas acenando assertivamente com a cabeça), enquanto a janela de quem estava efetivamente sinalizando não foi registrada. Em outra reunião, de forma análoga, foi registrado a fala da gestora do colégio e não a tradução em Libras.
E, em sua fala, o professor P, destaca que já entrou em contato por e-mail com a equipe técnica do Google for Education, solicitando ajuda para melhorar a acessibilidade do Meet, requerendo a possibilidade de gravar em modo mosaico, selecionando as janelas com maior prioridade, e não apenas uma janela (a de quem está oralizando). No entanto, até o momento o professor P, não obteve esse feedback do Google.
Situação semelhante foi identificada por Lynn e colaboradores (2020), no ensino remoto de química, por meio da plataforma de videoconferência ZOOM, e por Tigwell e colaboradores (2020), na adaptação de um curso de American Sign Language (ASL) presencial para modalidade de ensino remoto, por meio da plataforma de videoconferência ZOOM, ambos estudos, direcionados para estudantes do National Technical Institute for the Deaf (NTID), do Rochester Institute of Technology (RIT).
Também é preciso levar em consideração outros aspectos visuais importantes que se configuram como outras limitações nessas plataformas, o primeiro é a mudança para um espaço 2D (telas de celulares e computadores), porém sendo a Libras uma língua visual 3D, muitos sinais são afetados, o que ocasiona ainda mais ruídos na comunicação.
Também a baixa qualidade da resolução de câmeras é outro fator que impacta na comunicação nessas plataformas, pois muitos parâmetros da Libras, como as expressões faciais, pontos de articulação e configurações de mãos, ficam comprometidas.
O layout de vídeo apresentado nas plataformas é outro entrave, uma vez que, não é possível apresentar simultaneamente duas ou mais janelas, de forma que se tenha uma janela com slides e outra com o professor ou intérprete sinalizando em um tamanho visualmente adequado.
Conforme com as normas da ABNT 15290, por exemplo, temos como recomendação de Acessibilidade em comunicação na televisão, que a janela de tradução de Libras deve ser no mínimo, metade da altura da tela principal e sua largura, ocupar no mínimo a quarta parte da largura da tela, e não sobrepor qualquer outra imagem no vídeo (ABNT, 2005), algo que não é contemplado pela plataforma do Google Meet.
Para tentar contornar essa situação do layout de vídeo, o Professor P buscou extensões para adicionar recursos à plataforma Meet, e destaca que uma dessas extensões permite por exemplo mostrar na tela dele somente participantes com vídeo, destacar quem está falando (opção que foi desativada por ele), porém esta extensão não resolveu o problema da gravação da reunião, destacado anteriormente, pois na gravação permanece o registro de apenas uma janela.
Para apresentar a aula nesta plataforma, o professor P, não utiliza o modo compartilhamento de tela do Meet, pois segundo ele, a apresentação de slides toma conta de toda a tela e reduz a janela do vídeo de quem está sinalizando a apresentação, e em suas palavras: “isto para sinalizar é horrível”.
Sendo assim, o professor P utiliza outra ferramenta, o OBS Studio, projetando os slides da apresentação em uma tela verde (Chroma Key), possibilitando assim que ele apresente os slides e sinalize em uma só tela, conforme a figura a seguir.
c. O processo de implementação do ensino remoto e/ou híbrido
Quando foi decretado a suspensão das aulas presenciais na rede estadual do Rio Grande do Sul, ainda na segunda quinzena do mês de março de 2020, pouco se sabia sobre como, quando, e de que forma as aulas retornariam.
Foi então que somente em junho de 2020, mais de dois meses depois do fechamento das escolas, foi efetivamente implementado como Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), a plataforma Google Classroom (RIO GRANDE DO SUL, 2020a), através de uma parceria entre a Secretaria de Educação do Estado com a Google for Education,e para acessar esse AVA, foi oferecido pelo governo um ponto de acesso à internet para estudantes e professores, através do aplicativo ESCOLA RS (internet patrocinada) (RIO GRANDE DO SUL, 2020b).
Por se tratar de uma ferramenta nova no ensino da rede estadual, foi oferecido pela Secretaria de Estado de Educação jornadas pedagógicas para o planejamento das aulas remotas e treinamento online para os professores, com uma série de videoaulas sobre Letramento digital, por meio de seu canal no YouTube (TV SEDUC-RS, 2020).
No entanto, estes professores tiveram que aprender a lidar com esse AVA e aplicar concomitantemente com seus alunos e ainda,a internet oferecida pelo governo permite o acesso apenas ao Google Classroom, desconsiderando a necessidade de acesso a portais de pesquisa e outros sites, algo que limita o desenvolvimento processo educacional.
Entretanto, o professor P, destacou que não teve dificuldades com essa plataforma, e que na verdade prestou auxílio, elaborando vídeos e explicando em Libras o funcionamento do Google Classroom, que foram compartilhados para todos os alunos da escola, por meio das redes sociais.
E em 8 de julho de 2020 a Secretaria de Educação, disponibilizou a primeira versão com as orientações à rede pública estadual de educação do Rio Grande do Sul para o modelo híbrido de ensino, que foi atualizada no primeiro semestre de 2021. (RIO GRANDE DO SUL, 2021b).
Porém destacamos que para a Educação Especial, foi dedicada somente uma seção com pouco mais de 6 páginas (páginas 33 a 39), que contém orientações genéricas, vagas e superficiais sobre orientações para acessibilidade dos estudantes cegos ou com deficiência visual, surdos e com deficiência auditiva, com Altas Habilidades/Superdotação, alunos com Transtornos do Espectro Autista - TEA e estudantes com Deficiência Intelectual - DI (RIO GRANDE DO SUL, 2021b).
Tais orientações ressaltam mais deveres do que apontam soluções práticas para professores, algo que consideramos aquém da complexidade inerente ao tema.Em nossa pesquisa encontramos por exemplo, um relatório com orientações para a reabertura da educação especial em escolas do estado norte-americano de Washington.Esse relatório traz o planejamento Distrital que fornece informações e recursos para apoiar alunos com deficiência, com uma seção inteira dedicada só para o atendimento de alunos surdos, inclusive (MAY et al., 2020).
Acreditamos, que esse é o tipo de normativa que a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul deveria adotar com relação à Educação Especial. Pois o documento norte-americano, destaca ainda que durante todo o processo de reabertura das escolas de Washington, buscou-se oferecer orientações para todos os administradores e educadores distritais e escolares, incluindo orientações sobre a parceria com as famílias, para abordar questões de equidade no acesso, apoiar o desenvolvimento socioemocional e acadêmico dos alunos e fornecer educação especial e serviços relacionados (MAY et al., 2020).
Quanto ao ensino híbrido, o professor P expressou preocupações que consideramos pertinentes, dentre elas podemos destacar a necessidade de dar atenção múltipla a alunos em sala de aula e os demais que estão em casa.
Quando perguntado como ele administrava as multitelas no ensino remoto, o Professor P nos disse que era algo muito complexo dar atenção a vários alunos surdos sinalizando ao mesmo tempo, e que isso seria ainda mais desafiador em um eventual sistema híbrido, a começar pela infraestrutura necessária para implementação deste.
Neste ponto destacamos que seria necessário montar uma tela verde (Chroma Key) na sala de aula para mostrar o conteúdo online para os alunos em casa, tal como mostramos anteriormente, e ao mesmo tempo seria necessário um Datashow para apresentar os slides para os alunos que estivessem presencialmente na sala de aula, tudo isso tendo que dividir a atenção entre as multitelas e os demais alunos in loco.
Segundo P, até o presente momento (maio de 2021) as atividades continuam a ser realizadas remotamente, ainda que outras escolas tenham retomado as atividades presenciais de forma híbrida.
Os motivos, de acordo com o professor P é o aumento no número de estudantes matriculados na escola, que passou de 77 alunos em 2020 para 117 em 2021, em decorrência do fechamento de outra escola de surdos na região; bem como a abertura de um segundo turno para atender a demanda e a estrutura atual da escola, na qual cada professor tem a sua sala de aula própria e os alunos se deslocam de uma sala para outra, seguindo o seu horário.
Para continuar na estrutura anterior à pandemia, adotada a mais de quatro anos, seria necessário agora a higienização de cada sala após a mudança de cada turma, porém a escola conta com um único funcionário da limpeza em um único turno, necessitando assim de outros funcionários para limpeza e higienização, sendo, portanto, uma demanda não atendida pela Secretaria de Educação até o momento.
Outra preocupação expressada pelo Professor P, foi quanto a Matrizes de Referência para o Modelo Híbrido de Ensino da Rede Estadual de Educação (RIO GRANDE DO SUL, 2021a), principalmente no que diz respeito ao componente curricular de Física.
Segundo o Professor P foi sugerido pela Secretaria de Educação, deslocar alguns conteúdos do 1° ano do Ensino Médio (EM) (Cinemática e Mecânica Newtoniana) para primeiro trimestre do 2° ano do EM, etambém, alguns conteúdos do 2° ano (Termodinâmica e Ondulatória) para o primeiro trimestre do 3° ano do EM,isto adicionalmente aos conteúdos habituais trabalhados em cada um desses níveis de ensino. Algo que certamente esbarra na carga reduzida de aulas semanais da disciplina de Física.
d. A falta de materiais didáticos em Libras e o regionalismo
Ao mudar para o ambiente virtual, o professor P, teve que readequar todas as suas estratégias didáticas e ele ressaltou que estava habituado a trabalhar presencialmente,pois possuía uma gama de recursos e sala de aula estruturada com laboratório específico para sua disciplina.
Porém toda essa infraestrutura ficou de lado com o ensino remoto em virtude da pandemia e o professor P teve que adotar uma nova postura, que exigiu dele proficiência com diversos recursos tecnológicos (alguns novos, ainda não explorados pelo professor), para a pesquisa e produção de materiais didáticos digitais.
Para alimentar com conteúdos a plataforma do Google Classroom, o Professor P teve que realizar muita pesquisa, e o principal obstáculo encontrado por ele foi a falta de material didático acessível em Libras.
O professor P destacou que ao procurar vídeos de física com tradução em Libras, encontrou poucos resultados, e quando encontrava, ainda tinha que levar em consideração o regionalismo, pois muitos alunos confundiam-se com a diferença entre sinalização de números, por exemplo, ou mesmo reclamavam abertamente por ser um vídeo de outro estado.
A mesma carência de material didático digital para língua de sinais, também ocorre em outros países, e tem impulsionado a busca de soluções, temos por exemplo, o relato de Smith e Colton (2020) sobre o desenvolvimento de vídeos em American Sign Language (ASL) para um canal no YouTube, que foram feitos por alunos de um curso de graduação da Universidade do Texas, e que tem como foco o ensino de crianças surdas do jardim de infância e ensino fundamental (K-12).
Destacamos também as iniciativas em nosso país, no que tange a produção de materiais didáticos para Libras, tais como a iniciativa de Oliveira e colaboradores (2020), em seu projeto “Comunicação Acessível em Libras durante a Pandemia da Covid-19”, que por meio da produção de vídeos acessíveis busca difundir informações oficiais governamentais, assuntos de interesse das comunidades surdas e até dicas de entretenimento durante o período da pandemia da Covid-19.
E,ainda, a iniciativa de De Oliveira Martins e colaboradores (2020), no que tange a produção de vídeos com histórias infantis em Libras, que visam informar, entreter e estimular o contato com essa língua por crianças surdas, em processo de alfabetização, e que estão em ensino remoto em virtude da pandemia de Covid-19. Esperamos que mais iniciativas surjam, principalmente na área das ciências da natureza e Matemática.
e. Aspectos socioemocionais decorrentes da pandemia em professores e alunos
Quando o professor P foi questionado sobre como ele estava se sentindo com todo esse processo de ensino remoto, o mesmo esboçou muito cansaço, principalmente em relação ao número de horas de trabalho.
Ele relatou que o seu contrato prevê 38 horas de trabalho semanal, porém ele estava trabalhando muito mais do que o previsto, por causa da pesquisa e adaptação de materiais didáticos para o meio digital e acessíveis em Libras, e que além disso, estava assistindo mais 5 turmas que estavam sem professor de física, em uma das escolas que trabalha.
O professor P citou uma situação que envolveu a reclamação de uma mãe. A mesma reclamou que ele postou uma atividade a 1:00h da manhã, e que esse não era um horário adequado. No entanto, segundo o relato do professor P, a intenção dele era que a atividade estivesse disponível para o aluno, e que o mesmo poderia acessar no dia seguinte.
Segundo P, essa situação demonstra o quanto a carga horária dele aumentou, pois o mesmo levou horas para montar e adaptar um material e só conseguiu postar em um horário avançado.
Em seu primeiro relato (agosto de 2020), ele nos informou que juntando as demandas de todas as escolas que ele trabalha, já havia recebido mais de 1 mil trabalhos, e ainda se tratava das demandas do 1° semestre de 2020.
Além da exaustão causada pela pandemia nos professores, em especial o professor P, também destacamos a situação do aluno surdo.
A motivação destes alunos também foi afetada, segundo o professor P, pois o engajamento nas atividades por parte destes alunos diminuiu consideravelmente, e uma possível explicação para essa falta de motivação é o distanciamento físico, uma vez que é de conhecimento, que a maioria desses alunos tem familiares ouvintes, que não dominam a Língua de Sinais.
Assim, temos neste caso que o distanciamento físico se configura literalmente como isolamento social de seus pares e assume mais este viés dramático, o isolamento linguístico.
Este isolamento social e linguístico a longo prazo pode ocasionar traumas emocionais decorrentes dessa mudança forçada, sendo também uma preocupação que devemos levar em consideração, no que tange explorar os fatores relevantes que afetam a saúde mental desses alunos. Logo, se faz necessário fornecer estratégias, baseadas em evidências para reduzir os impactos psicológicos adversos nesta população, durante a pandemia COVID-19, tal como apontam Yang e colaboradores (2021).
Soluções para o ensino remoto de alunos surdos
Gostaríamos de destacar a resiliência e a capacidade de adaptação, demonstrado pelo professor P, pois cabe ressaltar que em 11 anos de docência para alunos surdos, essa era a primeira vez que o mesmo estava operando em ensino remoto, e ainda assim conseguiu prosseguir com suas aulas, e mais do que isso, conseguiu transformar a sua realidade e tirar lições positivas de todo esse processo, e nessa seção destacamos algumas das soluções encontradas por ele para atender seus alunos.
a. Aplicativo de mensagem WhatsApp como meio de comunicação
É notório que o WhatsApp é um dos aplicativos de mensagem mais utilizados no mundo, no entanto, para além desse motivo, que tornaria seu uso justificável por si só, observamos que esse aplicativo pode também ser considerado uma solução para o ensino a distância segundo a UNESCO (2021), pois de acordo com essa agência, esse aplicativo pode ser usado como uma plataforma de colaboração que suporta comunicação de vídeo ao vivo.
Nessa perspectiva, destacamos que, ainda antes da pandemia, o professor P já utilizava o aplicativo de mensagem WhatsApp como canal de comunicação com seus alunos, porém, durante a pandemia esse meio de comunicação foi o primeiro a ser implementado oficialmente pela direção da escola, que criou um grupo para cada turma da escola.
Nesses grupos, cada professor posta a atividade em PDF e um vídeo em Libras explicando a atividade, e em caso de dúvida o aluno envia um vídeo fazendo a sua pergunta, que pode ser enviada para o grupo, compartilhando a dúvida com todos, ou unicamente para o professor.
O professor P, ressaltou que esse aplicativo tem ajudado muito, dada a sua popularidade, mas o limite de tamanho paraanexar arquivos nesse aplicativo, impedia envio de vídeos maiores, obrigando assim que as postagens fossem curtas. Porém o recurso de vídeo chamada desse aplicativo também possibilitou tirar dúvidas dos alunos, sem esse limite de envio.
Também, destacamos que essa ferramenta apresenta as mesmas limitações de vídeo chamada das outras plataformas referidas anteriormente (GoogleMeet e ZOOM), principalmente no que tange dar preferência ao áudio ao invés do vídeo, em caso de conexão lenta com a internet.
b. O uso de simuladores para explicar o conteúdo
Uma das iniciativas do professor P, que mais chamou nossa atenção foi a utilização das simulações interativas PhET1, da Universidade do Colorado. Pois, destacamos que essa iniciativa é algo relevante para o Ensino de Física, uma vez que auxilia o aluno a compreender melhor os fenômenos Físicos, ressaltando um nível de representação destes, o modelo físico microscópico (PICANÇO; ANDRADE NETO; GELLER, 2021).
Para demonstrar visualmente os conteúdos da termodinâmica para os alunos surdos do segundo ano do ensino médio, por exemplo, o professor utilizou a simulação “Estados da Matéria”, para ensinar as relações entre calor e temperatura, e outras características como pressão, volume, etc.
Segundo P, não adianta apenas abordar teoricamente esses conceitos com alunos surdos, pois os mesmos têm dificuldades em aprender conceitos abstratos, de tal modo que esses simuladores são muitos uteis, contudo, eles não possuem acessibilidade em Libras.
Assim, para que os alunos utilizassem esses simuladores, o professor P, teve que previamente fazer vídeos explicando em Libras como acessar e utilizar esses simuladores, que podem ser utilizados online diretamente no site da Instituição sem a necessidade de instalar nada.
Para o professor P, esses simuladores foram a alternativa encontrada por ele, já que não teve um bom feedback dos alunos na execução de experimentos de baixo custo caseiros, mas os motivos para essa não adesão não foram esclarecidos pelo Professor P.
No entanto, temos por exemplo que no ensino de Química para estudantes (ouvintes) de Ensino Médio de uma escola de Porto Alegre,Brito, Czolpinski e Raupp (2021) conseguiram aplicar uma sequência didática que contemplou a realização de duas atividades experimentais caseiras para abordagem de reações químicas inorgânicas de forma remota, utilizando o Google Classroom e a técnica predizer-observar-explicar (POE).Neste caso, ao contrário da experiência do professor P, a adesão dos estudantes às práticas experimentais remotas foi aumentando ao longo do experimento.
Guardada as devidas peculiaridades destas situações(ensino de física e ensino de química, e ainda, o ensino de surdos e ouvintes), podemos verificar que a execução de experimentos reais (desde que sem riscos, ou riscos mínimos de execução), não pode ser totalmente desconsiderada, mesmo em tempo de ensino remoto, pois estes são fundamentais para demonstrar outro nível de representação dos fenômenos, o nível Sensório(PICANÇO; ANDRADE NETO; GELLER, 2021).
c. As redes sociais como canal de comunicação
No relato do professor P também observamos que o mesmo procurou ajudar os alunos através das redes sociais, como a página no Facebook da escola, disponibilizando informações em Libras sobre como acessar a plataforma do Google Classroom, informações sobre a pandemia, comunicados da escola, entre outros.
É importante observar que essa iniciativa é importante para os surdos, uma vez que informações acessíveis em Libras são escassas e contar com mais esse canal de comunicação é muito oportuno, configurando-se como uma tática adotada em muitos lugares.Na Itália, por exemplo, as redes sociais estão sendo usadas pelos membros da comunidade surda, como espaço para promover a coesão social e compartilhar informações sobre a emergência do coronavírus, bem como um espaço virtual onde é possível discutir a apropriação de várias escolhas linguísticas relacionadas ao léxico do COVID e discutir sobre os diversos serviços de interpretação (TOMASUOLO et al., 2021).
d. O uso de vídeos para ensinar conceitos de Física
Em sua fala e também atuação, o professor P sempre demonstra estar preocupado com um ensino de Física contextualizado, e dada as características visuais dos alunos surdos, ele utiliza como recurso pedagógico para ensinar conceitos da Física, vídeos ilustrativos.
Mesmo antes da pandemia, ele já utilizava esse recurso, porém destacamos a atitude adotada pelo professor P, ao dizer que, se tem uma coisa positiva em todo esse processo de ensino remoto, é a possibilidade de usar ainda mais esses recursos visuais como animações e vídeos em suas aulas. Pois antes da pandemia, era preciso ter a disponibilidade de um projetor Datashow na escola, algo que nem sempre era possível.
A utilização de vídeos como recursos didáticos para ensinar conceitos de Física, bem como a realização de experimentos ou utilização de simuladores ou Softwares, despontam como as principais metodologias encontradas na literatura sobre o ensino de Física para surdos(PICANÇO; ANDRADE NETO; GELLER, 2021).
E nesse aspecto, verificamos que o professor P está alinhado com essa tendência de privilegiar métodos pedagógicos e materiais didáticos que dependem de apoio visual, a chamada Pedagogia Visual (CAMPELLO, 2008).
Algumas lições e perspectivas futuras para o ensino remoto de alunos surdos
Tendo como base as melhores práticas do Professor P e ainda os apontamentos dos autores encontrados em nossa pesquisa bibliográfica, trazemos nessa seção algumas lições sobre o ensino de surdos na pandemia, dentre as quais podemos destacar:
i. Buscar um design universal para o ensino
Quando garantimos e facilitamos a aprendizagem dos alunos surdos, todos se beneficiam, isso é consistente com o conceito de design universal. Portanto, quando professores tornam seus materiais didáticos e acadêmicos multimodais, eles funcionam com pessoas com diferentes condições físicas e formas de ler e se comunicar (SHEW, 2020).
ii. Melhores práticas para apoiar alunos surdos durante a pandemia
É importante proporcionar uma experiência verdadeiramente acessível, que leve em consideração os desafios enfrentados por esses alunos, e que os mantenha conectados uns aos outros, mesmo quando a aprendizagem é virtual (SUTTON, 2020).
iii. Requisitar acessibilidade paraplataformas de videoconferência
Se faz necessário que as plataformas e aplicativos levem em consideração a demanda de acessibilidade dos surdos, dentre as quais podemos destacar: (a) recursos como o redimensionamento da janela de quem está sinalizando para garantir melhor enquadramento do conteúdo a ser sinalizado; (b) não priorizar o áudio em detrimento do vídeo, dando a possibilidade de escolher janelas prioritárias; (c) oferecer recursos adicionais para comunicação via plataforma, como por exemplo, vibrar o aparelho celular ou emitir um alerta luminoso para chamar a tenção de um estudante surdo, ao invés de apenas emitir alertas sonoros.
iv. Recomendações para os pais de alunos surdos
Os pais de crianças surdas devem: (a) ser assertivos na obtenção dos serviços que seus filhos requerem; (b) procurar acompanhar ativamente a educação online de seus filhos, verificando se os recursos oferecidos são acessíveis; (c) oferecer oportunidades de socialização para as crianças surdas; (d) procurar oportunidades de exposição (online) de crianças à adultos surdos (no caso de pais ouvintes) e; (e) garantir acesso à comunicação, independentemente de qualquer dispositivo ou recurso de tecnologia assistiva (KRITZER; SMITH, 2020).
Considerações finais
No início do ano de 2020 um evento - a pandemia de COVID 19 - surge para, globalmente, alterar drasticamente o mundo em que vivemos, com consequências danosas para a educação de cerca de 1,7 bilhão de alunos em todos o mundo, e especialmente danosas para os surdos. Assim, neste artigo, discutimos um recorte da prática pedagógica de um professor do município de Porto Alegre e as dificuldades e soluções encontradas no ensino remoto de seus alunos surdos.
Dentre os principais desafios, relatados pelo professor, destacamos os problemas de comunicação - em especial falhas na comunicação digital - do ensino remoto; as limitações das plataformas de videoconferência - que são projetadas para ouvintes; a dificuldade de implementação do ensino remoto em vários níveis administrativos; a falta de materiais didáticos apropriados em Libras; e finalmente, os aspectos socioemocionais decorrentes da pandemia em toda comunidade escolar.
As soluções encontradas, pelo professor, giram em torno do uso do WhatsApp como meio de comunicação - que consegue de forma limitada ser um bom aplicativo de comunicação entre surdos e/ou ouvintes; o uso de vídeos e simuladores para explanação do conteúdo - em especial para a área de Ciências; e o uso das redes sociais como canal extra de comunicação.
Nossa conclusão, ao refletir sobre este relato de experiência do professor P, para o futuro é que, em primeiro lugar, a busca de um design universal para o ensino, com materiais multimodais é praticamente urgente, e teria permitido uma adaptação menos traumática da comunidade de surdos (bem como pessoas com diferentes condições físicas). Além disso, melhores práticas poderiam ter sido desenhadas e recomendadas no apoio à alunos surdos pelas autoridades competentes e deveriam, portanto, ser agora projetadas. Finalmente, destacamos especialmente a necessidade de acessibilidade das ferramentas digitais, em especial no nosso caso, as plataformas de videoconferência.
Apesar dos problemas destacados nesse trabalho, gostaríamos de salientar, em primeiro lugar, as lições sobre resiliência, adaptação e superação de obstáculos como o principal ponto positivo que podemos retirar dessa pandemia, principalmente no que tange a repensar o processo de ensino como um todo.
Observamos que mesmo em meio a tanta adversidade é possível prosperar, e nos sentimos gratos por poder acompanhar o cotidiano pedagógico do Professor P neste momento ímpar da história da Humanidade.
E mais do que isso, nos sentimos gratos por este professor compartilhar conosco suas práticas pedagógicas, que vão desde elementos simples a sofisticados, mas todos exequíveis, que para nós, podem auxiliar alunos e professores neste momento desafiador de distanciamento físico, ensino remoto e/ou híbrido.