Introdução
Após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional - LDBEN (Lei 9.394/1996) houve um movimento intenso de produção de políticas curriculares para a Educação Básica (LESSARD; CARPENTIER, 2016; SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004). Em contexto de produção de texto político, sobretudo para o Ensino Médio, as recorrentes reformas curriculares se voltam para a reorganização curricular por áreas de conhecimento, culminando com a instituição de uma Base Nacional Comum Curricular que, articulada à proposição de organização do novo Ensino Médio (LOPES; OLIVEIRA, 2017), define conhecimentos mínimos a serem ensinados nas escolas, implicando em regulação da prática dos professores, que são chamados a colocar em operação as mudanças anunciadas pelas políticas produzidas.
Para Lopes (2002), o currículo tem sido central no processo de reformulação educacional, com documentos curriculares sendo produzidos em meio a aproximações, distanciamentos e ambiguidades em torno de conceitos e princípios envolvendo a avaliação, a gestão escolar e a formação de professores, entre outros, podendo ser vistos como produtos em um ciclo em constante movimento.
Na tentativa de compreender esse movimento consideramos o Ciclo de Políticas, em Stephen Ball, reconhecendo que, da produção das políticas à atuação destas pelos professores, em seu exercício profissional, ocorrem processos de (re)contextualização e de hibridismo, pois é preciso considerar a configuração entre o global e o local e a articulação entre produção/ tradução/interpretação e atuação de políticas curriculares, em meio ao papel constituidor e regulador dos discursos oficiais que instituem políticas públicas educacionais (BALL, 1993, 1994, 1998, 2001; BALL; BRAUN; MAGUIRE, 2012, 2016; BALL; MAINARDES, 2011; BERNSTEIN, 1996, 1998; LOPES, 2002, 2004, 2005, 2006, 2008; LOPES; MACEDO, 2010, 2011; LOPES; CUNHA; COSTA, 2013; LOPES; OLIVEIRA, 2017).
Ratificamos, então, que ao promover a discussão sobre as reformas curriculares no contexto da prática (no espaço escolar e na formação de professores na universidade) consideramos que as diferentes proposições de organização curricular passam pelo estudo, discussão e apropriação dos seus princípios e fundamentos pelos professores, e que tais políticas sofrem recontextualização em seus diferentes contextos. No Brasil, sabemos que as proposições de reformas curriculares não contam com a participação das equipes escolares da Educação Básica, sendo, normalmente, produzidas em meio a um contexto de influência que, por sua vez, é considerado no contexto de produção de texto político, pela federação, estados e munícipios, que desconsidera as particularidades dos contextos de atuação das políticas produzidas.
No entanto, ao chegar ao cotidiano da escola, são os professores que planejam e organizam ações para que as reformas sejam postas em atuação, especialmente porque essas reformas são pensadas para contextos de infraestrutura e condições de trabalho adequadas (BALL; MAINARDES, 2011), não correspondendo, necessariamente, às condições estruturais das escolas ou à formação dos professores existentes. Mesmo assim, são esses profissionais que, em processos de recontextualização, se apropriam das políticas produzidas em outro contexto, o de produção de texto, fazendo sua “tradução/interpretação” e ressignificando as proposições do texto político à realidade das micro estruturas (no caso, as escolas), adaptando-as às condições de trabalho que dispõem.
É esperado que o estudo e interpretação dos documentos oficiais pelos professores faça com que desenvolvam habilidades para fazer sua própria criação em termos de currículo escolar. Pois, mediante modificações/alterações nas proposições oficiais, produzem também política curricular, considerando outras formas de produção/criação e pensamento. Nesse sentido, professores em formação continuada podem ampliar as possibilidades de tradução/ interpretação dos textos políticos pelos seus colegas, na escola.
A partir dos pressupostos teóricos com que procedemos a pesquisa, procuramos compreender os modos de produção das políticas reformistas considerando, também, o modo como os documentos curriculares chegam aos professores em uma primeira instância circunstancial de leitura/decodificação da política, visando conhecer a percepção dos docentes sobre os princípios e objetivos das reformas, passando pela recepção, discussão e (re)interpretação de documentos curriculares oficiais para o contexto da prática, em meio as suas vivências/experiências no âmbito da escola.
Proposta teórico-metodológica da pesquisa
A pesquisa, com abordagem qualitativa, se baseia na apresentação e descrição de documentos oficiais e na pesquisa realizada com professores em exercício no Ensino Médio, todos egressos de um curso de mestrado profissional em Ensino de Ciências e Matemática, acerca de como percebem/reconhecem e entendem as reformas curriculares para o Ensino Médio.
A abordagem do Ciclo de Políticas (BOWE; BALL; GOLD, 1992) foi utilizada como ferramenta analítica e metodológica (MAINARDES, 2006) para olharmos os documentos e as falas/escritas dos pesquisados (CELLARD, 2012; GIL, 2008; GÜNTHER, 2006; LÜDKE; ANDRE, 1986). A partir da noção dos contextos de influência, de produção de texto político e de prática, analisou-se as políticas curriculares produzidas e o modo como são conhecidas/percebidas pelos professores, com relação aos seus princípios e fundamentos, e condições materiais e recursos previstos, sendo essas questões importantes no momento de colocar as políticas em atuação no contexto da prática.
Para pensar nesse processo de interpretação de princípios, fundamentos e condições de estrutura, tomamos o conceito de recontextualização (BERNSTEIN, 1996, 1998), considerando o contexto micro (escola) e o contexto macro (Estado), tendo em vista o modo como os professores reconhecem (ou não reconhecem) e interpretam as políticas de currículo produzidas no contexto macro e divulgadas/recebidas no contexto micro.
Compreendendo a recontextualização associada a ideia de transferência de textos de um contexto a outro (BERNSTEIN, 1996, 1998), ou seja, de sua produção em nível governamental ao contexto da escola, erradicando o binômio política e prática e mostrando que a produção da política também ocorre no contexto da prática pelos atores [professores], sujeitos e objetos das políticas (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), tornando-se também seus produtores no contexto micro da escola e da sala de aula.
A seguir, na Figura 1 podemos ter uma ideia da organização da proposta analítica/ teórica da pesquisa, em um ciclo atemporal, que relaciona diferentes contextos de forma não hierárquica.
No Ciclo de Políticas, o contexto de influência é aquele no qual as políticas curriculares são pensadas em meio a proposições de grupos, como o Banco Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outros, que direcionam os rumos da educação, legitimando discursos que dão suporte às políticas de currículo (BOWE; BALL; GOLD; 1992). Tais agências internacionais se relacionam com grupos nacionais, em âmbito público/privado da educação brasileira, fornecendo capital de investimento para o desenvolvimento de projetos de uma política em percurso (BALL, 2012; MAINARDES, 2006; SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2004).
O contexto de produção de texto político configura a materialização das políticas em documentos e legislações oficiais e/ou análises desses documentos; pronunciamentos políticos oficiais e, até mesmo, performances públicas em vídeos oficiais anunciando uma determinada política (BOWE; BALL; GOLD; 1992). Já, o contexto da prática é aquele no qual as políticas curriculares são postas em atuação pelos professores. Esse contexto, pode ser melhor compreendido com auxílio da Teoria de Atuação, pois esta envolve a interpretação e tradução das políticas pelos sujeitos que as colocam em atuação, erradicando a ideia de implementação da política (AVELAR, 2016; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016).
Na literatura, a Teoria de Atuação tem sido tratada em consonância com a abordagem do Ciclo de Políticas, quando direcionada ao contexto de prática para estudos sobre as políticas curriculares ou para a “tradução” da política pela noção de recontextualização, em Basil Bernstein, e de processos híbridos, em Stephen Ball (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013). Ball, Maguire e Braun (2016) afirmam, com relação à pesquisa realizada na Inglaterra, que o contexto da prática se relaciona com aspectos de pressão e expectativas geradas pelas políticas locais e/ou nacionais.
No caso deste trabalho, não fizemos o acompanhamento das políticas na prática, mas investigamos a forma como os textos políticos chegam aos professores, por isso, fizemos uma breve articulação com a Teoria da Atuação, procurando mostrar a potencialidade desta teorização para a análise das políticas em atuação no contexto da prática.
A pesquisa realizada foi organizada em dois momentos: no primeiro momento, visando conhecer o contexto de produção dos textos políticos, foi realizado um levantamento documental em sítios eletrônicos: do Ministério da Educação (MEC), do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC/ RS), acerca da produção de políticas curriculares para o Ensino Médio, a partir da LDBEN/1996. Os documentos pesquisados estão elencados no quadro que segue.
Em um segundo momento, visando conhecer os modos de acesso/conhecimento, discussão/debate e percepção/interpretação acerca dos documentos legais que instituem reformas curriculares para o Ensino Médio, foi realizada uma pesquisa com 10 professores em exercício, egressos de um curso de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática, de uma universidade pública federal do sul do estado do Rio Grande do Sul.
Os professores receberam por correio eletrônico questões relacionadas ao cenário de reformas e proposições curriculares brasileiras dos últimos vinte anos, para que respondessem como tiveram acesso/conhecimento às políticas curriculares, como e quais documentos estudaram e discutiram, bem como, se conhecem os princípios e finalidades das políticas de currículo. Caso os documentos tivessem sido estudados/analisados na escola, perguntamos qual metodologia foi adotada e se perceberam mudança de significado nas políticas curriculares propostas pela interpretação/tradução que fizeram dos documentos, especificamente em relação à área de Ciências da Natureza e, também, qual seria seu entendimento sobre a proposição de ações voltadas a práticas interdisciplinares, contextualizadas ou sobre o ensino por competências e habilidades, anunciados nas propostas de reformas curriculares.
Os participantes da pesquisa são professores na área de Ciências da Natureza, em escolas da rede pública municipal e estadual, que concluíram o curso de mestrado de 2013 a 2018. Os professores foram identificados de PE1 a PE10, acompanhados da indicação da escola A até I, sendo, por exemplo, a indicação PE1A, o professor 1 da escola A, conforme indicado na Tabela 1.
IDENT./ ESCOLA | FORMAÇÃO LICENCIAT. | CONCLUSÃO MESTRADO | ATUAÇÃO PROFISSIONAL1 | TEMPO/ MAGIST. |
---|---|---|---|---|
PE1A | BIOLOGIA | 2015 | BIOLOGIA NO EM | 20 |
PE2B | BIOLOGIA | 2014 | QUÍMICA NO EM E CIÊNCIAS NO EF | 17 |
PE3C | QUÍMICA | 2017 | QUÍMICA NO EM/ | 5 |
PE4D | QUÍMICA | 2015 | QUÍMICA NO EM E CIÊNCIAS NO EF | 14 |
PE5E | QUÍMICA | 2016 | QUÍMICA NO EM | 13 |
PE6F | BIOLOGIA | 2017 | CIÊNCIAS NO EF | 18 |
PE7G | FÍSICA | 2018 | FÍSICA NO EM | 7 |
PE8H | QUÍMICA | 2017 | QUÍMICA NO EM E CIÊNCIAS NO EF | 15 |
PE9C | BIOLOGIA E EDUC. FÍSICA | 2013 | BIOLOGIA NO EM E CIÊNCIAS NO EF | 25 |
PE10I | QUÍMICA | 2015 | CIÊNCIAS EF | 11 |
Fonte: Plataforma Lattes
A opção em realizar a pesquisa com esses professores, egressos de um curso de mestrado (profissional) em ensino, visou analisar o papel da formação continuada na universidade, além do espaço escolar, para o acesso, discussão e interpretação de políticas de currículo pelos docentes. Os textos políticos dos documentos foram reunidos às respostas dos professores aos questionamentos, constituindo o corpus de análise. Para a análise dos dados levamos em consideração aspectos materiais, interpretativos e discursivos (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016) de forma não fragmentada, mas em consonância uns com os outros.
Recepção/acesso das políticas curriculares
A análise dos dados considerou o modo como as políticas curriculares, que podem apresentar aproximações/distanciamentos umas com as outras (independente do período cronológico de sua produção), são conhecidas e percebidas pelos docentes, na escola e/ou na universidade, em um curso de formação continuada.
Com relação ao acesso/conhecimento dos documentos contendo as diferentes proposições de reforma curricular para o Ensino Médio, os professores indicaram ter tido acesso/conhecimento a maior parte das políticas de reforma curricular para o Ensino Médio, sendo que apenas o Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI) (MEC, 2009) foi menos citado pelos docentes (menos de 50%). Este não acesso ao Programa pode estar associado à forma como a política foi apresentada pelos órgãos governamentais às instituições, com divulgação prioritariamente às equipes diretivas, diferentemente da divulgação das demais políticas, as quais os professores indicaram ter conhecido e/ou discutido.
Com relação aos princípios e finalidades das políticas, os professores demonstram ter conhecimento, em especial do EMP, dos PCN e das DCN. Destacamos que os resultados que estamos apresentando está restrito a um grupo de professores que passou por um curso de formação continuada em nível de mestrado, o que, certamente, aumentou as possibilidades de conhecimento e discussão dos documentos que tratam as políticas curriculares, também, em suas escolas. De qualquer modo, eles indicaram como foram (ou não foram) realizadas ações para a divulgação e discussão dos documentos e possíveis articulações em relação às proposições de reformas curriculares, no contexto da escola.
No caso da divulgação e/ou discussão dos documentos, a pesquisa mostrou que foram utilizadas diferentes metodologias pelas escolas (contexto material) para a análise/estudo das políticas curriculares, com diferentes recursos e espaços para a divulgação e discussão no coletivo de professores, como indicado pela professora PE3C, quando afirma: “os PCNs, tive acesso através do PIBID2, com leituras e discussões [na escola e na universidade], já as DCNEB e DCNEM realizei leituras durante a graduação [...]” (PROFESSORA ESCOLA 3C, 2018).
Nesta manifestação, percebe-se o papel do PIBID para o acesso e conhecimento de políticas curriculares na escola, bem como ao longo do curso de licenciatura, mostrando que, no caso desta professora, o curso foi um espaço com oportunidade de conhecimento e discussão de políticas de currículo em meio à interação com a escola, por meio do PIBID ou de outros projetos de ensino ou extensão.
Para LUCE (2017), a participação dos professores, durante a sua formação acadêmica inicial, em projetos idealizados dentro de suportes conceituais acerca da inovação curricular e da formação docente inicial, tem impacto também na formação continuada de professores, pois o trabalho conjunto na escola envolve professores em formação e professores em exercício.
Ghedin, Leite e Almeida (2008) salientam a importância de haver um “preparo” aos futuros professores, no enfrentamento das demandas postas para a educação escolar, dando condições de compreenderem o contexto social e os aspectos relacionados à educação no país, o que recai sobre as práticas curriculares em todas as áreas de conhecimento.
Nas respostas dos professores, também a escola ou os sistemas de ensino foram apontados como organizadores de espaços para o conhecimento e discussão das políticas. A professora PE9C informou que conheceu e estudou os documentos, quando foi diretora de escola, “pela participação de formações pela Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC), posteriormente, socializadas com os professores em formações realizadas na escola” (PROFESSORA ESCOLA 9C, 2018), caracterizadas como ações de formação aos colegas para o estudo e compreensão das políticas de reestruturação curricular para o Ensino Médio. Esses, entre outros movimentos, são considerados os fluxos nos quais as políticas se apresentam (BALL; MAINARDES, 2011).
No caso do EMP/RS, uma política curricular posta em operação em 2012 em escolas de Ensino Médio da rede pública estadual, os professores reconhecem ter sido a mais conhecida e discutida. Talvez seu maior alcance possa ser explicado pelas ações planejadas pela SEDUC/RS para sua divulgação e discussão, resultando em uma presença maior desta política na escola.
Se considerarmos as manifestações das professoras PE3C e PE9C, é possível perceber que, mesmo sendo de uma mesma escola, suas experiências com relação ao acesso/recebimento das políticas pode ser diferente, pois o envolvimento com as ações de formação na escola depende do lugar ocupado pelos sujeitos, no caso, uma professora ocupava cargo na equipe diretiva da escola e precisava conhecer as políticas para propor a discussão com seus colegas, mostrando que “o contexto é, obviamente, sempre específico [...] também dinâmico e cambiante, tanto dentro como fora das escolas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p.63).
De qualquer modo, no caso de ações de formação na escola, essas deveriam contribuir para a reflexão sobre as práticas docentes a serem realizadas neste espaço, e ao socializar conhecimentos e discussões realizadas sobre as políticas curriculares, os professores multiplicadores, o fazem em nome de um trabalho coletivo que, por vezes, não passa pela discussão e compreensão dos professores acerca dos documentos, dificultando a efetivação das reformas curriculares pretendidas.
Mas, além da professora-diretora, também as professoras PE6F, PE7G e PE8H referem que o acesso e conhecimento das reformas curriculares ocorreu em suas escolas, por meio da indicação de reuniões, leitura de documentos e uso das mídias para a socialização das políticas, em “[...] várias reuniões para estudo” (PROFESSORA ESCOLA 8H, 2018), “[...] por orientações nas escolas” (PROFESSORA ESCOLA 7G, 2018), “[...] por formações pedagógicas na escola e na SEDUC/RS” (PROFESSORA ESCOLA 6F, 2018), e “[...] pelas mídias e rodas de conversa e discussões realizadas na escola” (PROFESSORA ESCOLA 10I, 2018).
Ao referir as mídias, a professora PE10I apontou serem vistas como uma possibilidade para o acesso, além da promoção de “diálogos na escola na forma de rodas de conversa” (PROFESSORA ESCOLA 10I, 2018). Mas, mesmo reconhecendo a oportunidade de conhecer as políticas de currículo na escola, a professora PE8H reclama da falta de maior articulação entre as secretarias de educação municipais para esclarecer e auxiliar os professores a entender as reformas, como, por exemplo, a BNCC, pois, segundo ela, a Secretária Municipal de Educação deveria promover estudos e esclarecimentos, para que não recaísse sobre os professores a responsabilização de interpretar as proposições de mudança curricular, especialmente, as demandadas pela BNCC3, uma vez que:
Não houve estudo e nem análise dos documentos na escola, somente conversa entre um encontro e outro e nos intervalos na sala dos professores. No caso atual da BNCC, a SMED poderia promover discussões a respeito, porém, quando a supervisora pedagógica da SMED da área de Ciências foi questionada, respondeu que a organização é por conta da escola. Como a escola deixa para depois..., fica pelo interesse individual do professor. [PROFESSORA ESCOLA 10I, 2018).
Vemos, assim, que mesmo havendo acesso aos documentos, os professores, de modo geral, referem a necessidade de mais oportunidades na escola para a discussão e compreensão da política. Para Ball (1993, 1994), a discussão de produção de um texto político faz parte de um embate político ou arena de discussão (BALL; BOWE, 1992). Assim, como ocorre na maior parte das vezes, se houver poucas oportunidades de diálogo, os professores podem entender a reforma como “mais” uma política “pronta”, sem entender que existe espaço para um movimento de interpretação e recontextualização da política no contexto da escola (BALL; BRAUN; MAGUIRE, 2016; BALL, 1994).
Por isso, destacamos que planejamentos coletivos necessitam contar com os professores para a discussão e compreensão das mudanças curriculares anunciadas, envolvendo a gestão escolar e as vivências da comunidade no contexto da escola, de modo a promover e fortalecer o desenvolvimento profissional dos docentes.
Nesse sentido, vemos a importância da formação continuada. Para Hypolitto (2009), cabe ao Estado promover a formação dos professores, com a oferta de capacitação contínua e adequada, o que, no caso de estudo e compreensão das políticas educacionais, implicaria em possibilitar espaços e tempos para tal. Mas, nem sempre esta formação [permanente] parece ser efetivada, mesmo sendo anunciado pelas próprias políticas, como é o caso ProEMI, a necessidade de contemplar, entre os princípios para a reestruturação curricular, a formação docente e o tempo efetivo para o planejamento de práticas pedagógicas, individuais e coletivas (MEC, 2011).
Em função disso tudo, sem espaço para ações necessárias de (in)formação e discussão, parece que a alternativa encontrada foi a formação em cascata, na qual alguns multiplicadores (os diretores de escola, por exemplo) têm formação e depois socializam com seus colegas. A professora PE1A indica isso, ao afirmar que conheceu o documento do ProEMI em “[...] leitura individual por ter sido indicada para a função de professora articuladora4 do referido programa na escola” (PROFESSORA ESCOLA 1A, 2018).
Em seu relato, PE1A diz que sua experiência profissional foi levada em consideração para ser “multiplicadora” do estudo e interpretação do ProEMI, ficando responsável em explicar o que foi estudado e discutido, sem haver, necessariamente, um planejamento de formação para os professores da escola, que apenas receberiam a compreensão/interpretação da professora articuladora sobre a política. Para Ball (1994), essa pode ser uma das complexidades da chegada de políticas ao contexto da prática, sob a imposição de um contexto macro que pouco dialoga com os professores.
De acordo com Laval (2004, p.257), esse tipo de relação das políticas educacionais com os professores, remete ao que ele denomina como “novo gerenciamento educativo”, o qual busca em alguns professores uma espécie de liderança que seja capaz de dirigir uma equipe, simulando assim uma empresa em termos de cobrança sobre resultados positivos.
Nesta direção, Ball, Maguire e Braun (2016) apontam que complexidades/particularidades existentes em cada escola podem estar relacionadas à percepção dos profissionais, que poderão se sentir, ou não, participantes de uma dada política em jogo.
Conhecer e ter acesso aos textos políticos é o movimento inicial para o estudo e interpretação das reformas pelos professores no contexto da escola, o que será dificultado se os documentos forem “[...] apresentados de maneira resumida com uso das mídias, não havendo nenhum estudo ou análise” (PROFESSORA ESCOLA 4D, 2018).
Vimos na manifestação de PE4D quando fala em apresentação superficial das políticas na escola, que a falta de espaço para seu conhecimento e discussão, acaba deixando para “[...] iniciativas individuais de alguns professores” (PROFESSORA ESCOLA 4D, 2018) que têm interesse e curiosidade pelo estudo e interpretação dos documentos, não atendendo a necessidade de apropriação dos princípios fundamentos das reformas pelo coletivo, para que mudanças sejam pensadas de forma crítica ao serem postas em operação.
Interpretação/tradução das políticas curriculares
Pensar sobre o contexto situado/interno é uma forma de olhar os dados/resultados da pesquisa compreendendo que as reformas curriculares não são simplesmente “implementadas” na escola, mas passam por um processo de interpretação e de recontextualização, sendo colocadas em atuação pelos professores na dimensão da prática, daí a importância em se considerar a ideia de contexto (BOWE; BALL; GOLD, 1992; BALL, 1994; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), pois ao não considerar os diferentes contextos, de produção de texto político e de atuação na prática, pode-se não compreender as fragilidades apresentadas pelas reformas em sua execução, que precisam derivar de acordos que podem, ou não, funcionar (BALL, 2001).
Entendemos que o espaço da escola deve possibilitar aprendizados e trocas de saberes coletivos, como instâncias de discussão e diálogo entre a equipe diretiva e os docentes, tal como referido por PE2B: “Fizemos encontros e reuniões semanais para entender a proposta” (PROFESSORA ESCOLA 2B, 2018); e por PE1A: “Após leitura dos documentos, por áreas de conhecimento, foram realizadas discussões no coletivo sobre concepções e expectativas quanto à reforma” (PROFESSORA ESCOLA 1A, 2018).
Esses relatos mostram que, embora a escola seja referida pela maioria dos pesquisados como apenas espaço de apresentação e conhecimento da existência dos documentos oficiais, em algumas escolas houve oportunidade de discussão e interpretação dos textos políticos no coletivo, para a compreensão dos princípios e finalidades das reformas para as mudanças pretendidas no contexto da escola. Para professora PE9C “As políticas têm por finalidade orientar o tipo de ensino nas escolas, por meio de habilidades e competências que devem ser desenvolvidas para que os alunos possam atender as exigências de mercado [...]” (PROFESSORA ESCOLA 9C, 2018) denotando a sua interpretação, não só dos princípios e objetivos que constam no documento, mas de seus efeitos para a educação escolar.
Para essa mesma professora as mudanças que “chegam” na escola seguem orientações de organismos mundiais, lembrando o discurso regulador da política prescritiva de “cima para baixo” em meio a um contexto influenciador (BERNSTEIN, 1996, 1998; LOPES, 2002, 2005). Para Hypolito, Vieira, Leite (2012), a regulação da educação escolar pelas políticas curriculares ocorre, também, pelas avaliações em larga escala e pelos indicadores de qualidade na educação, postas em ação via processos de gestão.
De modo semelhante, com relação à interpretação do texto político, a professora PE2B afirma que princípios e finalidades das políticas “instituem fortemente uma mudança de concepção paradigmática de ensino [...]” (PROFESSORA ESCOLA 2B, 2018) mostrando o modo como o texto político pode ser construído discursivamente (BERNSTEIN, 1996, 1998; LOPES, 2002, 2005), neste caso, pelo discurso pedagógico. Para Bernstein (1996, 1998), o discurso pedagógico contém um conjunto de possíveis regras, “um princípio de recontextualização de outros discursos seletivamente transmitidos e adquiridos” (LOPES, 2005, p.54). Assim, pode-se dizer que a instituição de reformas de currículo ocorre em meio a um processo de recontextualização, pela incorporação do global/local à prática docente na escola (BALL, 1998, 2001).
Alguns professores, ao fazer a leitura e interpretação dos documentos oficiais, fazem uma crítica contundente ao papel das reformas curriculares, pois entendem que estariam voltadas a atender ao mundo produtivo, como é referido pelo professor PE5E, quando aponta o discurso regulador do EMP, cuja finalidade seria “[...] preparar o aluno para o mercado de trabalho, como uma mão de obra barata” (PROFESSOR ESCOLA 5E, 2018). Mas, outros entendem que as reformas, além de serem voltadas ao mercado de trabalho, também são voltadas à promoção da tecnologia, da ciência e da pesquisa como parte da formação integral dos alunos.
Os professores que criticaram a falta de espaço para maior discussão na escola, afirmaram que o espaço para estudos e compreensão das reformas no curso de mestrado foi o que possibilitou fazerem a interpretação e tradução da política em outro contexto de prática, a universidade. O que mostra ser a formação continuada na universidade importante para conhecer, discutir e refletir sobre os efeitos de propostas reformistas para a educação escolar e para o trabalho e profissão docente.
Diante de discursos reguladores que caracterizam as reformas curriculares, os professores - atores, receptores e narradores das políticas - precisam fazer leituras e construir significados com base nas suas vivências no contexto da escola. Assim, mesmo que as políticas curriculares carreguem princípios marcados pela interdisciplinaridade e contextualização e/ ou por competências e habilidades, esses princípios serão sempre passíveis de interpretação e recontextualização, com substituição ou modificação de seus significados de um contexto para o outro.
Nesse sentido, destaca-se a necessidade de realizar ações para que os docentes possam reconhecer os efeitos das reformas em sua prática docente, pois, as políticas “criam circunstâncias nas quais a gama de opções disponíveis para decidir o que fazer são estreitadas ou alteradas em que metas e resultados particulares são definidos” (BALL, 1994, p.19).
Sobre a importância da discussão dos textos políticos com os colegas, em um trabalho coletivo, a professora PE9C aponta ser “[...]difícil trabalhar em grupo, mas que não é impossível” (PROFESSORA ESCOLA 9C, 2018). Esta professora associa os princípios da reforma ao trabalho coletivo em torno da interdisciplinaridade e da contextualização, em um viés metodológico, concordando com a compreensão de “interdisciplinaridade, na proposta do EMP/RS, vista como estratégia metodológica [...] meio de ações pedagógicas integradoras” (SEDUC/RS, 2011, p.19). Assim, mais do que associada ao aspecto curricular, a interdisciplinaridade (assim como a contextualização) seria possibilitada por mudança metodológica, o que pode levar a compreensão de que as mudanças prescritas pelas reformas dependem da ação individual (metodológica) dos professores.
Já, o professor P5E chama a atenção de que os princípios das proposições de reformas curriculares carregam significados que nem sempre são fáceis de entender, sendo necessário realizar “[...]leituras de artigos científicos sobre o tema” (PROFESSOR ESCOLA 5E, 2018), para tentar compreender o significado de conceitos e/ou fundamentos, como os de habilidades e competências.
Para Lopes e Macedo (2011), significados de competências e/ou habilidades remetem a formas de comportamento da ação humana (saber-fazer, saber-ser, saber-aprender e saber-viver), de cunho eficientista, que coloca centralidade na avaliação de desempenho dos alunos, de suas performances, como modo de prepará-los para o mundo do trabalho. Gatti (2008) aponta que são enunciados ambíguos, polissêmicos e pouco questionados, mas, mesmo assim, são referidos com frequência em diversas decisões de gestão educacional.
Assim, e em consonância ao dito por essas autoras, também os professores pesquisados apontam a complexidade de significados, princípios e finalidades das reformas curriculares, sendo problematizado para alguns o desenvolvimento de práticas que legitimariam o desenvolvimento de habilidades e competências como propósito de mudança em educação, enquanto para outros, essa “orientação” deve ser atendida pela organização de planejamentos em torno das competências e habilidades elencadas nos documentos oficiais.
Reconhece-se nessas manifestações a dificuldade dos professores em conhecer as linguagens da política, de modo a realizar a tradução sobre a linguagem da prática, com ambas se complementando na produção de uma política criada (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). O que mostra, mais uma vez, a necessidade em oportunizar estudo e discussão no coletivo sobre os princípios e orientações propostas pelas reformas, mesmo que saibamos dos impeditivos das escolas, por diferentes fatores, estando entre esses os de ordem organizacional e estrutural (IMBERNÓN, 2011; LAVAL, 2004).
Quanto à percepção sobre a produção das reformas curriculares, para a professora PE8H:
[...] os documentos oficiais são escritos por pessoas competentes que orientam o nosso trabalho para resultados cada vez mais positivos [...] na BNCC para o Ensino Fundamental, por exemplo, os conteúdos, habilidades e competências, já eram desenvolvidos na escola (PROFESSORA ESCOLA 8H, 2018).
A forma como a professora interpreta o documento sobre a BNCC, aponta um reconhecimento das reformas curriculares produzidas pelo contexto macro, para serem executadas pelos professores, no contexto micro, sem parecer questionar a necessidade de compreender o significado e efeitos de um ensino baseado, por exemplo, em competências/ habilidades.
Diante da pouca discussão sobre o anunciado nos documentos, houve relato de descontentamento dos professores com relação ao fato das políticas curriculares não considerarem as diferentes histórias das instituições, suas concepções pedagógicas e suas formas de organização de vivências pedagógicas (LOPES; MACEDO, 2011). Além disso, percebem a complexidade de executar uma reforma curricular que esbarra nas condições das instituições de ensino, na formação profissional e na sobrecarga de trabalho dos professores (LAVAL, 2004).
Entende-se que questões envolvendo a falta de infraestrutura das escolas e de investimentos e apoio de autoridades, a falta de reorganização de tempos e espaços no ambiente escolar, e a falta de diálogo entre os contextos macro/estado e micro/escola, contribuem para que os professores, por vezes, também não tenham interesse em interpretar/ traduzir os documentos que instituem políticas curriculares. Para Lopes (2002), a falta de interesse de professores e de coordenadores pedagógicos em estudar, discutir e interpretar os documentos oficiais, pode levar a um engavetamento/esquecimento do seu papel frente às proposições curriculares.
No caso do novo Ensino Médio (Lei 13.415/2017), a leitura e interpretação dos documentos, tanto a BNCC-EM quanto as DCNEM, apontam para a realização de ações interdisciplinares e contextualizadas, em um ensino por competências e habilidades, com implicações na prática docente e na formação inicial de professores, comumente, com forte caráter disciplinar. Também, em função disso, o processo de interpretação/tradução das políticas seja difícil, pode ser confuso e ambíguo (LOPES, 2002), como mostra o estudo que realizamos.
Considerando a noção de recontextualização das políticas (BERNSTEIN, 1996, 1998) é possível perceber que, para além dos espaços de produção dos textos, a produção da política acontece também em outros lugares e de formas variadas (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), como nos espaços da escola e da universidade. Assim, mesmo que, em um primeiro momento, vejamos as políticas vindo de “cima para baixo”, ao compreender os diferentes contextos apontados no Ciclo de Políticas (BOWE; BALL; GOLD, 1992), podemos reconhecer no contexto da prática um espaço no qual as políticas podem ser (res)significadas e (re)criadas pelos professores.
Mas esse processo demanda um certo tempo que, em função das reformas serem anunciadas de forma aligeirada, não é adequado para a realização de estudo e discussão no coletivo, instaurando um clima de instabilidade sobre o que “vale” em termos de currículo escolar, especialmente no Ensino Médio (LOPES, 2002).
Considerações Finais
O estudo, que buscou analisar como as reformas curriculares para o Ensino Médio são percebidas/interpretadas por professores em exercício, na área de Ciências da Natureza, mostrou formas diferentes de conhecimento e discussão das políticas no contexto micro/escola, sendo que, enquanto em algumas escolas houve apenas a apresentação dos documentos ou reuniões para leituras e/ou recomendação para leituras individuais, em outras (poucas) houve oportunidade de discussão e estudo na escola, favorecendo sobremaneira o exercício de interpretação e tradução das reformas propostas.
Sendo os pesquisados professores em exercício na escola e em formação continuada na universidade, foi possível apontar que, tanto o principal contexto de atuação da políticas curriculares, o contexto da escola (contexto interno), quanto o contexto da formação continuada, o curso de mestrado profissional (contexto externo), são espaços que podem (e devem) oportunizar conhecimento, discussão, questionamento e problematização acerca das políticas curriculares e seus efeitos para a educação pelos atores que colocam tais políticas em atuação. Assim, a universidade, tal como a escola, torna-se um espaço profícuo para a discussão e interpretação das políticas, como foi apontado pelo grupo pesquisado.
De qualquer modo, independente da forma como as políticas são recebidas/percebidas pelos professores em seu contexto de prática, é esperado que haja tempo e espaço para leituras e discussões acerca dos documentos, possibilitando aos professores passar por um processo de interpretação e tradução das reformas curriculares para o contexto da prática.
Quanto às proposições (intenções) de reforma curricular postas pelos diferentes documentos legais, percebe-se que seus princípios, conceitos e fundamentos não são de fácil compreensão pelos professores, assim como encontram dificuldade em realizar estudo e planejamento de ações de ensino em um trabalho coletivo, o que vem a se configurar em um problema, considerando que as políticas de currículo são colocadas em atuação pelos professores, mediante um processo de interpretação, compreensão e análise crítica sobre os princípios das reformas e seus impactos na educação escolar e no trabalho docente, sem o que compromete o resultado da própria reforma.