INTRODUÇÃO
A partir da infância o ser humano vivencia e explora inúmeros contextos. Quando a criança passa a frequentar com regularidade outros ambientes além da casa e da escola, ela tem a oportunidade de interagir com símbolos, objetos, materiais e pessoas que ampliam sua “rede social” (FLÔRES et al, 2019), possibilitando novas experiências, aprendizagens e muitos movimentos. Nessa perspectiva, o ambiente doméstico e a escola deixam de ser os dois contextos principais que a criança vivencia, criando a oportunidade de interação com novos locais, como a casa de amigos, os clubes, parques e as atividades desportivas. Segundo a Teoria Bioecológica de Bronfenbrenner (2005, 2011) as influências exercidas pela rede social são fundamentais para que a criança tenha a oportunidade de se desenvolver e atingir seu potencial. Mais do que isso, ambientes bem estruturados e com diversas oportunidades possibilitam o desenvolvimento não só das capacidades cognitivas, afetivas e sociais, mas também das capacidades motoras desses indivíduos.
Nesse sentido, a participação da criança em clubes desportivos é um importante contexto para a prática de exercícios físicos na infância. Durante a participação desportiva a criança está engajada em uma atividade prazerosa, com vistas ao bem estar, a saúde, o desenvolvimento social, cognitivo e motor (VANDORPE et al., 2012). Nesse contexto, o desenvolvimento e a aquisição das Habilidades Motoras Fundamentais (HMF) (por exemplo, correr, saltar, lançar e rematar) são importantes para a execução de uma ampla variedade de movimentos na infância (FINDLAY; COPLAN, 2008; GALLAHUE, 2005), garantindo que as crianças estejam qualificadas para se engajarem no desporto, exercícios e nas diferentes atividades escolares (HERRMANN et al., 2019).
A Competência Motora (CM) está relacionada ao desenvolvimento e a performance de movimentos e vem sendo definida na literatura como a habilidade de uma pessoa em ser proficiente em uma ampla gama de habilidades locomotoras, estabilizadoras e manipulativas (FRANSEN et al., 2014; STODDEN et al., 2008). Assim, a CM pode facilitar a aprendizagem de novas habilidades e tarefas motoras durante toda a vida (RODRIGUES et al., 2019). Nessa ótica, a CM está associada com reduzidos índices de desenvolvimento de massa gorda em crianças e adolescentes (LOPES, MAIA, RODRIGUES, & MALINA, 2012; RODRIGUES, STODDEN, & LOPES, 2016), está associada com maiores níveis de participação em atividades físicas (BARNETT et al., 2009), além de estar associada com a performance cognitiva (VAN DER FELS et al., 2015).
Estudos vêm sendo desenvolvidos com o intuito de entender a importância que os contextos esportivos têm para crianças de diferentes faixas etárias (FLÔRES et al., 2019). Algumas delas tiveram como objetivo estudar a CM e sua relação com a participação desportiva. Ferreira et al. (2019) investigaram a associação entre a participação em diferentes modalidades esportivas (i.e., atividades estruturadas, treinamentos, e competições, sendo gerenciadas por treinadores e/ou professores) e a CM de crianças entre seis e 10 anos de idade. Os resultados indicaram associação positiva entre a CM e a participação desportiva, a qual desempenha papel significativo no desenvolvimento da CM. Outros estudos mostram, também, que as oportunidades para o engajamento fornecidas pela Educação Física (EF), possibilitando diferentes movimentos e práticas estruturadas, aumentam a CM de crianças (MORGAN et al., 2013), o que favorece o desenvolvimento de um estilo de vida mais ativo e saudável para esses indivíduos (LUZ, ALMEIDA, et al., 2017; ROBINSON et al., 2015; STODDEN et al., 2008; MCKENZIE & LOUNSBERY, 2013).
No Brasil o futsal é uma das modalidades esportivas (estruturadas) mais procuradas durante a iniciação infantil ao desporto. A literatura atual apresenta alguns estudos que relacionam a prática de futsal com a percepção de competência de crianças (AMORIM et al., 2016; WERNECK et al., 2015), a aprendizagem motora (FLÔRES, MENEZES, & KATZER, 2016) e o desenvolvimento das HMF em crianças pré-escolares (FERREIRA, 2010). Entretanto, não são encontrados estudos na literatura que busquem analisar a relação entre o contexto do futsal e a CM de crianças em idade escolar, criando uma lacuna que precisa ser mais bem explorada para o melhor entendimento dessa associação. Em face do exposto, essa pesquisa buscou analisar a relação entre a prática de futsal e a Competência Motora de meninos entre seis e 10 anos de idade. Espera-se que os praticantes de futsal possuam maiores níveis de CM do que as crianças que não estão envolvidas neste microssistema.
MATERIAIS E MÉTODOS
Grupo de Estudo
Fizeram parte do estudo 99 crianças, com idade entre seis e 10 anos (8,15±1,18 anos), provenientes de uma cidade da região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Os indivíduos foram divididos em dois grupos: Não praticantes de Futsal (G1), composto por 43 crianças, com média de idade de 8,49±0,76 anos; e Praticantes de Futsal (G2), composto por 56 crianças, com média de idade de 7,89±1,36anos.
As crianças do G1 frequentavam duas aulas de educação física por semana (45 minutos cada) e não participavam de nenhuma atividade extracurricular. Os componentes do G2, por sua vez, além das aulas regulares de EF, participavam de dois a três dias por semana de escolinhas de futsal, cada uma com duração de 1 hora. Os participantes do G2 possuíam, em média, 2 anos de prática do futsal. Crianças que apresentassem alterações ou limitações que impossibilitassem a realização dois testes foram excluídos do grupo analisado.
Tarefa e Equipamento
Para a avaliação da Competência Motora, foi utilizado o Motor Competence Assessment (MCA) desenvolvido e validado por (25). Esse instrumento é dividido em três categorias, com seis testes motores (2 testes por categoria) e visa avaliar a CM, tendo por base as categorias de estabilização, a locomoção e manipulação de objetos. Testes de Estabilização: (a) Mudança de plataforma: a criança deve mover-se lateralmente sobre 2 plataformas de madeira (25cmx25cmx2cm) passando de uma para a outra durante 20 segundos. Para cada mudança correta de plataforma (colocação da plataforma no chão e transposição para cima da mesma) pontua-se com 2 pontos (1 ponto para cada fase). São realizadas duas tentativas de prática e apenas a melhor é considerada para análise; (b) Saltos laterais: a criança deve saltar lateralmente por cima de uma trave de madeira (60cmx4cmx2cm) com os dois pés juntos, o mais rápido possível durante 15 segundos. Cada salto correto é pontuado com 1 ponto e considera-se o melhor resultado das duas tentativas; Testes de Locomoção: (a) Shuttle Run: a criança deve correr o mais rapidamente possível, entre duas linhas, posicionadas à 10 m de distância uma da outra. Ao final dos 10 metros, a criança deve agarrar um bloco de madeira (posicionado sobre a segunda linha) e trazer de volta até linha inicial, então volta correndo e traz um segundo bloco de madeira até a linha inicial. Valida-se o melhor tempo entre as duas tentativas. (b) Salto em comprimento: a criança deve saltar para frente com os pés juntos. São realizadas três tentativas. A pontuação final é a distância, em metros, entre a linha inicial e a parte do corpo, mais próxima dessa linha; Testes de Manipulação de objetos: (a) Velocidade de lançamento: a criança deve lançar uma bola de tênis(cir.: 6.5cm; peso 57g), com a maior velocidade possível. São feitas três tentativas e a pontuação final é o melhor resultado1; (b) Velocidade de chute: a criança deve chutar uma bola de futebol tamanho 3 (crianças de 6 a 8 anos; circ.: 62cm, peso 350g) ou 4 (crianças de 9 a 10 anos; circ.: 64cm, peso 360g) com a maior velocidade possível. São realizadas três tentativas é validado o melhor resultado2.
Os valores estandardizados foram calculados para cada teste e, então, as três categorias (estabilização, locomoção e manipulação) foram calculadas por meio da soma dos t-escores dos testes de cada categoria. Para o teste Shuttle Run, foi realizada a subtração, devido à natureza específica da tarefa. O valor final da Competência Motora foi calculado a partir da média das três categorias. Para todos os testes foi realizada uma demonstração, e oportunizada um tentativa de prática. Feedback motivacional foi fornecido, mas o resultado dos testes não foi informado aos sujeitos.
Procedimentos
Antes do início da pesquisa entrou-se em contato com as instituições de ensino formal e não-formal (escolinhas de futsal e instituições de ensino) em uma cidade na região Sul do Brasil. Posteriormente, foi explicado aos responsáveis pelas instituições o objetivo da pesquisa, e explicado como o instrumento (MCA) seria utilizado. Após o aceite das instituições foi entregue aos pais ou responsáveis pelas crianças o Termo de Consentimento Lido e Esclarecido (TCLE). Para os pais que consentiram com a participação de seus filhos, foi agendado um dia e local para a coleta dos dados. Antes do início dos testes, as crianças assentiram oralmente com sua participação. A pesquisa foi aprovada pelo parecer número 76336117.0.0000.5346 do Comitê de Ética da Universidade.
Análise de Dados
Para a caracterização dos dados foi utilizada estatística descritiva, com média e desvio padrão. Depois de confirmada a normalidade dos dados pelo teste de Shapiro-Wilk, foi utilizada estatística paramétrica. O teste t para amostras independentes foi utilizado para comparar os grupos. Foi utilizado o Software Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 25.0, adotando-se um nível alfa de significância de 5%.
RESULTADOS
A tabela 1 apresenta as médias dos valores brutos obtidos nos seis testes de CM, em cada grupo. Pode-se perceber que as crianças engajadas com o futsal apresentaram melhores resultados em todos os testes comparativamente às crianças que apenas tinham aulas de EF. Verificamos ainda, que as maiores diferenças são nos testes de salto em comprimento e saltos laterais.
Os resultados da tabela 2 mostraram as diferenças estatísticas encontradas entre os dois grupos, após agrupamento dos seis testes em três categorias (locomoção, estabilização e manipulação) e, também, o valor final da CM. A partir da análise da tabela fica evidente que os praticantes de futsal apresentaram melhores resultados em todas as categorias e, também, maiores níveis de CM do que as crianças não praticantes (t= -4,529, p=0,000).
Testes do MCA | Não praticantes de Futsal (G1) | Praticantes de Futsal (G2) |
Média ± desviopadrão | Média ± desviopadrão | |
Salto emcomprimento | 120,11 ± 20,06 | 133,42± 19,77 |
Saltoslaterais | 18,81± 4,81 | 27,96± 8,35 |
Lançamento da bola | 11,20 ± 3,41 | 12,53± 3,99 |
Chute da bola | 9,88 ± 2,48 | 14,57± 4,70 |
Shuttle Run | 14,55± 1,36 | 13,47± 1,62 |
Transferência de placas | 16,90± 3,19 | 17,87± 3,32 |
Fonte: os autores.
Testes do MCA | Não praticantes de futsal (G1) | Praticantes de Futsal (G2) | t | p |
Média ± desviopadrão | Média ± desviopadrão | |||
Estabilização | 45,78± 7,18 | 53,23± 10,68 | -3,936 | 0,000* |
Locomoção | 45,91± 9,13 | 53,14± 9,55 | -3,803 | 0,000* |
Manipulação | 45,61± 7,43 | 53,36± 10,46 | -4,124 | 0,000* |
CompetênciaMotora Total | 45,25± 7,18 | 53,64± 10,37 | -4,529 | 0,000* |
Fonte: os autores. *Diferença estatisticamente significativa
DISCUSSÃO
O objetivo da presente pesquisa foi analisar a relação da CM de crianças e a sua participação no futsal. A investigação realizada nas última década tem apontado que níveis reduzidos de CM podem resultar em menor quantidade de prática de exercícios físicos, menor aptidão física, menor percepção de competência, maiores níveis de obesidade e diminuição do tempo de atividades esportivas ou de recreação (STODDEN et al., 2008; STODDEN; LANGENDORFER; ROBERTON, 2009). Assim, conforme o esperado, nossos resultados reforçam a noção de que a participação esportiva é fundamental para o desenvolvimento da CM (FERREIRA et al., 2019; ROBINSON et al., 2015). É importante ressaltar que o desenvolvimento da CM necessita de instrução, acompanhamento, atenção e muita prática para que possa ser melhorada (CLARK & METCALFE, 2002; FERREIRA et al., 2019). Nesse sentido, os achados aqui apresentados indicam que a participação regular no futsal promove melhores escores na CM e em seus componentes (estabilização, locomoção e manipulação). Recentemente, Ribeiro-Silva, Marinho, Brito, Costa e Benda (2018), analisaram a performance das HMF de escolares entre oito e 10 anos de idade, praticantes e não praticantes de práticas esportivas. Os resultados mostraram que as crianças que praticam algum esporte após o período escolar, apresentam maiores níveis de CM quando comparadas com o não participantes. Segundo Luz, Cordovil, Almeida, & Rodrigues (2017), intervenções relacionadas à CM podem ser importantes estratégias para aumentar os níveis de aptidão física relacionada à saúde infantil. Da mesma forma, segundo os autores a CM aumenta com o passar dos anos e os meninos apresentam maiores níveis de CM do que as meninas.
Adicionalmente, o futsal é uma modalidade desportiva de quadra, de alta intensidade, que possibilita amplas variações de movimentação e deslocamento, diversas experiências motoras e muitos contatos (manipulação) com a bola (MUTTI, 2003; NERIS; TKAC; BRAGA, 2012; OPPICI et al., 2017). Devido às características inerentes à modalidade, os resultados encontrados no presente estudo já eram hipotetizados. Os maiores níveis de competência na execução dos testes de locomoção, estabilização e manipulação (e da CM total) refletem os exercícios e atividades vivenciadas na aprendizagem e treinamento do futsal. Santos et al (2015), analisaram o efeito da prática de ballet e futsal em crianças. Os resultados mostraram que as crianças praticantes de modalidades esportivas demonstraram motricidade global e equilíbrio superiores, quando comparados com as crianças não praticantes de esporte. Resultados estes que se assemelham aos do presente estudo.
A iniciação esportiva no futsal já tem sido reportada com bons resultados para o desenvolvimento motor de crianças entre seis e nove anos de idade (ROCHA, ROCHA, & BERTOLASCE, 2010), com as crianças praticantes da modalidade demonstrando maiores níveis de desenvolvimento motor do que os não praticantes. Conforme Soares et al. (2016), existem diferenças significativas no desempenho motor de praticantes e não praticantes de futsal, ressaltando a importância da iniciação esportiva adequada na aquisição de habilidades motoras em crianças. Assim, quando estas características são bem trabalhadas, elas refletem em um elevado grau de proficiência nas habilidades motoras e nos gestos técnicos específicos do desporto. Neste sentido, Robinson, Wadsworth, & Peoples (2012), destacam que crianças que são instruídas por professores/treinadores apresentam melhorias na CM quando comparadas com crianças que participam apenas de brincadeiras e/ou atividades livres. Relatam ainda que as instruções utilizadas para ensinar habilidades motoras, em conjunto com os princípios da aprendizagem motora e a quantidade de contextos e experiências vivenciadas pela criança, influenciam na aquisição e no refinamento para a CM. Nesse sentido, o tempo extra proporcionado pela prática sistemática do futsal mostra ser um importante fator para o desenvolvimento da CM da criança, como pode ser visto em outros estudos (LOPES, STODDEN, & RODRIGUES, 2017).
A importância do envolvimento de crianças em contextos regulares de prática tem sido foco de estudos (CULJAK, et al, 2014; LOPES & TOIGO, 2017). Algumas dessas pesquisas buscaram estudar a prática desportiva e programas pós-período escolar (ATKIN et al., 2008; KELDER et al., 2005; KORDI et al., 2012; NIETO; HERNÁNDEZ; LAÍN, 2011; WICKEL; EISENMANN, 2007), e tem mostrado, de maneira geral, que nos últimos anos, há um reduzido número de crianças envolvidas com a prática de atividades motoras e/ou esportivas após o período escolar, restringindo o número de contextos ativos vivenciados regularmente e, também, o número de horas de participação em atividades motoras.
De forma geral, as pesquisas indicam que é a partir das experiências adquiridas com a interação ambiental, que a criança consegue internalizar conhecimentos, desenvolver e aprender novas habilidades motoras (CLARK, 2007; CÔTÉ, 1999; FAIRBROTHER, 2010; FERREIRA et al., 2019; FLÔRES et al., 2019; GALLAHUE, OZMUN, GOODWAY, & SALES, 2013). Assim, a relação dos ambientes com a CM de crianças deve ser de fundamental interesse dos pesquisadores, treinadores e professores. Mais do que isso, percebe-se, também que a criança amplia seu repertório motor por meio de diferentes oportunidades e locais de prática, a partir de múltiplas experiências motoras adequadas aos seus níveis de desenvolvimento e competência (GALLAHUE et al., 2013; KREBS et al., 2011; KREBS, 1997). De tal modo, parece plausível esperar que a exposição a ambientes ricos em estrutura e serviços, como é o caso do futsal, possa possibilitar maiores níveis de desenvolvimento, aprendizagem e competência motora. Embora tenhamos encontrado resultados importantes neste estudo, cabe destacar que algumas limitações ocorreram, como um número reduzido de crianças, o não controle detalhado dos exercícios, jogos, atividade e formas de treinamento.
CONCLUSÃO
Observando os resultados encontrados por este estudo pode-se perceber que o envolvimento na prática sistemática do futsal é benéfico para a criança. Os resultados mostraram que as crianças inseridas no futsal possuem maiores níveis de competência nos testes de locomoção, de estabilização e de manipulação de objetos, bem como na CM total. Nossos achados corroboram com outros estudos encontrados na literatura. Pesquisas futuras poderiam ser realizadas com o instituto de analisar a relação da CM de crianças inseridas em outros contextos desportivos e, também, com crianças e adolescentes em diferentes faixas etárias. Em suma, este estudo pode auxiliar na percepção de pais, professores e treinadores, mostrando a importância da prática sistemática do futsal para o desenvolvimento da CM da criança.