Introdução
A travessia é o lugar da incerteza, da não evidencia, do estranho. E isso não é uma fraqueza, é uma potência (Paul Preciado).
Numa carta direcionada às “queridas mulheres de cor”, Anzaldúa (2000) afirma que escrever é se expor. Contrariando este princípio, a produção literária tem sido espaço de reiteração da cisnormatividade ao reproduzir olhares que legitimam determinados discursos, reservando ao “outro” o papel de coadjuvante na narrativa histórica. Em “Pode um cu mestiço falar?” Mombaça (2015) estabelece diálogos com Spivak (2010) ao abordar o silenciamento sistemático dos considerados subordinados, interpelando a capacidade dos marcos hegemônicos de reconhecer as diferenças.
Neste sentido, a literatura (re)produz imaginário social, na medida em que descreve contextos, crítica realidades produtoras de normatizações, proporciona pensamentos particulares, além de propor outras perspectivas de mundo. De acordo com Cândido (1988, p. 175) “A literatura confirma, nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”. Afinal, o campo literário também é instrumento de educação, e se por vezes reitera a norma, por outras transgride fronteiras impostas no próprio currículo escolar.
Se a carta de Anzaldúa e o ensaio de Mombaça nos convidam a produzir rachaduras epistemológicas, como antídoto ou veneno, uma negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta nos adverte que o silêncio não vai nos salvar (LORDE, 1977). Interrompê-lo é abrir um campo de possibilidades que compreende nossas vidas para além da invisibilidade literária ou como mero personagem destinado ao castigo, a violência brutal e a morte.
Partindo desta provocação que nos motiva a estilhaçar a máscara do silenciamento (KILOMBA, 2016), o presente trabalho busca analisar a emergência de um movimento literário transmaculino negro tomando como referência a escrevivência de Bruno Santana (2021a), a partir da poesia “Trans-parto”.
Se a escrita tem o poder de nos localizar no mundo, a literatura transmasculina negra apresentada neste trabalho busca reposicionar esses corpos frente não apenas à produção literária, como também aos estudos de gênero. Lançar olhares sobre tais movimentos e produções é reconhecer a literatura não apenas como campo artístico, mas, sobretudo de intensas disputas, dentre as quais pelo direito de escreviver.
Entre a invisibilidade e a regra da exceção: pode um homem trans negro ter e escrever sua história?
Nossas escrevivências são resistências e políticas (Leonardo Peçanha)
As transmasculinidades são desobediências as cisnormatizações e as cismasculinidades, o florescer de novas possibilidade de ser e estar no mundo. Seios de Transhomem, vagina de homem Trans, possibilidade de hackear os padrões de gênero (Preciado, 2014). Assim como afirmou Preciado (2020) as transmasculinidades renuncia a anatomia como destino, a identidade de gênero não pode ser a origem ou fim, no gênero não há verdades ontologicas nem necessidades empiricas, das quais seja possível surgir adequações ou demarcações. Assim ainda segundo o autor, a batalha se incia com a desindentificação, com a desobendiência, e não com a identidade
Onde estão os homens trans e transmasculines nas páginas da história? E na literatura? Qual a média de escolaridade e expectativa de vida destes corpos? E a inserção no mercado de trabalho? Sobram perguntas, faltam respostas. Grande parte dos dados divulgados em relação à população transvestigenere além de serem subnotificados tem como referencial a vivência de mulheres trans e travestis. Recentemente, o movimento das transmasculinidades tem promovido ações no intuito de levantar dados estatísticos voltados para homens trans e transmasculines, buscando assim fomentar estratégias na luta pela garantia de seus direitos.
Se os dados estatísticos (ou a ausência deles) apontam para uma invisibilidade transmasculina desconsiderando suas particularidades, basta um breve e sensível olhar para as produções literárias, espaços escolares, universidades e no mercado formal de trabalho para que tal ausência seja sentida. Ou melhor, será que essa ausência causa incômodo?
Homens trans e transmasculines que alcançam cadeira na universidade, mandato político ou qualquer outro espaço de poder institucional tornam-se a regra da exceção face às vulnerabilidades sociais presentes nas trajetórias dos seus pares. Quando atravessados por outros marcadores sociais de diferença, a exemplo de raça-etnia, o acesso e permanência nesses lugares torna-se tarefa mais árdua.
Mesmo diante dos apagamentos e das constantes ausências, as transmasculinidades tem se deslocado para um movimento de construção epistemológica a partir de suas escrevivências, concepção construída por Conceição Evaristo (2017) que tem como base o próprio processo de constituição de si, por meio de seus escritos uma restituição da identidade, da condição e dos modos de ser e existir da mulher negra.
A começar por esta dimensão, a escrevivência é marcada e carregada, como um lugar de manifestação de um eu coletivo, ou seja, por meio de suas experiências, se remonta histórias de um "nós" partilhado. Assim, “o sujeito da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação e por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si” (EVARISTO, 2017, s/p).
Partindo deste princípio, homens trans e transmasculines estão disputando espaços de produções literárias, apresentando narrativas outras. Se em Grande Sertão: Veredas, de 1956, o escritor João Guimarães Rosa inclui um personagem masculino chamado Diadorim, cujo sexo biológico feminino é revelado apenas no final da obra sem apresentar problematizações ou suspeitas sobre a identidade trans nem o que o personagem pensava sobre si mesmo (MOIRA, 2018).
Na década de 80, a publicação do livro autobiográfico “A Queda para o Alto” de Anderson Herzer contendo poemas que transitam entre bons momentos (relacionamento amoroso, paixão pela escrita e construção de redes de afeto) e a vulnerabilidade social (alcoolismo, abandono, internação) representa um marco na produção literária transmasculina brasileira. O autor não teve a oportunidade de acompanhar a repercussão da obra, sendo suicidado antes mesmo da publicação de seus escritos. Ainda que o tema central da obra não faça referência à identidade de gênero, as tramas ali contidas representam experiências bem comuns aos homens trans e transmasculines.
Neste mesmo período, João Nery lança a obra “Erro de pessoa, João ou Joana” sem alcançar grande repercussão num país que ainda sofria os efeitos de uma ditadura civil-militar enquanto as lutas em favor da redemocratização ganharam mais fôlego. A preocupação com o cenário político-social do país já se mostrava presente na dedicatória do livro: “Este livro é um grito e o dedico a todos os injustiçados (quer por motivos sociais, jurídicos, econômicos, políticos, físicos, emocionais, etc.), que lutaram ou ainda lutam por seus direitos, “se endurecendo, mas não perdendo a ternura jamais”. (NERY, 1984)
Em 2011, a obra é reeditada recebendo um novo título: "Viagem solitária: Memórias de um transexual trinta anos depois”. Ao lançar o livro num programa televisivo de relativa audiência, João Nery se consagra não apenas como uma das maiores referências do movimento de homens trans, mas da luta pelos direitos humanos no Brasil. A repercussão do texto que trazia uma maior aproximação com os estudos de gênero se comparado ao original, possibilitou que o mesmo levantasse o debate sobre transmasculinidades em diversos estados brasileiros, especialmente a partir de convites feitos por importantes universidades.
Na segunda década do século XXI, a literatura transmasculina brasileira é enriquecida com a produção de uma geração mais jovem e engajada tanto com os questionamentos levantados por João Nery quanto por novas demandas extraídas de um ativismo transmasculino que tinha alvorecido a pouco tempo no país. Assim, Cello Pfeil, Bruno Pfeil, Caio Souza Tedesco, Caio Jade, Shay de los Santos Rodriguez e tantos outros contribuíram não apenas na garantia de uma maior visibilidade e produção transmasculina na literatura, como também para o rompimento com a construção de uma história única acerca de corpos dissidentes.
Outras vozes reforçaram esse coro de resistência e criatividade, tais como Leonardo Peçanha, Vércio Gonçalves, Esteban Rodrigues, Tito Carvalhal, Guilherme Almeida e Bruno Santana, ao apontarem para uma escrita de encruzilhadas articulando identidade de gênero e raça em seus escritos. Afinal, “a agenda transmasculina não pode estar atrelada a uma perspectiva universal, pois não daria conta de abranger o quanto somos plurais. Os direitos e demandas que buscamos devem ser respeitando as interseccionalidades as quais estamos inseridos” (PEÇANHA, 2021, p.26).
Se a agenda transmasculina é plural em tramas, vozes e movimentos, tomaremos como foco investigativo o poema “Trans-parto”, escrito por Bruno Silva de Santana. Licenciado em Educação Física pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Pós-Graduado em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), o autor faz parte de uma estatística alarmante: de acordo com a Pesquisa do Perfil dos Graduandos das Instituições Federais da Andifes (2019), homens e mulheres trans equivalem a 0,1% dos/as estudantes do ensino superior brasileiro. Além de manter estreita relação com políticas de promoção de acesso e permanência nos espaços acadêmicos, a inserção dessas vozes no ensino tem provocado tensionamentos e disputas epistemológicas.
Transativista com ênfase nas transmasculinidades negras, sua atuação na e para além da universidade possibilita a construção de importantes redes de apoio, acolhimento e afeto, além de ampla circulação de conteúdos vinculados a essa temática em redes sociais. Assim, ele se (re)faz enquanto professor, pesquisador, poeta, escritor, nordestino e transativista negro pelos coletivos De Transs pra Frente e Transbatukada.
Ao publicar “Nós, escrevivências de resistências” pela Literatrans (2016), Amar Devagarinho pela Padê Editorial (2018), Diálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades pela Ciclo Continuo (2018) e Transmasculinidades Negras- Narrativas Plurais em Primeira Pessoa pela Ciclo Editorial (2021), percorre importantes caminhos para (re) construção de memórias coletivas, um itinerário que não se inicia nem se encerra na produção literária deste autor, mas que se fortalece e ganha novos contornos a partir dos seus escritos.
No bate-papo sobre Insurgências Poéticas Transmasculinas, realizado no evento Inverno Cultural promovido pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), ele analisa a poesia enquanto estratégia de resistência:
Poesia é essa estratégia de sobrevivência, de resistir, de ocupar, para que a gente deixe essa marca na história, para que a próximas gerações de pessoas trans, de pessoas transmasculinas sobretudo, encontre essas produções, e que isso sirva de inspiração, que possa abrir portas, janelas, construir pontes para romper com a transfobia, com o racismo, com essas opressões que nos cercam e mostrar para sociedade cisheteronormativa, que a população trans, as transmasculinidades elas precisam ser valorizadas, respeitadas e precisam ser consumidas também (SANTANA, 2021b, s/p).
Como um dos organizadores da obra, “Transmasculinidades Negras - Narrativas Plurais em Primeira Pessoa”, o referido autor aprofunda o debate sobre transmasculinidades e negritude, apresentando suas escrevivências juntamente com a de outros autores transmasculinos negros. Nessas páginas, suas vivências ganham corpo e voz a partir de diferentes expressões literárias, especialmente no poema “Trans-parto” como analisaremos a seguir.
Um corpo em travessia: análise do poema trans-parto
Me pari.
Me reinventei. Rompi o cordão umbilical (cis)hetero-terrorista Que me acorrentava Me afastando de mim. Fui meu próprio parteiro, comi a placenta, Cospi, Arrotei pra seguir. Pari a mim mesmo, Construindo a face Que sempre desejei, Sou ciborgue.
Processos de transição, intervenções e negociações feitas para construções de si. Na primeira parte do poema, o texto vai ganhando forma concomitantemente ao processo de transição do autor, desnaturalizando sua relação corporal. Trans-parto emerge enquanto narrativa possível de um novo nascimento, o nascimento de sua transgeneridade.
A unidade tão desejada pela cisnormatividade se mostra falha e utópica, colocando à margem quem dela faz escárnio, mas nunca excluindo plenamente, pois, o abjeto é o seu exterior constitutivo (LACLAU; MOUFFE, 2015). Assim ele se pariu, rompeu com o cordão umbilical (cis)hetero-terrorista, se refez ao cortar a cisheteronormatividade estabelecidas antes mesmo do seu nascimento.
A construção discursiva acerca desta questão tem sido demarcada pelo binarismo entre o ser e o não-ser, a qual delimita o “nós” (parto natural) enquanto pertencimento, do “outro” (que se pariu) como um corpo estranho em relação à “natureza”, ou seja, as identidades são construídas de forma relacional a partir do estabelecimento de diferenças.
Ancorado na poética, o autor se coloca enquanto sujeito de sua própria história: ao se reconhecer na transmasculinidade, constrói a face que sempre desejou, símbolo de uma ruptura nesta “predestinação” que é cumprir os papéis alicerçados em estrutura corpórea, atestando que a engenharia social voltada para a produção de corpos ditos normais se mostra incapaz de domesticar em sua totalidade.
Preciado (2020) em suas “Crônicas de Travessia” descreve esse deslocamento, o seu o processo de transição de gênero1, processos esses marcados por experiencias intensas de fissuras as fronteiras de gênero. O nome, os pronomes, as roupas, os hormônios, os documentos, as mudanças físicas e emocionais.
Ao fazer referência a um corpo ciborgue, o poema dialoga com Manifesto Ciborgue de Donna Haraway (1994) a partir de questões como a desnaturalização e fragmentação dos corpos, sendo este artificial, diferente, exótico. Assim, o corpo evocado no texto é marcado por essa construção que difere da cisnormatividade.
O corpo feito
De retalhos, De ti, de mim De (nós)... Sou eu. Um pouco De um montão De gente Que já não Podem ser Sou bicho Desnudo e (des)humanizado Desbravando o mundo. Ora me sinto humano Outras quero ser o Bicho Indomável, insano, feliz. Senti as dores do meu parto Planejado, desejado!O poema enuncia a noção de ancestralidade e de uma transição que não é só social, mas também espiritual. Uma ancestralidade que faz referência a homens trans pretos que possibilitaram acessos e abriram caminhos, mas também que carrega outras experiências transvestigeneres, a exemplo dos corpos trans e travesti que foram silenciados pela necropolítica. Assim, ele se compreende enquanto “pouco de um montão de gente”.
Quem não obedece a esse padrão normativo é visto como corpo que não importa e por não ter existência legítima torna-se passível a todo tipo de violação. Reiterar incansavelmente as normas se faz necessário, considerando a instabilidade da materialização destes corpos a partir da não conformidade a tais imposições. É nesta abertura da lei regulatória que se torna viável rearticulações capazes de questionar a força hegemônica e fazer emergir vidas precárias, desumanizadas.
Se diversas instituições têm desempenhado bravamente o papel de salvaguarda da cisnormatividade ao naturalizar determinadas formas de ser e existir em detrimento das desumanizadas, ainda assim, não tem conseguido barrar totalmente as dissidências de gênero e sexualidades, tencionando a suposta estabilidade discursiva, proporcionando a produção de contra discursos nesta arena de práticas hegemônicas (LACLAU; MOUFFE, 2015) por esse bicho indomável, insano, feliz.
O gestar aparece enquanto possibilidade e trocadilho: se o termo tem ligação com o ato de construir uma nova identidade, também se configura enquanto possibilidade de gestação por homens trans e pessoas transmasculinas, vivência demarcada não apenas por dores fisiológicas, mas por processos dolorosos face às violências. Assim, o texto reflete um dos pilares da produção literária protagonizada pelas transmasculinidades: abordar a diversidade de experiências e vivências envolvendo esses sujeitos.
Me dei o nome
Que sempre quis ter. Desenhei cada parte do meu corpo Sou engenheiro de mim. (in)perfeito nos detalhes Transgressor Na escolha dos fármacos (in)certosO nome é parte integrante dos direitos à personalidade, categoria que também se relaciona com outros direitos (à vida, ao corpo, à integridade física e moral, à intimidade e à liberdade). É por intermédio dele que se assegura a existência do sujeito perante o Estado (PRÓCHNO; ROCHA, 2011).
Ao anteceder o próprio nascimento e, em geral, permanecer até depois de sua morte, o nome produz sentidos (posse, pertença a determinada família, religião, território, classe social, relações de gênero e sexualidade). Enquanto categoria, além de acionar práticas de significação de subjetividades, prevê uma certa estabilidade da identidade civil, que é tensionada pelos que transitam entre gêneros.
Neste sentido, a linguagem tem o poder de operar nos corpos e na produção dos sujeitos como efeito discursivo, isto é, de uma citacionalidade. O ato de nomear e de reconhecer o outro a partir de um nome revelam práticas discursivas que tanto podem visibilizar politicamente sujeitos e seus corpos quanto silenciá-los. O nome pelo qual a população transvestigenere se reconhece é mais do que um conjunto de letras esvaziadas de sentido, ele opera mecanismos de transgressão da norma dominante, tornando-se ele mesmo um mecanismo de resistência política (PRECIADO, 2014).
Ao relatar a si, “sou engenheiro de mim”, o autor aprofunda o rompimento com a ordem de sexo/gênero, contrariando esse “ser sócio-político reconhecido e legitimado”, desobedecendo a identidade que lhe foi imposta: “riscando o mapa, apagando o nome para propor outros mapas, outros nomes que evidenciem sua condição de ficção pactuada. Ficções que nos permitem fabricar liberdade.’ (PRECIADO,2020, p.145).
Assim como no poema, Preciado (2020) compreende a transgeneridade enquanto rompimento nas fronteiras de gênero, fabricando assim uma nova possibilidade. A experimentação dos fármacos (próteses químicas, drogas políticas, substâncias), não só modificam o corpo, mas também a maneira como se é visto pela sociedade, transformando o filtro com que decodificamos e recodificamos o mundo.
Me gestei por anos
Cheio de medos Sofrendo pelo que (di)riam Ao me ver grávido De mim. Me fortaleci Entre os m(eus) Nas trincheiras Margens do (des)caso. Embalado nas Redes e nos a(feto)sAo atravessar essa viagem que, ao mesmo tempo, é de transições e rompimentos, é possível enxergar os medos e a vulnerabilidade presentes nas vivências trans. Uma compreensão de não lugar, sem teto, sem laços afetivos, ou de humanidade. Sujeitos com identidades de gênero variadas sobrevivem a aniquilamentos e discriminações cotidianas, opressões que se entrecruzam nas diversas dimensões.
Partindo deste pressuposto, a "sinergia de vulnerabilidades” (PARKER; CAMARGO JUNIOR, 2000) emerge enquanto fragilidade constitutiva de ações voltadas ao enfrentamento destas discriminações, assim como de políticas públicas destinadas às necessidades básicas deste segmento, como acesso aos estudos, à profissionalização e a bens e serviços de qualidade em saúde, habitação e segurança, contribuindo assim para a perpetuação do quadro de rejeição social.
Como emaranhado de fios aparentemente soltos, viver ou simplesmente existir são tecidos junto a tramas de violência que atravessam o texto e a vida. Apesar da preponderância de experiências negativas, o reconhecimento enquanto corpo transvestigenere também se apresenta como espaço de possibilidades: o acolhimento, ainda que condicional e precário, se faz presente entre os m(eus), embalados nas redes, nos afetos e nas trincheiras.
Me gerei na
certeza De que depois Não sobraria, um teto, O amor de muitos Desapareceria (Des)amor! Emprego Saúde, escola Família, religião Pari sozinho. Sem ninguém por perto para me abraçar ou celebrar pelo que nascia (...)Apesar das importantes conquistas alcançadas, especialmente na última década, por sujeitos que não se enquadram na cisheteronormatividade, este fragmento poético reforça a eficácia dos dispositivos e mecanismos de normatização, controle, exclusão e eliminação social a partir da imposição de barreiras e resistências brutais aos que buscam sobreviver após “parir a si mesmo”.
As práticas cotidianas de violência que permanecem naturalizadas na rotina das famílias, escolas, comunidades religiosas e em diversos locais das cidades são manifestações concretas desses mecanismos, ainda que os mesmos não operem sem enfrentar resistências.
Ao tomarmos como exemplo a educação brasileira, a mesma segue sendo instrumento de dominação, com imposições autoritárias de uma cultura (linguagem, racionalidade, corporeidade e sociedade) sobre outras (PATTO, 2007). Essa escolarização instituída, implica em políticas de coerção para o controle das nossas existências, seus elementos, gestos, comportamentos e práticas, por meio de pedagogias normatizadoras que permanecem se configurando a partir de marcadores sociais como os de gênero, raça, sexualidade e classe.
As instituições de ensino aqui são compreendidas na condição de espaço de sociabilidade (DIAS, 2014). Desse modo, utilizamos Louro (1997) ao ponderar sobre como esses espaços formativos não somente são responsáveis por transferir/produzir conhecimentos, mas é dentro dessas relações sociais que desabrocham identidades étnicas, de gênero, sexual, de classe, se constroem/produzem subjetividades, formas de ser, compreender, aprender e agir.
De acordo com Carvalhal (2020), a educação institucional, negligencia muitos debates urgentes, como, por exemplo, sobre relações étnico-raciais e de gênero, numa perspectiva antirracista e anticissexista. Além disso, quando pouco tensionam, o diálogo prioriza uma concepção que estabelece os padrões de tempo de desenvolvimento, aprendizagem, eficiência, conhecimento, inteligência, culpando as pessoas as quais não atendem à racionalidade.
Dessa forma, algumas existências são ensinadas como “modos errados” de ser homem. Conforme ilustra Santana (2019) em um de seus escritos intitulado: “Pensando Transmasculinidades Negras”, o autor expõe como apagamento de corpos transmasculinos, sobretudo, transmasculinos negros, acabam por terem suas existências silenciadas nos espaços de ensino. O autor relata sua experiência durante a graduação em Educação Física, “[...] tive meu nome social negado, meu nome de registro exposto, fui motivo de chacotas e como se não bastasse ainda tinha que suportar as piadas e falas machistas, misóginas e lgbtfóbicas distribuídas pelo próprio professor” (SANTANA, 2017, s/p).
São diversas as situações de violências pelas quais as pessoas trans passam, frequentar espaços onde essa violência é diária acaba por provocar a “evasão” desses sujeitos nos ambientes de ensino, evitar permanecer nesses lugares, para muitos é criar estratégias de sobrevivência.
Os sinais de fissuras na cisnormatividade se fazem presente a partir dos enfrentamentos e lutas por direitos em diversos espaços: mercado de trabalho, unidades de saúde, instituições de ensino, encontros familiares, celebrações religiosas. A movimentação desse corpo nos espaços, de algum ou vários modos, desestabiliza o sistema normativo de gênero tal como é conhecido. Por vezes, ocupar esses lugares é sentir novas dores pós-parto.
Sangrei sozinho
Me banhando De resistência. Vontade de seguir Cantando esse parto tão sonhado Por aí… Pensado há tempos Pela necessidade de ser: Pluri, Multi, Bicho Gente… Dono de mim.Para além de relatar a dor, o desfecho poético aponta para a importância de resistências ativas enquanto possibilidades de existência em território tão inóspito e aparentemente inegociável. Não se trata de ignorar a existência de estruturas de opressão, pelo contrário, é através da compressão de como as mesmas operam que podemos lançar olhares sobre os movimentos desses corpos que são multis, pluris, gentes e donos de si.
Ao se “banhar de resistência” e ter “vontade de sair cantando”, o poema assume uma postura que escapa da análise unidirecional do discurso a partir da ideia que neste jogo de poder, corpos transvestigeneres são reduzidos ao sofrimento, perdas e extermínios. Assim, a presente literatura é movida por um sentimento de esperança, ainda que livre de qualquer romantização ou meritocracia.
Ao mesmo tempo em que esse regime de verdade controla, nomeia e legitima certas vidas em detrimento de outras, os sentidos não estão dados, as brechas estruturais possibilitam ressignificações e enredamentos a partir de “ações empreendidas pelos próprios atores sociais produzem respostas criativas, gerando dissidências ou dissonâncias em relação às grandes estruturas de poder e dominação” (PEREIRA, 2017, p.18).
Conclusões
Numa conjuntura marcada pela intolerância e pelo avanço do neoconservadorismo, que se manifesta através de movimentos como escola sem partido, estatuto da família e dia do orgulho heterossexual, a inserção de uma perspectiva transmasculina na literatura representa uma quebra dos “padrões”: são corpos que enunciam novos olhares sobre antigas questões, reivindicam outras letras ao contarem sua história em primeira pessoa.
Freire (1978, p.75) afirma que é necessário investir em ações que permitam ao oprimido a apreensão e o reconhecimento sobre si enquanto sujeito capaz de se transformar e transformar sua própria história. Desse modo, o fazer literário com sua capacidade de tratar temas sérios de forma lúdica, torna-se instrumento para conhecer e dar sentido ao mundo e suas relações sociais, sendo via de construção de subjetividades. Ao contar histórias, os sujeitos atribuíram sentidos aos fatos e, até mesmo os ressignificam. A produção de si como sujeito criador de sua própria história e a memória são guiadas por propósitos normativos aprendidos e vivenciados socialmente.
Assim, a escrevivência proposta por Bruno Santana e por tantos outros autores transmasculinos/es, pode contribuir na efetivação de micro-ações políticas cotidianas, interferindo no imaginário social ao incorporar valores e atitudes alicerçadas em uma visão crítica e emancipatória, além de propor resistências "possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício (...)’ (Foucalt, 1999, p. 91).
Refletir sobre os embates presentes neste “parir a si mesmo” é reconhecer o acirramento de forças no processo político em vigor a partir da articulação de “novos” discursos atrelados ao avanço do neoconservadorismo. Uma produção literária que nos possibilita pensar sobre os ambivalentes modos de existência transmasculinas que circulam e se cruzam nos tortuosos e incompletos processos de criação de vidas forjados nas brechas da estrutura (cis)normativa. Uma lógica que a todo momento é normatizadora de nossas existências nos colocando sobre uma ordem binaria, cisgênera, heterossexual, cristã, branca, eurocêntrica, que acaba por fortalecer, o machismo, o falocentrismo, racismo estrutural, a transfobia, LGBfobia e tantos outros demarcadores que não seguem a norma.
A partir (e para além) da sensibilização, tais escrevivências configuram-se enquanto experiência estética e política de suma importância para construção de novos olhares sobre masculinidades articulados a outros demarcadores da diferença (raça e etnia, identidade de gênero, sexualidades, território).
Essa escrita que é política e representativa também pode ser considerada uma escrita de memória, na medida em que outros possam consultar e se encontrar, para que tais corpos não vivam de apagamentos e de invisibilidades, disputando outras possibilidades de escrita e vivência.
São corpos que, mansamente, tecem fios onde o tempo de cada um também é o tempo coletivo, assim como a história de cada pessoa é a história de várias vozes, atravessada por uma conjugação de sentidos de si. Sendo assim, é urgente que (re)exista a circulação dessa produção em diversos âmbitos, sendo a mesma reconhecida enquanto movimento epistemológico, político e artístico.