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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.19 no.50 Vitória da Conquista  2023  Epub 17-Mayo-2024

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v19i50.11842 

Artigos

A SERENIDADE COMO TRAÇO DETERMINANTE DA FORMAÇÃO NA ERA DA TÉCNICA

RELEASEMENT AS A DETERMINING FEATURE IN TRAINING IN THE TECHNICAL ERA

LA SERENIDAD COMO RASGO DETERMINATE DE LA FORMACIÓN EN LA ERA DE LA TÉCNICA

Raísla Girardi Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0002-3194-8481

Claudio Almir Dalbosco2 
http://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Marcelo José Doro3 
http://orcid.org/0000-0001-9765-1958

1Universidade de Passo Fundo - Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil; raislag@gmail.com

2Universidade de Passo Fundo - Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil; cadalbosco@upf.br

3 Universidade de Passo Fundo - Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil; marcelodoro@upf.br


RESUMO:

O diagnóstico filosófico da modernidade apresentado por Heidegger, enquanto época do domínio técnico, apresenta a ameaça de um engessamento das possibilidades humanas à lógica do pensamento calculador, que encontra por todo lado objetos a serem explorados, transformados e organizados. No limite, o ser humano já não conseguiria tomar a si mesmo senão desde essa base de pensamento, convertendo-se, por fim, também em um recurso do mundo técnico. Diante disso, este artigo busca explorar, com base em uma pesquisa bibliográfica, a possibilidade de autoformação que ainda se vislumbra, tendo como base a noção de serenidade. Este conceito foi introduzido pelo próprio Heidegger para nomear a disposição capaz de romper com a lógica do pensamento calculador e viabilizar outro pensar, o meditativo, que pode manter o ser humano aberto para diferentes modos de compreensão de si, de suas possibilidades e do mundo como um todo. O artigo sustenta o argumento de que a serenidade alcançada por meio do pensamento meditativo torna-se, na era da técnica, um requisito para a formação humana entendida como autoformação.

Palavras-chave: filosofia da educação; formação; pensamento

ABSTRACT:

The philosophical diagnosis of modernity presented by Heidegger, as a time of technical mastery, reveals the threat of a plastering of human possibilities to the logic of the calculative thinking, which finds objects to be explored, transformed and organized everywhere. Ultimately, the human being would no longer be able to consider himself except from this base of thinking, also becoming a resource of the technical world. Therefore, this article seeks to explore, based on bibliographical research, the possibility of self-training that may still be envisioned, based on the notion of releasement. This concept was introduced by Heidegger himself to name the disposition capable of breaking with the logic of the calculative thinking and enabling another way of thinking, the meditative one, which could keep human beings open to different ways of understanding themselves, their possibilities and the world as a whole. The article sustains the argument that the releasement reached through meditative thinking becomes, in the technical era, a fundamental requirement for human training understood as self-training.

Keywords: philosophy of education; training; thinking

RESUMEN:

El diagnóstico filosófico de la modernidad presentado por Heidegger, en cuanto época del dominio técnico, revela una amenaza de un enyesado de posibilidades humanas a la lógica del pensamiento calculador, que encuentra por todos lados objetos que puedan ser explorados, transformados y organizados. En el límite, el ser humano ya no lograría tomarse a sí mismo sino desde esta base de pensamiento, convirtiéndose también en un recurso del mundo técnico. Frente a eso, este artículo busca explotar, en base a una investigación bibliográfica, la posibilidad de autoformación que todavía pueda ser vislumbrada, basado en la noción de serenidad. Este concepto fue introducido por el propio Heidegger para nombrar la disposición capaz de romper con la lógica del pensamiento calculador y viabilizar otro pensar, el meditativo, que pudiera mantener el ser humano abierto a diferentes maneras de comprensión de uno mismo, de sus posibilidades y del mundo como un todo. El artículo sostiene el argumento de que la serenidad alcanzada a través del pensamiento meditativo se convierte, en la era técnica, en un requisito fundamental para la formación humana entendida como autoformación.

Palabras-clave: filosofía de la educación; formación; pensamiento

Introdução

O debate em torno da formação humana é considerado central para quem vê no ato de educar mais que a mera aquisição de conhecimento e desenvolvimento de competências, entendendo-o ligado à transformação das subjetividades e, por meio delas, da realidade humana como um todo. O tema tem uma longa história e foi, por muito tempo, concebido em linha com perspectivas metafísicas da natureza humana, de onde se derivavam ideais norteadores do processo formativo. Para os gregos antigos, a formação, enquanto paideia, consistia na condução dos indivíduos às virtudes mais elevadas do espírito como a sabedoria e a justiça, traços de um modelo idealizado do que seria a plenitude humana.1

Modernamente, ao passo que foram se consolidando as críticas aos postulados metafísicos, instalou-se o entendimento de que a transformação buscada por meio da educação deveria ter como propósito a liberação e capacitação do que é próprio de cada indivíduo. A formação assume, desde então, o sentido da autoformação, em que a autonomia e a liberdade do indivíduo no processo de autodesenvolvimento ganham centralidade.2 Assim, já não é mais a realização de um ideal humano pré-concebido que humaniza os indivíduos, mas, antes, o investimento na singularidade, pois nada mais humano do que a possibilidade de cada um formar a si mesmo. A relação com o mundo, com as possibilidades e oportunidades nele contidas, se torna determinante nessa perspectiva moderna de formação. A liberdade formativa, isto é, a liberdade de cultivar as capacidades individuais, dependerá fundamentalmente do modo como os indivíduos se posicionam ou são posicionados em sua relação com a realidade mais imediata que comporta seu existir. De qualquer sorte, formação não tem mais a ver com uma teleologia fixa, mas sim, como um jogar-se no mundo e formar-se por meio do enfrentamento experiencial dos riscos que o próprio mundo oferece.3

Eis que, segundo o diagnóstico filosófico da contemporaneidade, apresentado por Martin Heidegger, nossas individualidades estão em vias de sucumbir a um modo homogeneizante de relação com o mundo, pautado pelas demandas onipresentes de exploração, modificação e ordenação técnicas, que acabarão por enrijecer (objetificar) a própria subjetividade humana. O filósofo argumenta que o tipo de relação com o mundo subjacente à técnica moderna faz com que tudo ao nosso redor não tenha outro aspecto que não o da mera disponibilidade.4 As coisas já surgem de antemão compreendidas como disponíveis às demandas e interesses humanos; tudo se torna recurso para vontade ilimitada de controle que caracteriza esta nossa época. No fim, também os seres humanos são tomados como recurso (em empresas com seus departamentos de “recursos humanos”), como material para análise (em clínicas e laboratórios) e, por toda a parte, como um mero número, sendo este o indicador máximo do nivelamento e da homogeneização técnica. Nesse contexto, parece inevitável questionar como seria ainda possível pensar formação humana, enquanto cultivo da subjetividade: se estamos sendo regidos profunda e silenciosamente pelos pressupostos técnicos, que exercem uma forma de enquadramento (Gestell), qual a margem possível para a liberdade humana e, por conseguinte, para a própria autoformação?

Com o intuito de tratar desta questão voltamo-nos para a noção de serenidade (Gelassenheit), que na obra de Heidegger surge como “[...] um remédio para a tecnologia” (INWOOD, 2002, p. 36) e que, enquanto tal, acreditamos ser também um caminho para a formação humana nessa era da técnica, que se iniciou com o advento das ciências modernas da natureza e que alcança na atualidade sua mais elevada expressão. O conceito aparece sobretudo no livro que leva esse nome e que reúne um discurso festivo, de 1955, e um fragmento de diálogo entre um cientista, um erudito e um professor, de 1944/1945. Em linhas gerais, a serenidade é apresentada como a essência do pensamento e como abertura para o mistério, simultaneamente como postura diante dos dispositivos técnicos e como caminho para uma compreensão mais ampliada e radical da condição humana.

Com base no estudo desses dois textos buscamos sustentar que há uma dimensão formativa possível no mundo da técnica, que tem lugar quando, por meio de uma postura serena, aprendemos a dizer sim e a dizer não aos recursos e utensílios técnicos que permeiam nossa existência, de usinas hidrelétricas a aparelhos telefônicos; quando aprendemos a aceitar sua presença irreversível e o que ela traz de potencial para a vida, mas sem sucumbirmos totalmente a ela, ou seja, sem nos deixarmos enquadrar por sua força homogeneizante, preservando no domínio da subjetividade um reduto para o singular, para o próprio, onde a diferença e a novidade radical podem sobreviver.

Serenidade em relação ao mundo técnico

Heidegger foi convidado, em outubro de 1955, para proferir um discurso festivo em virtude do 175º aniversário do compositor Conradin Kreutzer, seu conterrâneo de Meßkirch. O discurso foi intitulado “Serenidade”5. Na ocasião, Heidegger conduz os ouvintes da cerimônia a prestarem uma homenagem reflexiva a Kreutzer e, uma vez anunciada a natureza da homenagem, ele já não se detém aos feitos e às belezas criadas pelo compositor, avançando com uma reflexão sobre o que significa pensar. Para ele, todos somos capazes de pensar, ainda assim, muitas vezes, somos pobres-em-pensamento. Nas palavras de Denker (2020, p. 130), “Pensar só é possível na autorrealização - enquanto eu não pensar, nada será pensado para e por mim. A meditação [Besinnung] é uma indicação formal do pensamento. Pensar significa meditar sobre o que concerne a cada um de nós direta e incessantemente em sua essência [Wesen]”.

A falta de pensamento permeia nossa existência, especialmente pelo fato de, no tempo presente, o conhecimento ter tomado o caminho mais rápido, podendo ser esquecido quase concomitantemente ao momento que é lembrado. Ainda assim, mesmo que estejamos sem pensar, não abdicamos da nossa capacidade para tal, podendo até mesmo sentir necessidade dela. “[...] só podemos tornarmo-nos pobres-em-pensamentos ou mesmo sem-pensamentos em virtude de o homem possuir, no fundo (Grund) da sua essência, a capacidade de pensar, «o espírito e a razão», e em virtude de estar destinado a pensar.” (HEIDEGGER, 2000, p. 12, grifo do autor). Mas, o denominado por Heidegger como “homem actual” está, segundo ele, fugindo do pensamento e, mais que isso, negando tal ação.

Aparentemente, pode-se até achar que há abundância de pensamento, na medida em que em nenhuma outra época da história houveram tantas pesquisas e investigações quanto na modernidade. Heidegger não nega a utilidade e necessidade de tal desenvolvimento, mas destaca que esse é um tipo de pensamento planificador, que se baseia no cálculo. “O pensamento que calcula nunca pára [sic], nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um pensamento que medita (ein besinnliches Denken), não é um pensamento que reflecte (nachdenkt) sobre o sentido que reina em tudo o que existe.” (HEIDEGGER, 2000, p. 13). O filósofo expõe assim a ocorrência de dois tipos de pensamentos, ambos legítimos e necessários, um que calcula, e outro que medita.

Dalle Pezze (2006, p. 98) explica que o que Heidegger chama de pensamento calculador é aquele pensamento que domina nossas ações cotidianas enquanto atividade mental que nos ajuda a resolver problemas, lidar com situações, compreender as circunstâncias e, de acordo com esse entendimento, agir para seguir em frente. Nesse sentido mais imediato, segue a autora, pensar significa raciocinar, o processo de chegar a certas conclusões por meio de uma série de declarações; pensar é uma forma de exercer domínio sobre as coisas. Trata-se, em suma, de um pensamento que opera a partir de circunstâncias que já estão dadas, e que são levadas em consideração para realizar projetos ou alcançar objetivos que se quer alcançar (DALLE PEZZE, 2006, p. 99). Esse tipo de pensamento não para com vistas a considerar o significado inerente a tudo o que é; ele está sempre em movimento, é irrequieto (“nervoso”) e nunca se recolhe. Por isso, Heidegger irá opor a esse pensar calculador aquele outro, que ele chama de meditativo. Mas o que significa, afinal, pensamento meditativo? Dalle Pezze (2006, p. 100, tradução nossa) resume assim: “Significa notar, observar, ponderar, despertar uma consciência do que realmente está acontecendo ao nosso redor e em nós.”

Quando se fala sobre o pensamento meditativo, no entanto, surgem algumas objeções em relação a ele na medida em que: a) diz-se que a pura reflexão não se preocupa ou não se integra com a realidade, e que, portanto, não é capaz de solucionar os problemas correntes ou de contribuir para o mundo prático; b) que a pura reflexão é “elevada” demais para o pensamento comum, colocando assim o pensamento meditativo no âmbito do inútil e do complexo. Heidegger rebate tais acusações afirmando: “Nesta desculpa a única coisa correcta é que é verdade que um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado.” (HEIDEGGER, 2000, p. 14). Entretanto, essa árdua e desafiadora tarefa não é somente de alguns, senão de todos, pois o ser humano é o ser que pensa, podendo fazê-lo na medida em que se empenha com o pensamento. Nessa demanda de preparação e esforço para o pensar meditativo já reside algo valioso em termos de formação, uma vez que ela constitui um caminho de transformação para aquele que pensa.

O primeiro passo nessa direção é enfrentar a desconexão com a própria tarefa do pensar, que tem lugar na medida em que os seres humanos vão perdendo o que Heidegger denomina de enraizamento (Bodenständigkeit). Com esse termo, o filósofo tem em vista a conexão do ser humano com sua terra natal, com seus costumes, com a natureza e com a própria capacidade de pensar. O enraizamento se esvai por fatores externos e fatalidades, como também por uma negligência dos próprios seres humanos, que passam a levar suas vidas de modo superficial, presos constantemente às tecnologias e meios de informação que mais os afastam do que aproximam do mundo, simulando o que não existe e extinguindo a necessidade do pensar. Esse é o espírito de época que provoca o desenraizamento se expande por todo lado.

O Homem é, assim, transposto para uma outra realidade. Esta revolução radical da visão do mundo é consumada na filosofia moderna. Daí resulta uma posição totalmente nova do Homem no mundo e em relação ao mundo. O mundo aparece agora como um objecto sobre o qual o pensamento que calcula investe, nada mais devendo poder resistir aos seus ataques. A Natureza transforma-se num único posto de abastecimento gigantesco, numa fonte de energia para a técnica e indústria modernas. [...]

O poder oculto na técnica contemporânea determina a relação do Homem com aquilo que existe. Domina a Terra inteira. (HEIDEGGER, 2000, p. 18-19).

Fixado nessa postura técnica de compreensão do mundo, o ser humano dispensa outras possibilidades de relação com o real e introduz a busca pela certeza calculável e científica em todos os âmbitos de sua existência. Um desdobramento de tal conduta no campo educacional se torna perceptível pela crescente procura e maior valorização de determinados cursos de graduação. Muitos acadêmicos já não buscam uma formação que lhes seja aprazível e desperte real interesse, mas aquela que seja mais rentável e garanta status social. “Direito, medicina, economia, arquitetura, engenharia mecânica entre outras são as faculdades que têm utilidade imediata para a vida prática do ser humano. Sempre queremos ter mais certeza - por isso, podemos, por exemplo, assegurar tudo hoje em dia.” (DENKER, 2020, p. 133). Agindo dessa maneira, os indivíduos modernos movimentam-se dentro dos limiares do pensamento técnico, cegos em relação aos limites desse tipo de pensar.

Mas isso não é uma fatalidade, pois Heidegger crê que através da conscientização das pessoas sobre essa força histórico-cultural que as condiciona a descobrir o real pela perspectiva da disponibilidade técnica, se possa abrir fissuras que enfraqueçam desde dentro essa dinâmica. Isso se faz possível na medida em que o pensamento que calcula for contraposto pelo pensamento que medita, ou seja, através do pensamento meditativo o ser humano poderia encontrar outras formas de ser e de se relacionar com os entes e consigo mesmo. O que não significa abdicar dos aparatos tecnológicos e das máquinas que hoje, mais do que nunca, se tornaram imprescindíveis em nossas vidas em maior ou menor grau; significa, antes, que é possível proceder de outra maneira.

Para todos nós os equipamentos, aparelhos e máquinas do mundo técnico são hoje imprescindíveis, para uns em maior e para outros em menor grau. Seria insensato investir às cegas contra o mundo técnico. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo técnico como uma obra do diabo. Estamos dependentes dos objectos técnicos que até nos desafiam a um sempre crescente aperfeiçoamento. Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal modo apegados aos objectos técnicos que nos tomamos seus escravos. Porém, também podemos proceder de outro modo. Podemos utilizar os objectos técnicos e, no entanto, ao utilizá-los normalmente, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de tal modo que os possamos a qualquer momento largar. Podemos utilizar os objectos técnicos tal como eles têm de ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objectos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer «sim» à utilização inevitável dos objectos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer «não», impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen). (HEIDEGGER, 2000, p. 23-24, grifos do autor).

Importa-nos, até aqui, demarcar o que se pode chamar de “postura consciente” em relação à técnica, uma postura que nos permite seguir com seu uso ao mesmo tempo em que estranhamos a sua presença maciça em nossas vidas e, mais que isso, a transformação que ela opera no modo como nos relacionamos com a realidade. É sabido que hoje podemos visitar virtualmente mesmo os locais mais ermos do planeta, que podemos contatar de modo síncrono pessoas de diferentes partes do mundo e que as relações virtuais, sobretudo entre os jovens supera as interações presenciais. Cabe, diante dessas e outras formas de experiência, atentar para o modo como esse tipo de “exploração” virtual da realidade afeta nossa percepção dos lugares, das coisas e das pessoas. O mais óbvio já vem sendo assinalado há tempo: por um lado, contamos com a praticidade de nos aproximarmos de pessoas queridas, com a facilidade de nos encontrarmos sem sair de casa, evitando assim o desgaste do deslocamento; com a possibilidade de conhecer, aprender e debater sobre coisas e com pessoas que talvez, se ocorresse apenas de forma presencial, seria para muitos inviável. Mas, de outro lado, já se sabe que nas redes sociais os vínculos são muito mais rasos, sendo iniciados e cancelados sem qualquer pudor; a ética que rege as relações sociais no campo virtual é diferente. O contato através das telas, muitas vezes, se constitui pela falta de percepção de que do outro lado está um ser humano, resultando em uma postura mais negativa e agressiva que não se preocupa com o desconforto ou sofrimento alheio.

A relação de sim e não que Heidegger propõe para com a técnica também recai, ao nosso ver, sobre o campo educacional. Isso porque dizer sim tem a ver com a aceitação e o reconhecimento da facticidade, ou seja, das condições que estão postas e não podem ser alteradas. O que somos e o que podemos ser se decide nos limites do nosso mundo e reconhecer esta condição é imprescindível para que possamos fazer algo a respeito. Tudo o que já está posto, que nos determina desde o início, constitui também o ponto de partida para toda e qualquer transformação possível. É em relação a isso que somos, na situação atual de nosso existir, que podemos projetar algo distinto, e é nesse âmbito que a autoformação tem lugar, propiciando uma alteração de seu estágio inicial, sem escapar dos limites do mundo. Trata-se de promover aquilo que Severino (2006) chamou, na esteira da teoria crítica, de “formação cultural”, no sentido de uma auto-reflexão crítica que torna os indivíduos verdadeiramente conscientes das forças socioculturais tendentes à acomodação e dominação de suas subjetividades. Cabe a educação, nesse sentido, promover essa formação enquanto produção de uma consciência verdadeira acerca das condições históricas do próprio existir. Nesse ponto ganha importância também o dizer “não”. Principalmente, no que ele tem de postura questionadora. Dizer não é estranhar a própria situação, é perguntar “o que se passa comigo, que se passa conosco enquanto entregamo-nos ao uso de tais e tais tecnologias?” ou “como fica minha formação, o que resulta de minha vida se me entrego irrefletidamente ao canto da sereia das tecnologias?” ou, em sentido político, “o que acontece com a vontade de determinar os rumos de nossa vida social quando sequer prestamos atenção para o impacto profundo das tecnologias em nossas vidas?”.

Dizer “sim” e dizer “não” é o movimento necessário de um processo de formação que precisa reconhecer as limitações de um existir circunscrito em condições pré-determinadas, regido por forças profundas, mas que, ao mesmo tempo, busca salvar a individualidade resistindo, por meio da meditação, a total dominação das forças mundanas. A formação constitui esse processo em que o indivíduo explora os flancos de um modelo de vida enrijecido, realizando a liberdade que lhe é possível. É dessa forma que Heidegger vislumbra uma atitude mais tranquila e serena para com o mundo técnico.

Se, no entanto, dissermos desta maneira, simultaneamente «sim» e «não» aos objectos técnicos, não se tomará a nossa relação com o mundo técnico ambígua e incerta? Muito pelo contrário. A nossa relação com o mundo técnico torna-se maravilhosamente simples e tranquila. Deixamos os objectos técnicos entrar no nosso mundo quotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen). Nesta atitude já não vemos as coisas apenas do ponto de vista da técnica. Tomamo-nos clarividentes e verificamos que o fabrico e a utilização de máquinas exigem de nós, na realidade, uma outra relação com as coisas que, não obstante, não é sem-sentido (sinn-los). (HEIDEGGER, 2000, p. 24, grifos do autor).

Agora, temos a nomeação dessa postura do dizer “sim” e do dizer “não” com o termo “serenidade”, que indica uma atitude fundamental diante das coisas. O termo alemão, cuja raiz é o verbo lassen, guarda o duplo sentido de “deixar que algo aconteça” e “fazer com que algo aconteça”. No português, o termo tem como um de seus traços semânticos certa sobriedade; é o estado de espírito de quem está à altura do que se passa a seu redor e consigo mesmo. Na parte final da transcrição acima importa destacar essa “outra relação com as coisas”, que possa se pautar por outros valores que não apenas aquele em que se coloca tudo ao dispor da exploração e da estocagem.

Há, quanto a isso, alguma semelhança com a proposta da destruição (Destruktion)6 de que falava o primeiro Heidegger; com a diferença que agora não se trata de desconstruir a tradição filosófica, mas o próprio mundo, através de uma atitude serena para com as coisas, pois é aí que começamos a ter consciência de nossa relação com elas e, mais que isso, passamos a perceber o que de oculto permanece na essência da técnica e em sua regência. “O que, deste modo, se mostra e simultaneamente se retira é o traço fundamental daquilo a que chamamos o mistério. Denomino a atitude em virtude da qual nos mantemos abertos ao sentido oculto no mundo técnico a abertura ao mistério” (HEIDEGGER, 2000, p. 25).

O mistério para o qual Heidegger espera que nos mantenhamos abertos tem a ver justamente com as forças que, ocultas em nossa ocupação com os dispositivos da técnica, acabam por condicionar o nosso modo de pensar e de agir. A “abertura para o mistério” é outro aspecto da “serenidade para com as coisas”, característica do pensamento meditativo, que Heidegger reivindica como possibilidade para uma forma distinta de habitar o mundo, em que não sejamos tomados pelo ímpeto calculador que domina amplamente nossa relação com as coisas. Mas, como já assinalamos, esse pensamento não ocorre de forma espontânea, ao contrário, ele precisa ser conquistado, ele demanda coragem e persistência. Nesse sentido, ele precisa ser visto, ao mesmo tempo, como finalidade e como princípio formativo para uma relação mais livre com nossas possibilidades no mundo da técnica.

Na sequência, ao voltarmo-nos para o segundo escrito da obra Serenidade de Heidegger, poderemos ampliar a compreensão do que Heidegger chama de abertura para o mistério inerente ao pensamento meditativo. A imbricação entre serenidade e abertura será explorada a partir da noção de Região, que é alcançada a partir de um aguardar, de uma atitude serena para com o mundo e os entes. Tal atitude possibilita que as coisas sejam em si mesmas e que, dessa forma, também o pensamento seja diferenciado, não ficando preso a representações de causa e efeito mas mostrando-se como aquele que, em sua essência, é capaz de inaugurar novos sentidos por estar ligado diretamente à própria essência humana, e concebendo assim possibilidades múltiplas de ser e estar no mundo. “Quando a serenidade para com as coisas e a abertura ao mistério despertarem em nós, deveríamos alcançar um caminho que conduza a um novo solo. Neste solo a criação de obras imortais poderia lançar novas raízes.” (HEIDEGGER, 2000, p. 27).

Serenidade como postura e caminho formativo

Na segunda parte da obra Serenidade, intitulada “Para a discussão da serenidade”, encontramos uma conversa, contextualizada em um caminho de campo, em que participam um Investigador (I), um Erudito (E) e um Professor (P). Esse não é um escrito de fácil interpretação, em parte por conta da proximidade das colocações dos personagens, mas principalmente por conta da própria temática, que demanda uma abordagem e um modo de exposição distinto daquele a que estamos habituados e mais bem equipados para expressar, ligado ao pensamento calculador. Em vista disso, cabem algumas considerações preliminares.

Os interlocutores da conversa representam posições bem definidas. O Investigador é aquele que conduz pesquisas científicas e, portanto, está acostumado a pensar de acordo com um modelo de pensamento calculador; o Erudito representa, por sua vez, um estudioso da história da filosofia e, como tal, está habituado a pensar a partir de uma perspectiva metafísica; por fim, o Professor é aquele por meio de quem o próprio Heidegger se manifesta, representando sua ideia do que significa pensar (DALLE PEZZE, 2006, p. 96). A conversa tem a forma de uma investigação sobre a natureza ou essência do pensamento meditativo, enquanto um tipo de pensamento que não envolve querer. Como pano de fundo do diálogo está a interpretação da técnica e do mundo técnico como manifestação da vontade de poder de Nietzsche, tomada na perspectiva da história do ser. É importante termos isso em mente, pois, como observa Bernasconi (2021, p. 630), ajuda a entender porque Heidegger se volta, na conversa, ao não-querer como tentativa de escapar do domínio da técnica: a oposição direta ao querer é incapaz de servir como uma forma efetiva de fuga, justamente porque permanece definida pelo que procura evitar.

Antes de adentrarmos na análise do conteúdo da conversa propriamente dita, há outro elemento que convém destacar, sobretudo porque encerra em si um elemento formativo poderoso. Trata-se de algo relacionado ao modo como Heidegger posiciona os interlocutores. No início da conversa, observa Dalle Pezze (2006, p. 96), o Investigador e o Erudito parecem lidar com a busca de acordo com seus modos de pensar científico e metafísico, ou seja, falando a partir de proposições bem determinadas e claras; mas aos poucos, sob a orientação do Professor, ambos começam a abrir mão de seus próprios pontos de vista e, com isso, de sua forma habitual de pensar. O desdobramento da conversa revela uma transformação:

Eles deixam o próprio diálogo tomar conta, por assim dizer. À medida que abandonam a vontade de ditar e liderar a busca, uma abordagem e um modo de pensar diferente se revelam por meio do diálogo. Os interlocutores, à medida que o diálogo avança, não impõem mais sua visão, mas deixam os elementos de sua busca emergir do diálogo entre si. Na Conversa, o ponto de vista dos falantes isolados é gradualmente abandonado, no sentido de que o foco está no que é revelado durante o diálogo por e através da interação dos três falantes. Poderíamos nos aventurar a dizer que, a certa altura, não importa mais quem disse o quê, pois o que se revela no diálogo está além da distinção do ‘o quê’. O que a Conversa mostra é a natureza transformada do pensamento, em seu processo de transformação. (DALLE PEZZE, 2006, p. 96, tradução nossa)

Parece-nos decisivo, quanto a isso, a mudança de postura que é operada na medida em que vai se arrefecendo a postura científica e metafísica. Não apenas a própria coisa em questão é deixada ser em sua essência, sem a delimitação forçada do pensamento calculador, como a própria relação dos interlocutores é transformada, retraindo-se humildemente em favor da clarificação da questão investigada. E, nesse sentido, o todo da conversa pode ser entendido como uma experiência da serenidade, ou seja, como um manter-se na Região aberta em que as coisas vêm ao encontro - o que é diferente da postura técnica que vai ao encontro das coisas, delimitando seu ser a partir dos interesses humanos. E isso também para o leitor que, em contato com o escrito, é levado a experimentar a serenidade por meio de um movimento ativo de afastamento de uma forma habitual de pensar e de querer.

Feitas essas colocações, olhemos para o que se passa na conversa. O percurso percorrido pelos três personagens se inicia com uma colocação do Investigador acerca da afirmação do Professor de que a questão da essência do homem não é uma questão sobre o homem. O trio explora a possibilidade de encontrar a essência de algo, da coisa mesmo, no caso, a essência humana fora do ser humano. Assumindo o pensamento como traço distintivo da condição humana, concluem que a essência do pensamento só poderá ser atingida se o olhar for desviado do pensamento, pois olhar para o pensamento significa estar imerso nele e em suas concepções tradicionais; é preciso, portanto, estar “fora” dele para pensar sobre ele.

Entendido pela forma tradicional, o pensamento se dá como representação e, alerta Heidegger, através de seus interlocutores no texto, como um querer. Pensar é, portanto, querer. Mas para compreender e atingir sua essência é preciso abdicar dessa visão e compreender o pensamento como algo distinto do querer, como um não-querer. Diz o Erudito:

Não-querer significa, em primeiro lugar, um querer, um querer dominado por um não, mesmo no sentido de um não que incide sobre o próprio querer e o recusa. Não querer significa, portanto, recusar voluntariamente o querer. A expressão não-querer significa também, em segundo lugar, o que é pura e simplesmente estranho a todo o tipo de vontade. (HEIDEGGER, 2000, p. 32).

Também o não-querer parece guardar em si uma vontade, de um querer, mas, nesse caso, de modo distinto. Trata-se de um querer que “Quer um não-querer no sentido da recusa do querer a fim de que, através deste, possamos avançar em direcção à procura da essência do pensamento, que não é um querer ou, pelo menos, prepararmo-nos para tal” (HEIDEGGER, 2000, p. 33). Em termos formativos, podemos compreender o dizer “não” como uma recusa da vontade, sendo essa a raiz da mobilização técnica. A vontade que se dá pela técnica é a vontade ilimitada de obter mais, de dominar que nos arrasta e nos mantém presos (e distraídos) no redemoinho das forças técnicas - o lucro ilimitado, a exploração descontrolada e o consumismo. Portanto, uma orientação formativa que caminhe nessa direção estará apenas autenticando a força regente da técnica. É preciso que, a nível educacional, atinjamos a compreensão de que a recusa dessa vontade, desse querer que acaba por minimizar as potencialidades humanas se faz necessária para a abertura de possibilidades de ser distintas, que antes não se davam em virtude da rigidez do pensar técnico.

E isso é possível graças ao recolhimento, ao tempo para pensar, caracterizado na conversa como a noite que cai e obriga os personagens a se recolherem, dando-lhes tempo para meditar e os mantendo distantes das “habitações dos homens”, isso é, da cotidianidade e das representações habituais onde se movem os seres humanos, deixando-os assim mais livres para guiarem-se através da linguagem. Não de qualquer linguagem, mas do sentido mais originário da linguagem que permite que o ser humano se mova em outras possibilidades e lance novos sentidos, atingindo assim a essência do pensar. Trata-se de um caminho difícil de percorrer, mas difícil no sentido de não-habitual, implicando no fato de nos desabituarmos do querer (HEIDEGGER, 2000, p. 34), o que auxilia a manter-nos despertos para o pensamento através da serenidade.

Este difícil caminho através do não-habitual, caminho “longe das habitações dos homens”, marcado pelo desafio de “nos desabituarmos da vontade”, como o expressa o Professor, parece levar a uma outra atitude, ou uma outra direção do pensamento; esta não representacional e, principalmente, não voluntarista, que Heidegger identifica à serenidade (die Gelassenheit). Essencialmente vinculado a esta atitude está o que Heidegger chama de pensamento meditativo, ou seja, o pensamento reflexivo que se recusa a toda e qualquer representação, e tampouco se deixa guiar pelo querer (SARAMAGO, 2018, p. 161, grifos da autora).

Avançando a investigação, os participantes da conversa passam a considerar em que consiste a serenidade, supondo que ela desperte quando ao nosso ser é permitido aceder a algo que não é um querer. Visando chegar mais próximo da resposta, o investigador sugere determinar em que consiste a essência do pensamento e qual a relação entre pensamento e serenidade. O professor responde que pensamento e serenidade não se relacionam se o pensamento for compreendido como representação. Mas a essência do pensamento, por outro lado, pode estar interligada com a serenidade, que só será atingida através de um aguardar por algo não determinado e da renúncia ao pensamento representacional.

Conquistado o entendimento da serenidade enquanto atitude superior de aguardar por algo não definido, a conversa toma em consideração o esperar e sua natureza. O esperar tem o seu próprio horizonte, de onde o que é esperado, embora não definido, vem ao encontro. O pensamento tradicional move-se em um representar transcendental-horizontal, apresentando um panorama onde olhamos a coisa diante de nós em seu aspecto. Esse horizonte passa a ser um campo de visão que circunscreve o panorama, excedendo o aspecto dos objetos tal como a transcendência ultrapassa a percepção que temos deles. “Definimos, assim, os termos horizonte e transcendência por meio do exceder (Übertrieffen) e do ultrapassar (Überholen) [...] que se referem aos objetos e à representação dos objetos.” (HEIDEGGER, 2000, p. 38).

Mas o que deixa o horizonte ser o que é ainda não foi experienciado. “Dizemos que olhamos para dentro do horizonte. O campo de visão é, portanto, um aberto cuja abertura não lhe advém do facto de olharmos para dentro dele.” (HEIDEGGER, 2000, p. 38). O aspecto dos objetos que o campo de visão fornece não é colocado dentro do aberto por nós, ele vem ao nosso encontro a partir do aberto. A horizontalidade é apenas um lado de um aberto que nos rodeia, preenchido com panoramas do aspecto daquilo que aparece como objeto à nossa representação. Conclui-se assim que o horizonte é algo distinto de um horizonte, pois por um lado ele consiste nisso que acabamos de mencionar, um espaço onde se dão as representações, e por outro trata-se de uma região onde tudo aquilo que lhe pertence retorna ao local que repousa, ou seja, onde tudo retorna a si mesmo. Essa região tampouco pode ser compreendida pelas representações habituais, trata-se daquilo “[...] que é capaz de acolher em si não apenas os ‘objetos’ de nosso pensamento, mas também o próprio pensamento. É a região que abarca a abertura: o aberto (das Offene) é rodeado pela região.” (SARAMAGO, 2018, p. 167, grifo da autora).

A Região é, portanto, um lugar que garante todo o abrigo, é a região das regiões. Heidegger (2000, p. 41) solicita que ao invés de utilizarmos o termo região (Gegend), utilizemos a antiga forma alemã da palavra região, Gegnet, para nomear a Região e todas as regiões, que reúne tudo entre si em um demorar-se, onde o aberto é mantido e solicitado a deixar as coisas abrirem-se em seu repouso. Como explica Saramago (2018, p. 167), “[...] Gegnet, ou seja Região, só se deixa compreender por um pensamento não representacional, onde a contraposição sujeito-objeto, aqui identificada ao conceito de horizonte, dá lugar a um movimento de vir ao encontro.” (grifos da autora). A Região, portanto, é esse constante movimento de expansão e recolhimento, e abarca o mundo material e o próprio pensamento, mas, reforçamos, não podendo ser pensada pelo pensamento representacional, senão que apenas aproximada em seu sentido por um pensamento mais originário, cuidadoso e reflexivo; em suma, por um pensamento do ser, que permite o vir ao encontro das coisas. A passagem do pensamento calculador para o pensamento do ser demanda um salto.

O pensamento representacional tem necessidade de mediações, tais como o juízo ou o esquema corporal. O pensamento do ser contenta-se em deixar estar a árvore no seu sítio, e em dizer: a árvore apresenta-se a nós. Onde há aqui um salto? Há um salto quando voltamos da percepção ao ser-descoberto, à auto-doação do mundo, que suprime o primado da percepção (HAAR, 1990, p. 137, grifo do autor).

A sequência do diálogo revela que é pela atitude do aguardar que o pensamento se coloca em relação com a Região. Como explica o Professor, “Talvez mesmo a relação com a Região, na medida em que o aguardar se envolve na Região e, ao admitir-se (Sicheinlassen) nela, deixa a Região reinar meramente como Região.” (HEIDEGGER, 2000, p. 48). Ou seja, o aguardar é a relação com a Região que adentra a Região, envolve-se no seu aberto e a deixa ser o que é. Parece, com isso, que estamos fora da Região, mas jamais estamos fora dela por sermos seres pensantes que representam transcendentalmente, o que nos coloca no horizonte da transcendência. Horizonte esse que, vale relembrar, é um lado da Região, é o lado que se mostra para nós e para a nossa capacidade de fazer representações. Em contrapartida, temos essa impressão que estamos fora da Região por não percebemos, justamente, que ela se constitui desses dois lados, aquele que se mostra (pelas representações e o pensamento habitual) e aquele que em certa medida se oculta (que exige um aguardar para ser atingido, um estar implicado).

Enquanto aguardamos, estamos libertos da relação transcendental com o horizonte, sendo esse o primeiro momento da serenidade. Ainda que concordamos com isso, seguimos distantes de compreender a essência da serenidade, pois a autêntica serenidade repousa na Região, ao mesmo tempo que recebe dela o impulso para nos voltarmos a ela. O Professor explica que a serenidade vem da Região pois consiste em na condição de o ser humano “[...] permanecer confiado/sereno (gelassen) à/na região, precisamente através dela. Está-lhe confiado na sua essência na medida em que pertence originalmente à Região. Pertence-lhe na medida em que está inicialmente a-propriado (ge-eignet) à Região (Gegnet) [...]” (HEIDEGGER, 2000, p. 49, grifo do autor), e tudo isso através da Região mesma. Aguardamos, portanto, se tomamos o aguardar como um aguardar essencial por aquilo à que pertencemos, pela própria abertura na qual nos constituímos. E é enquanto estamos nesta relação com o aguardar que atingimos a serenidade. “Serenidade é, portanto, a atividade mais elevada do pensamento, atividade na qual, como diz Heidegger, ocorre um liberar-se de (losgelassenaus) uma relação transcendental para com o horizonte.” (SARAMAGO, 2018, p. 168).

A essência do aguardar é a própria serenidade em relação à Região. E o pensamento pode ser compreendido como a serenidade em relação à Região, uma vez que sua essência repousa na regionalização da serenidade, isto é, na “permissão” concedida pela Região à serenidade de que essa repouse em si. Alcança-se, assim, a compreensão de que “[...] a essência do pensamento não pode ser determinada a partir do pensamento, i.e., a partir do aguardar enquanto tal, mas sim a partir do outro de si mesmo (Anderer seiner selbst), ou seja, a partir da Região, que é (west) na medida em que regionaliza.” (HEIDEGGER, 2000, p. 51, grifo do autor). A essência do pensamento é aguardar pela regionalização da Região, a fim de que a essência humana aceda à Região e faça parte dessa, o que reitera que essa essência do pensamento meditativo pode ser concebida como serenidade.

Nesse ponto, é importante fazermos uma parada para reunir o significado do que Heidegger parece estar querendo comunicar. Ao localizar a condição humana, isto é, aquilo que constitui nosso ser, na Região, enquanto âmbito do aparecimento dos entes, ele pretende mostrar, se compreendemos bem, que a nossa abertura compreensiva comporta esquemas interpretativos como o da técnica, mas não se reduz a nenhum esquema interpretativo, a nenhum horizonte transcendental específico. A técnica desencobre o mundo sob uma certa perspectiva, no entanto, é possível que as coisas se nos revelem de outro modo também, quando, aguardando, permitimos que elas venham ao encontro. Atentar para a Região em maiúsculo é manter-se aberto justamente para outro modo de aparecer que não o técnico. A serenidade tem a ver com a disposição para acolher outras formas de manifestação das coisas, em si mesmas. Se quisermos ilustrar esse ponto com referência às questões ambientais, tratar-se-ia de permitir que a floresta, por exemplo, viesse ao encontro livre das demandas humanas que tem pautado amplamente o debate público. Mesmo os discursos em favor da preservação ambiental o fazem sob a perspectiva da exploração da floresta; já não se concebe que a floresta possa existir (ou seguir existindo) sem entregar-nos algo em troca. Sob o domínio do pensamento calculador, a floresta é de antemão tomada como recurso a ser gerido em termos de maior utilidade.

Poder romper com esse esquema de pensamento, que é também um esquema de relação com as coisas e, no limite, com as próprias pessoas, é um ganho formativo viabilizado pelo pensamento meditativo, enquanto essa disposição serena de se manter no aberto do ser onde outras relações possíveis com o real possam surgir. Ariscamos dizer que a serenidade é uma forma de resistência, de ruptura com as forças ocultas que regem a nossa forma cotidiana de pensar e agir. O estranhamento da forma de pensar subjacente ao nosso tempo é o primeiro aspecto de um movimento de resistência, cuja expressão principal é o questionamento explícito, responsável pela abertura de outros caminhos para o pensar e o compreender humanos.

De volta à análise da conversa entre o Investigar, o Erudito e o Professor, notamos que eles buscam antecipar uma crítica, quanto a um suposto quietismo da serenidade, que pairaria na irrealidade, não detendo em si qualquer força de movimento, qualquer energia ativa. Para prevenir tal concepção equivocada, os interlocutores partem para o esclarecimento de como há, na serenidade, uma energia ativa (Tatkraft).

E - Se, em conformidade com o dizer e o pensar grego, experienciarmos a essência da verdade como a não-ocultação e o descobrimento (Unverborgenheit und Entbergung), lembramo-nos de que a Região é, provavelmente, o ser (Wesende) oculto da verdade. I - Então a essência do pensamento, a saber, a serenidade em relação à Região, seria a resolução para a verdade que está a ser (wesenden Wahrheit). P - Na serenidade poderia ocultar-se uma persistência (Ausdauer) que consiste simplesmente no facto de a serenidade interiorizar (inne wird) cada vez mais claramente a sua própria essência e nela se instalar persistentemente. E - Isso seria um comportamento (Verhalten) que não se tornaria uma atitude (Haltung), mas que se recolheria na contenção (Verhaltenheit) que permaneceria sempre como a contenção da serenidade. P - Portanto, a serenidade persistente e contida seria o acolhimento da regionalização da Região (HEIDEGGER, 2000, p. 58, grifos do autor).

Para essa persistência da serenidade acima mencionada, para esse repousar-se em si que ela permite justamente por fazer parte da regionalização da Região, ainda não há palavra denominadora. É sugerido pelo Erudito a palavra insistência, a qual, conclui o Professor, seria a autêntica essência da espontaneidade do pensamento, e o pensamento a evocação da nobreza, pois nobre é o que tem proveniência (Herkunft) e nela se demora. Mas a verdadeira serenidade se dá pelo fato de o ser humano (em sua essência) pertencer à Região e isso lhe ser confiado de antemão. E isso justamente não pode ser pensado, por ser de onde parte a essência do próprio pensamento.

Em direção ao fim da caminhada, a conversa alcança, no fragmento 122 de Heráclito, a palavra grega ’Αγχιβασιη, que quer dizer em alemão Herangehen e em português remete a um aproximar-se. Essa palavra é tomada como denominação da essência do conhecimento, pois o movimento em relação aos objetos é por ela, bem caracterizada. Ela também poderia ser utilizada para nomear o domínio das ciências à natureza, pois se aproxima e exige algo dela. Nesse sentido corrente, a palavra não atinge de forma alguma a essência do pensamento, pois aguardar é muito distinto de aproximar, é um movimento de espera, de repouso. Entretanto, ’Αγχιβασιη poderia também ser designada como um ir-próximo ou ir-à-proximidade (In-die-Nähe-gehen) e isso sim poderia designar o que até então foi buscado, cuja a essência segue desconhecida: a Região, enquanto abertura para o que está fechado, oculto do ser humano, mas que nela pode se manifestar.

Heidegger esclarece, nesse escrito, a distinção entre o pensamento que calcula e o pensamento que medita e como é possível e por que se faz necessário manter desperto o pensamento meditativo, o qual, segundo ele, vincula-se com a essência do ser humano e o requisita sempre. O pensamento que calcula se relaciona com o pensamento como representação, é um horizonte, mas não o horizonte, conforme tentamos esclarecer anteriormente. Esse horizonte que abriga o aberto onde se dá a Região, a qual permite que as coisas retornem a si e nela repousem, é alcançado pela serenidade enquanto aguardamos pelas coisas mesmas, não impondo representações sobre elas. Assim, fica claro o esforço do filósofo em vincular a essência humana ao pensamento meditativo na medida em que este pode corresponder, pode alcançar a abertura na qual se funda toda compreensão possível das coisas e do próprio ser humano. Diferentemente do pensamento técnico, que segue o enquadramento prévio do ser em sua objetividade e representatividade, o pensamento meditativo recua a favor do mostrar-se do ser. O que se mostra de negativo no pensamento que calcula é que ele não reflete sobre o enquadramento a partir do qual opera, é imediato e gira em torno da busca pelas certezas. Ele é importante para o avanço das ciências, das tecnologias e do saber-fazer prático, os quais Heidegger não pretende de modo algum demonizá-lo, mas expõe que esse tipo de pensamento, muitas vezes, impede um pensar reflexivo e que possibilite compreensões de mundo mais amplas.

O pensamento que medita não está distante dos seres humanos porque esses são incapazes de colocá-lo em vigor, ao contrário, os seres humanos são os seres pensantes por excelência e aqueles capazes tanto de dar um sentido representacional às coisas como também de ir além, de ter uma atitude mais reflexiva para com elas. Mas ao longo da vida se distraem dessa tarefa do pensamento, o que se dá também, mas não exclusivamente, pela influência da técnica e sua expressão mais nefasta: as tecnologias digitais. A técnica é uma forma de verdade, mas seu poder elevou-se tão grandemente sob o mundo que parece ser a única e quanto mais amplia sua influência silenciosa em nosso modo de vida moderno, mais distancia os seres humanos disso que Heidegger chamou de Região, o espaço aberto de manifestação do real, que apenas o pensamento meditativo pode alcançar.

Já em Ser e tempo, Heidegger (2009) alertava que estamos de início e na maioria das vezes imersos na cotidianidade, isso é, nos afazeres comuns do dia a dia onde somos cercados pelo falatório, pela impessoalidade, pelo modo prático de nos relacionarmos com os objetos, sendo esse o nosso primeiro contato com o mundo, que é correto e que nos constitui, mas sobre o qual devemos nos questionar em determinado momento se quisermos atingir uma vida autentica. Porque a cotidianidade marca nossa primeira relação com o mundo, em última instância, nossos comportamentos “[...] são determinados por um acompanhamento sucessivo do ritmo de funcionamento dos negócios cotidianos e absorvidos completamente na dinâmica do mundo das ocupações.” (CASANOVA, 2006, p. 182).

Com a culminância da era técnica a dispersão dos seres humanos em relação ao pensamento que medita tornou-se ainda maior. Esquecemos de olhar o mundo a nossa volta com calma e serenidade, nos intrigamos menos, nos questionamos menos, isso porque estamos cada vez mais imersos nos afazeres cotidianos, recebendo constantemente informações dos meios de comunicação, nos distraindo com uma vida que acontece apenas através das telas e nos esquecendo da realidade, pois a essência da técnica já se enraizou tão fortemente em nosso modo de ser que já não nos surpreendermos em tomarmos à nós mesmos e aos outros seres humanos como objetos. Objetos para a produção, para servir de mão-de-obra ao mercado de trabalho, com vistas ao nosso próprio entretenimento e prazer cotidiano, o que nos afasta de um pensar mais crítico e questionador, que também é o lugar de nossa liberdade possível em relação ao que já está esquematicamente posto em nosso mundo. Talvez, possamos ponderar, como sugere Valenti Possamai (2010, p. 29, grifo do autor), que “[...] a essência da técnica moderna não esteja mais localizada no ser humano, mas que seu projeto seja o de ‘desumanizar’ o mundo - abrindo espaço, assim, para a próxima etapa, a conversão do homem em organismo maquinístico ou cibernético”, onde até mesmo “[...] a liberdade humana, nesse contexto, seria algo calculável e planificável” (VALENTI POSSAMAI, 2010, p. 29). Assim como somos constituídos pelos modos de ser do cotidiano, passamos a ser forjados também pela lógica inerente ao uso dos recursos e instrumentos da técnica, tornando-nos cada vez mais dependentes dela.

A técnica “se utiliza” dos seres humanos para que o cálculo, a organização e a regularização dos entes exerçam-se “[...] com a segurança dum instinto, com a força irreprimível e sonâmbula dum impulso vital. A razão técnica torna-se instintiva, e todas as forças elementares são postas a serviço da sua vontade calculadora.” (HAAR, 1990, p. 216). Heidegger não visa promover uma luta contra esses aspectos, não os entende como passíveis de serem excluídos do mundo e tampouco esse é seu interesse. Importa-lhe esclarecer que, ainda que esses sejam modos de ser no mundo, não são os únicos. Sua verdadeira batalha consistia em alertar para a necessidade de manter vivo o valor e a riqueza do pensamento enquanto conservação da possibilidade do diferente, do novo, do originário. Ele se esforçou, portanto, em chamar a atenção dos seres humanos de que eles detêm uma essência grandiosa, que não deve ser esquecida ou relegada, em que se encontra o poder do pensamento. Esse poder meditativo, que se expressa também no questionamento, algo próprio da humanidade, é o que possibilita inaugurar sentidos, ressaltando a diferença essencial do ente humano dos demais entes, onde residem, em última instância, toda ética e toda política. Na perspectiva oferecida por Heidegger, é o pensamento que “[...] abre aos indivíduos a compreensão mais radical de suas possibilidades existenciais (caminhos para sua autoformação) e, ao mesmo tempo, compromete-os com uma proposta política que desautoriza visões fechadas acerca do ser humano e da sociedade” (DORO, 2020, p. 3).

Os problemas que advém dos aparatos tecnológicos como a alarmante pretensão de mutação genética, as engenhosas e avançadas tecnologias bélicas, os problemas de saúde física, mental e de cognição que estão sendo estudadas e que se relacionam diretamente com o uso exacerbado das telas, são alguns pontos que, através de uma postura mais crítica em relação ao mundo, podem ser questionados e avaliados. Mas Heidegger vai além e propõe pensar a fundo tudo isso, ou seja, propõe que reflitamos sobre o tipo de pensamento que nutre, desde o fundo, a técnica moderna e a forma como ela condiciona nossa visão de mundo. É claro que os problemas anteriormente citados são preocupantes e suscitam debates, mas é preciso atentar para isso que no escrito A questão da técnica Heidegger (2006) nomeará como o “maior perigo”: a ameaça de o ser humano resultar preso em um esquema interpretativo do real, moldado pelo pensamento calculador, de modo a não mais poder conceber outras formas de relação com as coisas e nem consigo mesmo. Tudo isso pelo fato de nos deixarmos guiar por uma percepção de mundo que está imbricada em nosso cotidiano e que se mantem pelo comportamento das massas, das tecnologias e das ciências, todas requeridas pela força oculta da técnica. Tão absortos estamos em nossos celulares, computadores e na produção exacerbada, que já não dispomos de tempo para avistar o maior perigo, o de abdicar de um relacionamento sereno e reflexivo para com as coisas e conosco mesmos.

O maior perigo é, também, em linha com o que viemos desenvolvendo, o perigo da não formação, o perigo de anularmos nossa individualidade mais próxima no fluxo homogeneizante do mundo técnico. O índice supremo da não-formação é a ilusão de um protagonismo existencial que não consegue superar as liberdades “pré-fabricadas” do consumismo e as formas de vida a ele atreladas. O caminho para a formação, no sentido da autoformação, passa pelo pensamento. Somente uma atitude meditativa e demorada para com as coisas permite um pensar para além do habitual e do senso comum, o que se conecta diretamente com a verdade, onde as coisas se mostram como são. Isso é o que se dá pela serenidade, ela pode reconectar o ser humano consigo mesmo, tornando possível uma vivência mais livre no mundo do que aquela imposta pela técnica.

Conclusões

Neste ponto, considerando o que conquistamos a partir da análise dos textos constituintes da obra Serenidade, convém colocar explicitamente algumas questões. Por que uma atitude serena e um pensar meditativo, que recusam um completo domínio das convenções que nos permeiam e da planificação técnica se fazem necessários ao campo educacional? Quais as implicações desses apontamentos que elaboramos sobre a formação humana?

Uma vez que acreditamos que o pensamento que medita é, por excelência, aquele capaz de inaugurar novos sentidos, voltando-se ao pensamento do ser, percebemos nesse retorno uma imbricação inseparável com a autoformação. Para que os sujeitos possam conduzir-se à uma formação ampliada e que contemple o desenvolvimento conjunto das diversas dimensões de seu existir, é preciso manter o pensamento desperto e uma atitude contrária ao imediatismo e à irreflexão instauradas no tempo presente, largamente pautado pelo pensamento calculador. Isso contribui para que a formação de si reclame sempre uma preocupação com as coisas mesmas e não só uma ocupação de cunho prático. O que resulta no entendimento de si como um ser para além de sua pertença e função no mundo tecnicizado, alguém que se constitui de afetos, angústias, tensões, cuidados, e não apenas um operário permanente da técnica. Afinal, como lembra Jaeger (1994, p. 4), “A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no seu destino exterior como na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual [...]”, acrescentando que “[...] uma vez que o desenvolvimento social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história da educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade.” (JAEGER, 1994, p. 4).

Avançar em direção à serenidade parece ser uma condição para que essa transformação ocorra, pois através do aguardar que ela reivindica, nos colocamos em uma relação de maior espontaneidade e sobriedade no mundo, não deixando-nos levar pelo imediatismo, pela pressa e falta de reflexão que a técnica impõe. Nessa esfera, não se trata de objetificar as coisas e os seres humanos a todo momento, mas de ter paciência e dedicar o tempo necessário para refletir sobre e com eles, para permitir que sejam a partir de si mesmos, um movimento contrário a técnica que requer que estejamos constantemente modificando as coisas e solicitando suas serventias, obrigando-as a se mostrarem em sua disponibilidade possível.

Esse movimento na contramão das tendências de nosso tempo permite a obtenção de princípios éticos que podem e devem ser desenvolvidos no âmbito formativo, a partir do momento em que passamos a compreender os entes como detentores de uma dignidade em si, e não pela sua pertinência às demandas da exploração, do ordenamento e da distribuição, traços da essência da técnica moderna. Heidegger destaca que a Região, onde a serenidade acontece, pode ser caracterizada também como a essência oculta da verdade, compreendida por ele como alétheia, ou seja, como desencobrimento. A verdade que precisamos encontrar na técnica é esse desencobrir de seu movimento orientador de mundo, percepção que surge em uma relação demorada para com ela. Somente o ser humano pode fazer isso, pois ele é o ente solicitado pela verdade, aquele capaz de desvelar o paradigma vigente e também a verdade das coisas. Nesse sentido, Denker (2020, p. 141) defende que não deveríamos tentar mudar a oposicionalidade do mundo objetivo, mas mantermo-nos atentos antes à nossa essência mais íntima e mais própria, que é o pensar; pois é a meditação que pode nos libertar do pensar da representação e, com isso, da realidade efetiva do mundo técnico.

Dito mais uma vez, não se trata de afastar-se completamente do mundo técnico, de seus instrumentos e demandas, mas de estranhá-lo e de adotar uma postura inquiridora frente a ele. O ser humano que não pensa o ser e as forças condicionantes do seu mundo, mantém-se no âmbito da não-formação, isso é, mostra-se incapaz de dispensar um olhar crítico a si mesmo e ao mundo à sua volta, não questiona os padrões já pré-estabelecidos e se coloca em uma posição passiva frente à construção de sua própria vida, deixando-se guiar por tudo o que se encontra ao seu redor. Relembremos que “[...] a Bildung foi originalmente concebida como uma iniciativa crítica e emancipatória, isso é, como um processo no qual os seres humanos se tornariam verdadeiramente livres, no qual eles se emancipariam de todos os tipos de poder [...]” (MASSCHELEIN; RICKEN, 2013, p. 140, tradução nossa). Também o pensamento meditativo produz um certo tipo de emancipação e autonomia dos seres humanos em relação às forças externas, de acordo com Heidegger, o mais radical dos tipos de emancipação. Se considerarmos que ele possibilita um afastamento do risco de um aprisionamento à essência da técnica, onde nos perdemos de nós mesmos, uma concepção de formação humana que o tome como referência se faz necessária.

O caminho de liberdade proposto por Heidegger não é apenas algo interno e que se constrói só, precisa ser guiado e orientado através do mundo e por tudo e todos que o constituem, cabendo nisso, a nosso ver, um papel de destaque para a educação. No caso, por uma educação que se comprometa em oportunizar e convidar para o pensamento meditativo e a serenidade, que são condições para uma formação mais crítica, porque é mais atenta as forças discretas que condicionam nosso mundo e porque favorece uma postura que é ao mesmo tempo acolhedora e disruptiva, sendo nessa medida também questionadora e transformadora em um sentido ético e político.

Acreditamos no enlace entre educação e serenidade pois, um dos pilares da educação é promover o pensamento, e a serenidade é o que leva ao pensar mais originário. Parece, portanto, imprescindível alguma atenção à serenidade na formação humana que precisa ser levada adiante neste nosso tempo, um tempo profundamente marcado pela técnica. Só não deve ser dessa forma se a educação não estiver disposta a se comprometer com um pensar mais fundamental e, por conseguinte, com aquilo que há muito tempo é reconhecido o mais próprio ser humano. Entendemos, então, ser um compromisso possível da educação formal favorecer esse tipo de pensar meditativo que é reclamado pela serenidade. Por certo que não se pode “fazer” os outros pensarem, mas certamente que é possível criar condições mais ou menos favoráveis e lançar desafios para que cada um o faça. E se a emancipação, enquanto possibilidade de os indivíduos assumirem o protagonismo em suas vidas, na relação com o mundo, é um dos propósitos maiores da educação, então a promoção do pensamento, em termos heideggerianos, torna-se uma necessidade. Em uma sociedade que parece constantemente chocar-se com os limites externos de subsistência ambiental, política e social, talvez a saída esteja em conseguir estranhar as forças profundas que condicionam a organização atual.

Por fim, se assumimos que o pensamento meditativo cumpre um papel determinante na ideia de formação possível na era da técnica, devemos nos perguntar se as escolas e universidades podem ou não favorecer esse pensamento, e se podem, de que forma? Os propósitos da educação, em uma concepção fechada, giram em torno da aquisição de saberes práticos, não proporcionando espaço para a reflexão. Esse espaço poder ser aberto através da construção de currículos que criem condições para que esse pensamento se desenvolva, e, para tanto, a retomada de disciplinas que instiguem o senso crítico, se faz um tema urgente e sempre atual. Mais que isso, a inclusão de um pensamento ampliado é necessária em todas as matérias e para além delas, é preciso que os fundamentos da educação se compreendam como aqueles que promovem o pensamento. Consideramos que o ambiente da educação básica e superior devem ser um espaço de construção de um caminho propriamente humano, que não se restrinja exclusivamente a obtenção de conteúdo, mas que possibilite o diálogo, a compreensão, a empatia e a percepção de como estamos e nos movemos nesse mundo. Um local onde toda a comunidade possa contribuir para um pensar plural, tornando-se referência de propagação de cultura e cultivo de si. Construir uma educação que oriente os sujeitos de forma mais livre no mundo técnico deve ser uma das preocupações capitais da formação contemporânea.

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SOBRE O/AS AUTOR/AS

1A literatura sobre a paideia grega tornou-se simplesmente inabarcável. Duas fontes, contudo, merecem ser estudadas, uma clássica, a de Jaeger (1994), e outra atual, a de Spinelli (2017).

2Para uma caracterização mais ampla do sentido moderno de formação enquanto autoformação, ilustrada por uma análise do romance de formação Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, ver o escrito de Bolle (1997).

3O exemplo clássico desta ideia de formação como jogar-se no mundo ainda continua sendo o romance de formação de Goethe (2006). Para uma crítica do nexo entre formação e teleologia fixa, ver Dalbosco (2019).

4Considerações acerca da técnica aparecem em vários escritos de Heidegger a partir da década de 1930, mas o local de culminância de sua análise é a conferência A questão da técnica, proferida em 1953 e publicada na obra Ensaios e conferências (HEIDEGGER, 2006), onde o termo “disponibilidade” é introduzido.

5Esse termo, lembra Bernasconi (2021, p. 631), tem uma extensa história na filosofia, da qual Heidegger estava bastante ciente, fazendo inclusive referência ao uso que dele faz Meister Eckhart, que inspirou alguns estudos acadêmicos de grande relevância, como os de Schürmann (1973) e Moore (2019).

6Em Ser e tempo, a tarefa de uma “destruição” da história da ontologia busca a transparência da investigação em relação à sua origem na filosofia, o que exige “[...] que se abale a rigidez e o enrijecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos acumulados.” (HEIDEGGER, 2009, p. 60).

SOBRE O/AS AUTOR/AS

10RODRIGUES, Raísla Girardi; DALBOSCO, Claudio Almir; DORO, Marcelo José. A serenidade como traço determinante da formação na era da técnica. Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 19 n. 50, 2023. DOI: 10.22481/praxisedu. v19i50.11842

Recebido: 29 de Dezembro de 2022; Aceito: 06 de Março de 2023

Raísla Girardi Rodrigues. Doutora em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Colaboradora do Nupefe/UPF. Contribuição de autoria: Investigação, Escrita - Primeira Redação, Revisão e Edição - http://lattes.cnpq.br/8139404241610726

Claudio Almir Dalbosco. Doutor em Filosofia pela Universität Kassel. Docente na Universidade de Passo Fundo (UPF). Colaborador do Nupefe/UPF. Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPQ - Nível 1C. Contribuição de autoria: Investigação, Escrita - Primeira Redação, Revisão e Edição - http://lattes.cnpq.br/1671875455751185

Marcelo José Doro. Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Docente na UPF. Colaborador do Nupefe/UPF. Contribuição de autoria: Investigação, Escrita - Primeira Redação, Revisão e Edição - http://lattes.cnpq.br/3322617152883131

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