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Revista Práxis Educacional

versión On-line ISSN 2178-2679

Práx. Educ. vol.19 no.50 Vitória da Conquista  2023  Epub 17-Mayo-2024

https://doi.org/10.22481/praxisedu.v19i50.12979 

Artigos

DO SUJEITO MODERNO AO EMPREENDEDOR DE SI MESMO: PRODUÇÕES, SABERES E CORROSÕES EM UMA BREVE ONTOLOGIA DE NÓS MESMOS

FROM THE MODERN SUBJECT TO THE SELF-ENTREPRENEUR: PRODUCTIONS, KNOWLEDGE AND CORROSIONS IN A BRIEF ONTOLOGY OF OURSELVES

DEL SUJETO MODERNO AL EMPRESARIO DE SÍ MISMO: PRODUCCIÓN, CONOCIMIENTO Y EROSIONES EN UNA BREVE ONTOLOGÍA DE NOSOTROS MISMOS

Lucas de Oliveira Carvalho¹ 
http://orcid.org/0000-0002-0826-4567

Dinamara Garcia Feldens² 
http://orcid.org/0000-0001-6471-3876

¹ Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Sergipe - São Cristóvão, Sergipe, Brasil; lucas.historiando@gmail.com

² Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Sergipe - São Cristóvão, Sergipe, Brasil; dinag.feldens@gmail.com


RESUMO

Esse artigo pretende fazer uma crítica histórica e teórica partindo de uma reflexão localizada entre a formação do sujeito moderno e do sujeito empreendedor de si mesmo. Através desta breve ontologia de nós mesmos, iremos percorrer o caminho que nos trouxe até este tempo histórico do neoliberalismo. Para tal, discutiremos as relações saber/poder e os mecanismos de transformação e de produção do sujeito moderno numa sociedade disciplinar - em um capitalismo industrial de modelo fordista; sua condição pós-moderna numa sociedade de controle, em um regime de produção pós-fordista; até a sua atualidade dentro do paradigma empreendedor. O objetivo, portanto, é fazer um diagnóstico de nosso tempo elaborando uma crítica negativa à razão neoliberal diante daquilo que acreditamos ser: um período histórico onde mais está em jogo os processos de destruição e de corrosão do sujeito e dos campos de subjetividade em sua lógica empreendedora, do que a sua produtividade.

Palavras-chaves: crise; modernidade; neoliberalismo; pós-modernidade; relação saber/poder

ABSTRACT

This article aims to undertake a historical and theoretical critique, stemming from a contemplation situated amidst the genesis of the modern subject and the entrepreneurial subject of himself. Through this succinct ontology of our existence, we shall traverse the trajectory that has led us to the current epoch of neoliberalism. In pursuit of this objective, we shall expound upon the intricate interplay between knowledge and power, as well as the mechanisms through which the modern subject undergoes transformation and engenders production within a disciplinary society, encapsulated by an industrial capitalism adhering to the Fordist model. Furthermore, we shall analyze its postmodern disposition within a society of control, amidst a post-fordism regime, up until its contemporary manifestation within the entrepreneurial paradigm. Thus, the ultimate objective is to diagnose our era, constructing a critical examination of the reasoning underpinning neoliberalism vis-à-vis what we perceive as a period wherein the deleterious and corrosive processes affecting the individual and the realms of subjectivity are more prominently at stake than mere productivity.

Keyword: crisis; modernity; neoliberalism; post-modernity; knowledge/power relations

RESUMEN

Este artículo tiene la intención de realizar una crítica histórica y teórica a partir de una reflexión situada entre la formación del sujeto moderno y el sujeto emprendedor de sí mismo. Mediante esta breve ontología de nosotros mismos, recorreremos el camino que nos ha llevado a este tiempo histórico del neoliberalismo. Con este fin, discutiremos las relaciones de saber/poder y los mecanismos de transformación y producción del sujeto moderno en una sociedad disciplinaria, en un contexto de capitalismo industrial basado en el modelo fordista. Además, analizaremos su condición posmoderna en una sociedad de control, dentro de un régimen de producción posterior al fordismo, hasta su presente en el paradigma emprendedor. El objetivo, por tanto, es realizar un diagnóstico de nuestro tiempo, elaborando una crítica negativa a la razón neoliberal frente a lo que consideramos: un período en el que están en juego los procesos destructivos y corrosivos del sujeto y los ámbitos de subjetividad en su lógica emprendedora, más que su productividad.

Palabras clave: crisis; modernidad; neoliberalismo; post-modernidad; relación saber/poder

Introdução

Pensar o sujeito não implica necessariamente fazer um retrato ou uma narração meramente descritiva como se este fosse algo dado, pronto, acabado, bastando apenas descobri-lo e categorizá-lo. Refletir sobre o sujeito impõe um esforço mais rigoroso. É preciso entendê-lo como processo resultante de uma construção em um tempo histórico determinado. Construção que é política, histórica, social, cultural e de saberes diversos.

Logo, pensar sobre o sujeito e os campos de subjetividade nos exige compreender suas feituras, mas também suas desfeituras; suas sedimentações e ainda suas transitoriedades. Exige-nos, no final das contas, entendê-los como uma composição em vez de reduzi-los à categorizações e “especifismos”.

Neste sentido, esse artigo propõe uma breve ontologia de nós mesmos. Buscaremos, assim, colocar o sujeito, ao mesmo tempo ator e objeto, em perspectiva histórica para que possamos traçar linhas que nos ajudem a compreender quais subjetividades nos atravessam, quais forças atuam sobre nós no tempo em que hoje vivemos.

De forma mais direta, o que estamos propondo aqui é um breve interlocução teórica e histórica que ajude a decifrar o que somos hoje em um tempo histórico de expectativas decrescentes, onde a radicalização de uma racionalidade neoliberal mais tem atuado na corrosão e na destruição dos campos subjetivos do que na produção de novos modos de subjetivação.

Para tal, num primeiro momento, traçaremos uma breve história do sujeito moderno buscando compreender quais as necessidades e objetivos estavam postos naquela época pelo capitalismo industrial e pela sociedade civil burguesa em formação. E como a ciência e todo campo do saber ocuparam um lugar estratégico nas relações de poder. Em suma, buscaremos compreender as linhas de força que atuaram no processo de construção desse tipo de subjetividade moderna.

Nesse contexto, o pensamento do filósofo Michel Foucault (1926-1984) nos é muito caro. Especialmente seu debate sobre a genealogia do poder em que deixa explícito as relações íntimas entre o saber, o poder, o capitalismo e a sociedade. Ainda nesse caminho, o debate sobre o poder e a sociedade disciplinar, que o pensador francês nos traz, também é de grande importância para entender esse momento histórico.

Como resultado dessa primeira parte, observaremos ainda as transformações da modernidade para o que convencionamos chamar aqui de pós-modernidade. A partir daqui passaremos a um segundo momento, neste instante investigaremos histórica e teoricamente como se forja esse sujeito pós-moderno, sujeito este de nosso tempo. Aqui, fundamentalmente, seguiremos com Foucault, porém lançaremos mão do conceito de sociedade de controle de outro filósofo francês, Gilles Deleuze (1925-1995).

A noção de sociedade de controle é importante porque nos ajuda a desvendar não penas as transformações do capitalismo de seu modelo fordista para um modelo pós-fordista, como também reflete sobre o processo de crise da sociedade disciplinar e do sujeito moderno diante das reorientações estratégicas na relação de saber/poder.

Por fim, em um terceiro momento, adentraremos nas discussões em torno dos efeitos contemporâneos que envolvem as relações de saber/ poder e o campo subjetivo. Aqui exploraremos o que acreditamos - na fase atual do capitalismo, onde as condutas são orientadas por uma razão neoliberal - estarmos diante de um processo mais de destruição do que de produção de um sujeito e de novas subjetividades no campo político, social, econômico e do saber.

Para essa parte se faz imprescindível o uso dos estudos de Foucault sobre o neoliberalismo, pois, ali entre 1978-1979, muito antes dos primeiros governos neoliberais no ocidente, ele já alertava para a emergência de um novo tipo de sujeito - um sujeito empreendedor de si mesmo. Faz-se necessários também a interlocução com autores como Byung-Chul Han, Dardot, Laval, Richard Sennett e outros. Pois, eles atualizam os desdobramentos da razão e do sujeito neoliberal dos anos 1980 para cá, além de, diferentemente de Foucault, atentarem para os aspectos corrosivos e destrutivos dessa fase do capitalismo e do neoliberalismo. Portanto, ensaiaremos aqui uma crítica negativa à razão neoliberal.

Discussão

Uma breve história entre o sujeito moderno e as relações de saber/poder

O ideário moderno se consolida a partir da substituição operada no âmbito do pensamento - Deus é substituído pela centralidade do homem e da ciência. A modernidade surge, então, em negação à tradição cristã do período medieval. Inspirada nos ideais iluministas, a “Era Moderna” traz o homem para o centro e coloca a razão como algo a ser perseguido para se chegar a um estágio pleno de liberdade. A partir daí, estão lançadas as bases para a criação de um novo modelo de viver e de existir.

O nascimento do ‘indivíduo soberano’, entre o humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, representou uma ruptura importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o sistema social da "modernidade" em movimento (Hall, 2006, p.25).

A busca da racionalidade lógica e a centralidade no homem serão as bases e os pontos de partida para a ruptura com o pensamento do medievo. Nesse período, ocorre ainda a consolidação do capitalismo enquanto sistema econômico vigente como consequência das revoluções industriais, do desenvolvimento científico e das mudanças políticas e sociais advindas da Revolução Francesa (Hobsbawm, 2012). É dentro desse contexto que procuraremos aprofundar os entendimentos sobre o sujeito moderno. Sujeito que é inscrito, moldado e fruto de um tempo.

Esse tempo é um período de promessas: progresso e desenvolvimento. Um período das grandes lutas, das grandes narrativas, dos grandes ideais. A modernidade oferecerá ao homem de seu tempo, um futuro. Ou melhor, um modelo de futuro. E é justamente nisso onde estão inseridos os pilares de toda uma espécie de perversão, de técnica e de aprimoramento dos mecanismos de amordaçamento da pluralidade e da singularidade humana. Desta maneira, o sujeito moderno é despojado de seu presente, da possibilidade de experienciar a vida em suas descontinuidades e acontecimentos; despojado do contato com o imprevisível e com o acaso. Contrariamente a isto, é adestrado e condicionado, dentro de um racionalismo, a perseguir a concretização de um futuro prometido.

Este sujeito, portanto, é inserido dentro de uma lógica do “saber padecer”. É condicionado a abdicar de sua multiplicidade, a ceder sua liberdade, sua história, seu corpo às narrativas e tramas universalistas da modernidade e aos "regimes de verdade" que construirão, moldarão, acomodarão e darão funcionalidade a esse sujeito. Esses "regimes de verdade”, segundo Foucault (2017), precisarão de mecanismos de sustentação e legitimação para que estas verdades se afirmem e se estabeleçam como práticas massificadas e incorporadas às subjetividades produzidas e inerentes ao sujeito.

Em nossas sociedades, a ‘economia política’ da verdade tem cinco características historicamente importantes: a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’) (Foucault, 2017, p.53).

Nesse contexto, o saber aparece como algo fundamental, não só para dar sustentabilidade e legitimidade à “verdade ou aos regimes de verdade”, mas também colocando-se como fator decisivo no campo de disputa das relações de poder. Um exemplo desse processo é a dificuldade do pensador ou do intelectual despir-se da imagem de detentor de uma consciência ou de um conhecimento universal imaculado para conseguir atuar diretamente nas relações às quais está envolvido. Todo saber resguarda de forma inerente a ele um poder de funcionalidade, de manutenção e de aprimoramento das tecnologias e dos mecanismos prontos para fazer funcionar algo (Foucault, 2017).

Compreender essa relação do saber enquanto dotado de poder e atuando dentro de ‘‘regimes de verdade” nos possibilita entender de forma mais clara os mecanismos de perversão e aprisionamento bem como a própria construção do sujeito moderno. É a partir dessa compreensão que poderemos entender que a razão, a ciência e o próprio saber, evocados como meios de libertação do homem, são eles mesmos moldes e modelos de aperfeiçoamento das técnicas de controle, de domínio, de assujeitamento e de docilização (Foucault, 2017). Uma gama de saberes modelará esse sujeito e o colocará dentro de um mecanismo produtivista até seu esgarçamento completo. Legitimarão a produção da loucura e da normalidade, do moralmente correto ou do pervertido, do produtivo ou do improdutivo (Foucault, 2014).

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (Foucault, 2014, p.135)

O sujeito moderno, portanto, consolida-se em uma sociedade disciplinar e no capitalismo em sua fase industrial. Por isso, a necessidade de tornar, já diria Foucault (2014), os corpos dóceis politicamente e úteis economicamente. E é nesse sentido que vários ramos do saber - a medicina social, a psiquiatria, o direito penal, a pedagogia para ficar apenas em alguns deles - encontrarão a legitimação para seus estatutos científicos. Pois, estes saberes demonstrarão serem úteis a organização desse mundo disciplinar e produtivo do capital. Serão estes saberes os responsáveis por criarem meios normalizados e administrados do campo subjetivo moderno e da vida social (Foucault, 2008a).

Entretanto, o modelo moderno de docilização e de esgarçamento produtivo mostrará sinais de desgaste e começará a ser colocado em cheque a partir de meados do séc. XX (Deleuze, 2010). Sentindo os efeitos e o impacto de duas guerras mundiais, toda a crença nesse ideário será colocada em suspensão. Afinal, o saber e a ciência que trariam as luzes da racionalidade1 para o mundo. Agora, tinham o poder real de destruir a vida orgânica na terra. As ideologias em prol de um mundo livre e igualitário tinham então mergulhado em conflitos fratricidas. Ou seja, todo um ideário racionalista moderno levou a humanidade a um estado de barbárie nunca antes visto (Hobsbawm, 1995). Contraditoriamente, o sujeito moderno - que, antes, confiou na razão como regente e controladora dos instintos naturais unificado - é transformado, como resultado final desse processo, em um animal predatório de si mesmo e do outro.

Ainda mais óbvia que as incertezas da economia e da política mundiais, era a crise social e moral, refletindo as transformações pós-década de 1950 na vida humana, que também encontraram expressão generalizada, embora confusa, nessas décadas de crise. Foi uma crise de crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra os Antigos, no início do séc. XVIII: uma crise das teorias racionalistas e humanistas abraçadas tanto pelo capital liberal como pelo comunismo (Hobsbawm, 1995, p.20).

É nesse contexto de declínio e descrença na Modernidade que a ideia de uma pós-modernidade será gerada. Uma época que desconfia das grandes narrativas históricas, desconfia da rigidez das macroestruturas políticas, sociais e culturais, desconfia das utopias e das ideologias, desconfia do próprio saber e da ciência. Em suma, a pós-modernidade colocará em suspensão os "regimes de verdade" modernos e, consequentemente, descolará o sujeito da rigidez que o período anterior empunha.

Esse processo de transição de um período ao outro, todavia, precisa ser entendido não somente em termos de oposição ou de demarcação temporal. A pós-modernidade, por mais que venha pôr em questionamento os regimes, os valores e os códigos da modernidade, é ao mesmo tempo fruto das experiências desse período.

O período pós-moderno, portanto, ao mesmo tempo em que rompe com a modernidade ainda é fruto deste período. Ou seja, o sujeito pós-moderno, que começa a ser forjado na contemporaneidade, ainda está impregnado de modernidade. Entender essa ambivalência, esse processo de transitoriedade, por vezes confuso e ambíguo, demonstra-se extremamente urgente e necessário para que possamos dar vazão as singularidades e as possibilidades de movimento que se apresentam.

Pós-modernidade, sociedade de controle e novas formas de subjetividade

“Somos, todos nós, pessoas. Uma pessoa é um ser vivo que ocupa lugar no espaço e no tempo, ou, ainda, que ocupa tempo no espaço. Ser uma pessoa é ser um ser complexo, dotado de vida, um ser vivo” (Feldens, 2008, p.37). Todos nós somos um coletivo e um indivíduo, somos individualidades, segmentos individualizantes remetidos a um coletivo que nos referenda e nos singulariza ao mesmo tempo. Quando os processos individualizantes amortecem nossas singularidades, viramos sujeitos (Feldens, 2008).

Por momentos, “[...] somos todos nós sujeitos. O sujeito é uma construção social. Ele não existe em si. Nada existe em si. Inventamos um sujeito e seus componentes, inventamos nossa existência” (Feldens, 2008, p.37). Somos frutos de uma história. Nascemos já estando num tempo e num espaço que está repleto de conceitos, significados e preceitos morais (Feldens, 2008).

Cada tempo e cada espaço cria seus sujeitos. Construção, cuspe, saliva viva, cria, filhote uterino, grito e gemido de cada acontecimento e de seus movimentos. O sujeito é esta breve e definitiva criação material. Político, social, moral, o sujeito é a identidade sedentária, o destino escrito, a língua significada. O sujeito é uma marca, um timbre, um dispositivo de poder (Feldens, 2008, p.38).

Sujeito esse que se fixa na grande massa social. Enquanto tem sacrificado suas singularidades, é esquadrinhado, repartido, organizado, categorizado, objetificado (Foucault, 2014). Aumenta-se, desta forma, a massa; criam-se subjetividades moldadas por parâmetros, por modelos com os quais se modifica o ser a procura das promessas e dos ideais de liberdade e de felicidade.

É justamente essa procura, essa busca, essa perseguição por algo que parece estar fora de nossa própria existência, fora de nossa humanidade, fora de nosso tempo, de nosso presente o que nos afasta de nós mesmos. A tendência de almejarmos a condição de super-humanos desmobiliza a potência, a força e a beleza da própria experiência de nossa existência.

O ideário moderno nos vendeu o sonho da longevidade, ou mesmo da imortalidade, nos vendeu o sonho do paraíso na terra, do reino da razão, o sonho de ocupar o lugar vago de Deus. Perdemos, assim, o significado do absurdo, tornamo-nos homens-máquinas - metrificados e calculados pela matemática; diagnosticados, medicados e curados pela medicina; obedientes e dóceis pela lei. Sujeitos servis ao Estado, ao chefe, ao poder financeiro (Foucault, 2017; 2014).

Não podemos, porém, conceber o sujeito da pós-modernidade como uma oposição, como uma resposta que soluciona o que vivemos na modernidade. Não podemos conceber o sujeito da pós-modernidade como um ideal de sucesso. O sujeito continua sendo sujeito. E isso diz muito sobre a luta que temos que travar.

O sujeito na pós-modernidade tornou-se flutuante e maleave, a cada segundo, troca de vestimenta. A vida corre, o tempo voa e nada que possa ser mais permanente pode durar. Os campos de subjetividade passam a ser cada vez mais transitórios e inconsistentes. Não há solidez histórica (Deleuze, 2010). O fato de ter se tornado mais flúido não livra esse sujeito de ser capturado por teias que o aprisionam. Pelo contrário, as novas teias são ainda mais carcerárias, pois marcam e estabelecem limites ao seu existir no âmbito de uma sociedade de controle (Deleuze, 2010).

Se a disciplinaridade na modernidade, tão bem abordada por Foucault (2014), em um dado momento foi responsável por confinar, destribuir e fazer produzir; produzir sujeitos dentro de um determinado espaço como, por exemplo, na família, na escola, na indústria (Deleuze, 2010). A consequente crise desses espaços e dessas táticas disciplinares não entregam ao sujeito pós-moderno um mundo livre do modelo ou livre do assujeitamento.

Ao contrário. Existe na contemporaneidade o controle como um aprimoramento, como um aperfeiçoamento das técnicas disciplinares modernas, configurando de forma mais sutil suas técnicas e formas de enquadramento, de sujeição e de ordenação produtiva (Deleuze, 2010).

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus (Deleuze, 2010, p.223).

Diante do colapso das instituições e ao mesmo tempo de sua rigidez, é preciso criar meios de adestramento que não permitam o escape. Em um processo de ruptura, de transição, de mudança de sistema e de pensamento, existe sempre a possibilidade de criar espaços de movimento. Porém, estarão em curso também a possibilidade de criação novas formas e teias de assujeitamento. Atrelado a isso, estão várias séries de práticas e de saberes que atravessam e dão sustentação as transformações sociais, científicas, políticas e econômicas (Deleuze, 2010). Analisemos então a contemporaneidade como esse momento, tendo em vista as mudanças, o rompimento com certos parâmetros e o aperfeiçoamento das formas de construção e de desfazimentos dos modelos.

Perpetuamos certos ideais focados em uma centralidade na universalização e na hierarquização do conhecimento e em suas práticas. Somado a esses modelos estabelecidos, paulatinamente são inseridas novas práticas de saberes relacionados a uma lógica da competitividade, da superinformação e do consumo demonstrando assim um contínuo processo de atualização típico das mudanças do capitalismo como o próprio Deleuze (2010) menciona:

Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso, ele é essencialmente dispersivo e a fábrica cedeu lugar à empresa (Deleuze, 2010, p. 223-224).

Assim, o saber e a própria educação - antes meio primordial de moldagem/docilização para um modelo ideal de homem/cidadão/profissional - agora sofrem uma reorganização em sua funcionalidade. Não basta mais ser o modelo de sucesso. Inerente a ele, existe, nesse momento, um modelo de produtividade capaz de dar respostas imediatas aos estímulos de uma sociedade cada vez mais empresarial e competitiva (Han, 2015). Diante da fluidez de nosso tempo, ao sujeito não basta mais ser constituído enquanto um produto acabado, pois ele está fadado a ser consumido rapidamente pela inconstância dos modelos/narrativas, pela velocidade da informação e do desenvolvimento científico-tecnológico, elementos estes consequências da própria vida contemporânea.

É preciso dotar o sujeito da contemporaneidade de habilidades, de uma série de instrumentalidades para que possa sobreviver à competitividade atual. Portanto, é necessário flexibilidade para moldar-se, desfazer-se e refazer-se diante da rapidez das transformações políticas, sociais e econômicas e ainda oferecer um diferencial nesse processo produtivo que o coloque numa posição de destaque frente aos demais (Deleuze, 2010).

Apesar das práticas disciplinares ainda existirem e atuarem nesse cenário percebe-se, diante da liquidez da nossa atualidade, que os muros que demarcavam fronteiras institucionais onde esse sujeito era modelado vêm se desfazendo. Começa então a se criar um espaço contínuo de controle e de produtividade (Deleuze, 2010).

Ou seja, o sujeito não sai mais da instituição-família para a instituição-escola, da instituição-escola para a instituição-igreja, da instituição-igreja para a instituição-fábrica. Família, escola, igreja, trabalho estão diluídas umas nas outras num processo contínuo que aumenta as exigências produtivas e diminui os espaços de afrouxamento desse sujeito (Deleuze, 2010).

Não é à toa que estamos cada vez mais inseridos em processos avaliativos e em corridas para perseguição de metas. A todo instante somos estimulados a agir, a fazer, a sermos pioneiros em alguma coisa. Estamos, assim, inseridos em diversos mecanismos e dispositivos de super-positividades (Han, 2015). É preciso, portanto, sempre estar feliz, disposto, ativo e grato; e, acima de tudo, é preciso atingir os mais altos índices de desempenho e produtividade e fugir da acomodação e da passividade.

O animal laborans pós-moderno não abandona sua individualidade ou seu ego para entregar-se pelo trabalho a um processo de vida anônimo da espécie. A sociedade laboral individualizou-se numa sociedade de desempenho e numa sociedade ativa. O animal laborans pós-moderno é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se. Ele pode ser tudo, menos ser passivo (Han, 2015, p.43, grifo nosso).

Como fica claro em Han (2015), ao estarmos vinculados a essa nova lógica produtiva de respostas imediatas e de estímulos ininterruptos dados pelas demandas sociais, políticas e econômicas, o maior risco que corremos é o do esgarçamento total e da autodestruição. Acreditamos que é isto quem está em jogo no capitalismo contemporâneo regido por uma razão neoliberal.

Corrosões e deformações do sujeito empreendedor de si mesmo no neoliberalismo contemporâneo

Deleuze (2010) foi muito preciso em enxergar as transformações políticas, econômicas e dos regimes de poder de seu tempo. Ao trazer as noções do que seria uma sociedade de controle, Deleuze (2010) atenta para a emergência de um tipo de dispositivo de poder e de dominação que poderia trazer efeitos tão mais perversos do que se viu anteriormente.

Na mesma estrada de Deleuze, Foucault também observou essas transformações e atentou para o que poderia ser uma eventual crise dos poderes disciplinares. No curso “O nascimento da biopolítica (1978-1979)” trouxe contribuições importantes ao analisar o surgimento do neoliberalismo como uma razão governamental dominante (Foucault, 2008b). Foucault (2008b) atenta para transformações profundas que estariam ocorrendo tanto do ponto de vista antropológico - onde se forjava uma espécie de novo homo economicus - quanto no que diz respeito aos campos de subjetivação - momento de formação de uma subjetividade empreendedora.

Em suma, ao analisar o neoliberalismo, Foucault (2008b) observa que toda aquela noção de uma sociedade civil, típica do liberalismo clássico, estava sendo alterada para uma sociedade empresarial. Nesse novo marco histórico, os valores desinteressados que antes faziam oposição aos valores econômicos egoístas - agora serão eles também regidos por uma razão econômica. Por isso, substitui-se a ideia de sociedade civil e de cidadão por uma noção empresarial do empreendedor de si mesmo.

Isso implica dizer que agora cada indivíduo é livre e responsável por si mesmo diante das escolhas que pode fazer. Os efeitos, portanto, de suas escolhas deixa de ter um amparo político e social. Foucault (2008b) atenta para os riscos disruptivos que essas novas dinâmicas poderiam acarretar. Chega a alertar, inclusive, que poderíamos estar entrando em um período permanente de crise.

Porém, infelizmente, nem Deleuze, nem Foucault puderam viver o bastante para acompanhar os desdobramentos dos efeitos do neoliberalismo e de toda essa lógica empreendedora sobre nosso campo de subjetivação. Talvez, veriam que mais do que produtividade de poder, produção de subjetividade, o que está em jogo no nosso tempo é a destruição. Acreditamos que esta é nossa tarefa, fazer uma crítica negativa do neoliberalismo.

Primeiramente, é preciso dizer que a terceira revolução industrial, o modelo pós-fordista e o neoliberalismo capturaram boa parte das alternativas, saídas estéticas e apostas políticas que foram reivindicadas no período anterior. O que isso quer dizer mais exatamente? Quer dizer que se o problema era a rigidez de um trabalho mecânico, repetitivo, pouco criativo; se o problema era a falta de liberdade, de pluralidade e de autonomia - tudo isso foi nos dado nessa nova fase do capitalismo de orientação pós- fordista e neoliberal.

Para além de toda a perfumaria que nos foi vendida, os efeito dessas transformações no tempo em que vivemos, nos afirma Sennett (2019), geraram crise, medo e insegurança. Quando o trabalho entra numa dinâmica da flexibilidade e da parcialidade, torna-se impossível para as populações trabalhadoras a construção de uma narrativa de vida. Pois, estas populações estão forçadas a constantemente estarem prontas para as modulações e transformações que o mercado exige.

Logo, não existe a possibilidade de construção de uma carreira; não existe também a possibilidade de uma planejamento a longo prazo, porque a instantaneidade é a marca desse tempo presentista em que vivemos, onde o futuro foi trocando pela urgência. Nessa lógica, onde as massas estão imersas em um tempo que é um tempo à deriva, resta a esse amontoado de empreendedores de si mesmos assumirem os riscos enquanto flertam constantemente com o medo do fracasso e de tornarem-se descartáveis (Sennett, 2019).

Assim, o homem da sociedade empresarial, da sociedade do desempenho, é um ser que transita quase sempre pela superfície, que pouco tem fôlego para um mergulho profundo ou tempo para parar e encher os pulmões de ar. É o homem que se deprime e anseia por algo que não sabe o que é.

O sujeito de desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo. O depressivo é o invalido dessa guerra internalizada. A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma (Han, 2015, p. 29).

Temos nos tornado, assim, uma sociedade que precisa de remédios e tantos outros tipos de estimulantes para acordar e, por outro lado, outras doses de calmantes para adormecer. Este é um sujeito-máquina, que vive o dilema do esgotamento de seus instintos, de sua singularidade e de sua força material e política e, por outro viés, busca sempre aprimorar, moldar e potencializar sua capacidade de produção, sua capacidade maquínica (Deleuze, 2010).

Diferente de outros fases do capitalismo, Han (2020) nos mostra como atualmente as investidas do capital se dão de forma intrapsíquica. Ou seja, os processos de agenciamento de dominação do capitalismo não se dá mais em uma relação que parte de um exterior para um interior, elas agora incidem diretamente na psique. É por isso que no neoliberalismo funda-se uma psicopolítica.

O efeito mais nefasto desse acontecimento se dá no campo da resistência. Pois, com o capitalismo e a razão neoliberal agindo diretamente em nossa interioridade, nossos ideais de liberdade que antes poderiam fazer um contraponto às formas de dominação, tornam-se eles mesmo os operadores dessas práticas coercitivas (Han, 2020). Os desdobramentos disso, como o próprio Han (2015; 2020) nos mostra, externaliza-se na forma do esgotamento e da destruição seja pelo adoecimento psíquico (depressão, ansiedade, burnout, etc.) ou pela eclosão violenta das tensões sociais marcadas pelo acirramento da concorrência e pela ausência de um horizonte de expectativa.

Outro resultado destrutivo dessa fase atual do neoliberalismo diz respeito ao processo de dissolução social. Dardot e Laval (2016) no ensaio “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal” argumentam que o processo de generalização da razão neoliberal sobre nós tornaram a vida mais endurecida diante das relações permeadas por uma radicalização do egoísmo e do individualismo. Desta forma, observam os pensadores, vão se dissolvendo os lanços comunitários e os valores de solidariedade. Instaura-se, portanto, um clima de guerra de todos contra todos.

No campo do saber em vez do contato, da experiência, da singularidade, da criticidade vivenciada, o que se privilegia é justamente um saber instrumentalizado, que seja capaz de dar resposta as mais diversas demandas. Um saber que produza currículos extensos, ótimas colocações e médias exemplares (Laval, 2019). A coacherização dos campos do saber, por exemplo, é um sintoma desse processo de submissão às necessidades de mercado para gerar competências, habilidades e aumento de capital humano. Lidar com essa quantidade de demandas tem nos levado ao limite produtivo, emocional, afetivo e humano.

A educação, nesse contexto, forja-se como um grande dispositivo de adequação as demandas de mercado. Torna-se ela mesma um serviço, uma mercadoria. Perde-se, assim, o horizonte de uma educação crítica, formativa, onde havia espaço, apesar das contradições, para o questionamento e para criação. Privilegia-se, desta forma, uma educação técnica-científica, reduzindo assim o próprio papel político da educação em nossas sociedades (Laval, 2019).

Diante do exposto, nos parece claro que mais do transformações nos dispositivos de poder; mais do que a produção de novas subjetividades; mais do que discutir-se o que envolve a produção de um sujeito empreendedor de si mesmo - o que está em jogo são os efeitos destrutivos e a normalização operada sobre isso pelo neoliberalismo na fase atual do capitalismo. O que está em jogo, portanto, é a precarização da vida, do saber, e a aceitação tácita de que não há lugar para todos no mundo em que vivemos. E para aquelas que ficam pelo caminho resta o descarte e a exposição à morte.

Conclusões

Esse texto buscou fazer uma breve ontologia de nós mesmos focando nas transformações que envolveram os processos de subjetivação e de construção do sujeito moderno até a atualidade de um sujeito empreendedor de si mesmo. Compreendemos essas transformações como parte do processo de (des)fazimento do sujeito, reconhecendo seus mecanismos de aperfeiçoamento.

Desta forma, não procuramos apenas marcar linhas divisórias e distintivas de um sujeito para o outro, mas, concebendo-o como uma construção, como filho de um tempo e de uma história. Nos concentramos, assim, em abordar sobre a sua mecânica de funcionamento, de feitura e (des)feitura, suas técnicas e estratégias de modelamento, refinamento, transformação e dissolução.

Ao perceber como esse sujeito funciona, como atua, como se constrói e como promove seus trânsitos no tempo, podemos desvendar teias, sejam elas políticas, econômicas, sociais, científicas, que amarram e organizam esse sujeito para determinados fins. Colocar essa história em movimento é uma estratégia para entendermos as especificidades de nosso tempo.

Mais especificamente, estamos querendo dizer que mobilizar essa história dos campos de subjetividades e do próprio sujeito nos ajuda a compreender as relações de poder e as estratégias que são operados hoje pelo neoliberalismo. Nesse sentido, o diagnóstico que fazemos de nosso tempo é que vivemos um período histórico de esgotamento e de destruição da vida social, dos laços comunitários e dos campos de subjetividades.

Estar a par desses aspectos nos fornece possibilidades de criar rupturas e novas formas de exercer o movimento. Movimento este de desfazimento, de desconstrução, de fuga, de escapes das estratégias de enquadramento e, agora, de destruição. Talvez, uma tomada de consciência relativa ao nosso tempo histórico, nos permita tomar as rédeas do presente como quem traz para o agora uma insurgência permanente contra tudo aquilo que nos amordaça e que nos petrifica.

Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas. (Deleuze, 2010, p. 220).

É preciso, portanto, nesse período que atravessamos, estarmos atentos a emergência de saberes até então desprivilegiados dentro da própria hierarquia intelectual que legitima o que serve e o que não serve, o que é relevante e o que não é relevante, ou o próprio surgimento de saberes que estiveram à margem dos grandes centros, das grandes instituições do saber (Foucault, 2005). Este é um exemplo de possibilidades de movimento e de mecanismos de luta contra a captura para o assujeitamento, para a hierarquização, para a linearidade, para seletividade, para a produção de hegemonias e, acima de tudo, para o descarte e a destruição nos mais diversos campos.

Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instancia teórica unitária que pretenderia filtra-los, hierarquiza-los, ordena-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de urna ciência que seria possuída par alguns. (Foucault, 2005, p. 13).

Perante nossa vida, existe inumeras possibilidade de fazer fugas (Deleuze; Guattari,1996). “Fuga às verdades que ditam os rumos. Fuga aos modelos macro-explicativos que nos ditam conceitos. Fuga ao sujeito que nos tornamos. Fuga ao que nos faz nascer e morrer [...]” (Feldens, 2008, p.39). Podemos estar no entre-espaços, no entre-tempos, na insolação da noite. Podemos desfazer o sujeito, podemos com isso desarticular tudo aquilo que nos amarra, nos prende e nos imobiliza.

Mas isso só é verdade em grande escala. Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma ‘evolução dos costumes’, os jovens, as mulheres, os loucos, etc.(Deleuze;Guattari, 1996, p.86).

O saber, nesse sentido, ocupa uma posição privilegiada nesse processo. Do sujeito rígido, racionalista, universalizante, autônomo da modernidade, ao sujeito veloz, fluido, descentrado, do desempenho, que forja-se na pós-modernidade. Dos mecanismos disciplinares abordados por Foucault (2014) aos mecanismos de controle elucidado por Deleuze (2010) - existe uma gama de saberes envolvidos e dotados de poder que apoiam, sustentam e sedimentam a construção e o aprimoramento do sujeito. E agora, como condição de nosso tempo, assistimos a um momento de corrosão desse campo de subjetividade.

Por outro lado, existe também outras potências de saberes rebeldes, insurgentes, indisciplinados, forjados na descontinuidade, na inconstância, na errância, na experiência. Capazes assim de criar resistências, capazes de desfazer hierarquias, capazes de promover um caminho possível. Entender como se dá a construção, a transitoriedade, a atuação e os processos corrosivos e deformadores desse sujeito também nos concede a condição de possibilidade para pensar em como parar as máquinas, em como subverter a ordem das coisas e em como abrir novos caminhos e novas janelas de oportunidade.

Elaborar uma crítica do presente - tomar conhecimento de como se constitui e de como funciona toda essa maquinaria - implica fazermos esse exercício reflexivo em ato, ou seja, um exercício em movimento, na ação, no calor do momento. Portanto, um pensar que não é meramente contemplativo, mas que faz e produz sua potência a partir do seu caminhar. É por meio desse pensar andarilho - que se coloca junto e por dentro desse(s) corpo(s), que se suja de terra, de mundo, de vida - que podemos desarticular tudo aquilo que está posto e determinado. E assim criar novas composições de existência até então impensáveis

Referências:

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SOBRE OS AUTORES

1 Faz aqui referência à era das Luzes onde a partir do iluminismo (séc. XVIII), período da história associado à revolução científica e ao centramento na racionalidade, marca, assim, a ruptura com o período medieval fortemente vinculado ao pensamento religioso, em especial o da igreja católica.

SOBRE OS AUTORES

4CARVALHO, Lucas de Oliveira; FELDENS, Dinamara Garcia. Do sujeito moderno ao empreendedor de si mesmo: produções, saberes e corrosões em uma breve ontologia de nós mesmos. Revista Práxis Educacional. Vitória da Conquista. v. 19. n. 50, 2023. DOI: 10.22481/praxisedu.v19i50.12979

Recebido: 04 de Julho de 2023; Aceito: 26 de Agosto de 2023

Lucas de Oliveira Carvalho: Doutorando e Mestre (2020) pelo Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS). Bolsista de Doutorado CAPES. Graduado em história pela Universidade Tiradentes(2010).

Contribuição de autoria: concepção e conceitualização, aquisição, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e revisão crítica - https://lattes.cnpq.br/2568315535291643

Dinamara Garcia Feldens: Doutora e mestra em educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISSINOS/RS). É pesquisadora e professora do Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS).

Contribuição de autoria: redação do artigo, edição e revisão crítica de conteúdo intelectual importante - https://lattes.cnpq.br/4179393626052599

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