1 Introdução
O conceito de emancipação é central à práxis formativa da Educação do Campo e expresso em seus documentos fundacionais, ainda no marco das exigências dos movimentos sociais. Porém, se pode constatar uma diluição desse conceito no momento de transição para sua institucionalização. Vários são os fatores que corroboram essa diluição. Fato importante é ressaltar que, sem uma efetividade do conceito de emancipação, não há verdadeiramente uma Educação de qualidade para os povos do campo, mas apenas uma reprodução mecânica e funcional de uma grade curricular que anula os potenciais emancipatórios.
A Educação do Campo, no marco comemorativo de seus 20 anos, permanece como um desafio a cada docente e a cada discente. Um desafio assumido cooperativamente que visa a um horizonte marcado pela emancipação. A Educação possui potenciais emancipatórios que apresentam dificuldades nas sociedades contemporâneas devido a uma reificação gradativa da própria Educação, porém, aqui defendemos que no âmbito da Educação do Campo, esses potenciais permanecem não reificados e latentes, dadas a condição de irrupção de uma subjetividade campesina e a relação intrínseca entre uma razão crítica e o próprio conceito de emancipação.
Nosso objetivo é tematizar, nesse contexto, a relação entre o conceito de emancipação, a razão crítica e suas ressonâncias e potencialidades, fornecendo elementos para uma reflexão sobre as bases filosóficas da Educação do Campo, sobre as quais e, a partir das quais, transita uma subjetividade campesina.
Essa subjetividade carrega consigo potenciais emancipatórios justamente por estar propensa ou exposta a uma racionalidade crítica que pode ser materializada em virtude de sua materialidade negativa, experimentada como corporeidade e transpassada pela objetividade da luta – que aqui não figura como mero conceito, mas se expressa como horizonte cotidiano dessa subjetividade.
Percorremos um caminho que parte da compreensão de alguns elementos pertinentes à Teoria Crítica, centrada na primeira geração da Escola de Frankfurt, como desvelamento de uma razão crítica. A crítica à razão instrumental revela uma nova possibilidade de rompimento com a vida administrada, com o dado, o ordenado, que caracterizam as sociedades tardocapitalistas, e, também, expõe, no âmbito do indivíduo, o processo ou mecanismo de irrupção dessa razão crítica a partir da dor da compreensão da exclusão, experimentada pelo sujeito.
Em seguida, passamos a algumas considerações sobre a Educação do Campo e sua condição expressa pela negatividade, que carrega os elementos necessários a uma razão crítica e, portanto, deixa claro um posicionamento marcado pela dor, pela resistência e pela luta.
2 Razão crítica
2.1 A teoria crítica
Em um pequeno trecho, Rush dá uma perspectiva resumida do desenvolvimento de uma das maiores contribuições teóricas acerca da sociedade moderna, que perpassou, praticamente, por todo o século XX e continua a lançar rasgos importantes nas teorias sociais do século corrente, a saber: a Teoria Crítica.
A Teoria Crítica nasceu no trauma da República de Weimar, cresceu até a maturidade na expatriação e alcançou valor cultural em seu retorno do exílio. Transmitida desde sua primeira geração fundadora – Max Horkheimer, Friedrich Pollock, Herbert Marcuse e Theodor Adorno, entre outros – para o líder de sua segunda geração, Jürgen Habermas, a Teoria Crítica permaneceu no centro do pensamento filosófico, social e político europeu durante o período da Guerra Fria. Permanece como uma perspectiva filosófica e política vital, e uma terceira geração de teóricos críticos, entre os quais Axel Honneth é mais proeminente, continua a compelir suas preocupações em grande parte em termos da tradição que começou nos anos de Weimar. Juntamente com a fenomenologia em suas várias formas e a filosofia e teoria social reunidas sob os títulos de estruturalismo e pósestruturalismo, a Teoria Crítica é uma voz preeminente no pensamento continental do século XX
(RUSH, 2004, p. 1).
Formulada em seu projeto inicial pela primeira geração do Instituto de Pesquisa Social (Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, dentre outros) e reformulada por representantes da segunda e da terceira-geração (Jürgen Habermas e Axel Honneth respectivamente), permanece como uma voz proeminente da Filosofia continental.
A Escola de Frankfurt1 encontrou sua potencialidade na Teoria Crítica [Das kritische Theorie], como guarda-chuva teórico que abrigou intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento, no intuito de prover uma resposta ao avanço do objetivismo das ciências naturais, impulsionado pelo positivismo, que acabou por descambar em um processo de instrumentalização da razão. O enfoque dessa nova teoria residia em seu compromisso com o diagnóstico e a análise crítica das contradições da sociedade moderna, tendo como prisma o marxismo, a teoria weberiana da racionalidade e a psicanálise (BENHABIB, 1986; DAHMS, 1997, 2017; GEUSS, 1981; HELD, 1980; PIZZI, 1996; KIRKPATRICK, 2002).
Podemos compreender esse projeto crítico centrado em uma exposição do aspecto dialético-negativo da razão iluminista, denúncia de uma instrumentalização da razão e, principalmente, de um processo de reificação levado ao extremo pela teoria tradicional positivista ao abstrair-se do mundo social da vida. A Teoria Crítica é um movimento intermediário (1937-1940) entre os primeiros esforços dos integrantes da Escola de Frankfurt em uma tentativa de integração da filosofia na ciência, partindo da crítica às bases epistemológicas da ciência (1932-1937), para uma crítica culturalista da civilização ocidental preconizada na crítica à razão instrumental (1940-1945) (BENHABIB, 1986; DAHMS, 2017).
Em suas primeiras formulações, a Teoria Crítica incumbiu-se de apresentar as diferenças fundamentais entre aquele tipo estrito de conhecimento tradicional que, desde Descartes e seu Discours de la méthode, empenha-se no assenhoramento humano do mundo mediante o método científico. Esse tipo de saber encontra terreno e se amplia no âmbito epistêmico-cognitivo-tecnológico difundido pelo Positivismo e sua crença irrestrita no progresso tecnocientífico. Contra esse tipo de saber, Horkheimer (Traditionelle und kritische Theorie) e Adorno (Streit im Positivismus) apresentaram um tipo de saber que, baseado na condição reflexiva, conseguia inserir novas condições na compreensão das contradições das sociedades tardocapitalistas. Um segundo momento, nas formulações iniciais da Teoria Crítica, é marcado pela apropriação de conteúdos de Weber (2005), do marxismo e da psicanálise na compreensão do eixo modernidade-racionalidade-sociedade.
O prisma weberiano e os prognósticos decorrentes como o desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), marcaram o passo evolutivo da Teoria Crítica em sua etapa inicial. Assim, tal como Weber vinculava o tipo de racionalidade das sociedades tardocapitalistas com a condição imposta pelos efeitos da Revolução Industrial de busca de eficiência e êxitos tecnocientíficos e econômicos, aparece um tipo de racionalidade-relacionada-a-fins (Zwekrationalität), os representantes da primeira geração da Escola de Frankfurt compreenderam a racionalidade instrumental.
Diante dessa compreensão de racionalidade e do quadro distópico marcado pela estruturação tecnocrática e o acirramento das forças de produção como instâncias ideológicas mantenedoras da dominação política, principalmente com o advento do nazismo e da planificação racional da morte e do aniquilamento humano nas “fábricas da morte”, imprimiu uma visão fortemente monista e pessimista acerca da razão instrumental e dos potenciais emancipatórios do Iluminismo e da própria modernidade.
O eixo nodal da Teoria Crítica procurou expor o cerne positivista-reducionista da ciência empírica (Erfahrungswissenschaft) que culmina com o acirramento de uma razão instrumental reduzindo o conhecimento à sua aplicabilidade, utilidade e domínio técnico. Nesse sentido, a Teoria Crítica, como crítica ao Positivismo, significa uma forma de repensar radical que desafia o que se estabelece como versão oficial da história e da evolução do pensamento ocidental, identificando e procurando compreender as relações entre Positivismo e a ideologia sob o prisma da tecnocracia como forma ampliada da racionalidade estratégica e referente a fins. Logo, o projeto de uma crítica social, iniciado pela Escola de Frankfurt, se realizará como crítica ao Positivismo e a esse conceito de razão identificado em sua estrutura interna: a razão instrumental.2
2.2 Crítica da razão instrumental e negatividade material
Apesar de o Iluminismo apresentar uma proposta de melhoramento da condição humana mediante sua retirada de um estado de menoridade, através de uma substituição progressiva do mito pela razão e do forte ímpeto no domínio da natureza, os intelectuais da primeira-geração da Escola de Frankfurt apontaram à existência de uma dialética negativa prefigurada na seguinte premissa: O processo de domínio sobre a natureza externa somente se realiza sob o peso de um domínio da natureza interna. A dominação técnica da natureza externa penetrou profundamente, na constituição psíquico-libidinal do sujeito, inoculando o potencial emancipatório e condicionando esse a uma condição passiva diante da estruturação ideológica do aparato tecnocientífico.
Tal compreensão levou os teóricos da Escola de Frankfurt a um impasse, pois acabaram compreendendo o processo de racionalização de forma monista, apenas como razão instrumental, e a solução aparente para esse impasse, assim como para a crise da modernidade, como um todo, seria uma ruptura escatológica na história, na qual se desvencilhasse do processo de dominação instaurando uma relação não instrumental com a natureza de ordem qualitativamente nova: em suma, uma nova ciência e uma nova técnica (HABERMAS, 1987; WHITEBOOK, 1996).
Os integrantes do Instituto de Pesquisa Social partiram de um conceito de racionalidade tal qual formulado por Max Weber, uma racionalidade de tipo novo marcada pelo advento da ascensão do modo de vida capitalista das sociedades modernas. Weber compreendeu o conceito de racionalidade em uma projeção histórica que teve seu início no pensamento reflexivo-socrático, que, em sua trajetória, atinge nova configuração na sociedade capitalista. O conceito de racionalidade de Weber já aponta a um processo de reificação em seu cerne (no contexto de um desencantamento do mundo), que foi trabalhado por Adorno, Horkheimer e Marcuse, procurando mostrar o âmbito de ampliação e domínio de uma razão instrumentalizada no contexto das relações sociais.
A crítica da razão instrumental se constitui como um movimento no interior da evolução do criticismo da primeira-geração da Escola de Frankfurt em suas formulações iniciais entre 1940 e 1945 (BENHABIB, 1986; DAHMS, 2017), e como desenvolvimento da teoria crítica elaborada anteriormente, permanece na trajetória de Habermas perpassando por seu opus magnum, e chegando às suas críticas recentes. Essa exposição do caráter instrumental da razão marca o criticismo da primeira-geração e lança um quadro influencial às gerações posteriores – Apel, Habermas, Honneth.
A razão instrumentalizou-se de forma tão atroz, que seu excesso descambou na planificação da barbárie e da morte. Para os membros da primeira-geração não foi um processo de irracionalismo que se abateu sobre a Alemanha, mas, antes, um excesso de razão, que caracteriza a ampliação da razão instrumental para todos os campos da vida. Não foi um sentimento irracional que construiu Auschwitz, Treblinka e outros campos de concentração, mas o acirramento do processo de instrumentalização da razão – que se traduziu no esmero tecnológico-científico, na busca de soluções mais viáveis, exitosas e eficientes para o assassinato em massa e na subsequente cremação dos milhares de cadáveres humanos.
O que marca profundamente a construção teórica da primeira-geração da Escola de Frankfurt é seu criticismo e, precisamente, esse expressa uma condição marcada pela negatividade material – o que foi abandonado pelas gerações posteriores (DUSSEL, 2015).
O criticismo da primeira-geração não foi uma expressão apenas teórica, não apenas teorizou sobre a barbárie e o sofrimento em Auschwitz, mas encerrava uma realidade aterradora e próxima em decorrência da judeidade dos membros da primeira-geração. Não experimentaram, ou integrantes, teórica e conceitualmente, o sofrimento e o perigo, mas sentiram, em sua própria existencialidade, a dor. Em decorrência disso, afirmava Horkheimer ser a crítica oriunda da dor (apudDUSSEL, 2015).
Nesse sentido, a primeira-geração estava embebida em uma negatividade como força de ultrapassagem de uma forma de vida administrada, como experiência do sentimento de marginalidade, do estar fora do sistema. É nesse momento que a razão crítica se articula, liberando os potenciais necessários ao sujeito para se erguer e dizer de sua existência, opondo-se ao sistema e lhe mostrando o quanto é falho e injusto, e que deve e pode ser de outra forma. Isso se conecta com o conceito de emancipação.
3 Educação do Campo, crítica e emancipação
A única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência.
Theodor Adorno
Horkheimer dizia que a crítica nasce da dor3 (apudDUSSEL, 2015). Ou seja, a crítica nasce de uma condição em que a pessoa expressa ou sente a negatividade, mas essa negatividade material está enraizada no corpo. Somos um corpo, e esse é a unidade topológico-fenomenológica de onde experimentamos o mundo.
Nesse sentido, é quando a pessoa experimenta, no próprio corpo, a partir do prisma da negatividade material, a dor de ser quem é impulsionada a compreender o sistema e o porquê de não ser permitido ou fornecido a ela as condições necessárias para que sua existência se reproduza materialmente. Nesse caso, essa dor surge a partir da inconformidade, ou de uma inquietação. A pessoa se sente deslocada, desencaixada no mundo e, nesse viés, faz com que, em determinado momento, suja a crítica como possibilidade de reverter essa situação, ou esse quadro.
A crítica é o ponto de partida para a emancipação. O interesse emancipatório é uma derivação impressa pela exigência de resposta ao avanço das forças sistêmicas sobre o âmbito da reprodução simbólica, das comunidades e dos saberes tradicionais, da oralidade, da cultura. Para a primeira-geração da Escola de Frankfurt essa é descrita como a resistência que se faz necessária, como possibilidade de ruptura com uma forma de dominação impingida por um aparato social que, fazendo uso da tecnologia, perverte sua forma histórica de ação tolhendo, com isso, o desenvolvimento individual.
Nesse sentido, cabe-nos algumas considerações sobre a Educação do Campo e sua constituição como locus de resistência e luta, por guardar, em si, os potenciais crítico-reflexivos e, por conseguinte, emancipatórios. Segundo Shimazak e Menegassi,
A expressão “Educação do Campo” passou a ser utilizada a partir de discussões do Seminário Nacional por uma Educação do Campo, realizado em novembro de 2002, no Centro Comunitário Athos Bulção, da Universidade de Brasília. Esse Seminário contou com 372 participantes de 25 diferentes estados brasileiros, e foi convalidado na II Conferência Nacional por uma Educação do Campo, de 2004. Nessa Conferência, realizada em Luziana, Estado de Goiás, reafirmou-se a necessidade de a educação dada aos camponeses ser específica, necessária, justa e acessada em espaço público a todos, cabendo ao Estado assegurar a oferta, o acesso, a permanência e a busca de mecanismos para a apropriação e a produção do conhecimento a todos os camponeses no local onde estão inseridos (2015, p. 68).
Assim, a Educação do Campo surge da necessidade de se reduzir o abismo educacional entre a cidade e o campo, mediante a garantia de acesso e permanência dos sujeitos do campo no âmbito das instituições, o que é assegurado legalmente e encontra reconhecimento e deliberação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor, n. 9.394/1996,4 que afirma:
Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III – adequação à natureza do trabalho na zona rural
(BRASIL, 1996).
E, nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, em seu art. 2º, parágrafo único, orienta uma concepção de Educação do Campo bem como de seus sujeitos.
Art. 2º. [...]
§ Único. A Educação do Campo é uma concepção políticopedagógica voltada para dinamizar a ligação dos seres humanos com a produção das condições de existência social, na relação com a terra e o meio ambiente, incorporando os povos e o espaço da floresta, da pecuária, da agricultura, das minas, os pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas
(BRASIL, 2002, p. 2).
Nesse sentido, o acesso à Educação do Campo se apresenta como uma conquista daqueles direitos assegurados pela Constituição, porém, negados social e historicamente aos povos do campo. Como diz a canção: “Educação do Campo é direito e não esmola!” A Educação do Campo é uma conquista, é o resultado de lutas e enfrentamentos políticos por parte de comunidades do campo e movimentos sociais que acabaram por desvelar uma demanda histórica ocasionada por uma desestabilização entre a cidade e o campo no âmbito da Educação. Historicamente, instaurou-se um abismo educacional entre a cidade e o campo (ALVES, 2009; CESTILLE; LIMA FILHO, 2010; MUNARIM, 2011; SILVA; LIMA, 2011; SHIMAZAK; MENEGASSI, 2015).
A Educação do Campo ainda se constitui como elemento fundamental no processo de dissolução do alijamento histórico e abissal entre a Educação urbana e a do campo. A luta por uma Educação do Campo é, desde sua origem, uma luta política sem possibilidade de dissociação entre ambas. Tal luta se insere no quadro de uma exigência por autonomia e emancipação dos povos do campo, e seu reconhecimento, sua implementação e inserção no âmbito do Ensino Superior recentemente, configura-se como possibilidade de derrubada das cercas epistemológicas erigidas entre a universidade e tais populações. É o momento de retomada de consciência, de se recobrar de um processo histórico de alienação e, principalmente de formação de uma autocompreensão a partir da qual se sedimenta a identidade.
A Educação do Campo objetiva atender às pessoas do campo, no campo, com o fito de formar a identidade dessas pessoas como sujeitos donos de sua própria história, escrita por meio da concepção científica do mundo, desenvolvendo suas capacidades intelectuais, sociais e culturais, com senso humano e histórico. Dessa maneira, é possível formar homens livres, com conhecimento, aptos a viver e a participar da sociedade de forma interativa, não só na campesina, mas também na urbana, considerando-se suas diferenças e semelhanças
(SHIMAZAK; MENEGASSI, 2015, p. 76).
A Educação do Campo vem, primordialmente, evidenciar e fazer ser escutada a voz dos povos do campo, a voz do camponês, do quilombola, do indígena e do ribeirinho; a voz de uma parcela da população que foi insistentemente esquecida e mantida em silêncio. Porém, um ponto importante é expresso pela tomada de consciência acerca de sua voz, e, a partir dessa, serem capazes de problematizar sua existência, a si mesmos e a seu mundo, sedimentando, assim, sua identidade e cultura como resultados e ganhos epistêmicos na trajetória formativa (ARROYO, 2012; SHIMAZAK; MENEGASSI, 2015).
A Educação do Campo faz surgir, ou apresenta, no interior das instituições de Ensino Superior (IES), nova possibilidade a partir do rosto campesino que se mostra. Uma pessoa, um sujeito que se apresenta à universidade, à sociedade e, uma vez ingresso na universidade, há uma primeira forma de ambientação, uma tentativa conflituosa de experimentação do espaço universitário. O conflito é em decorrência de dois tipos de conhecimento que se encontram, que se posicionam frente a frente: o conhecimento oriundo da experiência cotidiana do camponês, e aquele oriundo da própria academia. É na relação e nuanças entre esses dois tipos de conhecimento que será articulada a experiência da Educação do Campo.
No corpo discente, começam a aparecer impulsos de estabilização ou impulsos de equalização entre esses dois tipos, mas que, no início, são conflituosos porque o sujeito do campo que se apresenta está vindo de um ambiente em que houve um lapso do Estado em prover uma Educação de qualidade. Mas nem por isso ele é obrigado a permanecer fora da instituição, fora da universidade. Nesse contexto, aparece a Educação do Campo como veículo, como forma de suprir os elementos necessários para que se reduza esse abismo educacional.
Como mencionado, há uma cerca epistêmica que precisa ser derrubada pelo sujeito do campo em seu curso na universidade. Essa será derrubada a partir do momento em que é posto também em xeque o tipo de racionalidade que a sustenta, que é também um eixo teórico-conceitual que contemplamos em um projeto de pesquisa: a crítica à racionalidade e a crítica à ciência. Ciência, aqui, no sentido de ciência estrita, na ciência ancorada em um naturalismo duro, que ainda encontra ressonâncias no empirismo inglês de Hume e de outros autores.
A luta e exigência por uma Educação de qualidade para o sujeito do campo já mostra, em um primeiro momento, um germe dessa condição que gerou uma dor, para que os pioneiros da Educação do Campo tanto por parte dos camponeses (que experimentam a materialidade negativa do ser camponês); quanto por parte dos docentes, que experimentaram e deflagraram uma tomada de consciência acerca das mazelas na Educação e o esquecimento do Estado da população campesina.
A exigência dos movimentos sociais de uma Educação de qualidade para o campo, já parte do pressuposto de quem experimentou a negatividade material de não ter uma Educação de qualidade que atenda à realidade do camponês. A Educação do Campo parte desse pressuposto e é alimentada por um conceito importante, um conceito filosófico que é o de emancipação. Não existe Educação do Campo sem a realização do conceito de emancipação. Esse é o eixo central da Educação do Campo, que todos os outros elementos circundam, reciprocamente, alimentando-o e se alimentando.
Os impulsos à emancipação não existem desde sempre, eles não estão desde sempre preparados para ser utilizados pela sociedade. Os impulsos emancipatórios aparecem justamente nos momentos de crise. Habermas, ao afirmar isso, está fazendo uma referência à condição da negatividade material, não de forma explícita e aberta, mas fazendo alusão ao background histórico no qual foi formado – a Escola de Frankfurt, principalmente em sua primeira-geração.
Dizer que os impulsos emancipatórios surgem no momento de crise é dizer que eles se tornam, de fato, possíveis e passíveis de ser utilizados pela sociedade e pelos sujeitos no momento em que essa e esses experimentam a dor da sua negatividade material.
A crise, aqui, é o momento em que aquela condição começa a incomodar o sujeito, ou o indivíduo, ou seja, quando a condição de um abismo histórico-educacional que existe entre o campo e a cidade começa a ser, de fato, um incômodo àqueles que vivem sua vida no campo. Os impulsos emancipatórios fazem com que seja necessária uma tomada de consciência do que somos na trajetória histórica e, principalmente, nos afirmamos como protagonistas dessa história.
Nesse passo, não é de se estranhar que, em todos os documentos fundacionais da Educação do Campo, aparece o conceito claro e inequívoco de emancipação. Emancipação está em todos os documentos fundacionais da Educação do Campo como uma exigência de uma Educação de qualidade. Nesse giro, um problema a que apontamos é o momento de transição entre os documentos fundacionais da Educação do Campo e os atos institucionais dos vários cursos em instituições; eles, praticamente, suprimiram o conceito de emancipação ou foi dissolvido em uma grade curricular disciplinária.
A emancipação se torna um veículo ou um ponto, a partir do qual uma subjetividade emergente (a subjetividade campesina) irá se formar. É a partir da emancipação, tendo na Educação do Campo o veículo possibilitador, que essa consciência e essa subjetividade poderão ganhar impulsos e irromper. Por isso que a Educação do Campo sempre deve ser encarada como um desafio: o desafio de fazer emergir esse conceito de emancipação nas mais diversas disciplinas, nos mais diversos campos do saber e, nesse cenário, deve ser vista como negativa, como crítica, como um momento em que se manifesta a matéria negativa.
Podemos compreender, aqui, a partir de Adorno e Horkheimer, também a partir de Enrique Dussel, a seguinte lógica: o camponês, o homem do campo, ele experimenta essa dor de não participar da reprodução material, tal qual a cidade participa. Por que ele começa a se perguntar? Porque o campo não participa dessa reprodução material, porque também não consegue ter assegurada a possibilidade de reprodução material da sua vida.
4 Considerações finais
A Educação do Campo constitui-se, hodiernamente, como uma possibilidade diante da insistência ameaçadora do positivo, do mesmo, do igual e das forças que neutralizam a crítica e a resistência. Educação do Campo é desafio, pois, precisamente, faz desvelar a face do outro, da diferença e da diversidade.
Após percorrermos as considerações sobre razão crítica, negatividade material e Educação do Campo, podemos compreender que os conteúdos de uma racionalidade crítica ainda resistem não reificados na possibilidade de articulação do conceito de emancipação no interior da Educação do Campo. É um desafio cotidiano a ser enfrentado por docentes e discentes fazer irromper os impulsos necessários à emancipação. Um desafio que pode ser assumido apenas cooperativamente. Sem essa perspectiva, a Educação do Campo pode transformar-se em mera reprodução das contradições da sociedade, visto que reforça a consciência alienada e sem resistência.
Como desafio, a Educação do Campo se posiciona diante de cada docente e discente, diante de cada partícipe em seu processo formativo, de forma esfíngica e sussurra a tais sujeitos: Decifra-me ou devoro-te! Tal é o ponto em que nos encontramos nessa etapa do caminho, em que comemoramos 20 anos percorridos! Ainda há muita luta, mas, sobretudo, é necessário, também, o decifrar, o traduzir, o compreender essa nova perspectiva que surge na nossa frente.