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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Mar-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.59641 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Processos formativos de professores de educação física: reflexões com base nas histórias de vida

Procesos formativos de profesores de educación física: reflexiones basadas en historias de vida

Catia Silvana da Costa1  * 
http://orcid.org/0000-0003-4217-6429

Maria Iolanda Monteiro2 
http://orcid.org/0000-0002-4534-1437

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul, Rua Hilda, 203, 79950-000, Naviraí, Mato Grosso do Sul, Brasil.

2Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas, Centro de Educação e Ciências, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.


RESUMO.

Com base na temática das histórias de vida, este artigo, recorte de uma pesquisa de Doutorado, objetiva analisar trajetórias formativas de professores de Educação Física aposentados. A pesquisa, desenvolvida no período de 2014 a 2017, utilizou-se de entrevistas em profundidade e abertas e análise documental. O processo de construção dos temas de análise considerou os próprios dados - referentes aos saberes da docência que emergiram das trajetórias extraescolares, escolares, formativas e profissionais dos professores - e tornou real a possibilidade de apreensão de várias histórias em uma mesma história de vida. Para fazer o recorte, apresentamos reflexões subsidiadas pelos elementos da vida extraescolar, escolar e da formação profissional dos participantes. Os resultados retratam as situações vivenciadas pelos participantes e como essas situações foram por eles definidas, bem como contribuem para a compreensão da realidade docente por meio da análise de suas histórias de vida. Dentre alguns resultados, afirmamos que os elementos identificados permitem uma reflexão a respeito dos saberes que emergiram das diferentes trajetórias dos professores aposentados. Esses saberes devem ser considerados nos cursos de formação inicial em Educação Física com foco na atuação profissional, também, nos anos iniciais. Igualmente, favorecem as políticas públicas de formação docente, uma vez que foram elucidados com base nas contribuições das histórias de vida e da Educação Física.

Palavras-chave: trajetórias formativas; professores aposentados; Educação Física; saberes da docência

RESUMEN.

Partiendo del tema de las historias de vida, este artículo, que forma parte de una investigación de doctorado, tiene como objetivo analizar las trayectorias formativas de los profesores de Educación Física jubilados. La investigación, realizada entre 2014 y 2017, utilizó entrevistas abiertas y en profundidad y análisis documental. El proceso de construcción de los temas de análisis consideró los datos en sí mismos - referidos a los conocimientos docentes surgidos de las trayectorias extraescolares, escolares, formativas y profesionales de los docentes - e hizo real la posibilidad de aprehender varias historias en una misma historia de vida. Para hacer el corte, presentamos reflexiones subvencionadas por los elementos de la formación extraescolar, escolar y profesional de los participantes. Los resultados retratan las situaciones vividas por los participantes y cómo estas situaciones fueron definidas por ellos, además de contribuir a la comprensión de la realidad docente a través del análisis de sus historias de vida. Entre algunos resultados, afirmamos que los elementos identificados permiten una reflexión sobre los saberes surgidos de las diferentes trayectorias de los docentes jubilados. Estos conocimientos deben ser considerados en los cursos de formación inicial en Educación Física con enfoque en el desempeño profesional, también en los primeros años. Del mismo modo, se favorecen las políticas públicas de formación docente, una vez que se formen elucidados con base en las contribuciones de las historias de la vida y la Educación Física.

Palabras clave: trayectorias formativas; maestros jubilados; Educación Física; enseñanza del conocimiento

ABSTRACT

ABSTRACT. Based on the theme of life stories, this article, an excerpt from a doctoral research, aims to analyze the formative trajectories of retired Physical Education teachers. The research, developed from 2014 to 2017, used in-depth and open interviews and document analysis. The process of construction of the themes of analysis considered the data themselves - referring to the teaching knowledge that emerged from the extra-school, school, training and professional trajectories of the teachers - and made real the possibility of apprehending several stories in the same life story. To make the cut, we present reflections subsidized by elements of extra-school, school life and professional training of the participants. The results portray the situations experienced by the participants and how these situations were defined by them, as well as contribute to the understanding of the teaching reality through the analysis of their life stories. Among some results, we affirm that the elements identified allow a reflection on the knowledge that emerged from the different trajectories of retired teachers. This knowledge should be considered in the initial training courses in Physical Education with a focus on professional performance, also in the early years. Likewise, they favor public policies for teacher training, since they were elucidated based on the contributions of life stories and Physical Education.

Keywords: formative trajectories; retired teachers; Physical Education; teaching knowledge

Introdução

Com o objetivo de analisar as trajetórias formativas de três professores de Educação Física aposentados - Antônio Carlos Ferraz de Andrade (em memória), Romilda Augusta dos Santos Ribeiro e Dinalva Aparecida Dantas Pardo - para apresentar reflexões subsidiadas por suas histórias de vida, este artigo fundamenta-se no recorte de uma Tese de Doutorado (Costa, 2017).

A Tese1, desenvolvida no período de 2014 a 2017 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, analisou as histórias de vida desses professores na construção dos saberes docentes no contexto dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc) nas décadas de 1980 e 1990.

Na Tese, a opção metodológica foi pelas histórias de vida como uma pesquisa de natureza qualitativa (Bogdan & Biklen, 1994). O papel fundamental das histórias de vida, segundo Cruz Neto (1994, p. 58), consiste em “[...] retratar as experiências vivenciadas, bem como as definições fornecidas por pessoas, grupos ou organizações [...]”, podendo ser escritas ou expostas oralmente. As histórias de vida dos participantes da pesquisa de Doutorado foram apreendidas por meio de entrevistas em profundidade (trajetórias extraescolares, escolares, formativas e profissionais) e análise documental (dados iconográficos, legislação e documentos), nos meses de abril e maio de 2015. As entrevistas representam, segundo o autor, uma possibilidade de diálogo, correspondido de modo intenso entre pesquisador e pesquisado, o qual pode desenvolver o assunto sugerido de forma livre. “[...] os documentos são usados no sentido de contextualizar o fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar as informações coletadas através de outras fontes” (André, 1998, p. 28).

Ser professor aposentado e ter lecionado nos anos iniciais nas décadas de 1980 e 1990 foram alguns dos critérios de busca e seleção dos participantes por Costa (2017), os quais representaram o foco na atuação nesse nível de ensino no primeiro momento da história da Educação Física no Estado de São Paulo, em que as aulas foram lecionadas por professor com formação profissional na área.

O processo de construção dos temas de análise - referentes aos saberes da docência que emergiram das diferentes trajetórias - também se assentou nos próprios dados e tornou real a possibilidade de apreensão de várias trajetórias em uma mesma história de vida (Costa, 2017). As narrativas dos professores foram analisadas por meio desses temas.

Segundo Monteiro (2006), as pesquisas que fazem uso das trajetórias de vida dos docentes apreendem muitas das representações que embasam suas práticas, o que permite definir o raciocínio pedagógico e as ações que exercem influência na formação profissional e, concomitantemente, contribuem para esse processo.

Em Costa (2014), cujo olhar centrou-se nas práticas de uma professora de Educação Física iniciante, com considerações pelo processo de construção de seus saberes durante seu percurso na profissão, tornou-se evidente a recorrência a saberes de diferentes fontes, sobretudo da própria trajetória de vida na prática da ginástica como atleta e como aluna na proposição e no desenvolvimento desse conteúdo com os alunos dos anos iniciais.

Um dos conjuntos de características do ‘bom professor’ apresentado por Cunha (2014), por exemplo, se refere às influências fundamentais reconhecidas pelos ‘bons professores’ alusivas às suas próprias pessoas: da trajetória escolar, da relação professor-aluno e da reprodução de atitudes docentes avaliadas de forma positiva e/ou repulsa de atitudes avaliadas de forma negativa; dos saberes construídos no exercício da profissão por meio da troca com os pares e alunos, da reflexão sobre a prática e a reformulação daquilo que fazem e são; da formação profissional, em especial quando corresponde às demandas da prática e desencadeia um processo de reflexão sobre essa prática; e da prática social, quando apresentam clareza a respeito das escolhas realizadas com finalidades de transformação social e entendem a função docente para além da sala de aula.

Assim, apresentamos aspectos importantes das histórias de vida dos professores de Educação Física aposentados (Costa, 2017) para entendermos seus processos formativos. Para a análise das trajetórias formativas, objetivo deste artigo, organizamos os resultados nos seguintes tópicos: ‘Processos formativos na vida extraescolar’; ‘Processos formativos na vida escolar’ e ‘Processos formativos profissionais: opção pela docência’.

Por se tratar da recuperação das trajetórias pessoais e formativas desses professores, consideramos o tempo e o espaço de formação na análise de suas histórias de vida e de seus saberes docentes. Essa consideração elucida nossa maneira de contemplá-los, uma vez que nosso olhar se fundamenta em uma perspectiva de estudo que situa o professor em seu contexto histórico e social.

Processos formativos na vida extraescolar

Visualizamos, nas narrativas dos professores Antônio Carlos, Romilda Augusta e Dinalva Aparecida (Costa, 2017), as influências de várias pessoas (pais, irmãos, professores, primos, tios, mães, avós maternos, padrasto, etc.) em suas formações e nas escolhas por eles realizadas. Essas influências são elucidadas por Monteiro (2019), Reali e Reyes (2009) e Tancredi (2009), segundo as quais a aprendizagem da docência é um processo que acontece durante uma vida.

Por exemplo, a presença forte e constante do pai de Antônio nos eventos (esportivos ou não) ilustra a perspectiva e os valores paternos em relação a essas práticas, explicando como ocorrem, conforme Tardif (2008), as influências do convívio familiar. Dentre essas influências, destaca-se, também, a referência ao “[...] ‘professor preferido’ que influenciou, de modo significativo, a pessoa enquanto jovem aluno” (Goodson, 1995, p. 72, grifo nosso). Nos relatos de Antônio, visualizamos o ‘professor preferido’ na pessoa do professor ‘Sodré’ na prática do basquetebol. As influências desse professor correspondem às trajetórias extraescolares e escolares. No entanto, de acordo com Goodson (1995), afirmamos que essa referência é apenas uma das possíveis influências.

Com base nas intensas vivências com o futebol e a dança narradas por ele, confirmamos as influências dos saberes advindos das trajetórias extraescolares na prática do basquetebol na opção pela docência e, consequentemente, na constituição da personalidade docente na Educação Física.

Segundo Goodson (1995), essas trajetórias - de vida e do meio sociocultural - influenciam na constituição da pessoa que é o professor. Assim, os elementos presentes na história de vida dos professores Antônio, Romilda e Dinalva sinalizam as influências do contexto familiar, social e político, bem como explicam o processo de construção de suas personalidades por meio das trajetórias extraescolares.

Nas trajetórias de Romilda, também identificamos elementos alusivos à Educação Física logo no início da entrevista, com destaque de práticas corporais vivenciadas pela mãe em sua trajetória escolar, bem como a referência ao pai (apesar do pouco tempo de convivência), as diversas profissões exercidas por ele e seu ótimo relacionamento com a comunidade.

Ao contrário de Antônio, Romilda e Dinalva referiram-se muito às suas mães nas entrevistas em razão da morte prematura de seus pais. As influências das atitudes da mãe e dos valores próprios dessas atitudes (rigidez, respeito, amizade, cooperação, caridade, posturas corretas, regras de etiqueta e de diálogo) são evidentes, por exemplo, nas narrativas de Romilda, bem como o sentimento de admiração pela figura materna.

Destaca-se que “[...] o saber cultural herdado de sua trajetória de vida e de sua pertença a uma cultura particular, que eles partilham em maior ou menor grau com os alunos [...]” (Tardif, 2008, p. 297) abarca, por exemplo, as seguintes influências: de valores paternos - moral, respeito, etc. -, considerados preponderantes por Antônio em sua formação; de valores maternos - honestidade, valorização dos estudos e dos professores, etc. -, considerados benéficos por Romilda em sua vida; e de valores provenientes do convívio com a mãe e com os avós maternos - amor, respeito, etc. - reconhecidos por Dinalva.

A vida e a formação desses professores são, assim, caracterizadas por meio de uma educação familiar rígida, religiosa e de valorização dos estudos. Essa caracterização produziu, por ocasião das entrevistas, um sentimento nostálgico, pois os professores teceram comparações entre os princípios educacionais em diferentes épocas de suas vidas.

Igualmente, a valorização nostálgica da época também se manifestou na descrição do respeito apresentado por Dinalva para com os princípios educacionais impostos por sua mãe, bem como nas comparações que realizou entre suas atitudes e as atitudes de seu filho na atualidade:

[...] minha mãe comprava ... por exemplo ... uma fruta ... e falava ... ‘Dina ... sua da Dei ... da mamãe ... daí danone do nono’ ... cada um comia a sua [...] aqui em casa não ... às vezes tinha um monte de chocolate aí ... o ‘Paulo’ sempre adorou ... tudo ... quem vai ... quem vai primeiro vai comendo tudo (risos) ... e se não esconder para a outra ... é ... é assim ... a vida é hoje ... assim diferente (Costa, 2017, p. 94, grifos nossos).

Nas histórias de vida dos professores Antônio, Romilda e Dinalva, identificamos possibilidades de abertura ao diálogo promovidas, respectivamente, pelo pai, pela mãe e pelos avós e tios maternos, as quais contribuíram para a construção da relação professor-aluno, por meio da integração da dimensão afetiva no exercício da docência (Betti & Mizukami, 1997; Tardif & Raymond, 2000; Freire, 2002; Tardif, 2008; Cunha, 2014).

O fragmento a seguir, no qual Romilda refere-se à sua mãe, é representativo dessa construção: “[...] ela era de conversar [...] tanto é que ‘com os meus alunos ... eu também dialogava muito’” (Costa, 2017, p. 81, grifo nosso).

A valorização da afetividade também é evidente na perspectiva dos professores participantes da pesquisa de Tardif e Raymond (2000) e Tardif (2008), entre outros elementos valorados por eles - trabalho, características pessoais, disposição e a natureza social do saber docente.

A dimensão afetiva é apontada por Betti e Mizukami (1997) como um dos pontos extrínsecos à pessoa e que pode ser referência para os futuros professores de Educação Física. As autoras conjecturaram possibilidades investigativas com uma docente aposentada, no intento de estudar como foram construídos seus saberes relativos à profissão. Apresentaram pontos intrínsecos e extrínsecos à pessoa da participante da pesquisa e afirmaram a necessidade de debater esses pontos na formação profissional em Educação Física.

Entendemos a dimensão afetiva como um dos saberes construídos nas histórias de vida dos professores, bem como sinalizamos para a necessidade de reflexão a respeito da afetividade na formação inicial e continuada do professor de Educação Física.

Nas narrativas da professora Dinalva, também foi possível identificar influências provenientes da convivência com os avós maternos e tios, além do respectivo apoio incondicional, das dificuldades iniciais enfrentadas pela mãe após o falecimento do pai, da ótima relação com a irmã e com o padrasto (chamado por ela de ‘pai’ ao longo das entrevistas), da vivência musical nos momentos de lazer, do bom relacionamento dos avós e dos tios com a comunidade, entre outros acontecimentos.

De acordo com Dinalva, as dificuldades iniciais vivenciadas pela mãe poderiam ser minimizadas se ela tivesse estudado, porém, a proibição dos avós afastou essa possibilidade. O fato de ter aprendido a escrever o próprio nome com um dos irmãos para, posteriormente, assiná-lo em seu casamento, representa, para a mãe de Dinalva, a função social dessa escrita para as mulheres da época.

A valorização dos relatos referentes aos avós maternos justifica-se em razão da importância que Dinalva lhes atribuiu, uma vez que conviveu com eles e os considera como pais. Dentre os acontecimentos relatados pelas professoras Romilda e Dinalva, a perda do pai - aos quatro e aos dois anos, respectivamente - foi vivenciada por ambas.

Os excertos das narrativas de Romilda e Dinalva, na ordem em que são apresentados, ilustram esses acontecimentos: “[...] minha mãe ficou viúva com sete filhos e depois ainda assumiu mais três sobrinhos [...] e ... eu sei que minha mãe lutou para ... para cuidar da gente [...]” (Costa, 2017, p. 99); “[...] tive assim ... uma vida muito [professora se emociona neste momento] [...] ‘truncada’ [...] porque eu perdi o pai muito cedo” (Costa, 2017, p. 99, grifo nosso).

Os relatos dos professores Antônio, Romilda e Dinalva alusivas à intensidade na relação com o pai, com a mãe e com os avós maternos, entre outros elementos, revelam as primeiras aprendizagens e os primeiros entendimentos a respeito de suas próprias vidas. De acordo com Josso (2004, p. 43), “[...] os contos e as histórias da nossa infância são os primeiros elementos de uma aprendizagem que sinalizam que ser humano é também criar as histórias que simbolizam a nossa compreensão das coisas da vida”.

Observamos, ainda, nas narrativas dos professores, a natureza de algumas práticas vivenciadas em suas trajetórias extraescolares como, por exemplo, futebol, cambalhota, acrobacia, passa-anel, garrafão, pega-pega, cantigas de roda, queimada, telefone sem fio, pé de lata, balança-caixão, jogo do mico, amarelinha, esconde-esconde, pular corda, atividades religiosas e escolares, entre outras. Notamos, também, a recorrência das seguintes atividades: ouvir rádio e as vivências com basquetebol, música e dança no contexto familiar, social e escolar. Assim, percebemos a aprendizagem de práticas corporais por meio dessas atividades e apreendemos o tipo de criança formado nesse contexto.

Os elementos identificados nas histórias de vida também indicam influências sociais e políticas da época. Esses elementos compõem a formação pessoal e profissional dos professores e igualmente explicam como aconteceram esses processos por meio de suas trajetórias extraescolares - sintetizadas neste subtópico - e escolares, explicitadas no subtópico seguinte.

Processos formativos na vida escolar

Ao entrevistar professores de Educação Física com base na história oral, Corrêa (2009, p. 23) afirmou que “[...] quando solicitados a falar a respeito de suas experiências na escola, todos os entrevistados, sem exceção, o fizeram com brilho nos olhos e com o sorriso aberto, refletindo a alegria de rememorar as histórias de infância”.

Essas expressões representativas de sentimentos demonstrados mediante palavras, risos e lágrimas também foram notadas em Antônio Carlos, Romilda Augusta e Dinalva Aparecida (Costa, 2017), tendo em vista que suas trajetórias escolares revelaram a vivacidade das influências familiares. O envolvimento dos pais no processo de escolarização dos filhos reflete valores religiosos e evidencia a valorização da escola e dos estudos em prol de um futuro melhor.

Nos fragmentos das narrativas dos professores, observamos a presença de uma concepção técnica de Educação Física como embasamento das práticas vivenciadas em suas trajetórias escolares, em especial a partir da antiga 5ª série - com foco no jogo e no esporte na carreira de Antônio, na ginástica e no jogo na trajetória de Romilda, e na dança e no jogo na carreira de Dinalva.

Na tendência competitivista, fundamentada no resultado de uma amálgama das demais tendências, em especial da higienista e militarista, Ghiraldelli Jr. (1997, p. 20) afirma que a Educação Física, por ter se reduzido ao esporte de alto rendimento mediante a subordinação de seus conteúdos, configurou-se como um acessório desse esporte, cuja finalidade incidiu na melhoria da técnica esportiva com base, especialmente, nas pesquisas de natureza fisiológica e biomecânica, uma vez que “[...] a Educação Física é sinônimo de desporto, e este, sinônimo de verificação de performance”.

Nesse cenário, a tendência competitivista influenciou as aulas de Educação Física vivenciadas nas trajetórias escolares dos professores aposentados. Como exemplo da tecnização da Educação Física na escola, Soares et al. (1992, p. 54) mencionam “[...] a divisão das turmas por sexo, respaldada inclusive pela legislação específica, o Decreto n.º 69.450/71”.

A tecnização da Educação Física, amparada pela ideologia difundida com o Golpe de 1964, apresentou-se com base no objetivo de, “[...] na área da Educação Física, promover o desporto representativo capaz de trazer medalhas olímpicas ao país” (Ghiraldelli Jr., 1997, p. 30). Na trajetória de Antônio, essa influência pode ser visualizada, por exemplo, no fragmento de sua narrativa referente ao perfil do professor de Educação Física bem-sucedido da época como aquele que “[...] ‘levava mais taça para a casa ... mais medalha para a escola ... né?’” (Costa, 2017, p. 110, grifo nosso).

Na trajetória de Romilda, o trecho “[...] ‘todo mundo queria ir para o meu time’” (Costa, 2017, p. 120, grifo nosso) elucida um processo de seleção que possivelmente incluía os alunos mais habilidosos e, consequentemente, excluía aqueles menos desenvolvidos para a prática escolhida. Igualmente, os relatos de Dinalva evidenciam suas iniciativas nas atividades de dança vivenciadas enquanto aluna: “[...] ‘eu era muito de ... de fazer ... por exemplo na época junina uma dança ou a quadrilha ... eu que ... que era coordenadora’” (Costa, 2017, p. 126, grifo nosso). A facilidade para fazer demonstrações na ginástica e na dança também foi notada nas narrativas de ambas, fator que pode ter contribuído para o sucesso descrito por elas nas aulas de Educação Física da época.

Os relatos das professoras Romilda e Dinalva revelam, simultaneamente, suas diferentes perspectivas a respeito dessas aulas, cujo foco não incidia, segundo elas, nas habilidades físicas e no treinamento, mas nas boas relações entre professor-aluno, no apreço pelas práticas corporais e nas características lúdicas das atividades desenvolvidas. De forma contraditória, Dinalva confirmou a vivência de aulas de natureza competitiva e a consideração, pelos professores de Educação Física, do desenvolvimento do aluno em todos os seus aspectos.

Recuperamos essas reflexões porque os professores de Educação Física que lecionaram nas décadas de 1950 e 1960, nas quais Antônio, Romilda e Dinalva foram alunos, formaram-se no contexto apresentado por Ghiraldelli Jr. (1997), com tendências de Educação Física higienista, militarista e competitivista, regime ditatorial com o Golpe de 1964 e tecnização da Educação Física, etc., cujos efeitos refletiram-se na finalidade do ensino escolar da época, conforme as narrativas dos professores aposentados.

As trajetórias escolares dos professores aposentados também foram marcadas pela ausência de aulas de Educação Física com professor especialista no ‘primário’ e, a partir do ingresso no ‘ginásio’, pelo desenvolvimento de aulas de Educação Física em horários diversos dos horários das aulas relativas aos demais componentes curriculares, além da separação dos alunos por sexo.

Apesar da influência materna e do Magistério como uma opção da época, Romilda mencionou o interesse em cursar teatro no Rio de Janeiro, o qual foi posto de lado em virtude das condições financeiras da família, da realização do Magistério e da posterior atuação profissional na docência. A situação vivenciada por Romilda remete-nos aos relatos de uma das professoras participantes da pesquisa de Corrêa (2009). A professora Maria Cleide Patrizi, cujo processo de escolarização na Educação Básica ocorreu nas décadas de 1940 e 1950, também no Estado de São Paulo, relatou as opções que se apresentavam às mulheres na época e o seu desinteresse por tais opções.

Ao contrário de Romilda, logo após a conclusão da antiga 8ª série, Dinalva apresentou-se convencida pelo curso de Magistério, também declarado por ela como uma opção comum na época. Apesar da reprovação inicial no vestibular para ingresso no curso, a ideia de ser professora sempre a acompanhou. O trecho “[...] queria tanto ser professora ... porque eu já namoro há tempo ... eu já ... é ... é ... certo que eu vou casar [...]” (Costa, 2017, p. 131) ilustra essa relação entre a docência como opção de carreira para as mulheres ‘casadouras’ (Corrêa, 2009). Entretanto, para Dinalva, tal opção relacionava-se ao encantamento com a profissão em virtude das professoras que teve em seu processo de escolarização na Educação Básica.

Do mesmo modo, a valorização do professor ‘Sodré’ e da professora ‘Darli’ foi identificada nas narrativas de Antônio. A importância atribuída à prática de estágio supervisionado pela professora ‘Darli’, em particular à atividade de regência, dialoga com alguns estudos (Tardif & Raymond, 2000; Tardif, 2008) que apresentam uma perspectiva de valorização dos saberes adquiridos pela prática docente.

Corroborando com os relatos de Antônio, consideramos a amizade com seus professores na Educação Básica relatada por Romilda e Dinalva como influências explicadas por Goodson (1995) a respeito do ‘professor preferido’ e visualizadas nas narrativas dos professores referentes às suas trajetórias extraescolares e escolares.

Assim, esses elementos revelam a relação dos saberes com a identidade dos professores e com suas histórias de vida, seu desenvolvimento mediante os relatos, o processo de construção de suas personalidades docentes por meio da identificação dessas influências e as contribuições desse tipo de estudo no que se refere à identidade docente.

Processos formativos profissionais: opção pela docência

No intento de contemplar uma multiplicidade de relações entre os saberes e as trajetórias dos professores de Educação Física aposentados, entendemos, com base em Moita (1995, p. 115), que nenhuma formação acontece no vazio, uma vez que tal processo implica em “[...] troca, experiência, interacções sociais, aprendizagens, um sem fim [sic] de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade da sua história e sobretudo o modo singular como age, reage e interage com os seus contextos”.

A visão dos professores aposentados alusiva à formação profissional contém indícios de uma Educação Física centrada na formação integral do ser humano, conforme explicam Betti (1991) e São Paulo (1990).

Essa preocupação, presente nas narrativas dos professores, fundamenta-se, segundo Antônio, no uso da Educação Física “[...] como instrumento para a formação do pessoal” (Costa, 2017, p. 154), em uma crítica à concepção de Educação Física focada no desenvolvimento físico do indivíduo presente na formação inicial de Romilda, bem como nas possibilidades mencionadas por Dinalva de se “[...] trabalhar com essa criançada o todo, sabe? ... assim delas” (Costa, 2017, p. 162).

Os relatos de Romilda corroboram com as críticas de Antônio a respeito das características da formação inicial da época que, segundo ele, “[...] era formar equipe de atletismo ... era formar equipe de basquete ... era formar equipe de vôlei ... era formar equipe de natação [...]” (Costa, 2017, p. 153). Além da ênfase no desenvolvimento físico e no esporte citados por Antônio e Romilda, Dinalva denunciou a ausência de práticas direcionadas aos alunos da ‘pré-escola’ e do ‘primário’: “[...] falava de 5ª ... de 5ª série em diante ... agora precisei estudar muito a parte de [...] criança [...] isso não tive nada na faculdade [...] precisei estudar muito [...]” (Costa, 2017, p. 169).

Essas narrativas indicam, entre outras questões, uma formação profissional em Educação Física fundamentada em um modelo curricular ‘tradicional-esportivo’, de acordo com Rangel-Betti e Betti (1996). Ao caracterizar os currículos empregados na formação do professor de Educação Física com base na perspectiva atribuída na relação entre teoria e prática, os autores apresentaram e discutiram as críticas e os limites essenciais do currículo ‘tradicional-esportivo’. Segundo Betti (1991), esse modelo curricular iniciado no fim da década de 1960 foi materializado na década seguinte, junto à ampliação dos cursos de formação profissional em Educação Física no País e ao foco na incorporação do esporte à Educação Física escolar.

Para o professor Antônio,

[...] formar o esportista é fácil ... é mais palpável [...] você seleciona ... você monta o time ... agora ... se eu fazer o cidadão ... isso é subjetivo ... e nós não soubemos aplicar isso ... isso aí professor ... essa é uma das falhas do nosso ... ou da nossa formação ... ou da formação do próprio currículo ... não apresentar condições para que caracterizasse bem o papel da Educação Física enquanto cidadania ... não formação de atleta ... porque formar atleta é fácil (Costa, 2017, p. 169).

Além disso, os relatos sugerem um culto à formação de um perfil docente cujas aulas deveriam ser desenvolvidas com base em uma tecnização da Educação Física (Soares et al., 1992; Ghiraldelli Jr., 1997; Borges, 2001).

Concomitantemente, as professoras Romilda e Dinalva relataram a realização de diversos cursos técnicos ao longo de suas trajetórias formativas, em virtude da necessidade de uma maior compreensão a respeito de algumas modalidades que, nas práticas vivenciadas na formação inicial, foram mais trabalhadas com caráter de ludicidade do que de especificidade esportiva.

Ao evidenciarmos essa preocupação com a técnica esportiva, afirmamos, também, inclinações para a transposição didática, capacidade que, nas narrativas de Romilda, deveria ser desenvolvida no exercício da docência. Entendemos as críticas feitas pelos professores de Educação Física à formação inicial com base na análise dos acontecimentos da época, sobretudo o Decreto nº 69.450/1971, que regulamentou a Educação Física como ‘atividade’ com foco na ‘aptidão física’ (Brasil, 1971; Betti, 1991).

De acordo com Betti (1991, p. 100), o período de 1969 a 1979 “[...] assinalou a ascensão do esporte à razão de Estado e a inclusão do binômio Educação Física/Esporte na planificação estratégica do governo”. Esse fato, além de contribuir para a subordinação da área ao esporte (Betti, 1991; Ghiraldelli Jr., 1997; Borges, 2001), com efeitos nas políticas educacionais e de formação profissional, representou uma perspectiva de educação como um elemento que colabora para o desenvolvimento da economia da nação e uma transferência da atenção, até então dedicada ao ensino secundário, para o Ensino Superior. No período de 1964 a 1968, essa modalidade sofreu uma pressão por vagas da classe média e gerou a denominada ‘crise universitária’ e os consequentes ‘Acordos MEC-Usaid2’ entre o Governo e a Agency for International Development (AID), bem como a Lei nº 5.5403, de 28 de novembro de 1968 (Betti, 1991).

O período supracitado por Betti (1991) representou uma ampliação e consequente popularização do Ensino Superior pelas instituições privadas, o que incluiu a Educação Física. É válido mencionar que os três participantes da pesquisa de Doutorado cursaram Licenciatura Plena em Educação Física, no período de 1969 a 1973, em Instituições de Ensino Superior particulares que apresentavam, na época, uma quantidade satisfatória de materiais e espaços disponíveis para a realização das práticas propostas e desenvolvidas por seus professores.

Ao refletir a respeito da formação profissional e do modelo de ‘racionalidade técnica4’ que a tem sustentado, Souza Neto (1999) acrescenta que, além dos interesses do Estado no processo de origem e de constituição das universidades, estas instituições sempre manifestaram (e ainda manifestam), em suas ações formativas, interesses sociais e econômicos de determinadas épocas e lugares. Afirma, ainda, que foi na conjuntura - inicialmente europeia e norte-americana - que as instituições brasileiras se desenvolveram e igualmente promoveram a ascensão da formação e atuação profissional em Educação Física no século XX.

O período de 1969 a 1973, no qual os professores de Educação Física aposentados cursaram a sua Licenciatura, é subsequente, de acordo com o autor, ao questionamento que exigiu, por meio da Lei nº 4.024/1961 (Brasil, 1961), a necessidade de um núcleo de matérias - ‘currículo mínimo’ - e de uma ‘parte complementar’ (determinada pela própria instituição e com consideração pelas características locais) que correspondessem a “[...] uma adequada formação cultural e profissional” (Souza Neto, 1999, p. 61).

Na intenção de fortalecer a formação docente, o autor também declarou a exigência, pela mesma Lei, em relação a uma ‘parte pedagógica’ na composição curricular do curso, característica que já compunha os demais cursos das faculdades de Filosofia. Assim, algumas alterações foram estabelecidas pelo Conselho Federal de Educação (CFE) no contexto da formação docente por meio dos Pareceres nº 292 e nº 298, de 1962, que selecionaram matérias de natureza educacional, introduziram a prática de estágio nos currículos das licenciaturas e exigiram o ‘colegial’ como pré-requisito para a realização dos cursos de Educação Física e de Técnica Desportiva, respectivamente (Souza Neto, 1999). “A implementação dos pareceres emitidos em 1962, entretanto, não se efetivou na prática, e a formação em Educação Física continuou diferenciada das demais licenciaturas” (Borges, 2001, p. 27).

As matérias de natureza educacional selecionadas pelo Parecer nº 292/1962 foram estabelecidas sete anos mais tarde (incluindo a prática de estágio), mediante a Resolução CFE nº 9, de 6 de outubro de 1969, que fixou “[...] os mínimos de conteúdo e duração a serem destinados à formação pedagógica nos cursos de licenciatura” (Souza Neto, 1999, p. 63). Nesse mesmo ano, conforme o autor, as discussões referentes ao ‘currículo mínimo’ na formação profissional em Educação Física foram recuperadas pelo Parecer CFE nº 894, de 2 de dezembro (que fomentou a Resolução CFE nº 69/1969).

Visualizamos a inclusão dessas matérias de natureza educacional nos históricos das professoras Romilda e Dinalva: Pedagogia; Psicologia, Psicologia Aplicada e/ou Psicologia da Educação; Teoria Geral e Filosofia da Educação; Sociologia; História e Metodologia da Educação Física e Didática Geral e da Educação Física. Ambas cursaram Educação Física na mesma instituição, cidade e período, apenas com um ano de diferença uma da outra: Romilda realizou o curso no período de 1969 a 1971, e Dinalva no período de 1970 a 1972. As duas professoras realizaram também os cursos técnicos em basquetebol e voleibol, de um ano de duração e oferecidos pela mesma instituição.

Apesar das semelhanças, as disciplinas Biologia, Fisiologia, Sociologia, História e Metodologia da Educação Física, Didática Geral e da Educação Física, Recreação, Estrutura e Funcionamento do Ensino de 2º Grau, Basquetebol e Voleibol (presentes no histórico de Dinalva), compuseram a grade curricular da turma de Romilda em adaptação para efeito do curso de Técnica Desportiva. Esses dados correspondem ao supracitado Parecer CFE nº 298/1962 que, segundo Souza Neto (1999), propôs, entre outras medidas, além do ‘currículo mínimo’, da ‘parte complementar’ e da ‘parte pedagógica’, a especialização em mais dois esportes nos cursos de Técnica Desportiva. No entanto, o autor acrescentou que “[...] o Parecer CFE nº 298/62 não se transformou em resolução sendo retomado pelo Parecer CFE nº 894/69” (Souza Neto, 1999, p. 63).

Para Souza Neto (1999, p. 64), os esforços da formação inicial em Educação Física consistiam em “[...] preparar profissionais para atuar tanto na escola (ensino fundamental e médio) quanto fora da escola (treinamento esportivo em clubes, escolinha de esporte, academia de ginástica), uma vez que o ensino era entendido em sentido amplo”.

De modo coincidente, os três participantes da pesquisa de Doutorado realizaram os cursos de Magistério, de Educação Física e de Pedagogia. O curso de Pedagogia foi realizado por eles com interesses diferentes. Para Antônio, representou uma sólida base de atuação na docência, independentemente da área de atuação, bem como admitiu outras possibilidades de atuação profissional - direção e/ou coordenação. Para Romilda, significou uma necessidade relativa à sua atuação profissional na qualidade de professora generalista5. E, para Dinalva, o curso representou evolução na carreira docente; todavia, a professora alegou que essa formação nada lhe acrescentou no aspecto financeiro.

Dentre essas trajetórias formativas, cabe mencionar que somente os professores Antônio e Dinalva realizaram Especializações em Metodologia e Didática do Ensino e Voleibol, respectivamente.

As narrativas dos professores Antônio, Romilda e Dinalva revelam, entre tantos elementos, algumas características pessoais como, por exemplo, a observação, a capacidade de iniciativa (participação em Diretório Acadêmico, investimentos próprios na realização de cursos, auxílios prestados aos professores durante a formação inicial, etc.), o anseio por novas aprendizagens, a dedicação e o comprometimento com a formação profissional e a disposição para mudanças.

O fragmento a seguir, retirado de um dos relatos de Romilda, elucida uma dessas características - o constante desejo de perfeição nas ações empreendidas: “[...] queria fazer ... tudo perfeito [...]” (Costa, 2017, p. 177). Essa assertiva sinaliza a presença e a influência de características pessoais na formação profissional dos professores.

Confirmando Antônio, a visão de Romilda e Dinalva em relação ao futuro profissional estava relacionada ao exercício da docência. O envolvimento das professoras em cursos direcionados à Educação Física escolar - recreação, atletismo, metodologia da educação, seminário de esporte e lazer, expansão cultural, Educação Física infantil, aperfeiçoamento em guias curriculares, etc. - pode ser identificado como uma característica que permeou suas trajetórias. Entretanto, na formação inicial dos professores, observamos a não obrigatoriedade da prática de estágio para Antônio, a caracterização dessa prática por Romilda como uma situação bem-sucedida e, para Dinalva, a limitação dessa prática aos jogos escolares.

Do mesmo modo, as análises deste subtópico revelam as múltiplas relações entre os saberes e os processos formativos dos professores por meio da confirmação/desenvolvimento de alguns valores na formação docente (Magistério e Educação Física), a interação de elementos da vida extraescolar e escolar na formação inicial, os sucessos e fracassos intuídos enquanto futuros professores, o desenvolvimento das relações interpessoais, entre outros. Com base nessas histórias de vida, apresentamos, no último tópico, os saberes que emergiram de seus distintos processos formativos.

Considerações finais

Com base no objetivo deste artigo, analisamos as trajetórias formativas de três professores de Educação Física aposentados e apresentamos reflexões subsidiadas por suas histórias de vida. A reconstituição dessas trajetórias retrata as situações vivenciadas e definidas por eles, bem como contribuem para a compreensão da realidade docente por meio da análise de suas histórias de vida.

Ao apreendermos essas trajetórias, identificamos elementos que também as elucidam como processos formativos e ilustram o processo de formação identitária dos professores. Esses elementos manifestam-se mediante suas vidas extraescolares, escolares e formativas, fundamentais no direcionamento de suas narrativas e são, ao mesmo tempo, reveladores dos saberes que foram construídos com base em suas histórias de vida.

Das trajetórias extraescolares, emergiram saberes provenientes das influências familiares e do contexto, bem como as marcas dessas influências na própria vida. As reflexões alusivas à opção pela docência e pela Educação Física, as influências de outros professores - na opção pela docência - e dos trabalhos realizados no contexto familiar também compõem os saberes dos participantes.

Das trajetórias escolares, os saberes emergiram de reflexões a respeito do próprio processo de escolarização durante a Educação Básica e da relação desenvolvida com esse processo na rede pública de ensino, de influências e vínculos familiares nas atividades e relações escolares desenvolvidas e na própria trajetória pessoal e formativa, da avaliação das condições materiais da escola e de conjecturas referentes a práticas de ensino tradicionais vivenciadas enquanto aluno. Emergiram, também, saberes fundamentados nas reflexões relativas a práticas corporais vivenciadas em ambientes escolares e não escolares e práticas escolares diversas, nas influências das características do professor de Educação Física considerado bem-sucedido em épocas e contextos diferentes, nas influências de práticas de ensino de diferentes naturezas, no reconhecimento de algumas características como marcas da pessoalidade e nas reflexões relativas a lacunas do próprio processo de escolarização, com base nas práticas vivenciadas na trajetória escolar.

Das trajetórias formativas profissionais, os saberes que emergiram correspondem aos cursos de Educação Física, Pedagogia e outros cursos de formação continuada realizados pelos participantes. Esses saberes provêm de diversas influências: das práticas corporais voltadas aos níveis iniciais da escolarização, da atuação como professor concomitante à formação inicial, das características pessoais na formação, das interações intensas e das aprendizagens com os colegas de curso, bem como dos elementos da vida extraescolar e escolar e da própria formação. Outros saberes emergiram de reflexões relativas a práticas de ensino tradicionais vivenciadas na faculdade, às finalidades educacionais da Educação Física na formação do aluno e à perspectiva que fundamenta as práticas desenvolvidas. Análises referentes ao próprio investimento na formação continuada, aos próprios sucessos e fracassos enquanto licenciando, às condições materiais da faculdade e às lacunas da própria formação igualmente constituem os saberes dos professores aposentados.

Assim, os elementos identificados nas histórias de vida de Antônio Carlos, Romilda Augusta e Dinalva Aparecida cruzaram o tempo e se manifestaram em suas trajetórias pessoais e formativas (com menor ou maior intensidade), em especial nos saberes construídos por eles. As análises de seus processos formativos evidenciaram a construção dos seus saberes e de suas identidades ao longo de suas trajetórias de vida e de formação. Com base nas entrevistas realizadas com esses professores, foi possível visualizar como seus saberes foram construídos em meio aos sucessos e às dificuldades vivenciados em seus percursos pessoais e formativos.

Entendemos que os saberes emergentes dessas trajetórias podem constituir conteúdos da formação docente, devendo ser, portanto, tematizados nos cursos de formação inicial, nas ações e nos programas de formação continuada, de modo que fundamentem/orientem o professor em sua atuação profissional, com soluções para os desafios presentes na Educação Básica da rede pública de ensino. Dentre esses saberes, destacam-se a opção pela docência, as influências de ‘bons professores’, as reflexões referentes aos próprios processos de escolarização e de formação profissional e de práticas corporais vivenciadas, o reconhecimento de marcas da pessoalidade, as interações e aprendizagens com os pares nas trajetórias formativas e a compreensão das finalidades da Educação Física na formação do aluno.

Corroborando com Borges (2001), afirmamos que os elementos identificados contribuem para refletirmos a respeito dos saberes que emergiram das diferentes trajetórias dos professores aposentados. Esses saberes devem ser considerados nos cursos de formação profissional em Educação Física, com foco na atuação profissional, também, nos anos iniciais. Igualmente, favorecem as políticas públicas de formação docente, uma vez que foram elucidados com base nas contribuições das histórias de vida e da Educação Física.

Embora tenhamos analisado os processos formativos desses professores, estamos cientes da impossibilidade de apreensão e registro de todas as trajetórias que compõem a história de vida de cada um deles. Portanto, faz-se necessário o desenvolvimento de outros estudos alusivos às histórias de vida e aos processos formativos de professores de Educação Física no contexto dos anos iniciais.

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1Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) envolvendo seres humanos da UFSCar - Parecer nº 1.021.253.

2United States Agency for International Development.

3Essa Lei firmou, entre outras medidas, parâmetros organizativos e funcionais para o Ensino Superior em articulação com a Educação Básica (Brasil, 1968).

4“[...] composta por um conhecimento linear, reducionista, ‘científico’, taxionômico, a partir do qual o ‘conhecimento prático’ nada mais é que a mera aplicação do ‘conhecimento teórico’” (Souza Neto, 1999, p. 27-28, grifos do autor).

5O ‘professor generalista’ é o professor polivalente, atuante nos anos iniciais. Localizamos, em São Paulo (2013), a expressão ‘professor polivalente da classe’. Na Seduc, o professor polivalente ocupa o cargo de Professor de Educação Básica I. Neste artigo, optamos pela expressão ‘professor generalista’.

13NOTA: As autoras foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e, ainda, pela aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 12 de Junho de 2021; Aceito: 23 de Fevereiro de 2022

*Autora para correspondência. E-mail: catia.costa@ifms.edu.br

INFORMAÇÕES SOBRE AS AUTORAS Catia Silvana da Costa: graduada em Licenciatura Plena em Educação Física pela Uenp/Jacarezinho. Tem Mestrado e Doutorado em Educação pela UFSCar/São Carlos. É Docente do IFMS/Naviraí. Tem experiência na área da Educação e Educação Física Escolar, nas modalidades de Educação Básica, Educação Profissional, Científica e Tecnológica e Ensino Superior. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4217-6429 E-mail: catia.costa@ifms.edu.br

Maria Iolanda Monteiro: Mestra em Educação Escolar pela Unesp/Araraquara, Doutora pela USP/São Paulo, graduada em Pedagogia pela Unesp /Araraquara. Pós-Doutorado pela Unicamp/Campinas. Docente da UFSCar/São Carlos no curso de Pedagogia e Programa de Pós-Graduação em Educação. Coordenadora de área do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) no curso de Licenciatura em Pedagogia da UFSCar desde 2018. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4534-1437 E-mail: mimonteiro@ufscar.br

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