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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Mar-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.60171 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

O ensino da língua na Corte Imperial: estudo da ‘Grammatica analytica e explicativa da língua portuguesa’, de Ortiz e Pardal (1871)

La enseñanza del lenguaje en la Corte Imperial: estudio de la ‘Grammatica analytica e explicativa da lingua portuguesa’, por Ortiz y Pardal (1871)

Fernando Rodrigues de Oliveira1  * 
http://orcid.org/0000-0002-5609-550X

Márcia Antonia Guedes Molina2 
http://orcid.org/0000-0002-5785-5099

1Universidade Federal de São Paulo, Estrada do Caminho Velho, 333, 07252-312, Guarulhos, São Paulo, Brasil.

2Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil.


RESUMO.

Com os objetivos de contribuir para a produção de uma história do ensino de língua portuguesa no Brasil e de compreender os diferentes aspectos envolvidos na adoção e circulação de dispositivos didáticos para esse ensino no século XIX, focaliza-se neste artigo a análise do livro ‘Grammatica analytica e explicativa da língua portugueza’, de José Ortiz e Candido Pardal, adotado oficialmente para uso nas escolas primárias do Rio de Janeiro entre as décadas de 1870 e 1880. Mediante as contribuições da Nova História Cultural e da História da Ideias Linguísticas, analisou-se a configuração textual dessa gramática, a qual se apresenta estruturada sob a ideia de gramática como arte de escrever e falar bem, tal como pressupunha o modelo greco-latino de base filosófica e geral. Verificou-se que a adoção dessa gramática se deu em meio à ausência total de debate pedagógico ou justificativas metodológicas que explicassem a necessidade de renovação dos materiais até então em uso, o que possibilita presumir que sua aprovação e consequente distribuição esteve ligada a interesses de natureza política e ao espaço de privilégio e poder de decisão que ocupava um de seus autores.

Palavras-chave: ensino de língua portuguesa; gramática; José Ortiz; Candido Pardal; ensino primário

RESUMEN.

Con el fin de contribuir a la historia de la enseñanza de la lengua portuguesa en Brasil y comprender los diferentes aspectos relacionados con la adopción y circulación de dispositivos didácticos para esta enseñanza en el siglo XIX, este artículo se centra en el análisis de ‘Grammatica analytica e explicativa da lingua portugueza’, por José Ortiz y Candido Pardal, adoptada oficialmente para su uso en las escuelas primarias de Río de Janeiro entre las décadas de 1870 y 1880. A partir de los aportes de la Nueva Historia Cultural y la Historia de las Ideas Lingüísticas, se analizó la configuración textual de esta gramática, estructurada en la idea de la gramática como arte de escribir y hablar bien, según el modelo grecolatino. Se constató que la adopción de esta gramática se produjo en medio de la ausencia total de debate pedagógico o justificaciones metodológicas que expliquen la necesidad de renovar los materiales hasta ahora en uso, lo que permite asumir que su aprobación y consecuente distribución estuvo ligada a intereses de naturaleza política y el espacio de privilegio y poder de decisión que ocupa uno de sus autores.

Palabras clave: enseñanza de la lengua portuguesa; gramática; José Ortiz; Candido Pardal; escuela primaria

ABSTRACT.

In order to contribute to the production of a history of Portuguese language teaching in Brazil and to understand the different aspects involved in the adoption and circulation of didactic devices for this teaching in the nineteenth century, this article focuses on the analysis of the book 'Grammatica analytica e explicativa da lingua Portuguesa', by José Ortiz and Candido Pardal. This book was officially adopted for use in primary schools in Rio de Janeiro between the 1870s and 1880s. Based on the contributions of the New Cultural History and the History of Linguistic Ideas, it was analyzed the textual configuration of this grammar, which is structured under the idea of grammar as the art of writing and speaking well, as the Greco-Latin model of philosophical and general basis. It was verified that the adoption of this grammar occurred with the total absence of pedagogical debate or methodological justifications that would explain the need to renew the materials that were in use. This makes it possible to interpret that its approval and consequent distribution was linked to political interests and the space of privilege and decision-making power occupied by one of its authors.

Keywords: Portuguese language teaching; grammar; José Ortiz; Candido Pardal; primary school

Introdução

Após a proclamação da Independência, em 1822, o Rio de Janeiro, como sede do governo Imperial, passou a gozar de importante prestígio político, econômico e cultural, bem como foi alvo de um crescimento demográfico maciço decorrente do aumento dos processos de migração e imigração. Em face disso, dirigentes imperiais, médicos, higienistas e intelectuais oitocentistas passaram a apontar para a necessidade de modernização da capital do Império, de modo a transformar e uniformizar hábitos e costumes da população heterogênea que passava a ocupar a cidade (Schueler, 2002).

Para isso, nos anos subsequentes ao reconhecimento da Independência por parte de Portugal, o governo Imperial do Brasil levou a cabo uma série de medidas voltadas à reorganização do município sede da Corte, com a finalidade de conquistar sua hegemonia e possibilitar a construção do almejado projeto de Estado-Nação (Teixeira, 2008).

No conjunto dessas medidas, a instrução pública ganhou importante destaque, dada a “[...] responsabilidade pela formação do povo, e consequentemente pelo bom desenvolvimento do Estado Imperial” (Teixeira, 2008, p. 5). O debate sobre a necessidade de educar as crianças tornou-se pauta no Parlamento, na imprensa, em associações e em conferências públicas (Schueler, 2002), de modo a problematizar os caminhos para a civilização, alcance do progresso e conservação da ordem imperial via educação do povo (Martinez, 1998).

Nesse propósito, em 1854, o então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, Luiz Pedreira de Couto Ferraz, aprovou o Decreto nº. 1.331-A, de 17 de fevereiro, o qual estabeleceu novo regulamento para reformar o ensino primário e secundário do Município da Corte.

Dentre as diversas mudanças promovidas por esse decreto, instituiu-se para essas escolas a obrigatoriedade da inspeção dos livros escolares a serem adotados oficialmente, uma vez que esses objetos compreendiam os principais instrumentos de escolarização e de promoção do projeto civilizatório do século XIX. Em face da nova legislação, a segunda metade do século XIX foi marcada por disputas e debates em torno da aprovação ou não de novos livros para uso no ensino primário da Corte, sendo um desses a ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’, do médico José Ortiz e do professor Candido Matheus de Faria Pardal. Essa gramática integrou, no final do século XIX, o seleto rol dos livros e compêndios aprovados para uso o ensino da língua nas escolas primárias da Corte, em substituição a uma gramática que vinha sendo usada há mais de duas décadas.

É nesse contexto que se situa este trabalho, que tem como objetivo contribuir para a produção de uma história do ensino de língua portuguesa no Brasil e compreender os diferentes aspectos envolvidos na adoção e circulação de dispositivos didáticos para esse ensino no século XIX. Para isso, pautamo-nos nos pressupostos teóricos da Nova História Cultural, que entende ser o trabalho historiográfico não uma reconstrução do passado, mas produção de um discurso (uma escrita) sobre um evento situado no tempo, escolhido pelo historiador como um acontecimento (Certeau, 1976).

Partindo desse ponto de vista, a vertente da História Cultural adotada aqui é aquela que “[...] tem por objecto principal identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.” (Chartier, 1990, p. 16-17), o que demanda a tentativa de avanço em relação à história econômica e social (Chartier, 2009). Para isso, busca-se:

[...] fazer com que o objeto [investigado] apareça no emaranhado de suas mediações e contradições; recuperar como este objeto foi constituído, tentando reconstituir sua razão de ser ou aparecer a nós segundo experiência social, em vez de determiná-lo em classificações e compartimentos fragmentados. (Vieira, Peixoto, & Khoury, 1995, p. 10-11).

Em face da abordagem histórica, este artigo centra-se na análise de fonte documental inédita, a qual funcionam como um inconsciente cultural e, por isso, não é inócua (Le Goff, 2003, p. 538). São, antes de tudo:

[...] o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuaram a viver, talvez esquecidas, durante as quais continuou a serem manipuladas, ainda que pelo silêncio.

De forma articulada a essa perspectiva histórica, também nos pautamos nas contribuições da História das ideias Linguísticas, pois:

No grande jogo contemporâneo das comparações interdisciplinares, parece bastante evidente, ou melhor, natural, que linguística e história devam ser confrontadas; nesta ciência do movimento dos povos que a história institui, seria estranho que não desempenhasse seu papel a ciência que estuda esse meio essencial de comunicação, as linguagens. (Chevalier, 1976, p. 84).

A História das ideias linguísticas compreende uma reflexão metalinguística que permite compreender a disseminação de saberes fundados na ciência da linguagem, especialmente a tradição gramatical (Auroux, 1989, p. 12). Dessa maneira,

Todo conhecimento é uma realidade histórica, sendo que seu modo de existência real não é a atemporalidade ideal da ordem lógica do desfraldamento do verdadeiro, mas a temporalidade ramificada da constituição cotidiana do saber. Porque é limitado, o ato de saber possui, por definição uma espessura temporal, um horizonte de retrospecção. O saber (e as instâncias que o fazem trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente com frequência; ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro.

Do ponto de vista analítico da fonte documental e da construção de uma integibilidade sobre o evento do passado aqui enfocado, pautamo-nos na perspectiva discursiva e dialógica da linguagem, com base na análise do que Mortatti (2000, p. 31, grifos da autora) denomina configuração textual. Segundo essa autora, por meio da análise da configuração textual busca-se a “[...] construção de uma representação, a partir da problematização de outras representações construídas e tomadas como corpus, mas que não devem ser confundidas com o objeto de investigação, uma vez que não são ‘dados’ e , só falam, quando se sabe interrogá-los’”. Para isso, mais do o que a simples aplicação de técnicas, essa operação interpretativa enfoca:

[...] as opções temático-conteudísticas (o quê?) e estruturais-formais (como?), projetadas por um determinado sujeito (quem?), que se apresenta como autor de um discurso produzido de determinado ponto de vista e lugar social (de onde?) e momento histórico (quando?), movido por certas necessidades (por quê?) e propósitos (para quê), visando a determinado efeito em determinado tipo de leitor (para quem?) e logrando determinado tipo de circulação, utilização e repercussão (Mortatti, 2000, p. 31).

Reforma ‘Couto Ferraz’, o controle na circulação dos livros nas escolas da Corte e a gramática de Ortiz e Pardal

Como mencionado, em 1854, com a instauração do Decreto nº. 1.331-A, de 17 de fevereiro, conhecido como ‘Reforma Luiz Pedreira Coutto Ferraz’, dentre as diversas mudanças promovidas no ensino primário e secundário do Rio de Janeiro, instituiu-se para essas escolas a obrigatoriedade da inspeção dos livros escolares a serem adotados oficialmente. Conforme consta no artigo 4º desse Decreto, competia ao Inspetor Geral e ao Conselho Diretor1 rever todos os livros até então adotados no município do Rio de Janeiro, fazê-los corrigir e, se necessário, substituí-los por novos livros. Com isso, conforme disposto no artigo 56, a partir de então somente os materiais aprovados e autorizados pela Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte poderiam ser oficialmente admitidos para uso nas escolas do Rio de Janeiro.

Em face dessa nova regulamentação, os livros e compêndios escolares em circulação ou que viriam a ser produzidos deviam se ajustar à definição das novas2 matérias determinadas para o ensino primário elementar3 da Corte, conforme o estabelecido no artigo 47 do decreto de 1854. Compreendiam essas matérias: “[...] instruçcção moral e religiosa [...]”, “[...] leitura e escripta [...]”, “[...] noções essenciaes da grammatica [...]” e “[...] systemas de pesos e medidas do município” (Brasil, 1854, s/p.). Apenas para as escolas voltadas ao ensino feminino, além dessas, deveria ser acrescida a matéria sobre “[...] bordados e trabalhos de agulha”4.

Além do alinhamento à nova organização do ensino primário elementar, o processo de aprovação dos livros escolares a partir de 1854 passou a seguir rito específico, que compreendia a elaboração ou revisão dos livros por parte dos autores, avaliação dos originais por pessoas indicadas pelo Conselho Diretor (normalmente professores ‘idôneos’ e de ‘confiança’ do governo, com destacada atuação nas escolas primárias cariocas) e a publicação dos originais pelas tipografias, editoras ou livrarias da época (Teixeira & Schueler, 2012). Para os livros devidamente aprovados após esse rito, eram conferidos aos seus autores o pagamento de um prêmio por parte do governo imperial, tal como previsto no artigo 95 do Decreto de 1854.

No caso de alguns livros e compêndios submetidos para aprovação do Conselho Diretor, “[...] quando não eram imediatamente considerados impróprios para adoção das escolas, recebiam sugestões de alteração, para que se ajustassem a modelos pedagógicos desejados [...] e, com isso, [pudessem] concorrer aos prêmios referidos no regulamento” (Teixeira, 2008, p. 62). Com relação a esses livros, tratava-se de um tipo de aprovação condicionada, ficando sob a responsabilidade dos autores realizar as devidas correções e ajustes, para que se efetivasse a premiação e a ‘chancela’ de uso por parte da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte. Esse foi o caso de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’, de Ortiz e Pardal.

Em 1872, em sessão ordinária do dia 3 de agosto, o Conselho Diretor da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte ocupou-se do ‘juízo crítico’ dos examinadores de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’, de Ortiz e Pardal, de modo a apontar “[...] os ligeiros defeitos que em geral reconhecia haver no compêndio, a fim de ser delles expurgado, quando impresso para uso dos alumnos das escolas publicas primarias” (Brasil, 1872, p. 62)5.

Devidamente notificados e tendo os autores acatado os ajustes indicados, ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ foi oficialmente aprovada pelo Conselho Diretor em sessão do dia 24 de setembro de 1872, ocasião em que se também determinou que ela substituísse a gramática até então em uso, de autoria de Cyrillo Dilermando da Silveira:

Tendo os professores Dr. José Ortiz e Cândido Matheus de Faria Pardal aceitado as idéas e procedido às alterações recommendadas pela commissao revisora, o conselho julgou a grammatica da lingua portugueza, de que são autores, preferível, assim emendada, ao compêndio de grammatica também da lingua portugueza de Cyrillo Dilermando da Silveira, e opinou que nessa conformidade se representasse ao governo imperial, a fim de que o primeiro dos ditos compêndios substitua o segundo nas escolas publicas primarias do municipio da corte. (Brasil, 1872, p. 64).

Em vista desse processo, ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ teve sua 2ª edição revista publicada em 1873, pela Livraria Nicolau Alves, passando a ser imediatamente fornecida nessa reedição para as escolas primárias elementares da Corte mediante contrato celebrado entre a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte e os autores. Após a 2ª edição, foram publicadas: em 1876, a 3ª edição; em 1884, a 5ª edição; e em 1888, a 6ª edição, todas pela Nicolau Alves/Alves e Cia Editores6 e todas com reformulações e ampliações.

Sobre a obra: as definições conceituais de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’

Impressa em capa dura, formato pequeno, com variação de páginas entre 100 e 150, conforme a edição, ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ parte da definição de que a gramática é a ‘arte de fallar e escrever corretamente’, subdividindo o estudo dessa ‘arte’ em quatro partes: ‘etymologia’; ‘syntaxe’; ‘ortographia’; e ‘prosódia’. Nesse sentido, informam Fávero e Molina (2006, p. 94): “[...] trata-se da mesma divisão encontrada em gramáticos do século anterior, como Reis Lobato, e é herança da Idade Média, talvez desde Prisciano, divisão essa que permanece até o século XVI (Nebrija, João de Barros) ou até os séculos XVIII e XIX”.

Ainda com relação à definição de gramática apresentada no livro, Orlandi (2001, p. 61) explica que “[...] nesse período, gramática é considerada uma arte, na continuidade da conceituação oriunda do modelo greco-latino [...] e ars é tradução do grego, empregada no sentido de ofício, habilidade. Quando a quadripartida divisão, essa, também atendendo ao modelo greco-latino, reafirma sua função: ensinar a falar e escrever corretamente”.

Etimologia

Os autores dão início à primeira parte - ‘etymologia’ -, informando que ela é a parte da gramática que ensina a conhecer e a classificar palavras.

Classificam, então, as palavras quanto à sua formação, em primitivas e derivadas; e quanto à sua natureza, em dez: substantivo, artigo, adjetivo, pronome, verbo, particípio, advérbio, preposição, conjunção e interjeição. Essa classificação é muito similar a de outras gramáticas brasileiras do período.

Importa apontarmos aqui que a divisão em dez classes indica dois fatos antagônicos: ao mesmo tempo em que remonta a Aristóteles, em sua Metafísica, com o categorialismo; mostra-nos modernidade, porque muitos estudiosos bastante calcados no latim não consideravam nem o artigo, nem o adjetivo ou pronome, inscrevendo-os sob título ‘Nome’, pontuando apenas oito classes etimológicas. Contudo e antagonicamente, na sequência, define ‘substantivo’ como “Substantivo ou ‘nome’ é a palavra que significa um ou mais entes [...]” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 5, grifo do autor), embora releve as classes já citadas separadamente.

Seguem-se regras para determinar gênero e plurais dessa classe, atendendo ao proposto pela obra: ensinar a falar e escrever corretamente, ou seja, estabelecendo as devidas prescrições:

‘Regras para a formação do plural dos nomes’

49. O plural dos nomes acabados em vogal ou n forma-se, acrescentando-se um s ao singular.

Ex. ‘pai-pais, regimen-regimens’.

(Ortiz & Pardal, 1884, p. 11, grifos do autor).

Segue-se o ‘artigo’, que é definido de forma bastante lacônica pelos autores: “Artigo é a palavra que precede os nomes para anunciar que eles são empregados em um sentido determinado [...]” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 13); e só elencam o ‘a’ e ‘o’. Contudo, apontam que o artigo ‘el’ só é usado antes da palavra ‘rei’, calcados, então, na gramática espanhola e atendendo à necessidade do contexto: éramos um país de regime imperial, saber como bem se dirigir ao Monarca era de extrema relevância.

Na sequência, apresenta-se o ‘adjetivo’. Para os autores, essa classe é a que se junta ao nome ou a ele se refere para significar uma qualidade ou circunstância. Com isso, o adjetivo é dividido em qualificativos e determinativos.

Fávero e Molina (2006) explicam que a distinção entre substantivos e adjetivos vem da gramática medieval, uma vez que Prisciano usava o termo adjectivum no sentido qualificativo, sem, contudo, considerá-lo uma classe independente.

Calcados no ideal de ensinar a falar e escrever a Língua Portuguesa, seguem-se regras de como formar o plural, de como formar o superlativo absoluto sintético, entre outras.

Vale pontuar que os autores assim concebem o adjetivo determinativo num entendimento que, hoje, se tem com relação à classe dos Pronomes e dos Numerais: “Os adjectivos determinativos dividem-se em ‘numeraes’, ‘possesivos’, ‘demonstrativos’, ‘relativos’ e ‘indefinidos’” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 22, grifos do autor).

Após definição do adjetivo, os autores apresentam os ‘pronomes’. Para eles, essa classe é a que “[...] se põe ordinariamente no lugar do nome [...]” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 27), assim os classificando: “Os pronomes dividem-se em ‘pessoaes’, ‘possessivos’, ‘demonstrativos’, ‘relativos’ e ‘indefinitos’” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 27, grifos do autor).

Fazendo coincidir os adjetivos determinativos, porém: como adjetivo, considera ‘de mim’, ‘de ti’, ‘de si’, ‘de nós’; e, como pronomes, ‘meu’, ‘teu’, ‘seu’, ‘nosso’.

Depois, vem a classe do ‘verbo’. Na toada de Port-Royal, Pardal e Ortiz explicam que o verbo é a “[...] palavra que afirma alguma ação [...]” e acrescentam “[...] qualidade ou circunstância que pertence, sempre ou em certo tempo a um sujeito [...]” (Pardal & Ortiz, 1884, p. 33), agora acompanhando Aristóteles, mostrando-nos, portanto, filiações diferentes (mas que nos parecem complementares) para a mesma categoria.

Cavalieri (2014, p. 52) aponta que: “No Brasil, decerto, os parâmetros da gramática filosófica foram extremamente atenuados pela pouca perspectiva doutrinária de nossos gramáticos, mais interessados em criar manuais normativos com regras do bem-dizer”. Era exatamente essa a proposta dos autores: produzir um compêndio escolar com fins utilitários para aquela sociedade formada por uma grande massa de analfabetos e que começava a se identificar como nação.

Continuando o estudo da etimologia, os autores tratam, inserindo o que hoje compreendemos fazer parte da sintaxe, do ‘Sujeito’, do ‘Atributo’ e do ‘Complemento’ e voltam ao verbo, esclarecendo: “Os verbos dividem-se em ‘verbo substantivo e verbo adjectivo ou atributivo’” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 38, grifo do autor).

Novamente a visão bipartida dessa classe: o verbo substantivo é o que, para eles, não apontam para nenhum atributo e são dois: o ser (como os racionalistas) e o estar. Já o verbo atributivo divide-se em “[...] transitivos ou ativos, intransitivos ou neutros, e em passivos” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 39). Explicam que: “Verbo adjectivo ou attributivo é o que em si tem incluídos um attributo e o verbo substantivo” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 39). Nota-se, dessa maneira, o apego à gramática latina.

Sublinham três tempos: presente, pretérito e futuro e cinco modos: indicativo, condicional, imperativo, conjuntivo ou subjuntivo e infinitivo ou infinito. Como nossos estudiosos atuais, trazem as três conjugações e, em nota, lembram que alguns querem a quarta e que a essa pertencem os verbos em -or.

Em nota também inserem a seguinte ‘Advertência’:

Todos os verbos regulares tomão sempre as finaes da conjugação a que pertencem. Para conjugar qualquer verbo regular, tomará o estudante as finaes dos verbos que vamos conjugar para modelo, e as collocará adiante das radicaes do verbo que quiser conjugar. Para mais facilitar este trabalho estão as finaes dos verbos modelos separados das radicaes por uma risca de união (Ortiz & Pardal, 1884, p. 48).

Coadunando-se com a função de ensinar a falar e escrever corretamente, os autores apresentam inúmeras conjugações, que deviam ser decoradas e dadas ao mestre. A essa classe de palavra os autores dedicam mais de 30 páginas, mostrando-nos seu apego à tradição. Recordemo-nos com Plutarco ao afirmar que, enquanto não se pronunciar o verbo, não se terá dito nada.

Depois do verbo, apresenta-se a classe do ‘particípio’, explicando que é a parte da palavra que pertence tanto ao verbo quanto ao adjetivo, partindo-os em presente e passado, como ocorre na gramática latina.

Na sequência, tratam do ‘advérbio’, ‘preposição’, ‘conjunção’. Em relação a essas classes, muito se aproximam das definições encontradas hodiernamente. Relevante parece-nos a conceituação da ‘interjeição’: “É a palavra invariável que resume uma ou mais orações. Ex. Caluda! Que significa: cala-te” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 75).

Os autores finalizam o estudo da etimologia com modelos de análises lógicas e propostas de inúmeros exercícios de análise, como no exemplo abaixo:

EXERCÍCIO 2º

PEDRO ESTÁ ESTUDANDO A LIÇÃO DE FRANCEZ

Analyse grammatical

Pedro é nome próprio masculino do singular

está é verbo substantivo estar, irregular, da 1ª conjugação; falla na terceira pessoa do singular de presente do indicativo

estudando é o particípio presente do verbo adjectivo ou atributtivo estudar, regular da primeira conjugação

a é artigo feminino do singular

lição é substantivo commum feminino do singular

de preposição

Francez é substantivo próprio virtual masculino singular

Analyse logica (simplificada conforme os ns. 131 a 149).

O sujeito desta oração é Pedro; o verbo é ‘está’; o attributo é estudando; o complemento directo de estudando é a lição; o complemento restrictivo de lição é de Francez.

(Ortiz & Pardal, 1884, p. 77-78, grifo dos autores).

Sintaxe

Com relação à segunda parte - ‘syntaxe’ -, os autores dão início apresentando a seguinte definição: sintaxe é a parte da Gramática que ensina a compor a oração e o período gramatical, de modo a haver dois períodos - período simples e composto -, bem aos moldes das gramáticas hodiernas.

Por oração, seguindo o modelo de Port-Royal, propõem: “Oração é o juízo ou pensamento expresso por meio de um sujeito, um verbo e um atributo, com ou sem complementos” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 108). Acrescentando que a oração também é chamada de proposição.

Vale lembrar que Arnauld e Lancelot (1992, p. 28, grifo do autor) sublinham:

Todos os filósofos ensinam que em nosso espírito há três operações: CONCEBER, JULGAR e RACIOCINAR (...) CONCEBER é não mais que um simples olhar sobre as coisas (...) JULGAR é afirmar que uma coisa que concebemos é ou não é tal [...] RACIOCINAR é servir-se de dois julgamentos para produzir um terceiro [...] O julgamento que fazemos das coisas, como quando digo; ‘A terra é redonda’ se chama PROPOSIÇÃO.

Ainda calcados nos racionalistas, os autores explicam: “Quando em uma oração faltam palavras, tiram-se elas da outra oração da mesma espécie, e na falta desta suprem-se por meio de regras ou raciocínio” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 108).

Continuam com a classificação das orações em absolutas, acessórias incidentes restritivas e explicativas (ou circunstanciais). Propõem ainda uma outra classificação em plenas, elípticas, pleonásticas, inversas e implícitas.

Seguem-se as partições do ‘sujeito’ em simples e composto; e tratam mais uma vez do ‘verbo’, reafirmando: “O verbo de uma oração é sempre o verbo substantivo, ora separado do atributo, ora incorporado a ele nos verbos adjetivos” (Ortiz & Pardal, 1884, p. 113), confirmando suas filiações à gramática racionalista.

Depois é a vez do atributo e do complemento, do aposto e do vocativo. Seguem-se noções de ‘Sintaxe Natural e Figurada’, oferecendo regras de concordância e regência, atendendo ao proposto: ensinar a escrever e falar corretamente a Língua Portuguesa.

Reafirmando o propósito da obra, traz os ‘Vícios de Linguagem’.

Encerram este capítulo com modelos de análise sintática ou lógica, como no exemplo abaixo:

Deos, que é justo, premeia os que se não se desvião do caminho da virtude.

É um período composto, porque consta de mais de uma oração. Consta de tres orações: a 1ª é ‘Deos premeia os’: a 2ª. é ‘que é justo’; a 3ª é ‘que se não desvião do caminho da virtude’.

A primeira oração [...] é principal, porque não é suj. nem attr. nem compl. de outra, mas tem outras que lhe servem de complementos - É plena, porque tem todas as palavras que devem compor. - Não é inversa, porque não tem palavras fóra dos seos logares.

O suj. é ‘Deos’, simples porque consta de uma só palavra significando um só ente; complexo, porque tem o complemento ‘que é justo’. - O v. é ‘premeia’, concordando em numero e pessoa com seu suj. e incluindo em si o verbo ‘está’ ou ‘é’, e o attr. ‘premiando’. - O attr. é ‘premiando’, simples porque consta de uma só qualidade pertencente a um sujeito; complexo porque tem o compl. ‘os que se não desvião do caminho da virtude’.

A segunda oração [...] é accessoria explicativa ou circunstancial, porque declara a circunstância chamada ‘apposição’, e porque póde ser tirada do período sem que fique por isso alterado ou falso o sentido das que ficão.

[...]

A terceira oração [...] é restrictiva determinativa, porque serve de compl. restrictivo de outra; e porque não se póde tirar do período sem alterar o sentido da que fica. [...]

(Ortiz & Pardal, 1884, p. 134-135, grifo dos autores).

Ortografia e prosódia

Na terceira parte, relativa à ‘orthographia’, desenvolve-se a parte da gramática que se destina a ensinar a escrever as palavras, fazendo uso correto das letras, sinais de pontuação e acentos. Em vista disso, são apresentadas as regras ortográficas, regras de uso das letras maiúsculas, regras de separação de silabas, figuras de dicção, uso das pontuações e dos acentos.

Na sequência, na quarta e última parte, aborda-se a ‘prosódia’, definida como ‘parte da gramática que ensina a bem pronunciar as palavras’. Para isso, são explorados aspectos relativos ao valor sonoro das sílabas, de modo a ensinar a contagem e identificação do valor que elas têm em textos poéticos.

Cumpre destacar, por fim, que a partes sobre ortografia e prosódia não apresentam modelos de exercícios ou de análise, como nos casos anteriores. Constam apenas alguns exemplos em referência aos conceitos explorados sobre ‘orthographia’ e ‘prosódia’.

O ensino da gramática e a moral cristã

Ao se analisar os modelos de análise e de exercícios presentados para o ensino da ‘etimologia’ e da ‘sintaxe’, verifica-se que grande parte das orações utilizadas buscam reforçar uma intenção religiosa, em consonância com os princípios que regiam o ensino primário elementar estabelecido desde 1854.

Conforme consta no Decreto nº 1331-A, a instrução moral e religiosa compreendia a primeira matéria do ensino primária das escolas públicas, uma vez que o governo Imperial era assumidamente cristão católico. Por esse motivo, os únicos livros que não careciam de aprovação pelo Inspetor geral e pelo Conselho Diretor eram os destinados ao ensino religioso, pois eram determinados pelo Bispo Diocesano.

Também como estabelecido nesse decreto, professores que, dentre outros aspectos, ofendessem a moral católica cristã não poderiam ser nomeados para cargos públicos. Dessa maneira, aqueles que não professavam dessa fé deveriam ter em seus estabelecimentos de ensino um sacerdote, para comunhão dos alunos.

Apesar de a moral religiosa compreender ensino específica na escola primária oitocentista, o que se verifica em ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ é a busca de sintonia com a fé estabelecida como oficial pelo governo Imperial, possivelmente como forma também de gerar maior aceitabilidade pelos responsáveis pela sua avaliação quanto ao uso nas escolas oficiais da Corte.

Entre as frases analisadas, tem-se algumas que fazem referência direta à moral Católica, como em: ‘Deus é justo’; ‘Glorificar-se de uma falta é aggraval-a’; ‘Caim matou Abel ou a Abel’; ‘Comei com Moderação’; ‘Arrependo-me do pecado’; ‘Pedro é o mais modesto dos homens’. Nesse sentido, associado ao ensino gramatical, a gramática em análise pressupunha um tipo de reforço de ensinamentos voltados à formação moral e religiosa cristã, com referência direta a conteúdos bíblicos defendidos e assumidos pela coroa.

Esse aspecto denota alinhamento de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ à estratégia do Governo Imperial de impor determinados ‘usos’ do saber transmitido pela escola, mediante relações de força que tornam possíveis certo aculturamento e conformação do público alvo (Certeau, 2014). Com isso, embora destinada ao ensino da língua, essa gramática alia o seu projeto instrutivo ao ideal civilizatório da Corte Imperial, traduzindo determinadas representações sociais e culturais em lições de natureza linguística, que se queria inculcar nas crianças desde muito cedo (Chartier, 1990).

Do intendo renovador ao efetivo sentido conservador: a chancela para o uso de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’

Outro aspecto relevante de se observar com relação à aprovação e adoção da gramática de Ortiz e Pardal nas escolas da Corte Imperial é que, apesar de os dados do Conselho Diretor indicarem sua recomendação somente em setembro de 1872, no ‘Relatório dos trabalhos que foram lidos e o debate oral que teve lugar nas conferências pedagógicas’, documento produzido em 4 de fevereiro de 1873, há a informação de que esse compêndio já estava em uso nas escolas da capital do Império desde janeiro de 1873.

Nesse documento, constituído pelos discursos dos professores que participaram das Conferências Pedagógicas7 do ano de 1873, verifica-se em todos eles a menção à ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’, de Ortiz e Pardal, como o livro adotado nas escolas da Corte para o ensino da língua. Ao final desses discursos, no ‘Resumo e considerações geraes’, consta a informação que até aquele momento a gramática de Ortiz e Pardal não era alvo de reclamação, de modo a satisfazer “[...] amplamente às necessidades do ensino” (Brasil, 1873, p. 28).

Embora nesse documento conste uma avaliação sobre a adequação da gramática de Ortiz e Pardal para o ensino primário elementar da Corte, no relatório dos ‘Compendios e Materiais do Ensino’, produzido em 1874, registra-se críticas a ela, sobretudo pela extensão e pelo método pouco adequado às crianças. Explica-se nesse relatório a insatisfação pronunciada pelos professores da época, que consideravam ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ adequada apenas para a 7ª e 8ª classes. Para eles, nas classes iniciais eram preferíveis as gramáticas de Cyrillo Dilermando e Polycarpo8.

O registro dessa observação no relatório ‘Compendios e Materiais do Ensino’ se deu em meio a um detalhado levantamento feito pela comissão visitadora das escolas públicas e estabelecimentos particulares de instrução primária e secundária da Corte, comissão essa nomeada pelo Conselheiro Inspetor Geral da Instrução, sobre a situação de cada matéria prevista a partir do Decreto de 1854. Ao se observar o contexto geral do ensino nas escolas cariocas, a comissão apontou em seu relatório que:

Em geral os professores dão a umas matérias amplidão, que ellas não devem ter, a outras, quasi que não contemplam no ensino [...] Os methodos não são uniformes; os processos parciais tambem differem; emfim, não ha homogeneidade no ensino das diversas matérias, contra o preceito legal, de sorte que um alumno que passar de uma para outra escola encontra diffente methodo de ensino, o que torna para ele um embaraço, e vai argumentar a difficuldade com que naturalmente luta (Martins, 1874, p. 40).

Dessa maneira, especificamente sobre o ensino da gramática, a comissão apontou em seu relatório que ela vinha constituindo ‘estudo mais repulsivo’, quando deveria ser dos mais “[...] animados e agradáveis” (Brasil, 1874, p. 43). Apesar de a gramática gozar de papel essencial e indispensável para o ‘desenvolvimento da inteligência’, a comissão avaliou que a escola a ensinava puramente com a memorização de regras, sem explicações que rompessem com a ‘monotonia da esteril recitação’. Explica o relator da comissão que: “Estudar assim não é aprender, accumular preceitos sem apllicação é sobrecarregar a memoria sem proveito algum. Esse estudo carece de completa reforma, principalmente nas escolas de meninas onde, por assim dizer, não existe” (Martins, 1874, p. 43).

Em virtude desse cenário, a comissão apontou um direcionamento sobre o ensino da gramática, explicitando que:

A escola elementar não tem por missão ensinar e devassar as difficuldades grammaticaes; seu objeto limita-se a fazer fallar os meninos, com á devida correcção, o que se obtem, não por meio de analyses e de regras complicadas, mas por meios práticos, e definições e regras simples, que os meninos, sendo bem dirigidos, chegarão a descobrir e a formular, por si mesmos (Martins, 1874, p. 44).

Por esse motivo, a comissão entendia que o ensino da gramática deveria se pautar nas práticas de leitura, sendo essa a base de todo o ensino:

A leitura póde servir de base para o estudo da grammatica: lido um trecho, depois de devidamente explicado, o professor chamará a attenção dos alumnos para as diversas partes do discurso, contidas nesse trecho, e mostrará a funcção de cada uma; depois fará a applicação que a sua experiencia e saber lhe indicarem, e terminará a lição fazendo com que os alumnos exponham, um por um, o assumpto que acabaram de ler, aproveitando então para corrigir-lhes os defeitos de dicção, de grammatica, e de construcção , que tiverem commettido (Martins, 1874, p. 44).

Como se pode verificar, embora o problema do ensino de gramática fosse mais amplo e ultrapassasse a questão dos compêndios adotados, cabe destacar que a avaliação elogiosa sobre a gramática de Ortiz e Pardal registrada no relatório das Conferências Pedagógicas de 1873, à despeito das críticas dos professores, pode estar relacionada às “[...] relações de forças que se torna[ram] possível [...]” (Certeau, 2014, p. 93) pelo lugar de ‘poder’ e ‘querer’ ocupado por Candido Matheus de Faria Pardal na administração da Corte.

Professor do Externato do Imperial Colégio de Pedro II desde 1864, no ano de 1872, conforme aponta Teixeira (2008), Pardal foi nomeado pela Câmara Municipal para ser diretor das escolas por ela criadas. Também entre 1872 e 1873 foi nomeado pela Inspetoria Geral presidente dos exames preparatórios de língua, bem como presidiu e participou de três sessões das Conferências Pedagógicas do ano de 1873.

Sobre essas Conferências, Teixeira (2008) explica que para uma delas, referente ao ponto sobre métodos e eficácia do ensino de primeiras letras, Pardal elaborou um extenso trabalho, que resultou numa proposta de organização das matérias do ensino primário elementar. Nessa proposta, Pardal propõe o ensino da gramática no 3º ano, em substituição a conteúdos explícitos de leitura e escrita. Com isso, pautando-se no método de ensino simultâneo, ele propôs a organização do trabalho tem torno do ensino da gramática dividido em 12 meses, com a seguinte programação:

GRAMMATICA

1.ª classe. - Etymologia, substantivos ou nomes, suas propriedades, gráos, generos, números e affixos; conjugação dos verbos auxiliares.

2.ª classe. - Artigo, adjectivos, seus gráos de significação, 1ª conjugação de verbos auxiliares.

3.ª classe. - Pronome, 2ª conjugação de verbos auxiliares, conjugação de verbos irregulares da 1ª conjugação, notando quaes os tempos e pessoas irregulares.

4.ª classe. -Verbo, seu sujeito grammatical attributo, complemento e suas divisões, 1ª conjugação de verbos irregulares.

5.ª classe. - Particípios, advérbios, preposições, conjugações e interjeições, 1ª conjugação de verbos irregulares, notando quaes os tempos e pessoas irregulares.

6.ª classe. - Recapitulação das cinco classes precedentes.

7.ª classe. - Analyse grammatical, exercicio em caderno, 2ª conjugação de verbos irregulares, notando quaes os tempos e pessoas irregulares.

8.ª classe. - Analyse grammatical, exercicios em cadernos, 2ª conjugação de verbos irregulares.

9.ª classe. - Syntaxe e suas divisões; conjugação de verbos irregulares da 3ª conjugação.

10.ª classe. - Analyse syntaxica, exercicios em cadernos, 3ª conjugação de verbos irregulares.

11.ª classe. -Analyse syntaxica em clássicos, orthographia, conjugação dos verbos irregulares da 1ª conjugação.

12.ª classe. - Recapitulação geral. - Exames.

(Pardal, 1873, p. 7).

O que se verifica com relação aos dados apresentados sobre o ensino de gramática na Corte é que a adoção de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ como compêndio oficial para esse ensino se deu numa complexa rede de sociabilidades (Sirineli, 1986) que envolveu, em certa medida, o prestigio de Pardal no âmbito da instrução primária elementar do Rio de Janeiro. Dessa maneira, a partir de um movimento de ‘inclusões’ e “[...] exclusões, marcada pelo estabelecimento de fidelidades e amizades (inclusões) na esfera adminstrativa e promovendo cisões e debates na esfera pedagógica, Padal utiliza-se do seu lugar de privilegiado nesse ‘pequeno mundo estreito’, tornando possível e acessível sua produção intelectual” (Sirinelli, 1986, p. 248-249, grifo do autor).

Dessa maneira, embora essa gramática tenha substituído a de Cyrilo Dilermando, em uso por mais de duas décadas, no que compete à sua proposta linguística não se verifica inovações ou deslocamentos com relação à perspectiva da gramática geral e filosófica. Pelo contrário, permanece nela o entendimento da gramática como arte de ensinar a falar e escrever bem, seguindo princípios lógicos já demasiadamente conhecidos até então.

Com isso, além de não corresponder a um tipo de renovação do ensino da gramática, o que poderia justificar a troca estabelecida pelo Conselho Diretor da Instrução Pública, a gramática de Ortiz e Pardal era considerada pelos professores pouco adequada e acessível às crianças das primeiras classes, gerando dificuldades e problemas na condução do ensino da língua.

Considerações finais

Como têm apontado diferentes estudos nos campos da História da Educação e do ensino de língua portuguesa (Razzini, 2000; Teixeira, 2008; Bittencourt, 2008; Batista & Galvão, 2009; Tambara, 2012), os livros e compêndios lograram ao longo do tempo a posição de um dos mais importantes dispositivos de disseminação de valores e de efetivação de projetos formativos e de nação. Por isso, correspondem a importantes objetos da cultura material, que resguardam representações da sociedade do contexto em que foram produzidos ou que a projetam, tal como ansiava os seus autores e as forças reguladoras de sua produção (Chartier, 1990). Nesse intento, no caso brasileiro, o processo de avaliação, aprovação, recomendação e adoção desses materiais configurou um efetivo campo de disputas pela conquista de espaço político e de efetivação de ideais de sociedade, mediante adoção de estratégias para se transmitir valores e saberes responsáveis pela construção de uma unidade do povo (Certeau, 2014), bem como a mobilização de redes de sociabilidade em favor da aprovação ou não desses livros (Sirinelli, 1986).

No caso aqui enfocado, da ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’, não foi diferente. Como se observa no processo de aprovação e recomendação dessa gramática, há uma espécie de ‘frisson’ pré-anunciado de sua qualidade e aceitação, porém, o que se verifica efetivamente é a manutenção da tradição até então recorrente no ensino da língua, de centralidade no estudo das regras gramaticais pela lógica do modelo filosófico e geral, como pressupunha Port-Royal.

A gramática de Ortiz e Pardal mantém a perspectiva do ensino da língua como arte de falar e escrever corretamente, tendo como base a definição de conceitos e memorização das regras a partir do estudo de exemplos de análise sintática e etimológica. Associado a isso, enfatiza-se os valores cristãos católicos, em consonância com o caráter confessional estabelecido pela Corte para as escolas oficiais.

Desse ponto de vista, além de não corresponder a uma mudança efetiva no que se propunha para o ensino da língua, a adoção de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ não apresentou nenhuma justificativa de natureza pedagógica. Pelo contrário, sua adoção consta registrada nos documentos oficiais sem qualquer motivação, promovendo a substituição da gramática de Cyrillo Dilermando imediatamente.

Esse aspecto possibilita entender que essa troca se deu possivelmente em função dos importantes espaços de sociabilidades que Pardal ocupava na administração da Instrução Pública da Corte, dentre os quais, o de membro do Conselho Diretor da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária, responsável pela revisão dos compêndios e materiais didáticos. Ou seja, ao que tudo leva a entender, a imposição de uso de ‘Grammática analytica e explicativa da língua portuguesa’ esteve muito mais associada ao prestígio de um de seus autores que propriamente demandas pedagógicas ou necessidade de revisão do ensino da língua. Não por acaso, à despeito do que afirmava o próprio Conselho Diretor, essa gramática foi bastante criticada pelos professores pela sua pouca adequação ao ensino da língua nas primeiras classes do ensino primário.

Apesar disso, a gramática de Ortiz e Pardal permaneceu em uso por mais de uma década, quando o ensino da gramática passou a ser revitalizado por outras gramáticas, como a de Júlio Ribeiro, mas também quando o ensino primário na Corte passou a ser remodelado.

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19Nota: Os autores atuaram em conjunto na proposição do artigo, na análise dos dados, na redação do texto final e na aprovação da versão para publicação.

Recebido: 19 de Julho de 2021; Aceito: 14 de Março de 2022

*Autor para correspondência. E-mail: fernando.oliveira13@unifesp.br

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Fernando Rodrigues de Oliveira: Doutor em Educação (2014) e Mestre em Educação (2010) pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Marília. Licenciado em Letras pela Faculdade da Alta Paulista (2006) e em Pedagogia pela Unesp-Marília (2009). Pós-doutorado junto à Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Araraquara (2019-2021). Professor da Universidade Federal de São Paulo, onde atua no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação com pesquisas sobre história da literatura infantil, história do ensino de língua e literatura, história dos livros e das edições didáticas e história do currículo. Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Ensino de Língua e Literatura. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5609-550X E-mail: fernando.oliveira13@unifesp.br

Márcia Antonia Guedes Molina: Doutora em Linguística e Semiótica pela Universidade de São Paulo (2004); Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993). Pós-doutorado pela Pontifícia Universidade de São Paulo (2008-2009). É professora adjunta do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora do Grupo de Pesquisa ‘Língua Portuguesa em Contextos Interdisciplinares’ e membro do Grupo de Pesquisa ‘História das Ideias Linguísticas’ (Brasil e Portugal): identidade nacional, sediado na PUC-SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5785-5099 E-mail: marcia.molina@ufma.br

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