INTRODUÇÃO
A dimensão inclusiva da sociedade vem ganhando força sob diferentes formas (JANNUZZI, 2004; CARMO, 1991). Considerando o contexto educacional, em 1990 é proclamada a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, com vistas a promover a equidade no acesso à educação, assinalando que as necessidades básicas de aprendizagem das pessoas com deficiências requerem atenção especial (UNESCO, 1990). Em 1994, a Declaração de Salamanca, ao tratar Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, estabelece que a educação de pessoas com deficiências integre os sistemas educacionais dos países participantes, reafirmando o compromisso com a Educação para Todos (UNESCO, 1994). Em 2007, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência reafirmou os propósitos de promover, assegurar e proteger o “exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (BRASIL, 2009).
Dentro desse contexto, mudanças nas instituições educacionais se fazem necessárias a fim de refletir o posicionamento inclusivo da sociedade contemporânea. Nesse sentido, considerando-se as indicações de Nóvoa (1995), torna-se necessária uma formação que contribua com a busca de alternativas para questões concretas da prática docente cotidiana. A escola aberta a todos é vocação da própria instituição e precisa se preocupar em compartilhar os saberes com todos que a frequentam (MEIRIEU, 2005).
No contexto brasileiro, as questões relacionadas à inclusão, especificamente no ambiente educacional, avançam paulatinamente. Uma das principais modificações observadas (e que vale ser destacada) é a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional – Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996), que trata dessa questão quando conceitua a Educação Especial como a modalidade de educação escolar voltada para os alunos com necessidades educacionais especiais, afirmando a presença, preferencialmente, desses alunos na escola regular. A partir da determinação de que cabe à escola incluir, tornam-se necessárias medidas destinadas à formação de professores. Em boa parte das situações, esse conjunto de elementos formativos a respeito das diferenças e dos diferentes é oferecido como apêndice da formação, em disciplinas eletivas (MARTINS et al., 2006).
Especialmente em relação aos surdos, a legislação (BRASIL, 2002; 2005) pretende promover mudanças nas relações da sociedade com esses sujeitos. No âmbito da educação desses sujeitos, o Decreto nº 5.626 (BRASIL, 2005) aponta para a necessidade de uma educação bilíngue para surdos, com a Libras como primeira língua (L1) e a língua portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua (L2). No contexto da formação dos profissionais para atuação com alunos surdos, a mesma legislação indica a inclusão de componente curricular que trate do ensino de Língua Portuguesa Escrita (LPE) para alunos surdos, determinando:
Art. 13. O ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas, deve ser incluído como disciplina curricular nos cursos de formação de professores para a educação infantil e para os anos iniciais do ensino fundamental, de nível médio e superior, bem como nos cursos de licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa.
Parágrafo único. O tema sobre a modalidade escrita da língua portuguesa para surdos deve ser incluído como conteúdo nos cursos de Fonoaudiologia (BRASIL, 2005, Art. 13).
A inclusão dos conhecimentos sobre ensino de LPE como L2 na formação de professores, indicado no Decreto nº 5.626, representa um esforço em discutir as questões relacionadas às concepções de ensino de L2 para surdos. Isso permite inferir que a inclusão, não apenas dessa disciplina, mas como a de Libras (BRASIL, 2005), contribui para a promoção de reflexões acerca da organização do ensino de LPE para alunos surdos na educação básica, principalmente nas séries iniciais do ensino fundamental. Questões essas nem sempre familiares ao professor em formação (SANTANA, 2007).
Outras questões têm influência direta e indireta nas relações que estes professores estabelecem com o ensino de LPE para surdos, com os alunos surdos e com eles mesmos. Também refletem na organização didática desse ensino por parte dos professores. A atuação docente é constituída de várias facetas que exercem papéis diferentes na constituição do professor. Buscase, aqui, mostrar como a relação que os professores apresentam com o ensino de LPE para alunos surdos e com os alunos surdos se estabelecem, a partir de narrativas de professores sobre esse público-alvo nas séries iniciais do ensino fundamental na Baixada Fluminense.
OS PROFESSORES, O ENSINO DE LPE E OS ALUNOS SURDOS
A situação linguística dos sujeitos surdos brasileiros precisa ser levada em consideração. As crianças surdas são, em sua maioria, filhas de pais ouvintes que nunca tiveram contato com a língua de sinais (MOURA, 2013). Por este motivo, ressalta-se que a Libras não pode ser apontada como “língua materna dos surdos brasileiros”, pelo menos não no sentido de como aquela que se aprende com a família (COX, 2004). Considerar a Libras como L1 também não é inteiramente possível no sentido de “ordem de aquisição”, pois, como apontado por Quadros (1997), a maioria dos alunos surdos terá contato com a Libras apenas no ambiente escolar ou em outros espaços na relação com pares surdos usuários dessa língua.
A partir da perspectiva do bilinguismo para educação de surdos, é que se aponta a necessidade do ensino da língua portuguesa como L2 para alunos surdos (SKLIAR, 1998). Com a obrigatoriedade legal de uso da LPE por esses sujeitos (BRASIL, 2002), há uma demanda crescente de estratégias para esse ensino.
Essa obrigatoriedade legislativa provoca mudanças de atitudes e práticas desenvolvidas pelas instituições da sociedade, entre elas a escola, que talvez seja a que sofre impacto mais aparente dessas “novas” demandas sociais. Referente à inclusão escolar de alunos surdos, é relevante compreender a visão que os professores têm da criança surda, da sua participação nas atividades escolares e as formas específicas de ensino (LACERDA; LODI, 2014), assim como a relação com os demais atores do contexto escolar (BETTI; CAMPOS, 2016).
Os professores estabelecem relações de diversas ordens durante sua atuação no processo de ensino-aprendizagem. Uma das formas de compreender essas relações (e será abordada aqui) é a proposta por Charlot (2000), que se refere as relações que o professor estabelece com o saber, e são definidas como: relações com o mundo, consigo mesmo e com o outro, onde cada professor as estabelece de uma forma particular.
A partir dessa perspectiva, a relação com o saber é definida como “uma forma da relação com o mundo” (CHARLOT, 2000, p.77). Por se dar de forma diferente para cada um, é permeada e movida pelos desejos dos sujeitos, com histórias particulares que constituem a singularidade desses e as suas formas de dar sentido ao mundo que se relacionam. No caso dos professores que atuam com ensino de LPE para alunos surdos, pode-se entender a relação com o mundo como uma relação com um local onde os alunos e esses professores estão presentes, assim como saberes escolares e os demais agentes presentes nesse ambiente. Entre os saberes que serão mobilizados estão os que foram abordados na sua formação, como as noções teóricas a respeito da LPE, uma vez que:
[...] de alguma forma, o professor que teve acesso, durante sua formação acadêmica, a informações teóricas sobre essas noções, acaba por atualizá-las ou mobilizá-las, em sala de aula [...]. No entanto, em sua atuação efetiva, o professor necessita mobilizar outros conhecimentos como aqueles previstos pelo livro didático que esteja sendo utilizado na escola. O resultado é que, em sua prática, o professor produz adaptações, e a noção teórica (como a de texto), tal como formulada inicialmente pela Linguística, é transformada ou (re)construída, juntamente com outros saberes ou conteúdos, para atender às necessidades da situação de sala de aula. Assim, o professor constrói, em sua prática, conceitos, que já não são mais exatamente aqueles previstos pela teoria linguística e/ou por obras de divulgação, mas são objetos próprios da situação de ensino (RAFAEL, 2001, p. 158).
A constituição desses saberes e as relações que os professores estabelecem com eles são advindas também da sua própria atuação. Isso está em função da pluralidade dos saberes que compõem a prática docente, que são originados não apenas na formação desses professores, mas também a partir dos currículos e das experiências a que estes estão expostos (TARDIF, 2002).
A relação estabelecida com o outro e com a diferença, também constitutiva dos saberes do professor, precisam ser construídas a partir de pressupostos que favoreçam a atuação docente a partir da perspectiva inclusiva. Esses “saberes inclusivos” precisam estar presentes na formação dos professores que atuarão com ensino de LPE para surdos. Nesse sentido:
[...] é importante assinalar que é em torno da definição do quanto um indivíduo poderia ser educável e na formalização de modelos institucionais destinados a esse público que localizamos referenciais ainda ressoantes sobre o acesso deles à escolarização (RAHME, MRECH, 2008, p. 27).
A busca pela compreensão dos sujeitos surdos a partir de uma visão propositiva é algo que deve integrar as discussões e reflexões acerca desses sujeitos no processo de formação de professores. Essa é uma das abordagens que pode favorecer a mudança na dimensão social das relações dos professores com os alunos surdos e com o ensino de LPE para esses sujeitos. Isso nos leva a observar essas questões de forma mais ampla, sendo necessário refletir sobre as políticas educacionais e suas formas de desenvolvimento, como também sobre a formação oferecida aos professores para enfrentar os desafios contemporâneos das salas de aula na educação básica (SILVA; ALMEIDA; GATTI, 2016).
Ainda a respeito, crenças e expectativas dos professores compõem os aspectos que podem afetar o desempenho acadêmico dos alunos. Essa questão da influência das expectativas dos professores em relação ao aluno e o (in)sucesso escolar já é recorrente desde a década de 1960, ganhando notoriedade com a publicação de “Pigmaleão4 na sala de aula” (ROSENTHAL; JACOBSON, 1968), em que foi defendida a tese de que as expectativas dos professores influenciam as realizações escolares dos alunos, assim como seu desenvolvimento intelectual.
Outros estudos foram realizados a fim de apontar a influência e a relação de causalidade entre a expectativa do professor e o desempenho escolar dos alunos. Alguns aspectos são observados para estabelecer essa relação de causalidade, constituindo um modelo da expectativa do professor (GOOD, 1981). Esse se apresenta da seguinte forma:
[...] o professor espera comportamento e realização específicos de determinados alunos; devido a essas expectativas diferenciadas, o professor se comporta de maneira diferente em relação a diferentes alunos; esse tratamento comunica ao aluno qual comportamento e desempenho o professor espera dele e afeta o comportamento, a motivação para o desempenho e os níveis de aspiração do aluno; esse tratamento é consistente no tempo e se os alunos não lhe opõem resistência ou não o modificam de qualquer modo, ele irá moldar o desempenho e o comportamento do aluno: os alunos em relação aos quais o professor tem grandes expectativas serão levados a bons desempenhos e os alunos em relação aos quais o professor tem pequenas expectativas irão apresentar um desempenho inferior; com o decorrer do tempo, os resultados escolares e o comportamento do aluno irão se adaptando cada vez mais ao comportamento originalmente esperado dele (GOOD, 1981 apud RASCHE, KUDE, 1986, p. 61).
Essa expectativa e a forma de apresentação dos seus comportamentos, conforme apresentado por Good (1981), também são encontradas quando da presença de alunos com alguma deficiência. Nesses casos, as expectativas estão relacionadas às características individuais desses alunos (PARIZZI, 2000). Dessa forma, quando se trata dos alunos surdos, a questão da expectativa se apresenta também como força que influencia o desempenho escolar desses alunos e implica delimitar a sua possibilidade de desenvolvimento e de aprendizagem (ARTROLLI, 1999).
A forma como os professores representam os alunos surdos determina o tipo de relação que estabelecem com esses sujeitos, o que constitui as crenças desses professores. Estas crenças são ideias e convicções a respeito de determinados temas ou sujeitos que se revelam, de forma consciente ou inconsciente, nas ações dos professores (RAYMOND; SANTOS, 1995). Isso têm influência no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que mediam as decisões pedagógicas e as relações que os professores estabelecem com os alunos e com os saberes. Atuam como uma espécie de um filtro que leva o docente a interpretar, valorizar e reagir de diferentes formas no que diz respeito aos progressos e dificuldades dos alunos, podendo até mesmo induzir o desempenho real desses alunos, indo ao encontro das expectativas dos professores (PAJARES, 1992).
Assim, essas crenças podem criar barreiras à aprendizagem de surdos em classes regulares, pois influencia a postura do professor em relação ao aluno (ARTROLLI, 1999). A reflexão sobre essas crenças presentes na sociedade se apresenta como um dos desafios a ser abordado na formação de professores, conforme salientado por Rahme e Mrech (2008):
Lidar com essas diferentes realidades nos cursos de formação docente é um desafio que vem sendo colocado tanto nos processos de formação inicial quanto nos de formação continuada, sobretudo quando se parte do princípio de que na educação escolar o encontro com o outro é constituinte do exercício profissional. E o encontro com esse outro tem, no caso da pessoa com necessidades educacionais especiais, concepções previamente construídas que precisam ser consideradas e trabalhadas nos processos de formação, de modo a superar o mero conhecimento classificatório em direção à maior implicação do sujeito naquilo a que ele acede. Para tanto, não seria muito dizer que organização de curso, perfil profissional, currículo e metodologias são elementos fundamentais na formação de professores, desde que articulados por concepções teóricas que os tornem flexíveis diante das particularidades do cotidiano e suficientemente críticas para detectar as armadilhas da segregação que, como assinalamos, tendem a se tornar a cada dia mais discretas e manipuláveis em nossa sociedade (p. 37-38).
A preocupação em apresentar o contato com os sujeitos diferentes de uma forma que possibilite a mudança nas crenças é essencial. “Cuidar dos professores é fundamental ao se pensar em transformações educacionais com visão na construção de uma sociedade mais justa, mais equitativa” (GATTI, 2008, p. 42). Assim, pensando a partir de uma perspectiva inclusiva, o desejo de mudança nas relações que a sociedade estabelece com os sujeitos surdos deve motivar a busca por oportunizar aos professores uma formação que possibilite a esses a construção de crenças em relação aos surdos diferentes das que o entendem como incapaz ou limitado.
Possibilitar o contato com a questão do ensino para alunos com deficiência e da educação especial é um aspecto que precisa ser discutido a respeito dos currículos de formação de professores. Mesmo não sendo objeto deste artigo tratar de forma aprofundada os currículos para formação de professores, vale salientar que a discussão da deficiência e da inclusão durante a formação tem reflexo na atuação docente. “Mais do que ensinar, monitorar ou criticar, o que importa numa relação de aprendizagem são as crenças, os objetivos e as intenções que circulam por todos os participantes do processo” (COELHO, 2012, p. 133). Neste sentido, o professor precisa se reconhecer enquanto agente no processo de ensinoaprendizagem dos alunos, apresentando objetivos e intenções que favoreçam a efetivação desse processo para todos os alunos, dentre eles, os alunos surdos.
Dessa forma, se essas questões forem abordadas na formação, as expectativas dos professores podem ser voltadas para a possibilidade ou “educabilidade” dos alunos surdos, influenciando o seu posicionamento frente ao ensino de LPE para eles. Esse posicionamento é refletido por meio das relações que os professores estabelecem com eles mesmos, com o ensino de LPE para alunos surdos, e com os alunos surdos. A atuação docente desses professores pode ser organizada de forma que favoreça a efetivação do processo de ensino-aprendizagem desses alunos.
OS PROFESSORES E ELES MESMOS
O que se apresenta neste artigo resulta de estudo sobre as relações que professores atuantes na educação de surdos no primeiro segmento do ensino fundamental (1º ao 5º ano), em redes municipais de ensino da Baixada Fluminense, estabelecem com o ensino de LPE para surdos. Foram selecionados 14 professores que participaram de curso de extensão que tratava da temática do ensino de LPE para alunos surdos, promovido pelo Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Letramento, Cultura e Sociedade (GEALCS), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Educação da Baixada Fluminense. Como metodologia para o desenvolvimento do estudo, os encontros do curso de extensão foram tomados como grupos focais. Foram realizados um total de 15 encontros que ocorreram nas dependências da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, na maioria dos casos, com periodicidade quinzenal. De acordo com a indicação para condução de grupos focais (KITZINGER, 2000), os conteúdos foram planejados pelo GEALCS a partir de temáticas prédefinidas (Quadro 1) e ainda a partir das indicações dos encontros anteriores, com vistas a garantir a continuidade do processo.
Encontro | Dimensão (Teórica ou Prática) | Tema ou atividade |
---|---|---|
1º | Teórica | Concepções de letramento. |
2º | Teórica | Letramentos e seus conceitos. |
3º | Teórica | Letramentos múltiplos e multiletramentos. |
4º | Teórica | Língua, linguagem e surdez. |
5º | Teórica | Conceitos de língua e abordagens de ensino. |
6º | Teórica | Língua e ensino na educação de surdos. |
7º | Teórica e Prática | Introdução à organização didática para ensino de surdos. |
8º | Teórica e Prática | Planejamento e seus elementos. |
9º | Teórica e Prática | Levantamento de domínio de Língua Portuguesa. |
10º | Prática | Construção de planejamento orientado por situação problema. |
11º | Prática | Análise dos planejamentos de forma coletiva, com indicações para aplicação. |
12º | Prática | Discussão da aplicação dos planejamentos, apontando melhorias possíveis. |
13º | Prática | Apresentação de aula experimental pelo GEALCS, com discussão do planejamento de forma coletiva. |
14º | Prática | Apresentação de aula experimental pelo GEALCS, com discussão do planejamento de forma coletiva. |
15º | Prática | Apresentação de aula experimental pelo GEALCS, com discussão do planejamento de forma coletiva. |
Fonte: elaboração dos autores (2019).
Ressalta-se que as análises realizadas nesse estudo incidem sobre as narrativas dos professores atuantes no ensino de LPE para alunos surdos na Baixada Fluminense, registradas durante grupos focais e posteriormente transcritas para análise. Os aspectos atribuídos às escolas e aos alunos surdos servem como elementos complementares de análise, uma vez que não se teve acesso a esses outros sujeitos e espaços. Referente às perspectivas dos professores sobre sua condição de professor e sobre as relações estabelecidas entre língua(gem) e o ensino de LPE para surdos, estas se apresentam conforme descritas a seguir e podem ser dimensionadas conforme apresentado no Quadro a seguir.
Desconhecimento | Conhecimento |
Crenças restritivas | Crenças propositivas |
Inabilidades | Alternativas |
Fonte: elaboração dos autores (2019).
Do ponto de vista das percepções dos professores sobre eles mesmos, essas oscilam entre uma visão propositiva em relação ao ensino de LPE para alunos surdos e outra restritiva e, em alguns casos, impeditiva. Pode-se inferir que a oscilação se reflete na presença tímida ou bem marcada de princípios, os quais orientam a ação docente desses professores. Isso fica mais evidente quando se observa o binômio inabilidades e alternativas didático-pedagógicas, que podem ter principal influências das crenças e conhecimentos apresentados nas narrativas. A ação didático-pedagógica parece transitar entre inabilidade e alternativa em função dos conhecimentos ou desconhecimento, que, por sua vez, tem influência nas crenças propositivas ou restritivas. Aparentemente, é uma relação encadeada entre esses elementos, podendo se apresentar de forma restritiva para o ensino ou como oportunidade de perceber as possibilidades no contexto do ensino de LPE para alunos surdos. Essa organização de ideias expressas nas narrativas será detalhada a seguir a partir de um agrupamento em dois eixos: o primeiro na ordem das limitações e o segundo na ordem das possibilidades.
Nas narrativas dos professores, é recorrente os elementos que apontam para o desconhecimento dos conceitos que envolvem a surdez e os sujeitos surdos entre os que atuam com ensino de LPE para alunos surdos. Isso pode ser observado na Figura 1.
As narrativas dos professores apontam para uma exaltação das dificuldades de aprendizagem, atribuindo ao sujeito surdo essas dificuldades apenas pela sua condição de surdo. Parece ser componente dessas concepções a ideia de que por ser surdo automaticamente ele não aprende português ou se aprende tem grandes dificuldades e complicações para o entendimento da LPE. Isso pode ser um reflexo também das crenças e do desconhecimento, já que, como apontado por Coelho (2005), os professores em serviço acreditam que os alunos sejam fracos e por isso só devem ensinar coisas fáceis e básicas.
Esses desconhecimentos apresentados pelos professores podem ser resultado de uma formação inicial que não proporcionou reflexões acerca do surdo e da surdez, gerando nesses professores atitudes como: insegurança, desconfiança e receio frente às mudanças (ESTEVE, 1995). A entrada de alunos surdos no sistema de ensino regular provocou essa aproximação dos professores com esses sujeitos. As narrativas refletem as dificuldades, dilemas e uma sensação de desamparo quando os professores se deparam com uma situação que foge do habitual, colocando-os em contato direto com o diferente (OLIVEIRA, 2009).
Durante os encontros, os professores tiveram contato com conceitos e discussões que objetivaram ampliar o conhecimento a respeito do surdo e da surdez. O contato com essas informações e a construção de conhecimentos a respeito do surdo e da surdez possibilitaram aos professores uma perspectiva diferente. Ainda é ressaltado que a saída do senso comum para um contexto em que são estudadas essas questões teve grande impacto na forma como o surdo é percebido pelos professores. O conhecimento de que a Libras não se constitui como língua materna para a maioria dos surdos possibilita mudança na forma de ver o surdo e de perceber as línguas dentro desse contexto.
A mudança apontada aqui não ocorre de forma espontânea. É preciso que o professor tenha contato com os fundamentos epistemológicos, os quais podem guiar a construção das suas práticas de ensino de LPE para alunos surdos. É fundamental cada professor refletir, em cada situação, a respeito de quem é o aluno surdo, das suas diferenças e sobre quais bases ideológicas as suas concepções de ensino estão pautadas, considerando sempre o aluno surdo como um ser humano na sua plenitude (DORZIAT, 2004).
As narrativas trazem marcas das crenças dos professores sobre o ensino de LPE para surdos. Essas crenças podem estar associadas aos desconhecimentos apresentados anteriormente. Observa-se essa articulação entre as crenças e seus possíveis efeitos na Figura 2.
Observam-se, essencialmente, duas crenças que dizem respeito à necessidade ou não da LPE e ao entendimento da Libras como língua materna. Se analisadas a partir de uma concepção sociológica, essas crenças podem ser entendidas como uma “causa-regente”. A ação dos sujeitos e da sociedade tem uma consequência no aspecto social, que não é necessariamente realizada de forma consciente e é possível que os sujeitos não tenham a percepção de que essas crenças existem e como foram construídas (BOUDON; BOURRICAUD, 1993). Elas têm influência direta na ação dos sujeitos e em como estes se relacionam com os objetos centrais dessas crenças.
Essas crenças podem influenciar a forma como os professores se relacionam com ensino de LPE para surdos, uma vez que admitir que o surdo não tem necessidade de aprender a LPE, por ter uma outra língua (Libras), pode desenvolver no professor “uma disposição para a ação; e pode transformar-se em regras de comportamento, devido ao alto grau de probabilidade e estabilidade. São consideradas princípios filosóficos que orientam a prática do professor” (BANDEIRA, 2003, p. 65).
A outra crença refere-se ao entendimento da Libras como língua materna dos surdos. Isso pode interferir na atuação de professores que não possuem domínio de Libras, e, como tal, se colocam em posição de impedimento para o ensino da LPE para surdos. Acreditar nisso pode comprometer tanto o trabalho do professor que não tem domínio da Libras quanto o provável aprendizado do aluno surdo que não possui a Língua de Sinais estruturada e nem a utiliza como língua materna.
As discussões realizadas no conjunto de grupos focais resultaram em possíveis modificações nos modos de perceber a necessidade de uso da língua portuguesa para aprender e ensinar a modalidade escrita dessa língua para alunos surdos. Admite-se, portanto, a possibilidade de aprendizado da modalidade escrita da língua portuguesa por sujeitos surdos. É apontada também a crença de que é preciso que esse ensino seja realizado como uma L2, assim como os ouvintes o fazem quando aprendem Libras como L2. Acrescenta-se ainda a mudança de crença em relação aos surdos e à Libras como língua materna. Na maioria dos casos, a Libras não se apresenta como língua materna para esses sujeitos.
Essas crenças passam a ser reconstruídas a partir do contato com novas informações e a apreensão de novos conhecimentos por parte dos professores. Elas constituem “um acervo vivo de verdades individuais ou coletivas, na maioria das vezes implícitas, (re)construídas ativamente nas experiências, que guiam a ação do indivíduo e podem influenciar a crença de outros que estejam ou não inseridos na sala de aula” (SILVA, 2005, p. 78). Dessa forma, o contato e as experiências durante os encontros promovidos por esse estudo possivelmente possibilitaram a reconstrução dessas crenças e isso pode influenciar na ação pedagógica para ao ensino de LPE para alunos surdos.
Os aspectos apontados anteriormente (desconhecimento do surdo e da surdez e crenças a respeito do sujeito surdo) parecem ter influência direta na inabilidade didático-pedagógica dos professores. Não ter conhecimento sobre o sujeito surdo, bem como as crenças de que a Libras é a língua materna de todos os surdos e a não necessidade de aprendizado da LPE por esses alunos, tudo isso compromete as ações dos professores. Pode-se observar essa relação na Figura 3.
Os professores apontam para abordagens do ensino de LPE para surdos que são desaprovadas por eles mesmos. Os professores se colocam apenas como espectadores das ações de ensino e criticam ações mais tradicionais ou com foco limitado à gramática e ao desenvolvimento de vocabulário. Isso se reflete como uma inabilidade para organização do ensino de forma a favorecer a aprendizagem dos alunos surdos, referente à LPE.
São apontadas dificuldades para a ação pedagógica que ressaltam as influências das crenças e dos desconhecimentos. Observa-se isso quando o professor aponta que para o surdo é difícil aprender pois não tem o português de forma automática. Tal fato parece refletir a crença de que todos os surdos possuem a Libras como língua materna e, portanto, automática.
A concepção da Libras como língua materna ou automática para o surdo advém de uma ideia de que a língua natural dos surdos é a língua de sinais. No caso dos surdos brasileiros, na maioria das vezes, isso não ocorre. A maioria das crianças surdas está em famílias com responsáveis ouvintes e, dessa forma, não tem contato com a Libras desde o nascimento. Como não há esse contato, a Libras não se constitui como língua materna do surdo e, para que isso ocorra, seria preciso o convívio e “interações com outros surdos usuários da Libras ou pessoas ouvintes fluentes nesta língua” (DAMILELLI; CLASEN, 2012, p. 157).
A partir das mudanças em relação aos (des)conhecimentos sobre o surdo e a surdez, bem como as crenças a respeito do sujeito surdo identificadas pelos próprios professores, novos olhares e alternativas para a atuação didático-pedagógica são construídos. Indicam mudanças da visão de impossibilidade para a de possibilidade.
Os professores passam a perceber as alternativas possíveis para sua ação didático-pedagógica, ressaltando a necessidade de ter uma visão metalinguística em relação à LPE, de modo a promover a aprendizagem dos alunos surdos. Apontam também para uma mudança na percepção do ensino de LPE para surdos, saindo da visão de impossibilidade para a de possibilidade. Com isso, começam a ter contato mais amplo com estratégias e discussões sobre a temática.
É indicada ainda a questão da motivação, já que, para a aprendizagem, ela é decisiva para o aluno surdo. É preciso que os alunos surdos construam sentidos e significados propositivos sobre a aprendizagem da LPE. Nessa perspectiva, o professor desempenha papel fundamental. Destaca-se também a questão de mudança na seleção de estratégias didático-pedagógicas, saindo de uma abordagem estática para uma mais dinâmica, como escolha de textos contextualizados, atividades que estimulem o uso da língua e chamem a atenção dos alunos surdos. Ratificase a importância da reflexão e aprofundamento de conhecimentos para o professor.
RELAÇÕES ESTABELECIDAS PELOS PROFESSORES ENTRE LÍNGUA(GEM) E O ENSINO DE LPE PARA SURDOS
Ao discutir essas relações, a partir das perspectivas dos professores sobre sua condição de professor de alunos surdos, na ordem das limitações, chama atenção os seguintes aspectos: os professores ainda apresentam uma visão equivocada sobre a possibilidade e a necessidade de aprendizagem da LPE para surdos; compreendem a Libras como língua materna dos sujeitos surdos; e apresentam dificuldades de organizar atividades que favoreçam a aprendizagem da gramática e a ampliação de vocabulários dos alunos surdos. Na ordem das possibilidades, destaca-se: os professores compreendem a habilidade cognitiva da linguagem nos surdos não tendo comprometimento em virtude da surdez; entendem que a Libras, na maioria dos casos, não se constitui como língua materna para os surdos; e observam a necessidade de ensino de LPE para alunos surdos, a partir do entendimento de essa se constituir como L2 deles.
Ainda nas relações dos professores entre língua (gem) e o ensino de LPE para surdos, na perspectiva desses professores, salienta-se, na ordem das limitações, os seguintes aspectos: exaltam as dificuldades de aprendizagem dos alunos surdos, atribuindo isso apenas ao fato do aluno ser surdo; e se restringem ao ensino e organização didática na superficialidade da língua. Na ordem das possibilidades, chama atenção o fato de acreditarem que o surdo tem possiblidade de aprender, embora não da mesma forma de um aluno ouvinte.
A esse respeito, depreende-se das narrativas de professores que atuam no ensino de LPE para alunos surdos algumas indicações de como alguns referentes da ação docente se apresentam. Destacam-se, aqui, questões relacionadas: à compreensão dos processos de aprendizagem dos alunos surdos, expressa na ênfase do reconhecimento das dificuldades gerais e específicas da aprendizagem escolar desses alunos; ao conhecimento dos fatores sociais e psicológicos que envolvem os alunos surdos; e ao domínio de diferentes meios e alternativas práticas para a proposição de processos de intervenção adequados. Ainda se aponta que, na maioria das vezes, toma-se a deficiência pelo sujeito.
Outro ponto de destaque é o domínio da LPE e seu ensino para alunos surdos. Pode-se relacionar isso diretamente a oportunidades de atualização/formação continuada adequadas. Essa atualização/formação contribuiria para a adoção de novas ferramentas e abordagens pedagógicas. Acrescenta-se a capacidade de pensar pedagogicamente a respeito dos conteúdos ensinados, pois, quando ela é frágil, acarreta pouca clareza na definição dos objetivos e conteúdos de aprendizagem e planejamento das atividades de ensino a partir deles.
CONSIDERAÇÕES (NÃO) FINAIS
Os resultados apresentados permitem indicar que as perspectivas desses professores oscilam entre as limitações e as possibilidades. A ação didático-pedagógica parece transitar entre inabilidade e alternativa em função dos conhecimentos ou desconhecimento, que, por sua vez, tem influência nas crenças propositivas ou restritivas, sendo uma relação encadeada entre esses elementos. Esses aspectos permitem perceber que o olhar do professor sobre o aluno surdo ainda é transversalizado por equívocos, os quais vão desde o desconhecimento teórico sobre o surdo e a surdez até a presença de traços de permanência de crenças e expectativas anteriores à ação docente, parte da constituição do sujeito professor. Observou-se que essas expectativas e crenças, presentes nas narrativas dos professores, podem influenciar na sua atuação a partir das inabilidades ou das alternativas didático-pedagógicas. Isso pode ser indicado como um dos princípios norteadores da ação docente dos professores que atuam com ensino de LPE para alunos surdos.
A respeito dos desafios para formação e atuação docente com o ensino de LPE para alunos surdos, é questão principal: o contato com a temática da inclusão durante a formação inicial e, a partir de uma abordagem do respeito às diferenças, a busca de alternativas para efetivação do processo de ensino-aprendizagem. Esse contato pode contribuir para a diminuição dos desafios e a reflexão para organização do ensino, partindo de conceitos que consideram as pessoas a partir das suas possibilidades e não das dificuldades ou impedimentos. Embora isso seja indicado, observou-se entre os professores uma escassez de contato com essas temáticas, o que se reflete em crenças e preconcepções a respeito do aluno surdo e marca sobremaneira a forma como esses professores pensam e organizam experiências para aprendizagem de LPE. Ainda há de se destacar que as questões dos conteúdos tratados na formação não incluem o ensino de LPE como uma língua não materna e muitas vezes não abordam questões dos conteúdos da língua portuguesa. Isso parece comprometer o domínio tido pelos professores a respeito dos conteúdos da LPE e, consequentemente, também afeta a forma como atuam frente à necessidade de ensinar LPE para alunos surdos.
A presença das discussões no contexto escolar e na formação de professores, a respeito dos letramentos5, traz atenção para como essa temática é compreendida. Conhecer os conceitos e as formas de tratar essa questão permitiu identificar, nas narrativas dos professores que atuam no ensino de LPE para alunos surdos, como esses a abordam. Há, nos discursos de profissionais que atuam com alunos surdos, a apropriação da abordagem dos multiletramentos para pensar as experiências de ensinoaprendizagem dos alunos surdos. Ao tentar compreender os conceitos que integram a abordagem dos letramentos múltiplos, pode-se observar que essa “apropriação” pela área da educação de surdos parece ser aligeirada e com inconsistências teóricas. Pode-se observar isso pela ausência, nas narrativas dos professores participantes da pesquisa, de formas como a abordagem dos multiletramentos, a qual poderia estar presente em suas práticas pedagógicas. Ressalta-se que a questão basilar dos letramentos também não é apontada com uma apropriação que vá de acordo com os pressupostos teóricos apresentados nos estudos que tratam dessa temática.
Assim, são questões principais: o contato com a temática da inclusão durante a formação inicial e, a partir do respeito às diferenças, a busca de alternativas para efetivação do processo de ensino-aprendizagem; e para além desse contato uma revisão dos conteúdos da formação, proporcionando o cumprimento do Art. 13 do Decreto nº 5.626 (BRASIL, 2005). Contudo, diante do observado, não parece ser elemento constituinte da formação inicial desses professores. Ainda nessa questão, o Art. 13 do Decreto nº 5.626 (BRASIL, 2005) já indica a obrigatoriedade de se incluir na formação dos professores conteúdos voltados para o ensino de LPE para surdos, algo que não é incluído nos currículos de formação de professores para séries iniciais. Esses professores atuam na fase de alfabetização desses alunos e o domínio dos conteúdos foi apresentado nas narrativas como princípio norteador da sua prática pedagógica. Sem a formação necessária, o ensino exitoso da LPE para alunos surdos não se concretiza. Retomando especificamente a questão do contato, esse pode contribuir para a diminuição dos desafios e a reflexão para organização do ensino, partindo de conceitos que consideram as pessoas a partir das suas possibilidades e não das dificuldades ou impedimentos. Isso parece comprometer o domínio que os professores têm a respeito dos conteúdos da LPE e, consequentemente, também afetam a forma como organizam o ensino de LPE para alunos surdos.
Outra reflexão a respeito da formação inicial e continuada, parece também fazer parte do cotidiano dos professores participantes desse estudo, haja vista a exaltação, presente nas narrativas desses professores, da necessidade de utilizar formas mais efetivas de planejamento e organização do ensino de LPE para alunos surdos.
O desenvolvimento das habilidades e competências para planejar ações de ensino e de aprendizagem exequíveis e cumpridoras de seus objetivos é um dos pré-requisitos essenciais para a efetivação desse processo. Sem esses elementos, o professor fica impossibilitado de estabelecer um posicionamento propositivo enquanto agente promotor da aprendizagem para os alunos, sejam eles surdos ou não.