1 INTRODUÇÃO
Nas últimas duas décadas, a educação da infância, compreendida nesta pesquisa de zero a cinco anos, tornou-se prioridade para o desenvolvimento socioeconômico dos países imperialistas e da região latino-americana. Uma das razões para isso é a maior disposição dos países em cumprir seus compromissos, tratados internacionais de direitos humanos, entre os quais, o reconhecimento de que a igualdade de direitos sociais dos indivíduos começa desde o nascimento; e em garantir que todos os cidadãos tenham direito à saúde, educação e cuidados, o que está ligado ao conceito de desenvolvimento social e econômico (BORTOT; LARA, 2019).
Com as condições socioeconômicas e políticas vivenciadas pela sociedade capitalista do século XX e início do século XXI, o foco é gerenciar a pobreza com vistas a produzir desenvolvimento social e econômico. As novas formas e modelos são decorrentes e partes integrantes do processo de modificação do papel e da atuação do Estado, das reformas e contrarreformas vivenciadas a partir dos anos de 1980, em âmbito mundial, e, na região latino-americana e caribenha, a partir dos anos de 1990 (BEHRING, 2008), o que implica a mudança de governo para governança, na qual o Estado não é mais o único ator a ser considerado quando são examinadas as políticas educacionais (DALE, 2014). A presença de novos atores na administração pública e no campo educacional implica transformações na formulação, no rumo e nos direcionamentos das políticas públicas, em especial, aquelas aqui analisadas que se direcionam à educação da infância (MOURA, 2019; BORTOT, 2022).
Nesse ínterim, com ênfase nos anos 1990, as organizações multilaterais vêm se constituindo como atores-chave no projeto de educação da infância, nos debates em Educação Infantil, Educação Inicial, Educação e Cuidado na Primeira Infância (ECPI). O projeto supracitado integra uma série de ações que agregaram desenvolvimento econômico e as diferentes formas de produzir políticas sociais, inseridas em “[...] complexos de economia política locais, nacionais e globais interdependentes” (VERGER; NOVELLI; ALTINYELKEN, 2018, p. 7).
Buscou-se, portanto, a criação de uma agenda orientadora internacional e sua institucionalização colaborativa com os países, com a difusão de normas destinadas à construção de consensos, institucionalização de redes transnacionais a disseminar modelos com políticas aprendidas por meio de comunidades epistêmicas (HAAS, 1992); e criação de práticas para o desenvolvimento econômico e social para a infância. Para a Educação, observaram-se duas perspectivas complementares: a Infantilização da Pobreza, por meio dos acordos e documentos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), e a Educação Intersetorial, advinda da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), ambas agências ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU).
As agências internacionais, por sua vez, atuam no accountability (regulação) e advocacy (aconselhamento) de políticas: mecanismos de transparência, prestação de contas, controle e autorregulação, acreditação e reconhecimento, com a diversidade dos modelos de acreditação existentes (certificação, qualificação e autorização). Tais fatores são compostos por um lobby de especialistas em defesa do interesse público, para colocar na agenda política as questões dos seus grupos de interesse, ou, ainda, por um processo participatório de alguns nas decisões. Resultado não apenas da capacidade de influenciar os tomadores de decisões, mas também de conseguir entrar na arena política (SECCHI, 2013).
Nesse sentido, indagamos: quais as intencionalidades do Projeto de Educação para a Infância na América Latina e no Caribe, que tem por foco a infantilização da pobreza e a intersetorialidade? A fim de responder a nossa problemática, este estudo tem por objetivo analisar o projeto de educação da infância latino-americana e caribenha e suas intencionalidades, sobretudo como forma de servir, estrategicamente, às crises do capital dos últimos anos.
Classificamos esta pesquisa de natureza qualitativa, haja vista que a investigação supera os fenômenos aparentes e realiza análises científicas por meio da construção de conhecimento acerca do objeto em causa. Assim, a técnica aplicada fundamenta-se no levantamento de dados em fontes documentais (primárias) e bibliográficas (secundárias) por excelência, em função de sua forma de utilização, que se justifica por fundamentar teoricamente o objeto de estudo, colaborando com elementos que subsidiam as análises futuras. Elege-se, desse modo, o método materialista histórico para o estudo de documentos oriundos da CEPAL, da UNESCO e dos governos locais, tendo em vista que eles captam as relações consubstanciadas na dinâmica histórica, econômica e política.
Para organização e análise dos dados, o artigo está dividido em duas seções: primeiramente, apresenta-se a discussão sobre os enunciados e as intencionalidades da CEPAL e da UNESCO na construção do projeto de educação da infância, que insere a infantilização da pobreza e a intersetorialidade como estratégias de produção de capital humano via educação infantil; em seguida, realiza-se a análise da incorporação desse projeto no Brasil, com foco no Marco Legal para a Primeira Infância, que é a completa representação desse projeto de alinhamento de pobreza-educação-economia e de Estado e Mercado.
2 O PROJETO DE EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA EM NÍVEL GLOBAL: O PROTAGONISMO DA CEPAL E DA UNESCO
A criação de uma agenda para a Educação Infantil na América Latina, mediada pelos organismos internacionais, não é nova. Alguns marcos do início do século XX podem ser mencionados: Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924; Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959; Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 (art. 10) (BORTOT; LARA, 2019).
Em 1989, foi realizada a Convenção sobre os Direitos da Criança, organizada pela ONU, cujo preâmbulo ressalta a importância da cooperação internacional para a melhoria das condições de vida das crianças em todos os países, em particular nos países em desenvolvimento, onde se concentra um grande número de crianças social e economicamente marginalizadas (ONU, 2002; BORTOT, 2022). A América Latina e o Caribe foram os primeiros a ratificar o documento da Convenção, visto que, segundo Méndez (2001), a sua aprovação e difusão na região coincidiram com o retorno à democracia em vários países, o que sugere que a linguagem progressista dos novos direitos da criança foi agrupada em três categorias: provisão, proteção e participação (MOURA, 2019); assim, ajustando-se e impulsionando a reconstrução da democracia na região, para adentrar na agenda política internacional. Isso implica uma mudança na relação entre o Estado e a infância, colocando esta última no centro da agenda como sujeito de direitos (LÓPEZ; D’ALESSANDRE, 2015).
A referida Declaração não dispõe de força vinculante típica dos tratados internacionais, servindo como diretriz para a atuação dos Estados. Na América Latina, o panorama legal evidencia significativas mudanças realizadas nos países, precipuamente a partir da Convenção dos Direitos das Crianças (1989), dos compromissos firmados e das declarações com Planos de Ação Nacionais, demonstrando forte alinhamento e cumprimento da agenda institucionalizada internacionalmente (BORTOT, 2022).
Embora existam diferentes formas de organização política e regimes institucionais nos países da América Latina e do Caribe, a tendência tem sido a de defender a Educação Infantil como um direito das crianças e o posicionamento de políticas integrais que assegurem o acesso a esse direito (UNESCO, 2016). Contudo, apesar das ações para assegurar os direitos às crianças nos países e a cooperação internacional firmada na Convenção, o acirramento das contradições sociais, com o crescimento das desigualdades sociais, expressas pelos elevados índices de crescimento da pobreza e do desemprego na região latino-americana, fez com que, nos anos de 1990, governos e organismos multilaterais, tais como CEPAL e UNESCO, apresentassem proposições em favor de um ajuste com rosto humanizado, as quais se traduziram em políticas focalizadas e assistencialistas (ROSEMBERG, 2015).
Com essas ações, percebemos que a pobreza diminuiu significativamente, em grande medida, pela benevolência de programas de transferência de renda; porém, ao mesmo tempo, os percentuais e os contingentes de pobres ainda são altos. Entre 2014 e 2017, o aumento da taxa de pobreza e o crescimento da população se reforçaram mutuamente, o que se traduziu num aumento do número absoluto de pessoas pobres, acima do aumento da taxa de pobreza, com projeção para 2018 de 182 milhões de pessoas na pobreza e 63 milhões na extrema pobreza (CEPAL, 2019). Neste ínterim, salientamos que a base material do projeto político-econômico neoliberal proposto por organismos multilaterais, como UNESCO e CEPAL, é um artifício para reestruturar a produtividade do capital e reorganizar os projetos econômicos, a fim de atender ajustes estruturais.
Com o número de pobres na América Latina, instaura-se um projeto de organização de políticas de gestão da pobreza para o atendimento da pauta capitalista. Essa é uma estratégia que acompanha as várias crises do capital, cujo gerenciamento da pobreza infantil possui estrutura profunda do modo de produção capitalista de organizar a sociedade e de cuidar da primeira infância (MOURA, 2019). Isso porque a educação para a primeira infância se torna objeto de intervenção econômico-política nos países periféricos, o que demonstra a harmonia existente com a dinâmica capitalista, resultando numa metanarrativa para a infância pobre (MOURA, 2019). Essa estrutura profunda não é apenas uma configuração momentânea de discursos rasos para a infância pobre, mas vê-se nessa mesma infância pobre um mecanismo moldável aos preceitos do sistema capitalista de como gerir a pobreza e realizar maiores acumulações de riqueza para a sociedade burguesa.
As ideias assentadas na integração regional enfatizam a necessidade de se investir na infância como um processo de formação de recursos humanos (MOURA, 2019); logo, a infância se torna mercadoria, ou seja, para os fundamentos do materialismo histórico, a mercadoria é a forma elementar da riqueza.
Tais aspectos se inserem no contexto de depressed continuum, momento em que as crises se tornam mais recorrentes, provocando a disjunção radical entre o processo produtivo das necessidades sociais e a “autorreprodução do capital” (ANTUNES, 2011, p. 2). E, para adequar a infância ao capital, projetos de educação vêm sendo a marca de várias reuniões, documentos e diversas ações pela CEPAL e pela UNESCO, célebres think tanks de consultores individuais ou coletivos que trabalham para os organismos multilaterais (OM), sob a justificativa de reformas baseadas em evidências, tendo por eixos norteadores: a produção de capital humano por meio de ações de infantilização da pobreza e a intersetorialidade (MOURA, 2019).
A infância pobre como objeto de intervenção político-econômica, em que a infantilização da pobreza e a intersetorialidade são tratadas como bom investimento em uma noção produtiva e instrumental da primeira infância, que emerge da teoria do capital humano (MOURA, 2019; BORTOT, 2022) fortalecida pelo discurso da neurociência.
Pereira (2011) assinala que, ao longo da história, os OM adquiriram uma legitimidade ampla, disseminada e sólida como “[...] fonte de dados, afiançador de ideias, formador de policymakers, produtor de análises comparativas e guia em matéria de políticas de desenvolvimento” (p. 457), divulgando, legitimando e produzindo estudos sobre os impactos de programas de êxito para a ECPI, voltado à tríade: desenvolvimento humano, social e econômico.
Nessa tríade, economistas realizaram pesquisas evidenciando a importância do investimento na Educação Infantil, considerando que é o investimento social mais rentável para a sociedade (HECKMAN, 2000, 2013a; CUNHA et al., 2005). Exemplo desta perspectiva pode ser observado no Informe de Educação para Todos (2007), no qual se destacou:
[...] de um ponto de vista econômico, os investimentos em programas para a primeira infância são muito rentáveis em capital humano, o qual constitui um poderoso argumento para reclamar uma intervenção dos poderes públicos neste âmbito. Esses programas não são só́ vantajosos para as crianças e as famílias, mas também contribuem para reduzir a desigualdade social e redundam em benefícios para comunidades e as sociedades em seu conjunto. (UNESCO, 2007, p. 116, grifo nosso).
O investimento em programas para a primeira infância tem, dessa forma, uma alta taxa de retorno para toda a sociedade. Algumas estimativas realizadas pelo economista norte-americano James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2000, indicam que, para cada US$ 1 investido em políticas de primeira infância, existe um retorno para a sociedade de até US$ 17 (UNICEF, 2010). A tese apresentada demonstra o planejamento dos organismos internacionais capitalistas para formular orientações técnicas, políticas e econômicas voltadas para o enfrentamento da pobreza nos países periféricos. Fica evidente que as propostas e explicações oferecidas por estes agentes são ideológicas, fundadas em afirmações tautológicas, um dos mecanismos que mascaram as verdadeiras causas (ZANARDINI, 2012; MOURA, 2019).
Para atender essa estratégia, produziram-se “relativos consensos”, sobretudo por OM via projetos, financiamentos e intervenção na ação dos governos nacionais e/ou de organizações não governamentais (ONGs), que se concentram, especialmente, na definição de metas para a infância, ações emergenciais e paliativas. Analiticamente, aferimos que os OM são vistos como agentes que desempenham um papel fundamental de levar a mensagem da Cultura Educacional Mundial Comum (CMEC).
Apresentamos a seguir dois mapas conceituais (MC) que demonstram tal assertiva. O primeiro liga-se à infantilização da pobreza como um fenômeno social “novo”, que registra profundas privações de direitos enfrentadas pela infância, propalada pela CEPAL. As múltiplas faces do fenômeno denominado de infantilização da pobreza são permeadas pela carência de saúde, nutrição, informação, saneamento e, o principal deles, a educação. Tal inópia produz efeitos permanentes na infância, marcando a primeira etapa da vida da criança e perpetuando a reprodução intergeracional da pobreza.
A pobreza é produto das relações contraditórias entre capital e trabalho. Dessa forma, verificamos que a questão social e a pobreza são tratadas nos documentos cepalinos de maneira subjetiva, já que pronunciam a necessidade de articular ações de solidariedade na sociedade civil e que a crescente pauperização da classe trabalhadora deve-se ao papel desempenhado pelo sistema estatal, que não tem realizado ações necessárias para prover condições mínimas para os pobres, principalmente para crianças e adolescentes, já que são eles quem mais sofrem com a pobreza, segundo os dados da agência multilateral. A gênese da infantilização da pobreza decorre da crise do capital, que acaba aprofundando as contradições sociais, apresentando traços da fragmentação dos problemas sociais (MOURA, 2019).
Investir em educação para a primeira infância é uma forma de, supostamente, combater a infantilização e o ciclo intergeracional da pobreza. Contudo, o MC demonstra uma perspectiva fortemente defendida pela UNESCO, que são as propostas focadas na educação intersetorial para esse período (UNESCO, 2004a, 2004b, 2007, 2010, 2015, 2017) acerca de políticas centradas na educação-saúde-nutrição de crianças e suas famílias, além de elementos que são totalmente constitutivos de pobreza na perspectiva da CEPAL: educação, nutrição, moradia, água, saneamento e informação (CEPAL; UNICEF, 2010).
No caso da UNESCO, esses elementos estão fortemente ligados à pobreza e à vulnerabilidade, às variadas formas de parceria pública e privada para o atendimento da educação para a infância como sinônimos de educação de qualidade. A Figura 3 apresenta uma síntese dessas orientações advindas da UNESCO.
CEPAL (2010, 2013) e UNESCO (2004a, 2004b, 2007, 2010, 2015, 2017) enfatizam, por meio da infantilização da pobreza e do enfoque intersetorial, a indução ao fortalecimento de programas de base intersetorial via divisão de tarefas na gestão dos sistemas educativos, cujo provimento da oferta em idade obrigatória, nos níveis considerados “formais”, fica sob a responsabilidade público-estatal, e a modalidade “não formal”, por ser considerada “não escolar”, voltada para programas, convênios ou parcerias público-privadas direcionadas às outras crianças não assistidas, logo, crianças de zero a três anos. Destacam, ainda, que a ausência de investimentos na infância pobre viola os direitos sociais das crianças e vislumbra um futuro de incertezas para os países latino-americanos, o que promoveria a perda de um grande potencial de capital humano, acarretando danos irreversíveis para os países da região, devido à carência de habilidades produtivas das gerações futuras (MOURA, 2019).
CEPAL e UNESCO possuem orientações cheias de eufemismos para melhorar a Educação, as quais vão minando o senso comum, prática política e ideológica que “[...] estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre os quais existem relações de poder” - e o discurso, como prática ideológica, “[...] constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94). Assim, promovem uma recepção ativa, seletiva e interpretativa, produzindo significados no contexto de acolhimentos, que são os países signatários (SHIROMA, 2020).
O mapeamento da América Latina revelou que esse projeto de educação da infância vem se materializando por meio de programas não formais, enfatizando a perspectiva de superação da pobreza por meio da educação e do cuidado, conforme agenda disseminada pela UNESCO e CEPAL. São, sobretudo, programas descentralizados e associativos que envolvem o “espaço de fluxos” e a constituição da “sociedade em rede”, de Castells (1996), pela via interinstitucional da oferta de programas socioeducativos.
Segundo o Instituto Internacional de Planejamento Educacional (IIPE/UNESCO), além do baixo custo, programas não formais e informais, denominados como programas fora da escola, de base intersetorial, são fundamentais para o desenvolvimento da descentralização, para o fortalecimento da estrutura de governança alargada para a expansão do atendimento da Educação Infantil. Para tanto, é necessário:
1) conectar a educação não-formal e a educação formal no sistema educacional; 2) promoção da cooperação intersetorial; 3) fortalecimento da colaboração entre os diferentes níveis dos sistemas educacionais - governo central, autoridades descentralizadas, escola e comunidades e 4) garantia de provisão adequada em estados frágeis. (IIPE/UNESCO, 2020, p. 25-26, grifo nosso).
O contexto atual na política educacional para a infância latino-americana aponta tendências que são evidentes de diferentes formas dentro de cenários nacionais, mas também tendências que são representadas na criação de novos espaços políticos, além do Estado-nação, congregando as organizações multilaterais existentes e ONGs. Eles se unem social, política, econômica e discursivamente dentro das redes de governança e constituem uma comunidade política epistêmica (BALL, 2014), tanto como atores internos quanto como disseminadores e beneficiários da política, legitimando um projeto maior de gestão da pobreza. O Gráfico 1 demonstra a incidência de programas não formais nos países da região, apontando que há uma incorporação do projeto maior dos OM, sobretudo na intersetorialidade e na interinstitucionalidade, ou seja, dos múltiplos arranjos educativos entre o público e o privado que possibilitam a oferta do não formal.
Esse tipo de programa, além de ter um custo reduzido, atende às metas de expansão no atendimento à Educação Infantil, pautado nos compromissos com os organismos multilaterais - além de ser orientado por eles -, envolvendo os compromissos da agenda de pobreza multidimensional e, sobretudo, utilizando os mecanismos de governança: convênios internacionais, planejamento e atendimento dos programas por vias interinstitucionais. Tais vias abarcam Estado, Mercado e outros agentes vinculados à sociedade civil e ao Terceiro Setor, protagonizado por ONGs até 2010 e, posteriormente, filiado a fundações e empresas, tendência essa observada, também, no cenário internacional.
Esse é o projeto que se buscou fundir na América Latina e no Caribe como forma de gerir a crise da pobreza por meio de políticas, programas e ações de educação da infância, como forma de nivelar e potencializar as capacidades humanas desde a mais tenra idade, pois, segundo os princípios disseminados nos documentos difundidos na América Latina e no Caribe, estimular de maneira precoce o capital humano proporcionará um diferencial significativo para o rendimento econômico e a promoção da idade de oportunidades (CEPAL, 2010). Vislumbramos que o marco legal da infantilização da pobreza e da intersetorialidade é produto das relações contraditórias, sendo utilizadas como estratégias de conversão do ideológico em natural, buscando neutralizar a luta de classes, especialmente no Brasil.
3 MARCO LEGAL DA INFANTILIZAÇÃO DA POBREZA E DA INTERSETORIALIDADE NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS BRASILEIRAS: COESÃO DE AGENDAS
A permanência dessa concordância de atitudes e acordos, que corroboram a construção da “agenda globalmente estruturada” (DALE, 2001) para a infância pobre latino-americana, pode ser explicada a partir do momento em que “[...] as organizações internacionais são constituídas por aparatos burocráticos [...]” (HERZ; HOFFMAN, 2004, p. 18). Contudo, há necessidade de observarmos que a construção dessa agenda globalmente estruturada para o cuidado e a proteção da infância pobre não é uma via de mão única, ou seja, os sistemas interestatais internacionais capitalistas não impõem essa agenda aos sistemas educativos dos países periféricos. Assim, os Estados regionais e globais, além de interpretarem o que está posto, respondem a uma agenda comum e levam em consideração “[...] a forma, a substância e o estatuto dos guiões [...]”, que “se alteram qualitativamente” (DALE, 2001, p. 454), pois a adoção da agenda globalmente estruturada para realizar a gestão da pobreza infantil é totalmente voluntária.
É visível que os organismos e as organizações multilaterais não realizam apenas um movimento superficial de suas propostas, os Estados respondem e interpretam essa agenda apresentando possibilidades de articular recursos econômicos, políticos e culturais para atender aos acordos legitimados internacional e nacionalmente. Campos (2008) ressalta que a construção de uma agenda globalmente estruturada para a infância que envolva a educação, os organismos e organizações multilaterais não deve ser compreendida como um processo unidirecional; muito pelo contrário, a construção dessa agenda é marcada “[...] por ações/reações diversas, eivadas de contradições, assimiladas em graus e formas variadas, dependendo da capacidade de resistência ou de concertação que caracterizem os governos locais” (CAMPOS, 2008, p. 7). De fato, as organizações e os organismos multilaterais não impõem orientações ou acordos aos países periféricos, muito menos impõem à força políticas educacionais nacionais, mas, como veremos a seguir, o Brasil tem investido em políticas que visam ao desenvolvimento econômico-educativo das crianças pobres.
A propagação de orientações de educar a infância no Brasil emerge em contexto de cooperação técnica, com princípios voltados para atender o gerenciamento da pobreza, negando veementemente a luta de classes e, consequentemente, contribuindo para a construção do cenário hegemônico necessário para germinar a infantilização da pobreza e a intersetorialidade em tempos de financeirização do capital.
A agenda regionalmente estruturada para a educação da primeira infância torna-se uma etapa fundante no processo de escolarização, estando intrinsecamente relacionada ao trabalho e, na atual sociabilidade de educar a infância, faz parte da pauta econômico-educativa que promove a educação para crianças pobres dentro do viés intersetorial desde a primeira infância.
A crescente influência da CEPAL e da UNESCO na educação tem promovido interferências nas políticas educacionais brasileiras ao dispor de consultorias técnicas que contribuem para que os países latino-americanos, como o Brasil, obtenham resultados positivos no combate à infantilização da pobreza, legitimando a coesão de agendas para educar a infância. De acordo com Rosemberg (2001), as agências multilaterais têm meios suficientes para influenciar a agenda nacional, pois possuem canais viáveis para construir o consenso e a hegemonia de decisões políticas e econômicas.
A agenda perpetrada no Brasil para atender a esta proposta resulta no Marco Legal da Primeira Infância (MLPI) - Lei n. 13.257/2016, cujas audiências públicas para sua materialização contaram com a representatividade de organizações da sociedade civil, que tem expressiva atuação na promoção de cuidados para com a primeira infância, como: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Instituto ALANA, Rede Nacional para a Primeira Infância e Sociedade Brasileira de Pediatria. A construção do MLPI incluiu ações de intersetorialidade, além do estabelecimento de parcerias público-privadas em prol de ações direcionadas à promoção e ao desenvolvimento das capacidades humanas das crianças (MOURA, 2019).
Além disso, endossa as ações firmadas nos países acerca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2030; da Rede de Ação para o Desenvolvimento da Primeira Infância, constituída pelo UNICEF, Banco Mundial e Organização Mundial de Saúde; e do Modelo de nutrição de cuidados/Nurturing care model (WORLD BANK GROUP, 2018), para incentivar os países a investir em programas intersetoriais.
O Marco Legal se embasa nos conceitos da neurociência, para a qual a primeira infância é o período de responsabilidades parentais mais amplas, sendo que isso envolve práticas voltadas ao desenvolvimento humano futuro e econômico (BRASIL, 2016), necessidade de reajustar as legislações, apontando-lhes os fundamentos oferecidos pelas pesquisas e experiências em nível mundial, conforme apresentado nas tendências e justificativas da agenda internacional intersetorial. Segundo esse modelo, os cuidados e a atenção com o desenvolvimento infantil devem incluir saúde, nutrição, cuidados responsivos, aprendizagem desde os primeiros anos de vida, proteção e segurança. O MLPI permite outras iniciativas de parcerias com instituições privadas, como ONGs, institutos e fundações, para crianças em idade escolar, e, além disso, incentiva os programas de apoio às famílias.
O MLPI contribuiu para as alterações sofridas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei n. 8.069/1990, estabelecendo princípios, diretrizes e políticas que deem atenção e relevância aos primeiros anos de vida da criança. A proposta, além de garantir a proteção integral dos direitos da criança na primeira infância, busca expandir estratégias e políticas intersetoriais em parcerias com organizações sociais (OS), organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e ONGs. Observamos ainda, no documento, a ampliação de redes nacionais e regionais, bem como o avanço do empresariado nos encaminhamentos da construção de políticas públicas para educar a primeira infância.
O documento MLPI justifica a importância de se investir na primeira infância, ao enfatizar a atenção devida às “[...] crianças que nascem em situação de pobreza, vivem em condições de falta de saneamento, recebem pouco cuidado ou pouca estimulação mental e uma nutrição empobrecida nos primeiros anos de vida” (BRASIL, 2016, p. 21, grifo nosso). A justificativa para a implementação do Marco Legal para a Primeira Infância advém com a proposta de educar crianças de 0 a 6 anos de idade, a partir de categorias que visem garantir a proteção do direito à infância, como forma de legitimar a efetivação de programas que visem superar a situação de pobreza. Ademais, a proposta não visa apenas atender os infantes em situação de vulnerabilidade social, mas também suas famílias, a fim de erradicar o ciclo de herança de pobreza (BRASIL, 2016).
No Marco Legal (BRASIL, 2016), destaca-se a urgência de qualificar o docente de Educação Infantil, tendo por estratégia a intersetorialidade na promoção do desenvolvimento integral, a prevenção e a proteção contra toda forma de violência à criança. Nesse sentido, a atuação do Ministério da Educação (MEC) na promoção da política formativa está relacionada ao atendimento da política do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), capacitando profissionais no atendimento das vias acima citadas, sejam elas públicas, sejam elas privadas.
O Quadro 1 demonstra as principais frentes e objetivos da atuação do Marco, evidenciando-se que as estratégias intersetoriais e da infantilização da pobreza ganham destaque, haja vista que incentivam programas de estimulação precoce, de aconselhamento familiar, ações de saúde e educação e uma vaga menção ao direito à educação.
Investir na formação das famílias |
Divisão de responsabilidade de pais e mães |
Atencão a 11:estantes oresas |
Aos municípios: programas de acolhimento de crianças de zero a seis anos, com educadores de |
referências |
Incentivar a articulação de políticas para integrar ações, considerando visão holística da criança, com |
vistas a cuidados e atendimentos inte11:rais. |
Garantir na educacão o direito à creche e à oré-escola |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).
A proposta do MLPI (BRASIL, 2016) determina que os investimentos para educar a infância devem visar: habilidades socioemocionais, habilidades cognitivas e saúde, pois uma criança de 0 a 6 anos que vive em condições de pobreza tende a apresentar desenvolvimento de suas capacidades humanas aquém do esperado. Por isso, se o investimento não ocorrer na idade certa, os impactos serão maiores quando elas chegarem à fase adulta, acarretando menores possibilidades de acesso ao mundo do trabalho e perpetuando o ciclo intergeracional da pobreza. Assim,
Os investimentos na primeira infância conduzem a benefícios significativos em longo prazo, que conduzem a lacuna entre alta e baixa renda familiar. Investir em crianças novas em situação de desvantagem promove justiça e equidade social e, ao mesmo tempo, promove produtividade na economia e na sociedade como um todo. (BRASIL, 2016, p. 22, grifo nosso).
A proposta de investimento na primeira infância evidencia os limites de toda a estrutura na qual se assenta o capital internacional, pois a crise econômica que irrompeu em 2008 não está isolada, mas deve ser apreendida como um evento de proporções econômicas, políticas, sociais e militares.
Os discursos emanados deste documento citado revelam que a aplicação de recursos financeiros na criança pobre, desde o ventre da mãe até a idade de seis anos, pode trazer retorno econômico, produtividade satisfatória e, principalmente, garantir capital humano futuro. Estes indicativos expressam as reconfigurações dos monopólios internacionais e dos organismos multilaterais, para atender às demandas de crescimento e acumulação capitalista. Sem restar dúvida, o “novo” fenômeno de infantilização da pobreza está em harmonia com as exigências da formação de uma “nova” subjetividade, desde a mais tenra idade, como forma de gerenciar a pobreza, seguir as novas orientações do capital imperialista, a fim de adequar a educação das crianças e famílias latino-americanas ao imperialismo hegemônico global de alinhamento de caráter economicista, que pretende orientar as políticas educacionais para a Educação Infantil.
As políticas econômico-educativas propostas pela CEPAL e UNESCO evocam que investir na primeira infância é a estratégia política de alta relevância, já que os resultados podem ser verificados em longo prazo e contribuirão para modificar os rumos políticos e econômicos do Brasil. Discordamos dessa afirmação, pois o investimento na primeira infância com vistas a formar uma nova subjetividade aprofundará a pobreza, tornando o trabalho cada vez mais individualizado e dessocializado. Asseveramos que as políticas educacionais brasileiras promovidas pelo poder público em parcerias público-privadas não se restringem, dada a sua dimensão, mas estão entrelaçadas às questões econômicas, políticas, disputas geopolíticas, fato que demonstra os conflitos entre o capital e o trabalho. Compreendemos que, no interior das crises do capital, ele se expressa de maneira mais violenta ao promover a redistribuição do lucro entre um grupo seleto de pessoas, pois atender a diligência da infantilização da pobreza é focar na própria dinâmica interna capitalista.
Nota-se que os desdobramentos econômicos da crise de 2008 têm se conectado com o conjunto de fatores políticos e ideológicos, cuja pauta nesse atual momento está focada na infância. Embora não reste dúvidas de que a crise do subprime tenha tomado proporções inimagináveis, ela tem revelado as contradições econômicas, políticas e sociais, e o fato de perquirirmos conexões entre fatores econômicos, extraeconômicos e sociais está longe de nos possibilitar entendimento da totalidade real e inesgotável deste “novo” fenômeno (MOURA, 2019).
As análises aqui engendradas para a educação da primeira infância são provenientes de múltiplas determinações, pois a construção de uma agenda econômico-educativa para a infantilização da pobreza decorre da falência neoliberal como modelo de acumulação internacional. Isso porque, ao nosso ver, o fenômeno da infantilização da pobreza proposto pela CEPAL não decorre unilateralmente de uma crise financeira, mas trata-se de uma crise sistêmica, “[...] uma crise do conjunto dos dispositivos colocados em prática para ter sucesso em restaurar a taxa de lucro, uma crise de soluções para a crise anterior”(HUSSON, 2017, p. 39, tradução nossa) 3, em que há redefinição do papel do Estado e o redimensionamento das relações entre público e privado.
As estratégias intersetorial e de infantilização da pobreza corroboram práticas de desenvolvimento infantil como oportunidade de ação de baixo custo. Essas estratégias endossam um movimento em rede dentro das redes (BALL, 2014; PERONI; CAETANO; LIMA, 2021) com uma configuração filantrópica. A filantropia de rede ([BALL, 2014] é um vasto mercado que se conecta com outros países, formando redes e ligando atores do Terceiro Setor ao setor privado e aos governos, sobretudo pela focalização de programas voltados para a educabilidade de famílias e crianças pobres.
Como parte constitutiva deste processo na formação de políticas educacionais para a primeira infância, apuramos o protagonismo empresarial não apenas como formuladores da política, mas tornando-se os principais executores, como é o caso da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que tem sido a principal articuladora no estabelecimento de parcerias entre o público e o privado no desígnio de educar a primeira infância (BORTOT; SCAFF, 2020).
Assim, o marco legal das políticas educacionais para educar a primeira infância está diretamente ligado à ofensiva do capital contra o trabalho, que tem na política econômica, fiscal e social uma dimensão que só pode ser materializada à medida que transforma o mundo do trabalho. A coordenação desse processo fica sob responsabilidade do capital financeiro ao articular hiperprodutividade “[...] do trabalho qualificado no mundo do trabalho nas potências, ao mesmo tempo em que semiescraviza e explora até a última gota de sangue e de tempo dos trabalhadores [...]” dos países pobres (TONELO, 2019, p. 110), o que deve ser iniciado desde a mais tenra idade.
4 CONCLUSÕES
À guisa de conclusão, observa-se que o Projeto de Educação para a Infância na América Latina e no Caribe alinha-se às relações entre capital-trabalho, na qual se destaca, estrategicamente, o combate à pobreza e à manutenção dessa pela teoria do capital humano. Por meio da educação intersetorial e da infantilização da pobreza, organizou-se uma pauta de ações na região e, a partir dessas ações, um alinhamento claro com o terceiro setor, reduzindo a educação da infância a projetos e programas focalizados, distantes dos princípios do direito à educação de qualidade.
A intersetorialidade e a infantilização da pobreza, na perspectiva dos organismos multilaterais, contribuem para o “desenvolvimento de uma nova esfera de poder inteiramente dedicada aos fins privados, e não aos sociais” (WOOD, 2003, p. 36), pois a pobreza e seus mecanismos de manutenção e controle são disseminados por organismos e organizações internacionais como algo inerente ao sistema capitalista. Discordamos veementemente do discurso de agências internacionais, que colocam a educação e a pobreza na centralidade dos debates públicos, associando esses assuntos ao novo ethos individualista e ao esforço pessoal. Para isto, “[...] o capital precisa de personificações que façam a mediação (e imposição) de seus imperativos objetivos como ordens conscientemente exequíveis sobre o sujeito real, potencialmente o mais recalcitrante, do processo de produção” (MÉSZÁROS, 2011, p. 126).
O projeto de educação da infância é ambíguo, pois, ao mesmo tempo que defende as crianças na escola, defende, acima de tudo, que se instalem programas de atendimento de crianças e famílias pobres. Além disso, a infância se torna uma etapa oportuna de abertura às parcerias público-privadas, no planejamento e na implementação de ações, como sinalizado pelo MLPI, pautadas na produção de capital humano com medidas de baixo custo.