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Educação & Formação

versión On-line ISSN 2448-3583

Educ. Form. vol.8  Fortaleza  2023  Epub 18-Jul-2023

https://doi.org/10.25053/redufor.v8.e10357 

Artigos

Formação continuada de professores em educação intercultural: um estudo de caso em antropologia educacional

Formación continua de docentes en educación intercultural: un estudio de caso en antropología educativa

Cristina Misturini Satoi  , Conceitualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, visualização, rascunho original e redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-4315-8954; lattes: 9959184973336493

Eloy Gómez Pellónii  , Supervisão, validação, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1352-0200

iUniversidade de Salamanca, Salamanca, Espanha. E-mail: misturinicris@gmail.com

iiUniversidade de Cantábria, Santander, Espanha. E-mail: jose.gomezp@unican.es


Resumo

O multiculturalismo está presente como tema transversal a ser desenvolvido nas escolas do ensino fundamental, conforme disposição da Base Nacional Comum Curricular, seus fundamentos encontrando-se em cartilha sobre Pluralidade Cultural dos Parâmetros Nacionais Curriculares, que orienta que interculturalidade também deve ser praticada no cotidiano escolar, como forma de educação intercultural, promovendo ambiente de tolerância nas escolas. O presente artigo é um estudo de caso em antropologia educacional, pesquisando formação continuada de professores em educação intercultural e em conhecimentos antropológicos que dão suporte a esta. O estudo foi realizado com grupo de educadores do 4º ano do ensino fundamental de escola da rede privada de ensino do interior do estado de São Paulo, visando verificar a ocorrência ou não da modificação da cultura profissional deste, após processo de formação continuada em educação intercultural. Seus procedimentos metodológicos consistiram na observação participante de docentes no processo de formação continuada em educação intercultural e em entrevistas semiestruturadas com estes antes e depois da formação, através da abordagem hermenêutica, interpretativa e compreensiva da descrição densa de Geertz e da análise de conteúdo de Bardin. Como resultados, notou-se que, antes da formação continuada, o grupo de professores não tinha conhecimentos teóricos sobre os conceitos antropológicos que fundamentam a educação intercultural, mas conseguia desenvolver algumas práticas nesta direção. Durante e posteriormente à formação continuada, percebeu-se que os docentes conseguiram adquirir maiores conhecimentos teóricos sobre o tema, mas principalmente aumentaram o escopo de suas práticas em educação intercultural, abandonando práticas punitivas em favor das dialógicas, cooperativas e democráticas, fenômeno que foi notado em relação a todo o grupo de professores, o que deixa perceptível que houve mudança, nesse sentido, da cultura profissional deste grupo de professores.

Palavras-chave: educação intercultural; Base Nacional Comum Curricular; formação continuada de professores; antropologia educacional; etnografia

Resumen

La multiculturalidad está presente como un tema transversal a desarrollar en las escuelas primarias, tal como lo establece la Base Curricular Común Nacional, encontrándose sus fundamentos en un cuadernillo sobre Pluralidad Cultural de los Parámetros Curriculares Nacionales, que orienta que la interculturalidad también debe ser practicada en la rutina escolar como forma de educación intercultural, fomentando un ambiente de tolerancia en las escuelas. Este artículo es un estudio de caso en antropología educativa, investigando la formación permanente de docentes en educación intercultural y los saberes antropológicos que la sustentan. El estudio fue realizado con un grupo de educadores del 4º año de la enseñanza fundamental de una escuela privada del interior del estado de São Paulo con el fin de verificar la ocurrencia o no de cambios en su cultura profesional, después del proceso de la educación continua en la educación intercultural. Sus procedimientos metodológicos consistieron en la observación participante de docentes en proceso de formación continua en educación intercultural y entrevistas semiestructuradas con ellos antes y después de la formación, mediante el enfoque hermenéutico, interpretativo y comprensivo de la descripción densa de Geertz y el análisis de contenido de Bardin. Como resultado, se notó que, antes de la formación continua, el grupo de docentes no poseía conocimientos teóricos sobre los conceptos antropológicos que subyacen a la educación intercultural, pero lograron desarrollar algunas prácticas en esa dirección. Durante y después de la formación continua, se constató que los docentes lograron adquirir mayores conocimientos teóricos sobre el tema, pero principalmente ampliaron el alcance de sus prácticas en la educación intercultural, abandonando las prácticas punitivas en favor de las dialógicas, cooperativas y democráticas, fenómeno que se notó en relación a todo el grupo de docentes, lo que deja claro que ha habido un cambio, en ese sentido, en la cultura profesional de este grupo de docentes.

Palabras clave: educación intercultural; Base Curricular Común Nacional; formación continua del professorado; antropología de la educación; etnografía

Abstract

Multiculturalism is present as a cross-cutting theme to be developed in elementary schools, as provided by the Common Core National Base, its foundations being found in a booklet on Cultural Plurality of National Curricular Parameters, which guides that interculturality should also be practiced in the school routine, as a form of intercultural education, promoting an environment of tolerance in schools. The present article is a case study in educational anthropology, investigating the continuing education of teachers in intercultural education and in anthropological knowledge that supports this. The study was carried out with a group of educators from the 4th year of elementary school, from a private school in the interior of the state of São Paulo, in order to verify the occurrence or not of changes in their professional culture, after a process of continuing education in intercultural education. Its methodological procedures consisted of participant observation of teachers in the process of continuing education in intercultural education and semi-structured interviews with them before and after training, through the hermeneutic, interpretive and comprehensive approach of Geertz's dense description and Bardin's content analysis. As a result, we noticed that, before continuing education, the group of teachers did not have theoretical knowledge about the anthropological concepts that underlie intercultural education, but managed to develop some practices in this direction. During and after continuing education, we noticed that teachers were able to acquire greater theoretical knowledge on the subject, but mainly, they increased the scope of their practices in intercultural education, abandoning punitive practices in favor of dialogic, cooperative and democratic ones, a phenomenon that was noted in relation to the entire group of teachers, which makes us realize that there has been a change, in this sense, in the professional culture of this group of teachers.

Keywords: intercultural education; Common Core National Base; continuing teacher training; educational anthropology; ethnography

1 Introdução

O presente artigo visa apresentar pesquisa sobre formação, para educação intercultural, de educadores dos anos iniciais do ensino fundamental em escola de rede particular do interior do estado de São Paulo. De acordo com a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino fundamental, aprovada em 2017 (CANNETIERI; PARAHYBA; SANTOS, 2021), as escolas devem promover ensino de seis grandes áreas temáticas, uma das quais sendo o multiculturalismo, que abrange os temas de diversidade cultural e educação para a valorização das múltiplas raízes culturais e históricas brasileiras. Outra área temática importante diz respeito à Cidadania e Civismo, em que há o tema dos direitos da criança e do adolescente. O desenvolvimento das grandes áreas temáticas é obrigatório e deve se dar de forma transversal e integradora, ao contrário dos anteriores Parâmetros Nacionais Curriculares (PCN), de 1997, em que era facultativo. Porém, como não houve publicação de cartilhas específicas por parte do Ministério da Educação para essas duas grandes áreas temáticas, a cartilha de orientação dos PCN relativa à diversidade cultural e orientação sexual (BRASIL, 1997) continua sendo válida. Nesta cartilha, há recomendações de que professores recebam formação em conceitos antropológicos, além de que o tema interculturalidade não deva ser tratado apenas como conteúdo pedagógico, mas que docentes desenvolvam a educação intercultural no seu cotidiano escolar, evitando fenômenos como racismo e discriminação de grupos sociais.

O presente estudo pretende contribuir com reflexões e análises acerca da formação de professores sob a ótica dos conceitos da educação intercultural, como proposto pela BNCC assim como pelos PCN. Nesta linha, consideramos que o fomento à educação intercultural pode levar à construção de cultura de tolerância, apesar de o cotidiano escolar atual mostrar que conflitos e discriminações estão presentes. Nesse sentido, a presente pesquisa busca oferecer contribuições para a formação de professores para a educação intercultural, revestindo-se de certa importância, dado que poucas pesquisas científicas foram realizadas nessa área.

A pesquisa foi realizada em escola da rede privada de município do interior do estado de São Paulo, Brasil, com educadores do 4º ano do ensino fundamental. Justificamos o estudo ter sido realizado nessa escola primeiramente pelo fato de que este tipo de estudo é mais numeroso em instituições públicas, mas raro em relação às particulares. Outro motivo para esta escolha foi o de que a direção da escola, preocupada em evitar conflitos entre discentes, de alguns anos para cá, estimulou a adoção de estratégias educativas que visam alcançar cultura de tolerância, tais como as práticas restaurativas (SATO, 2022), que também pode ser considerada modalidade de educação intercultural, pois, ao proporcionar escuta atenta dos discentes em conflitos, permite compreensão da posição do outro, conscientização do que seu ato provoca neste e solução negociada entre as partes. Nesse sentido, Soares (2020) ressalta a importância de uma formação de professores mais integrada, que leve em consideração a prática real e as necessidades dos educadores, a fim de garantir uma formação mais efetiva e aplicável no contexto educacional.

Neste estudo, pesquisamos, no primeiro momento, através de entrevistas semiestruturadas, se os educadores possuíam conceitos antropológicos básicos para a educação intercultural e se desenvolviam práticas nesse sentido. No segundo momento, observamos etnograficamente uma formação desses professores em conceitos antropológicos e desenvolvimento da prática da educação intercultural. No terceiro momento, fizemos nova rodada de entrevistas semiestruturadas, para verificar o que permaneceu desta formação.

Acreditamos que conceitos antropológicos como interculturalidade, intraculturalidade, multiculturalidade e transculturalidade, propostos por Aparicio Gervás e Delgado Burgos (2017), no contexto do desenvolvimento de uma educação intercultural em relação aos filhos dos imigrantes que adentram a Espanha, e por Martins (2016, 2019), além do de sobreculturalidade criado por Martins (2016, 2019), no contexto da educação dos povos indígenas do Ceará, possam auxiliar os docentes a compreender e praticar o conceito de educação intercultural. Os autores definem a intraculturalidade como o autorreconhecimento, que implica autoconhecimento e autoaceitação por parte do indivíduo ou do grupo social de sua própria cultura, que ganha foros de resgate cultural, em culturas minoritárias indígenas que sofreram com a desintegração de sua própria cultura (MARTINS, 2016, 2019). A multiculturalidade significa o reconhecimento da existência de indivíduos ou grupos sociais com cultura diversa da do sujeito ou do coletivo, mas que pode derivar para o fundamentalismo cultural e o etnocentrismo, no qual se busca a defesa intransigente de sua própria cultura em relação às outras, o que pode gerar graves conflitos comunitários e fenômenos como aculturação e assimilação por parte das culturas dominantes frente às de menor status, enquanto estas podem passar pelo fenômeno de segregação e exclusão (APARICIO GERVÁS; DELGADO BURGOS, 2017).

Já o conceito de interculturalidade corresponde a “[...] un espacio compartido de diálogo y de comunicación que no entrañe la supremacia de unas culturas sobre otras o una concurrencia de muchas culturas viviendo próximas, pero aisladas en especies de guetos subculturales” (ESPINA-BARRIO, 2005, p. 15). É sobre essa concepção de interculturalidade de Espina-Barrio (2005) que baseamos a noção de educação intercultural, no sentido do desenvolvimento de uma educação que respeite as diferenças culturais entre os discentes, formando cidadãos que conheçam sua cultura e se orgulhem dela, sem ficar obcecados pela defesa de ideais nacionalistas, étnicos e/ou religiosos, abertos para aprender com os outros e suas culturas (ESPINA-BARRIO, 2005).

O conceito de transculturalidade, por sua vez, diz respeito a formas de “[...] pensar e atuar consigo e com os demais” (MARTINS, 2019, p. 72), formando uma comunidade em que os diversos sujeitos culturais, ou grupos culturais, interajam pensando no coletivo que os engloba. Por último, o conceito de sobreculturalidade (MARTINS, 2016, 2019) implica a condição de sobrevivência dos sujeitos e dos grupos culturais, que se veem, diante desse cenário transcultural, passíveis de direitos e deveres.

Em relação ao conceito de educação intercultural, Fleuri (2002) coloca que devemos reconhecer que a interação, nas escolas, entre sujeitos e coletivos de identidades culturais diferentes, pode gerar conflitos que os educadores devem buscar superar, desconstruindo estruturas socioculturais geradoras de discriminação, de exclusão ou de sujeição entre os grupos sociais. Candau (2009, p. 170) coloca que a educação intercultural não deve ser reduzida a algumas atividades em momentos específicos do cotidiano escolar, mas sim afetar todos os atores escolares e todas as dimensões do processo educativo, como a “[...] seleção curricular, a organização escolar, as linguagens, as práticas didáticas, as atividades extraclasse, o papel do/a professor/a, a relação com a comunidade etc.”.

Candau (2011) argumenta que há uma sólida ligação entre a cultura e o processo pedagógico, que, na verdade, a escola é um veículo de transmissão cultural. Desse modo, esta pode ser utilizada no sentido da transmissão de um ensino de característica intercultural, se devidamente organizada para isso. Candau (2020) reconhece, porém, que a escola tem sido, historicamente, veículo de homogeneização cultural, a serviço da cultura dominante, tecnológico-científica, advinda da hegemonia desse paradigma, a partir da filosofia cartesiana e da física newtoniana (GÓMEZ PELLÓN, 2010).

Apesar de se ter que se considerar o todo do processo educativo, consideramos que há uma peça-chave no processo de mudança educativa, que é o professor. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), nas suas diretivas para a Educação para o Século XXI (DELORS et al., 2010), aponta para a importância do professor no processo de mudança escolar, dado que ele é o ator social que mais convive com os discentes, colocando que sem ele esta não é possível, recomendando, por sua vez, que os gestores da educação invistam nos docentes, tanto no sentido material como também no social e cultural. Nessa direção, consideramos que a educação continuada desse segmento profissional é muito importante para a construção de um sistema de educação intercultural, que pode ter como resultado a construção de sujeitos autônomos, com autoestima, não inferiorizados ou colocados em situação subalterna (CANDAU, 2020).

Baztán (2008) pondera que a antropologia, inicialmente, estudou comunidades quase totalmente isoladas, mas que este panorama, no pós-guerra, modificou-se bastante, esta ciência visando também segmentos urbanos. Colocou que a formação cultural do indivíduo urbano se dá tanto por escolha própria de pertencimento a grupos culturais, que ele nomeou de autoafiliação, como por taxativas de outros que atribuem o pertencimento do indivíduo ou grupo a certas categorias culturais - heteroafiliação -, as duas contribuindo para a afiliação cultural do indivíduo. Em relação à autoafiliação, argumenta que o indivíduo pode desenvolver identidade cultural complexa, pela sua afiliação e sentimento de pertencimento a diversos grupos, como família, grupo religioso, clube de futebol, nação, trabalho, categoria profissional, escola, classe escolar, grupo de amigos, etc. Baztán (2008) coloca, porém, que esse sentimento identitário é dinâmico, com possibilidades de desfiliação, novas afiliações; diminuição ou aumento da intensidade da sensação de pertencimento a determinado grupo. Em relação à heteroafiliação, pensamos que, muitas vezes, não é tão simples de ser desfeita, dado que pode ser construída a partir de estereótipos sociais, como o racismo, no caso de etnias, e aqueles criados por quem pratica bullying, no caso dos estudantes. Em termos das crianças que estudam, consideramos que as crianças, que encontram na escola uma agência cultural de primeira grandeza, receberão desta forte influência em termos da constituição de sua identidade cultural.

O autor argumenta que, em termos da antropologia organizacional, “[...] Aunque a veces digamos que la organización tiene una cultura como cuando afirmamos que ‘tenemos un cuerpo’, la organización es una cultura, como cada uno de nosostros somos nuestro cuerpo ” (BÁZTAN, 2008, p. 101, grifos do autor). A partir do pensamento deste autor, consideramos a escola, o coletivo de professores e o grupo-classe, que inclui alunos e docentes, também como organizações e culturas, este estudo se centrando no grupo de professores de um ano letivo como organização cultural, que está em interação com a cultura escolar e com a cultura dos discentes.

Nesse sentido, Costa (1988) coloca que, se um grupo de profissionais que, a partir de seu autorreconhecimento como um coletivo com determinadas funções sociais, desenvolve um conjunto de representações, valores e normas sobre o seu próprio domínio de atividade profissional e inserção do mundo científico, este conjunto referido pode ser chamado de cultura profissional. No âmbito deste estudo, consideramos o conceito de cultura profissional docente.

Fartes e Santos (2011, p. 380), explorando este conceito, pontuam que a cultura profissional docente é construída coletivamente pelos professores em contexto de trabalho, de forma intersubjetiva, construindo sentidos, influenciados pelas “[...] relações assimétricas de poder existentes inter e intragrupos”. As autoras também discorrem sobre que o conceito de cultura profissional docente enfatiza que o coletivo de professores centra sua identidade nas relações com o conhecimento, através de práticas sociais, e a reflexão sobre o uso do conhecimento. Nessa linha de pensamento, podemos dizer que uma formação continuada pode aumentar a possibilidade de reflexão sobre o uso do conhecimento, levando à mudança de identidade dos professores como indivíduos e como coletivo profissional, transformando a cultura docente do grupo.

O pioneiro da psicoterapia, Alfred Adler (1967), a partir do conceito de interesse social, central em sua obra, começou a se interessar pela questão da educação, tendo sido um dos primeiros psicólogos a participar de programas de formação continuada de professores, assim como a dar aula em faculdades de pedagogia austríacas (LEAL; MASSINI, 2017). Seguidor da ideologia socialista, também criou, dentro do âmbito de uma Viena que, entre 1922-1934, foi governada por partidos de esquerda, a chamada “Viena Roja” (GARCÍA, 2004), os centros de aconselhamento escolar, em que psiquiatras voluntários davam assessoria a professores que indicavam alunos com dificuldade de aprendizagem e seus pais, para que pudessem superar suas dificuldades, a partir do seu conceito de superação da inferioridade e desenvolvimento do interesse social, contribuindo para a não estigmatização destes alunos e para a sua integração no grupo-classe. A partir dessa intensa atuação, Adler teve bastante importância no campo do desenvolvimento da educação austríaca do período entreguerras (LEAL; MASSINI, 2017).

Seu amigo e discípulo Rudolf Dreikurs (CAMP, 2022), emigrou para os Estados Unidos e continuou a aplicação da teoria adleriana à educação. Fundamentada na obra de Adler e Dreikurs, Jane Nelsen desenvolveu o conceito de Disciplina Positiva (SOARES et al., 2022). Esta corrente de pensamento, segundo Lasala, Mcvittie e Smitha (2020), constitui-se em uma prática que se desenvolve em um contexto de respeito mútuo, no qual professor e aluno são igualmente merecedores de respeito e dignidade, contrapondo-se à pedagogia tradicional, na qual é devida obediência e conformismo por parte do aluno em relação ao adulto, que é merecedor de respeito e pode punir o primeiro, se sentir que este o desrespeitou. Neste ponto, podemos dizer que a pedagogia tradicional institui uma cultura escolar em que o docente tem todo o poder, inclusive de punir o aluno, e este deve obediência e respeito quase incondicionais ao professor.

Apesar de não utilizar o termo “educação intercultural”, alguns dos objetivos da disciplina positiva envolvem a questão do reconhecimento e aceitação dos diferentes. Relacionando os princípios da disciplina positiva com os da identidade cultural de indivíduos urbanos de Báztan (2008), podemos afirmar que a primeira acaba por buscar a formação de uma identidade cultural mais incluída e inclusiva por parte de educadores e educandos. Então, podemos dizer que as ferramentas e objetivos da disciplina positiva podem atuar no sentido de promover a educação intercultural e melhora das relações do docente com o grupo-classe, este assumindo um papel não autoritário, mas sim democrático e cooperativo, com a transformação do perfil cultural do professor.

Em relação às ferramentas que a disciplina positiva utiliza, podemos elencar a comunicação respeitosa, gentil e firme, quando necessária, reuniões de classe, dinâmicas de caráter socioemocional, entre outras. Sobre as reuniões de classe, Nelsen, Lott e Glenn (2017) relatam um caso de uma escola pública na Califórnia em que eram inúmeros os casos de violência escolar, vandalismo e suspensões, mas que, devido ao esforço de professores, que se empenharam em realizar reuniões de classe, conseguiram diminuir muito tais ocorrências.

2 Metodologia

O estudo ocorreu em escola da rede privada do interior do stado de São Paulo. Os sujeitos da pesquisa são sete educadoras do ensino fundamental I, sendo uma orientadora educacional e seis docentes. Todas assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido elaborado por nós. A pesquisa teve três etapas: a primeira e a última consistiram em entrevistas semiestruturadas com seis educadoras, visando compreender o conhecimento antropológico e a capacidade de desenvolvimento de práticas interculturais por parte delas. A segunda foi a observação etnográfica sobre uma formação em práticas de educação intercultural e conhecimentos antropológicos.

Sobre a validade da entrevista semiestruturada como ferramenta etnográfica, autores (DURHAM, 1986) defendem seu uso, principalmente quando o pesquisador estuda segmentos urbanos culturalmente próximos a ele, inclusive quando se trata da etnografia educativa (DAUSTER, 2004). Durham (1986) coloca que, na etnografia de povos isolados, no qual seu idioma é totalmente diferente do antropólogo, este deverá buscar o aprendizado daquele para poder entrar em contato com o universo cultural estudado. Ela argumenta, porém, que este aprendizado nunca será perfeito, portanto a observação do comportamento será ferramenta etnográfica fundamental. Ela infere que, em relação a segmentos urbanos de idioma próximos ao do antropólogo, a comunicação verbal não encontra barreiras de entendimento e os valores simbólicos e culturais do entrevistado podem ser transmitidos dessa maneira. Dauster (2004) coloca que as entrevistas em etnografia da educação podem espelhar situações dialógicas e coletar dados referentes a situações e valores sociais e culturais dos entrevistados.

Apesar de Dauster (2004) utilizar a entrevista dentro de seu arcabouço referente à etnografia da educação, dentro do mesmo estudo utiliza a etnografia através da observação participante e elaboração de diários de campo. Nesta linha, aproxima-se de André (2012), que desenvolve estudo de caso etnográfico em que se utilizam entrevistas e observações de campo em cenário escolar. A autora coloca as peculiaridades dessa modalidade de pesquisa, isto é, que o estudo abarque um sistema bem definido, “[...] como uma pessoa, um programa, uma instituição ou um grupo social” (ANDRÉ, 2012, p. 37). No caso de nosso estudo, o objeto principal é compreender os efeitos de uma formação continuada de professores em educação intercultural ocorrida em instituição específica, por tempo delimitado, com grupo fechado de educadores. Porém, como argumenta a autora, o estudo de caso pode ser relacionado ao seu contexto, ou a um todo maior, o que, de certa forma, realizamos também neste estudo, ao relacionar a formação com questões da educação nacional, como a necessidade de implantação da educação intercultural nas escolas brasileiras.

A etnografia em educação (MERCER, 1998) recebeu reconhecimento como forma de pesquisa do que ocorre em sala de aula a partir da década de 1960. Atualmente, esta é considerada como um dos métodos de pesquisa mais importantes na educação, suplantando outros, como os de observação sistemática, de caráter quantitativo e positivista, e o de análise linguística, os dois carecendo da consideração dos aspectos sociais da interação educacional, pois dependem do estabelecimento de categorias linguísticas rígidas a partir das quais classificam as interações verbais ocorridas, para depois realizarem as análises. A etnografia, que trabalha através da observação participante, procurando registrar integralmente a vida social, sem fragmentações, mostrou-se superior aos outros métodos de observação de sala de aula.

Justificados desta maneira os procedimentos utilizados na pesquisa, colocamos que a primeira fase das entrevistas ocorreu com seis educadoras, em agosto de 2021. As entrevistas, que foram gravadas, duraram cerca de meia hora cada. As observações etnográficas, por meio de observação participante e confecção de diário de campo, cobrem período de cinco meses, de agosto de 2021 a março de 2022, em que foram realizados encontros mensais de formação de professores com a orientadora educacional, com duração de duas horas, dos quais participaram mais seis professores do 4º ano do ensino fundamental da escola. Por fim, seis educadoras foram entrevistadas novamente, em março de 2022, com entrevistas gravadas que duraram cerca de meia hora cada. No total, foram dez horas de observação etnográfica, às quais se somam seis horas de entrevistas gravadas. Dada a imensidade de dados coletados, iremos apresentá-los de forma sintética e recortada em relação aos resultados das entrevistas, o mesmo acontecendo em relação à observação etnográfica, para não ultrapassarmos os limites deste artigo.

Os dados obtidos através das entrevistas semiestruturadas e das observações etnográficas foram interpretados de forma hermenêutica. A hermenêutica, de acordo com o importante filósofo Wilhelm Dilthey (1900) - que foi o primeiro a destacar a característica explicativa das ciências da natureza, contrapondo-a à natureza compreensiva das ciências humanas -, é a arte ou ciência de interpretar e compreender textos, iniciada na Antiguidade pelos gregos na exegese da Ilíada e Odisseia, sendo retomada pelos cristãos primitivos e depois por reformistas e contrarreformistas em relação à análise da Bíblia. A hermenêutica moderna, como ciência interpretativa de qualquer texto, foi iniciada por Schleiermacher (DILTHEY, 1900) e desenvolvida por autores do porte de Heidegger, Gadamer e Ricoeur (MANCILLA, 2022).

Bardin (2016), colocando o desenvolvimento da análise de conteúdo, pontua que esta se origina de três fontes clássicas, ou seja, da hermenêutica, retórica e lógica. Relendo Dilthey (1900), este aponta para que a hermenêutica, desde os tempos clássicos, baseou-se na retórica e na lógica, o que contradiz Bardin (2016), ao mesmo tempo que a aproxima à hermenêutica.

Geertz (2007) coloca sua abordagem antropológica vinculada à hermenêutica, no sentido de que esta é basicamente interpretativa. Ele coloca sua concepção da relação do homem com a cultura: “Assumo, como Max Weber, o homem como um animal enredado à uma teia de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura, como esta teia de significados e sua análise” (GEERTZ, 1968, p. 4). Ele propõe realizar uma descrição densa, em que os comportamentos modelados dos sujeitos representativos de uma cultura “[...] podem ser lidos como um texto, mesmo que não totalmente linear, nem totalmente lógico, no qual podem estar presentes [...] elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos [...]” (GEERTZ, 1968, p. 7).

De forma semelhante ao que Geertz conceitua em relação ao comportamento modelado, Bardin (2016, p. 94) considera que a fala do entrevistado numa entrevista semiestruturada não é linear nem totalmente lógica, contém “[...] ‘buracos’, com digressões incompreensíveis, negações, incômodas, recuos, atalhos, saídas fugazes ou clarezas enganadoras”.

Um autor que também nota as proximidades dos métodos de Geertz e Bardin é Martins (2016, 2019), que propõe a junção dos dois métodos de análise em trabalhos antropológicos. Defendemos também esse ponto de vista, posto que ambos têm origem semelhante - a hermenêutica e a abordagem compreensiva, apenas aplicadas a contextos diferenciados, Geertz em relação ao comportamento modelado e Bardin em relação ao conteúdo de entrevistas. Nesta linha de pensamento, utilizaremos a descrição densa na análise da observação participante e na análise de conteúdo, em relação ao que foi coletado nas entrevistas.

Geertz (1968) coloca que o etnógrafo, ao realizar a descrição densa, anota o discurso social. Podemos dizer que, através dos diários de campo ou do registro de entrevistas, interpreta o fluxo do discurso social. Essa descrição anotada fixa o discurso social daquele momento, salvando-a de sua desaparição, e possibilita a pesquisa posterior (GEERTZ, 1968).

Mattos (2011, p. 54), aplicando a abordagem de Geertz ao cenário educacional, coloca que o objetivo desta é “[...] obter uma descrição densa, a mais completa possível, sobre o que um grupo particular de pessoas faz e o significado das perspectivas imediatas que eles têm do que eles fazem [...]”. A autora coloca que, dentro dessa perspectiva, o que é percebido é interpretado pelo etnógrafo, de forma comparativa a contextos semelhantes, podendo haver diferentes níveis de significação em relação ao material coletado.

Bardin (2016) coloca que o trabalho de análise dos conteúdos de entrevistas tem como objetivo último inferir os significados do que foi enunciado pelos entrevistados, após a sua análise, interpretando esses significados a partir do referencial teórico do pesquisador (SANTOS, 2012).

Outra questão metodológica a ser considerada é sobre o discurso emic - do emissor da mensagem -, no caso, a população estudada, e o discurso etic - do receptor da mensagem -, no caso, o etnógrafo. Consideramos as falas e comportamentos dos professores estudados como o discurso emic e nossa escrita como o discurso etic, inclusive as interpretações realizadas a partir das falas e comportamentos dos professores (GEERTZ, 2007).

Colocamos também que este estudo se configura como de antropologia ativa (BAZTÁN, 2008), no qual há uma demanda emic, dos donos do problema, em que há uma resposta através de um diagnóstico etic. Geertz (1968) e Mattos (2011) apontam que o estudo de caso não representa a solução de determinado problema, mas uma solução dada por uma cultura a esse problema, o qual poderá servir de referencial para que outros possam solucioná-lo. André (2012), por sua vez, coloca que as conclusões de um estudo de caso particular poderão ser aplicadas a um contexto mais geral.

3 Resultados e discussão

As entrevistas semiestruturadas realizadas na parte inicial da pesquisa visaram obter dados sobre a formação e carreira profissional das educadoras, assim como seus conhecimentos antropológicos e práticas em relação à educação intercultural, antes da formação oferecida pela escola.

Em relação à formação profissional, a educadora A relatou ter 30 anos de formação, formando-se pelo antigo curso de magistério e, posteriormente, com a exigência de formação universitária, na faculdade de Pedagogia. A educadora B disse ter 27 anos de exercício profissional e relatou os mesmos passos na carreira que A. A orientadora, educadora C, tem 17 anos de formação universitária; a educadora D, 14 anos; a educadora E, dois anos. Todas concluíram cursos de pós-graduação, quatro na modalidade lato sensu, e a educadora C, na modalidade stricto sensu - mestrado.

Uma das perguntas realizadas na entrevista diz respeito a se as educadoras haviam tido alguma introdução a conhecimentos antropológicos, em qualquer nível de formação, e todas, com exceção da educadora E, disseram que não. A educadora E disse que havia cursado a disciplina Metodologia da Matemática II em sua graduação, em que foi introduzida à matemática de povos não europeus, à etnomatemática e ao ensino da matemática para povos indígenas. Relatou que, em seu estágio, havia trabalhado com a questão de cada aluno ter sua própria bagagem cultural. Em contraponto a ela, a educadora A referiu que se lembrava que, em seu curso de magistério, realizado nos tempos do regime militar, havia cursado a disciplina Educação Moral e Cívica, de cunho nacionalista e culturalmente assimilacionista. A educadora também relatou que, no tempo que cursou a graduação, a relação professor-aluno era autoritária, as matérias eram “jogadas” pelos professores, assemelhando-se muito ao modelo de educação bancária da pedagogia tradicional (FREIRE, 1983). Todas as educadoras, com exceção da professora E, disseram que não haviam tido em nenhum momento noções de educação ou currículo intercultural.

Outra pergunta importante da entrevista é se as educadoras tinham conhecimento sobre conceitos da intraculturalidade, multiculturalidade, interculturalidade, transculturalidade e sobreculturalidade. As respostas das educadoras revelaram que elas tinham pouco conhecimento sobre os conceitos, uma educadora assumindo claramente que não tinha noção sobre eles, e as respostas das outras educadoras ou eram equívocas ou tangenciavam os conceitos de forma muito imprecisa. Considerando que os conceitos de intraculturalidade, transculturalidade e sobreculturalidade são muito recentes e pouco conhecidos, este desconhecimento não seria tão estranho, porém, em relação a conceitos consagrados como multiculturalidade e interculturalidade, a falta de conhecimento sobre eles mostra desconhecimento de conceitos importantes para a prática educativa intercultural.

Outra pergunta buscou compreender se as educadoras praticavam a educação intercultural. Duas professoras responderam que o tema da interculturalidade está presente via projetos transversais, enquanto duas outras referiram que sua prática da educação intercultural está presente via trabalho com os conflitos entre os discentes, uma relatando que trabalha esse tipo de problema via práticas restaurativas e outra, via mediação de conflitos. Apenas uma professora disse que a escola tem uma filosofia de respeito mútuo, mas não citou uma prática especificamente sua em termos da interculturalidade. Podemos interpretar que duas educadoras trabalham a interculturalidade como conteúdo pedagógico, que, a nosso ver, é a forma mais tradicional de se trabalhar o tema, enquanto duas conseguem desenvolver práticas interculturais de intervenção em conflitos com os discentes, enquanto uma das educadoras disse não se ver desenvolvendo práticas de educação intercultural. De maneira geral, vemos que o conhecimento teórico sobre a educação intercultural e sobre conhecimentos antropológicos que possam suportá-la é muito pequeno entre os educadores, mas que, por outro lado, de alguma forma, a maioria das docentes consegue desenvolver algum tipo de prática intercultural.

Após a realização das entrevistas, a orientadora educacional passou por formação em conceitos antropológicos e práticas de educação intercultural, através dos procedimentos da disciplina positiva, por profissional indicado pela escola, que deu formação a todas as orientadoras educacionais do ensino fundamental. Formada dessa maneira, ela se dispôs a oferecer a formação para seus professores em cinco encontros. Estes seguiram roteiro de apresentação de conhecimentos antropológicos e práticos sobre educação intercultural, além de dinâmicas de cunho socioemocional retirados de práticas da disciplina positiva. Escolhemos das dinâmicas as que consideramos as mais significativas para a formação das educadoras.

No primeiro encontro, observamos que a orientadora propôs dinâmica de grupo aos professores, que relatou ao grupo se chamar “respeito às diferenças”, inspirada em prática proposta pela disciplina positiva (LASALA; MCVITTIE; SMITHA, 2020). Ela havia pregado na parede da sala com cartazes imagens de quatro animais, águia, camaleão, leão e tartaruga. Solicitou que cada professor se postasse na frente do animal com o qual se identificava mais. Uma docente se postou na frente da águia; outra, na frente do leão; dois grupos de duas educadoras se postaram na frente do camaleão e da tartaruga. Então, a orientadora pediu que escrevessem o nome deste e o porquê de tê-lo escolhido. Na continuidade, solicitou àqueles que escolheram o mesmo animal que formassem grupo e compartilhassem o motivo da sua escolha. Após essa etapa, disse às docentes de cada grupo que compartilhassem o motivo de não ter escolhido os outros animais. Por fim, pediu a elas que compartilhassem com todos o que haviam discutido nos grupos.

O primeiro grupo a se manifestar foi que havia escolhido a tartaruga. Seus integrantes disseram que queriam poder fazer uma coisa por vez, não ter a rotina que vivem hoje, que queriam desacelerar e buscar qualidade de vida. Depois se manifestou a professora que escolheu ser leão; disse que havia feito essa opção por ter assistido ao filme O Rei Leão quando criança, identificando-se com ele por ter muito cabelo. Referiu que, antes de ser rei da selva, o leão é animal magro, machucado, que tem que aprender a sobreviver e superar desafios da vida. Por fim, disse, emocionada, que sentia necessidade de fazer parte de um bando, de ter a companhia de pessoas, de pertencer a um grupo, que gostava do olhar determinado do leão e queria aprender com esse animal como ser mais paciente para depois agir. A terceira a se apresentar foi a professora que havia escolhido ser águia por um dia; verbalizou que “A águia voa alto, enxerga tudo e consegue ver o nascer e o pôr do sol”. Por fim, se manifestaram as docentes que haviam escolhido ser camaleão. Elas colocaram que este vive o dia a dia, adapta-se e faz o necessário, estando aberto a qualquer situação ou eventualidade.

Notamos que a maior parte das educadoras escolheram animais que não são valorizados socialmente e que têm posturas mais defensivas, como a tartaruga e o camaleão, em detrimento da águia e do leão, de postura mais agressiva. Interpretamos que essa escolha se deu devido à situação profissional difícil dos professores, que têm o cotidiano marcado por muitas tarefas e responsabilidades, então parte dos docentes exteriorizou o desejo de desacelerar, de poder fazer uma coisa por vez e de ter qualidade de vida. O grupo do camaleão frisou a capacidade de adaptação do professor em relação a qualquer situação, atitude que podemos considerar primordialmente defensiva. Observamos que, mesmo as docentes que haviam escolhido ser leão ou águia, não ressaltaram o lado agressivo desses animais, mas sim a solidão e o aprendizado do leão e a capacidade de controle da águia.

Na sequência da atividade, a orientadora solicitou que cada grupo expusesse sobre as razões de não terem escolhido outros animais, o que foi realizado pelos grupos. Os membros do grupo da tartaruga verbalizaram que não queriam ser águia pelo fato de terem medo de altura e de não quererem ver tudo; que camaleão é muito camuflado e que desejam ser autênticas; e que leão tem quer ser rei e ter poder e autoritarismo, e isso não as anima. A educadora que escolheu ser leão colocou que camaleão se adapta apenas para sobreviver; que águia é muito solitária; que tartaruga se esconde por medo e é muito lenta. A professora que escolheu ser águia disse que camaleão é muito pequeno, não lhe chama a atenção; leão seria muito grande para a cidade; tartaruga é muito devagar e demora para resolver as coisas. Os membros do grupo que escolheu o camaleão disseram que leão é rei e que elas não se sentem bem nesse posto, sendo muito feroz; que águia vive longe de seus filhotes, não tem medo e tem garras afiadas; que tartaruga é muito lenta e pacata, e elas são agitadas.

Notamos que as docentes se dividiram em relação à rejeição das características dos animais apontados, não se identificando com a agressividade e o poder do leão e da águia - fugindo do autoritarismo -, mas, ao mesmo tempo, também não se identificando com a lentidão e o medo do camaleão e da tartaruga. Nessa altura da dinâmica, a orientadora lhes perguntou o que elas entendiam sobre a noção de respeito às diferenças. Quatro educadoras responderam à questão, todas colocando que, na dinâmica, foi interessante ver a diferença de opinião entre elas, não existindo uma correta, e que é importante e enriquecedor conviver com o outro, no que entendemos que as docentes se aproximaram de um ponto de vista intercultural. A orientadora lhes fez outra pergunta, sobre por que é importante o respeito às diferenças, ao que cinco docentes responderam que a dinâmica apontou para particularidades da visão de cada colega, mas que isso lhes havia despertado para um sentimento com empatia para com os outros e respeito às suas opiniões, mesmo sendo divergentes.

Após essas reflexões, a orientadora apresentou slide sobre os conceitos antropológicos de intraculturalidade, multiculturalidade, interculturalidade, transculturalidade e sobreculturalidade, explicando-os às educadoras. Após a explanação, todas as docentes relataram que tinham concepção equivocada sobre eles e que sua compreensão lhes abria a possibilidade de tomar consciência de que poderiam ser agentes transformadores em sala de aula e na escola, possibilitando facilitar às crianças o desenvolvimento de habilidades socioemocionais que as permitam se relacionarem melhor com crianças que sejam percebidas como diferentes, em termos de cultura, etnia, aparência física, gênero, estilo de aprendizado, classe socioeconômica, religião e diferenças de temperamento emocional. As educadoras disseram que a dinâmica lhes permitiu celebrar e compartilhar suas próprias identidades com segurança e que todos foram respeitosos na escuta do colega, mesmo no caso da que compartilhou sua história de vida. Nesse sentido, podemos dizer que essa prática trabalhou com a noção de intraculturalidade, ao mesmo tempo que com o conceito de interculturalidade, à medida que houve o respeito às posições do outro.

No segundo encontro, a orientadora propôs nova dinâmica, a qual denominou de “maneiras significativas de contribuir: funções em sala de aula”, também retirada das ferramentas da disciplina positiva e que faz parte dos procedimentos referentes à reunião de classe (NELSEN; LOTT; GLENN, 2017). Observamos que a orientadora apresentou quadro no qual estabeleceu três funções: escribas; guardiã das horas; leitoras. Disse que quem se sentisse à vontade poderia se candidatar para lhe ajudar nas tarefas daquele dia. Quatro docentes se voluntariaram a desempenhar as funções. A seguir, a orientadora explicou-lhes o desempenho de cada função e questionou-as qual o sentimento que haviam tido ao serem aceitas para tais responsabilidades. Duas educadoras responderam à questão, uma dizendo que havia se sentido pertencente ao ambiente e motivada para colaborar e outra relatando que havia se sentido encorajada e feliz por poder ajudar a orientadora. Após a conclusão da dinâmica, a orientadora introduziu o tema do desenvolvimento das habilidades socioemocionais do alunado, constante nas diretrizes da nova BNCC. Ela reconheceu a dificuldade dessa mudança, mas também a possibilidade de incentivar a transformação do pensamento do aluno de algo individualista para comunitário, no sentido do desenvolvimento da sobreculturalidade. Verificamos aqui que, como aprendentes em uma formação dirigida a elas, as docentes se organizaram como grupo-classe, de forma a se sentirem pertencentes a essa cultura.

No terceiro encontro, a orientadora iniciou a formação pedindo para que as docentes desenhassem um iceberg e colocassem, no canto superior direito, acima da linha d’água, os comportamentos de alunos que achassem desafiadores e, no canto inferior direito, as motivações que percebiam como fonte destes. Todas elencaram problemas, mas também conseguiram estabelecer hipóteses do porquê de tal comportamento se manifestar, o que mostrou certa capacidade de teorização sobre problemas cotidianos. A orientadora terminou o encontro utilizando a metáfora de que, assim como o iceberg, a parte visível, que corresponderia aos comportamentos manifestos dos alunos, é apenas 10% do pedaço de gelo; enquanto a parte não visível, que corresponde a 90% do objeto, corresponde a crenças ou fantasias que geram o comportamento. Nessa dinâmica socioemocional, mas também de caráter reflexivo, percebemos que o coletivo dos professores foi induzido a apontar os comportamentos problemáticos dos discentes, mas também a pensar as causas socioemocionais que os geram, no que acreditamos que pode melhorar a formação dos professores, impactando suas identidades profissionais.

No quarto encontro, a orientadora desenvolveu uma nova dinâmica, na qual ela dividiu os professores em duplas, com sujeitos A e B. Os comandos verbais da orientadora foram em relação ao que ela denominou de três cenas: na primeira cena da dinâmica, o sujeito A teria que reclamar de algo para o sujeito B, por trinta segundos, e este responderia para A com um conselho, que se iniciaria com: “Acredito que você poderia [...]”. Na segunda cena da dinâmica, A teria que contar algo para B, que teria que criticar A com uma frase iniciada com: “Eu não acredito que [...]”. Na terceira cena da dinâmica, A teria que contar algo para B, que teria que validar a ação do primeiro com: “Parece que você se sente [...] porque [...] e você gostaria de [...]”. Finalizadas as dramatizações, a orientadora pediu aos grupos que elegessem um representante de cada grupo para relatar sobre as vivências de cada coletivo. Uma professora que fez papel de A disse que, na hora do conselho e da crítica, costumamos pensar assim: “Ah! Quem está fora da situação é fácil dar conselhos. A crítica é a mesma coisa!”. Em relação à validação dos sentimentos, ela se expressou desta forma: “Nossa! Ela está sentindo o que estou sentindo e, mesmo estando fora da situação, ela escutou o que eu falei”.

Em seguida, a orientadora convidou uma das docentes que havia representado B para trazer as contribuições para o grupo. Esta representante colocou que havia pensado nas três situações de uma forma só. Disse que, quando você aconselhar, criticar ou validar alguma ação, precisa se colocar no lugar do outro, ouvir o que ele está tentando dizer, escutar mais, pedir para falar mais sobre a ação; no momento de validar, também procurar saber mais sobre a situação. Percebemos que, nessa dinâmica, ocorreu o role-playing, no qual os docentes podem ora dramatizar seu próprio papel profissional, ora o papel do discente, depois reportando ao grupo os sentimentos, pensamentos e percepções vividos, o que sensibilizou os docentes sobre como suas comunicações podem afetar o aluno, contribuindo para a formação profissional do grupo.

O último encontro foi destinado aos docentes para a apresentação das experiências vividas com os estudantes, a partir da formação que haviam tido. Uma professora relatou o quanto estava incomodada com a educação baseada em estratégias de punição e que havia decidido estudar abordagens que oferecessem alternativas a ela, tendo encontrado, por conta própria, as propostas da disciplina positiva. Disse que havia iniciado a roda de conversa com seus alunos. Referiu que o primeiro movimento que fez com eles foi o reconhecimento das coisas positivas que cada um conseguia perceber no outro, e todos verbalizaram isso para o grupo. Reportou que fazia a roda dos encorajamentos toda sexta-feira, em que uma criança que se sentisse necessitada desta atitude poderia se sentar no centro da roda, recebendo frases de encorajamento dos colegas. Colocou que, em sua sala de aula, havia um caderno no qual as crianças anotavam o que queriam resolver na reunião de classe. Relatou que, com essas práticas, os conflitos menores foram sumindo; os discentes deixaram de acusar um ao outro e passaram a resolver sozinhos pequenos problemas. Observou que o reconhecimento do outro para o grupo foi significativo para a mudança do relacionamento da classe. Outro ponto que foi adotado, dentro do conceito da disciplina positiva, segundo ela, foi o canto da pausa positiva. Ela descreveu que neste canto havia livros e almofadas, sendo um lugar aconchegante para acalmar e relaxar, e que percebia que, quando um dos alunos sentia necessidade desse momento de pausa e o tinha, voltava diferente para a aula. Outra ferramenta utilizada pela professora, conforme seu relato, foi o quadro de funções. A partir de sua adoção, colocou que cada um dentro da sala de aula sentia-se pertencente ao grupo, contribuía de alguma forma para que as relações entre todos fossem pautadas pelo respeito e tolerância.

Notamos que essa docente, mesmo antes da formação recebida, não se identificava com o papel de professor punitivo, o que a fez estudar a disciplina positiva em busca de métodos não autoritários de condução do grupo-classe, tendo buscado o desenvolvimento do sentimento comunitário e de inclusão dos alunos que poderiam se sentir não pertencentes a este, com a roda de conversa, os encorajamentos, o canto da pausa positiva. Pontuamos que ela também favoreceu a organização comunitária dos discentes a partir do caderno de queixas e da reunião de classe.

A segunda professora relatou que havia conseguido ter atitude gentil e firme. Contou situação em que um aluno havia confeccionado em casa uma espada de papel e havia chegado na escola eufórico querendo mostrá-la para a turma. Pontuou, porém, que precisava iniciar a aula. Disse que, num primeiro momento, havia sentido vontade de pegar a espada e jogá-la no lixo. Nesse momento, notamos que houve risos por parte dos professores que estavam presentes. Contudo, disse que havia decidido utilizar a estratégia da firmeza e gentileza e se dirigiu ao aluno dizendo: “Alex [nome fictício], agora preciso iniciar a aula. Você pode colocar sua espada na mochila e no fim da aula abriremos um espaço para você vir aqui na frente da sala e explicar para seus colegas como você construiu essa espada?”. Nesse momento, ela disse que percebeu que o aluno se sentiu pertencente e valorizado por ela e pelo grupo-classe, o que aponta que ela conseguiu assumir uma postura não autoritária frente ao educando, e sim construtiva e inclusiva em relação a ele e ao grupo-classe.

Uma terceira docente reportou que havia construído um mapa de sala de aula - croqui estabelecendo os lugares onde os alunos sentam -, mas um dos discentes não havia gostado do lugar onde iria sentar, não se conformando. A docente disse que ela também tinha um problema, que estava preocupada porque ele não conseguia se concentrar, mesmo ficando no lugar que queria. Então, descreveu que havia decidido dizer que a troca poderia ser realizada, mas que o estudante precisaria buscar solução para o problema que apresentava de falta de atenção e concentração. Quando ela lhe pediu para encontrar solução para o problema, ele refletiu e trouxe como sugestão o compromisso de melhorar a sua conduta. Depois de um tempo, a docente disse ter percebido que o aluno havia comprido o acordo. Vemos aqui que a educadora também conseguiu não tomar uma atitude simplesmente punitiva frente ao aluno, conseguindo manter um diálogo firme e respeitoso, estimulando-o, ao mesmo tempo, a assumir uma postura mais responsável frente a seus estudos.

A quarta docente contou que os alunos estavam com comportamento desafiador após retornarem do intervalo. Disse que, num primeiro momento, havia passado a dar sermão para eles, partindo para soluções punitivas, mas que, no dia seguinte, havia percebido que o grupo não havia mudado. Relatou que havia decidido conversar com eles, dar-lhes voz, promovendo escuta ativa. Os estudantes conseguiram verbalizar que achavam que ela não gostava deles e assumiram que estavam bagunçando muito, o que gerou a mudança na conduta do grupo-classe. Novamente, percebemos que a atitude da professora fora inicialmente autoritária, porém sem resolutividade, tendo ela posteriormente adotado uma postura dialógica, o que fez com que o grupo-classe expressasse suas insatisfações, mas também assumisse sua responsabilidade frente a ela.

A quinta docente contou que estava com problema com os alunos em relação à organização do espaço físico da sala de aula. Disse que havia proposto conversar com os alunos, questionando-lhes: “Vamos olhar o chão? O que vocês notaram?”. Ela trouxe que os alunos haviam começado a observar o ambiente da sala de aula e que a reação espontânea deles foi dizer: “Nossa! Que chão sujo!”. Ela, por meio do diálogo, disse que havia proposto a eles que juntos poderiam buscar uma solução para o problema. Referiu que havia perguntado: “O que podemos fazer para melhorar?”. Reportou que os alunos tiveram muitas ideias, como fazer plaquinhas, escolher colega para entregar o material, outros para colaborar na organização das mesas, cadeiras e mochilas. Com duas semanas aplicando a ferramenta “buscando soluções” e “criando funções dentro da sala de aula”, percebeu que os discentes estavam cooperando, respeitando o ambiente coletivo e se sentindo pertencentes à classe. Para ela, ficou evidente, até mesmo em dias mais quentes, quando eles estão normalmente mais agitados, a melhora do relacionamento coletivo. Notamos, no caso desta docente, que ela se utilizou da ferramenta de reunião de classe, buscando o diálogo com o grupo, não se utilizando de autoritarismo, mas sim de um convite à reflexão do grupo, ao estímulo ao interesse social dos alunos e ao seu sentimento solidário.

A sexta professora contou que, dentro de todas as dinâmicas de que havia participado, a mais marcante havia sido a do iceberg. Relatou que olhar para o aluno e saber que existe muito mais do que aquilo que inicialmente vemos - que só percebia os comportamentos desafiadores do aluno e que, muitas vezes, não compreendia as suas motivações - fez com que refletisse sobre sua prática educativa. Contou que havia discente que não se relacionava muito bem com os colegas e que, algumas vezes, por causa de frustrações, portava-se “difícil”. Disse que havia decidido conversar mais com ele, tentar entender por que falava e fazia algumas coisas. Referiu que procurou a orientadora educacional para entender mais sobre seu caso. Comentou que, depois de algumas conversas e escutas ativas, havia conseguido fazer com que o aluno chegasse a uma situação mais tranquila, seu relacionamento com os colegas também melhorando. O mais importante, segundo a professora, foi perceber a mudança em si mesma, o olhar mais delicado e atencioso que havia desenvolvido. Percebemos aqui a mudança da postura profissional da docente, de uma postura estigmatizadora do aluno para outra mais compreensiva e inclusiva.

Algumas semanas depois de encerrada a formação, retomamos as entrevistas. Participaram das entrevistas a orientadora educacional e as cinco docentes que haviam participado da primeira rodada de entrevistas. Sobre a questão dos conceitos de intraculturalidade, multiculturalidade, interculturalidade, transculturalidade e sobreculturalidade, perguntamos qual havia chamado a sua atenção, e a educadora C colocou que a sobreculturalidade lhe havia chamado mais a atenção, pois ele é que abarca os outros, sabendo explicar com detalhes estes conceitos. A educadora E também colocou que a sobreculturalidade também lhe havia chamado mais a atenção, pois tem a concepção de uma cultura inclusiva que reúne os diferentes. Já as educadoras A e B colocaram a transculturalidade como o conceito mais destacado, se bem que as definições que deram se aproximaram mais do conceito de interculturalidade, enquanto a educadora D também apontou para o conceito, porém sem conseguir nomeá-lo.

4 Considerações finais

A partir de todo o material etnográfico reunido, chegamos a algumas conclusões, a partir dos referenciais compreensivos da descrição densa de Geertz e da análise de conteúdo de Bardin. Registramos e procuramos compreender as narrativas e comportamentos a partir do universo cultural dos participantes - discurso emic -, ao mesmo tempo que os analisamos e os interpretamos a partir de referenciais próprios da ciência antropológica - discurso etic.

O resultado da investigação mostrou, como num estudo de caso de um grupo de escola específica, uma formação continuada em formação intercultural e os conceitos antropológicos repercutiram na cultura profissional de um grupo de professores - o estudo de caso visando ser um exemplo -, mas não modelo para escolas ou grupo de professores em situação parecida.

A primeira conclusão a que chegamos é a de que, através de entrevistas, no início da pesquisa, contrariando as recomendações das PCN de pluralidade cultural e de diversidade sexual, neste caso específico, apenas um de cinco docentes teve alguma introdução a conhecimentos antropológicos ou ao conceito de educação intercultural. Já em termos de práticas de educação intercultural, quatro docentes conseguiram desenvolver algum esforço nesse sentido, seja através de projetos transversais ou de práticas relacionadas com a interculturalidade que envolvam os discentes, como as práticas restaurativas. Através desses resultados, consideramos que a afirmação de Gusmão (1997), de que os campos da Antropologia e Educação, no Brasil, em termos históricos, raramente conheceram alguma intersecção, diferentemente de países como os Estados Unidos, é bastante verdadeira. Também constatamos a dificuldade de introdução da disciplina Antropologia da Educação nos cursos superiores de Pedagogia e licenciatura, como relatado por Brum e Jesus (2018), apontando para a dificuldade de introdução dos conceitos antropológicos no campo educacional, o que pode explicar a falta de conhecimentos dos profissionais entrevistados frente a essa disciplina.

A observação etnográfica da formação de professores, por sua vez, apontou para que, através de dinâmicas de caráter intercultural, estes se envolveram, de forma inclusive emocional, e suas reações apontaram para um distanciamento de uma posição autoritária do professor e para a abertura do diálogo respeitoso para com os alunos e o grupo-classe, para a promoção de relações mais cooperativas, compreensivas e tolerantes destes para com os outros, sejam colegas ou educadores.

Quanto ao resultado final da formação, em termos teóricos, podemos dizer que os docentes conseguiram melhorar sua formação em relação aos conhecimentos antropológicos que sustentam a educação intercultural, mesmo que uma entre as docentes não tenha conseguido nomear o conceito, mas conseguiu falar sobre a sua dinâmica. Em relação ao processo de formação da orientadora educacional em conceitos antropológicos e práticas de educação intercultural, por meio da disciplina positiva, foi notória a evolução significativa em seu conhecimento e habilidades nessa área, pois conseguiu conduzir a formação de professores por meio dos encontros com maestria, permitindo que ela se tornasse uma facilitadora na disseminação desses conhecimentos para os professores do ensino fundamental.

Quanto aos resultados práticos da formação, podemos dizer que foram bastante visíveis, pois, no último encontro, todas as educadoras pontuaram, espontaneamente, que estavam desenvolvendo práticas pedagógicas que apontam na direção da educação intercultural. Três professoras trouxeram práticas de reunião de classe em que problemas foram solucionados através da discussão do docente com o grupo-classe. Três educadoras, por outro lado, apontaram para práticas em que haviam utilizado, em casos específicos de discentes, ferramentas no sentido de uma escuta cuidadosa, compreensiva desses alunos, tendo conseguido contornar situações difíceis sem estigmatizá-los. Se a estigmatização do discente ocorresse, poderia haver uma criação de uma identidade cultural deste por heteroafiliação, que depois poderia evoluir para se tornar um estereótipo, o do mau aluno ou o do bagunceiro, comprometendo sua relação futura com o docente e com o grupo-classe. Nesse sentido, apesar de se tratar da relação do professor com um aluno, podemos dizer que se trata de uma modalidade de educação intercultural, pois o professor se abre para a escuta do estudante, saindo da relação polarizada entre docente detentor do poder e discente submisso, ao mesmo tempo que evita a estigmatização do aluno frente à classe, permitindo uma melhor relação deste com o coletivo de estudantes, assim como favorece a integração do próprio docente com sua classe.

Nesse sentido, podemos dizer que o coletivo de professores, através da formação continuada, teve uma mudança em sua cultura, tendo se direcionado para uma educação intercultural, no sentido da convivência respeitosa com o discente, aceitando suas diferenças e procurando incluí-lo no grupo classe. Também verificamos que alguns professores conseguiram, através das ferramentas da educação intercultural, organizar de forma democrática o grupo-classe, desenvolvendo o interesse social dos alunos.

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Recebido: 21 de Março de 2023; Aceito: 18 de Junho de 2023; Publicado: 05 de Julho de 2023

Cristina Misturini Sato, Universidade de Salamanca (USAL)

https://orcid.org/0000-0002-4315-8954

Doutoranda pela USAL, mestra em Antropologia de América Latina também pela USAL e graduada em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP).

Contribuição de autoria: Conceitualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, visualização, rascunho original e redação - revisão e edição.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9959184973336493

E-mail: misturinicris@gmail.com

Eloy Gómez Pellón, Universidade de Cantábria (Unican), Departamento de Ciências Sociais

https://orcid.org/0000-0003-1352-0200

Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Oviedo (Uniovi). Atualmente é professor do curso de doutorado em Ciências Sociais, Departamento de Ciências Sociais, da USAL e da Unican.

Contribuição de autoria: Supervisão, validação e redação - revisão e edição.

E-mail: jose.gomezp@unican.es

Editora responsável:

Lia Machado Fiuza Fialho

Pareceristas ad hoc:

Gilberto Ferreira da Silva e Jose Rubens Lima Jardilino

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