1 Introdução

Este trabalho apresenta como temática central analisar de que modo e em que medida as influências do pensamento de Norbert Elias têm impactado e se reverberado no campo da formação de professores no Brasil. Para isso, uma análise baseada na compreensão da produção acadêmica desenvolvida nesse campo foi o foco central do estudo, uma vez que tal processo pode oferecer importantes indicativos sobre a utilização de conceitos sociológicos na pesquisa científica e na produção de conhecimento para a formação docente no contexto brasileiro.

As atuais formas de configuração social vêm sofrendo transformações a partir da organização das sociedades contemporâneas, que estão ancoradas na dinamicidade e multiplicidade de transformações desencadeadas por novas configurações sociais que ressignificam as estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes (^{Bauman, 2007}). Nesse ínterim, os “[...] diversos campos de interação social, como o trabalho, a formação profissional, a produção científica de novos conhecimentos, os processos educativos e a própria compreensão de cultura, entre outros, têm cada vez mais sido alvo de inúmeros dilemas” (^{Rufino; Souza Neto, 2021}, p. 67).

Nesse sentido, tomamos como escopo o campo educacional, especificamente o universo que abrange a formação de professores, que, devido à sua complexidade, requer novas problematizações relacionadas aos seus limites e possibilidades, levando em consideração as novas configurações sociais que emergem das sociedades contemporâneas. Ao analisarmos esse contexto, é fundamental que possamos compreender como são desenvolvidas e de que forma as nuances existentes nas sociedades podem impactar as interdependências dos diferentes domínios do saber (^{Rufino; Souza Neto, 2021}).

Neste estudo, buscaremos analisar e tematizar as apropriações de parte do constructo teórico de Norbert Elias para o campo da formação de professores. Nascido em 1897 na Breslávia (Polônia) e tendo conseguido reconhecimento social apenas ao final de sua carreira, Elias se tornou um dos mais importantes e proeminentes sociólogos do século XX. Suas ideias, produções e análises contribuíram, sobremaneira, para a consolidação da sociologia, sendo, portanto, um importante autor cujo impacto tem influenciado direta ou indiretamente diversos campos do conhecimento em variadas partes do mundo.

^{Hunger, Rossi e Souza Neto (2011)} evidenciam que, apesar de Elias não abordar diretamente aspectos que envolvem a formação de professores no campo educacional, suas teorias podem ser utilizadas nesse campo, uma vez que a sociologia configuracional¹ apresentada por Elias propicia elementos que viabilizam a constituição de discussões sobre o processo formativo. No entanto, ainda faltam estudos que elucidem os impactos e as contribuições de tais perspectivas dentro do campo científico brasileiro.

Elias busca romper a dualidade entre indivíduo e sociedade, entendendo que os indivíduos não são separados dos processos sociais, uma vez que a relação entre os sujeitos configuracionais é estabelecida a partir de uma rede de interdependência que se concretiza como relações socialmente construídas (^{Leão; Landini, 2022}). Desse modo, levando em consideração o imbricamento do campo da formação docente e o conceito de configuração apresentado por Elias, a construção do ser professor consolida-se a partir “[...] das diferentes configurações nas quais ele está imerso, pois, de acordo com Elias, as pessoas (professores, pais, gestores, ministros, alunos etc.) modelam suas ideias a partir de todas as suas experiências e, essencialmente, das experiências vividas no interior do próprio grupo” (^{Hunger; Rossi; Souza Neto, 2011}, p. 667).

Dentre essas “diferentes configurações” que reverberam o campo da formação docente, ^{Silva, Montiel e Pinheiro (2022)} destacam que os futuros professores compreendem a importância de políticas que os aproximem da prática pedagógica concreta, a fim de dirimir as possíveis lacunas da inserção efetiva na docência. A exemplo, os autores denominam o estágio curricular supervisionado como um “terceiro espaço de formação”, desencadeando-se como um interlocutor entre universidade e escola. Todavia, o constructo sociológico à luz das teorias eliasianas perpassa tais perspectivas de modo pouco aprofundado, fato que se apresenta como uma problemática que deve ser sanada pela literatura pertinente.

No que se refere aos mecanismos que concernem à formação de professores, ^{Souza Neto e Rufino (2022)} asseveram que, devido à complexidade das relações, não existe clareza sobre quais os papéis que a universidade, escola, supervisores universitários e professores de educação básica devem desempenhar nos processos de formação docente. Essa indefinição pode ampliar os pontos de tensão nesse campo.

Nesse contexto, ^{Silva e Souza (2022)} destacam que os processos formativos devem ser bem delineados, para que possam contribuir no desenvolvimento de conhecimentos experienciais, vislumbrados a partir da íntima vivência do futuro professor no campo educacional. Outrossim, ^{Feitosa e Dias (2019)} apresentam que existem tensionamentos entre ensino, pesquisa e extensão no campo universitário, que se intensificam quando esses mecanismos se interligam a estruturas educacionais com diferentes dinâmicas, como a educação básica. Assim, podemos considerar que um olhar para essas diferentes configurações que compõem os processos de formação docente pode contribuir com a elucidação de problemáticas ligadas às relações sociais existentes atualmente, bem como propor formas de transformação dos tensionamentos apresentados.

Por conseguinte, essa complexa teia de interdependência acaba desenvolvendo configurações muito específicas dentro do campo da formação docente, cujas perspectivas sociológicas de Elias podem contribuir com apontamentos, problematizações e elucidações fundamentais ao desenvolvimento desse universo.

Destarte, compreendemos que as estruturas sociais são compostas por indivíduos que interagem de maneira mútua, em grupos que possuem diferentes configurações (com mais ou menos indivíduos em suas composições), a exemplo de uma vila, uma comunidade, uma tribo, um grupo religioso, uma cidade, etc., cada qual com seu nível de complexidade, processo que ^{Elias (1994)} denomina de “teias de interdependência”. Sendo assim, tanto os indivíduos quanto às estruturas sociais devem ser compreendidas a partir de um processo macrossocial que gera dependência recíproca entre indivíduo e sociedade, a qual Elias denomina de “controle multipolar”, que se configura como um dispositivo no qual indivíduos e grupos sociais sofrem pressões por parte de outros indivíduos ou grupos. Para ^{Elias (1994}, p. 51):

[...] uma acção individual raramente é auto-suficiente [sic]. É, habitualmente, orientada para as acções de outras pessoas. Em geral, o significado de uma acção para o actor é co-determinada [sic] pelo significado que ele assume para outros. As relações das pessoas entre si não são aditivas. A sociedade não é um amontoado de acções individuais comparável a um monte de areia, nem é um formigueiro de indivíduos programados no sentido de uma comparação mecânica. Ela assemelha-se antes a uma teia de pessoas que, sob uma diversidade de formas, são interdependentes.

Com efeito, destacamos que o pensamento de Norbert Elias está ancorado ao pressuposto de que existe indissociabilidade entre indivíduo e sociedade, não sendo possível analisar o indivíduo sem considerar os contextos sociais, e vice-versa. Nesse sentido, a dicotomia apresentada muitas vezes pelas ciências sociais tradicionais limita a análise, em perspectiva macrossocial, dos processos sociais.

Ao considerarmos esse contexto, podemos questionar: o que as teorias de Norbert Elias podem apresentar para o aprofundamento das problematizações que envolvem a formação de professores? Compreender o desenvolvimento do processo de formação docente é fundamental para que possamos refletir sobre as relações desencadeadas entre os agentes educacionais e a estrutura social na qual estão inseridos.

Os elementos que envolvem a formação de professores interligam-se à ideia das redes de interdependência de Norbert Elias, uma vez que relações sociais entre indivíduo com indivíduo, indivíduo com sociedade e sociedade com indivíduo estão intrinsecamente conectadas a partir do estabelecimento de relações entre o contexto formativo (universidade) e o contexto da prática profissional (escola). Assim, os agentes inseridos nessas relações, tais como organizadores de políticas públicas, professores formadores nas universidades, professores em formação, docentes de escolas, entre outros, estão configurados a partir de teias de interdependência bastante específicas e complexas, as quais precisam ser mais bem compreendidas. Nesse sentido, o objetivo do presente estudo é analisar a produção acadêmica brasileira sobre a utilização das teorias de Norbert Elias no campo da formação de professores, buscando compreender seus principais impactos e reverberações.

2 Metodologia

Este estudo caracteriza-se como uma revisão sistemática de literatura. Esse procedimento metodológico possibilita o agrupamento de estudos já produzidos, apontando similaridades e diferenças entre as pesquisas já realizadas, permitindo novas discussões e interpretações (^{Botelho; Cunha; Macedo, 2011}). A metodologia implementada possui características qualitativas e descritivas, buscando compreender e interpretar concepções de determinados grupos, analisando os contextos de um fenômeno (^{Moura, 2021}).

As bases de dados utilizadas foram: Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Periódico da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mediante utilização dos descritores: “Norbert Elias” AND “Formação de professores”, “Norbert Elias” AND “Formação docente”, “Norbert Elias” AND “Formação continuada” e “Norbert Elias” AND “Formação inicial”. A utilização desses indexadores e bases de dados justifica-se pela sua capacidade de congregar estudos qualitativos sobre o fenômeno abordado. Destacamos que a coleta de dados aconteceu em janeiro de 2023 e não houve recorte temporal. O Quadro 1 traz a quantidade de artigos encontrados em cada indexador e base de dados.

Cabe salientar que um mesmo trabalho pode aparecer em mais de uma base ao mesmo tempo, de modo que houve a curadoria da análise dos estudos baseados nos critérios estipulados. Os critérios de inclusão foram: (I) obras em português; (II) obras que tratassem das contribuições de Norbert Elias para as discussões relacionadas à formação de professores; (III) artigos originais ou de revisão. Foram critérios para exclusão: (I) artigos que não apresentavam discussões relacionadas à formação de professores; (II) trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses.

Através da análise nas bases de dados foram encontrados 93 artigos. No primeiro momento, realizamos a leitura dos títulos, em que foram excluídos 61 artigos, pois, a partir da análise dos títulos, notamos que estavam fora do escopo deste estudo. Após esta etapa, realizamos a leitura dos resumos, momento em que não foi excluído nenhum estudo. Após esse procedimento, foi realizada a leitura dos trabalhos na íntegra, junto à aplicação dos critérios de inclusão e exclusão. Nesta etapa, cinco artigos foram excluídos por não atenderem aos critérios estipulados. Em um último processo de filtragem, foram excluídos 19 artigos por duplicidade, restando, assim, oito artigos, que foram incluídos para o desenvolvimento desta pesquisa. O Fluxograma 1 apresenta o processo de exclusão e inclusão dos artigos.

Fonte: Dados da pesquisa (2023).

Fluxograma 1 Processo de inclusão e exclusão de artigos 

Os artigos foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo (^{Bardin, 2011}), considerando três aspectos: (I) pré-análise, realizada a partir da leitura prévia e flutuante dos artigos cujo escopo aproxima-se do objetivo deste estudo; (II) exploração de material, em que os textos foram analisados e realizou-se a organização das unidades de registro e unidades de contexto; (III) tratamento dos resultados: inferência e interpretação, que compreendem a descrição e a interpretação dos dados.

Atendendo ao que pressupõem ^{Sampaio e Mancini (2007)}, os artigos foram selecionados e revisados por dois pesquisadores independentes. No caso de divergências para a inclusão dos artigos encontrados, fato que não ocorreu, um pesquisador externo à pesquisa seria convidado a realizar o desempate sobre a possível inserção do(s) texto(s) neste estudo.

3 Resultados e discussão

Nesta seção, serão apresentados os resultados e as discussões oriundas da análise de oito artigos selecionados a partir das buscas na base de dados (^{Fávero; Pagliarin, 2018}; ^{Rufino; Souza Neto, 2021}; ^{Silva Júnior et al., 2019}; ^{Silva Júnior; Both; Oliveira, 2018}; ^{Silva Júnior; Oliveira, 2018}; ^{Silva Júnior; Oliveira, 2021a}; ^{Silva Júnior; Oliveira, 2021b}; ^{Sobrinho; Kautsky; Pantaleão, 2018}).

O desenvolvimento deste estudo considerou os objetivos, resultados e discussões advindos dos trabalhos encontrados. A partir desse processo, a discussão central pauta-se na problematização da formação docente no Brasil a partir da utilização dos constructos teóricos de Norbert Elias. O Quadro 2 apresenta dados dos artigos incluídos neste trabalho.

Em um primeiro momento, podemos perceber que a utilização das teorias de Norbert Elias no campo da formação de professores é relativamente recente, datando do ano de 2018. O fato de Elias não ter tomado esse fenômeno como a centralidade de seus estudos pode justificar, ainda que em partes, esse fato. Todavia, a incursão dessas teorias no campo educacional tem como pano de fundo a emergência de novas reflexões sobre as dinâmicas que envolvem a formação docente no Brasil, suscitadas pelo avanço da utilização dos recursos tecnológicos e pelas singularidades intersubjetivas dos indivíduos e dos grupos sociais, construídas por meio de processos civilizatórios que consideram o aumento da sensibilidade na sociedade moderna (^{Koury, 2013}).

Os textos encontrados apresentam objetivos que buscam compreender alguns elementos específicos, como, por exemplo: (I) as relações de poder estabelecidas no campo educacional; (II) a construção das redes de interdependência e seus impactos na dinâmica da formação docente; (III) as configurações desencadeadas no estágio curricular supervisionado; (IV) as possíveis contribuições das teorias de Norbert Elias para a compreensão dos elementos que compõem a formação docente no Brasil. O esforço empregado pelos autores e autoras busca apresentar e compreender os mecanismos operacionais que se circunscrevem ao campo da formação docente no Brasil.

A partir da análise dos artigos, percebemos que existem tensões no campo da formação de professores no Brasil. Destacamos que relações de poder são desencadeadas na construção das estruturas da educação brasileira, estabelecidas de acordo com interesses de grupos dominantes. Essas relações de poder delineiam diferenças estruturais entre o ensino superior e a educação básica, evidenciando-se a partir de diferenças como as práticas formativas, salariais e políticas, que se inclinam a favor do ensino superior, consolidando-se a partir de diferenças no investimento entre esses dois campos. Esses processos contribuem para desequilíbrios nos níveis de atuação e desenvolvimento profissional docente (^{Silva Júnior; Oliveira, 2021b}).

Em seu escopo, os trabalhos encontrados lançam luz aos processos sociológicos em que o campo da formação docente no Brasil vem sendo constituído. Independentemente do campo específico de análise (Pedagogia, Educação Física, estágio curricular supervisionado, etc.), os estudos incitam um debate fundamental na atualidade, tendo em vista a necessidade de se refletir e compreender as configurações e relações sociológicas em sua gênese e desenvolvimento. Paralelamente, tais manuscritos incitam um debate importante sobre a utilização de parte do constructo teórico de Norbert Elias de modo aplicado, cada qual dentro de seu recorte específico.

^{Leão e Landini (2022}, p. 31), por exemplo, evidenciam que poder é “[...] um componente intrínseco às relações de interdependência - passa-se, portanto, de um conceito de substância para um conceito de relação”. Ao considerar-se o processo de interdependência, ^{Elias (1980)} tece alguns exemplos que exprimem essa configuração social. Se compararmos a relação entre pais e filhos, existe uma relação de poder bem demarcada, em que os pais apresentam as diretrizes que devem ser seguidas. Contudo, os filhos também exercem influência sobre os pais a partir do momento em que os pais cedem a certas perspectivas dos filhos, isto é, à medida que são criadas teias de interdependência.

Desse modo, quando se tem grande desigualdade na balança de poder, essa diferenciação é mais aparente. Quando há certo equilíbrio nessas relações, tem-se um processo de maior complexidade de análise. No que concerne à formação de professores no Brasil, a maneira com que essas relações são estabelecidas impactam diretamente os aspectos formativos dos professores, criando uma rede de interdependência entre a formação docente e elementos culturais, políticos e sociais.

O impacto das relações de poder pode ser percebido no estudo de ^{Silva Júnior, Both e Oliveira (2018)}. Ao realizarem uma pesquisa que objetivou analisar as configurações existentes e as relações estabelecidas (na universidade e na escola) entre os estagiários de Educação Física e os agentes da escola no desenvolvimento do estágio curricular supervisionado, os autores destacam que, apesar de os estagiários apresentarem a percepção de bom relacionamento profissional com as pessoas da escola, relataram situações de preconceito e/ou desconforto pelo fato de serem estagiários. Dessa forma, as inter-relações e interdependências impactam as ações dos futuros professores e dos professores supervisores. Ao serem avaliados, os futuros professores estreitam suas relações sociais com os agentes da escola, cedendo a mecanismos que, muitas vezes, os oprimem, como a ausência do professor titular da disciplina durante o andamento das aulas.

^{Silva Júnior e Oliveira (2021b)} destacam que as configurações do estágio curricular supervisionado, seja na universidade ou na educação básica, influencia diretamente os processos de autonomia de atuação e a prática pedagógica dos futuros professores durante a realização do estágio. Nesse sentido, as interdependências fomentadas a partir das relações entre professores e alunos podem desencadear experiências formativas positivas ou limitantes no que concerne às relações estabelecidas entre os indivíduos dentro do processo formativo dos futuros professores (^{Silva Júnior et al., 2019}).

Paralelamente, ^{Silva Júnior e Oliveira (2021a)} objetivaram investigar como se estabelecem as relações entre os estagiários de Educação Física (outsiders) e os agentes da escola (estabelecidos), além de buscarem identificar os impactos desse aspecto no desenvolvimento do estágio curricular supervisionado, a partir do referencial teórico das relações estabelecidos-outsiders de Norbert Elias. Os autores evidenciam que existe um distanciamento entre os estagiários e os agentes da escola durante a realização do estágio curricular supervisionado. Esse aspecto precisa ser superado, pois esse desencadeamento inibe a inserção efetiva do futuro professor nos processos educacionais e pedagógicos inerentes à docência.

Podemos perceber que as percepções de ^{Silva Júnior, Both e Oliveira (2018)} se coadunam com as de ^{Silva Júnior e Oliveira (2021a}, ^2021b), em que os autores compreendem que as relações coercitivas de poder estabelecidas entre os grupos podem desencadear processos que dificultam a plena inserção do futuro professor nos mecanismos operacionais que envolvem sua inserção à docência. Essa ideia está ancorada nas discussões de ^{Elias e Scotson (2000)}, quando os autores destacam que as pessoas que possuem mais vivência em determinado ambiente (estabelecidos) exercem grande influência sobre aquelas que estão há menos tempo (outsiders).

Nesse sentido, o grande desnivelamento de poder nas redes de interdependência pode acarretar a transformação do futuro professor em um outsider. Uma vez que esse indivíduo está em formação inicial, pode receber estigmas de sujeitos com maior nível hierárquico. Desse modo, os futuros professores podem ser concebidos como profissionais de “valor inferior”. Esse aspecto pode ser evidenciado ao passo que os futuros professores não possuem poder de coesão e limitam-se a cumprir as normativas impostas pelos grupos estabelecidos. Dentro do tensionamento das relações sociais na escola, compreender os diferentes papéis dos professores iniciantes e as configurações advindas de sua atuação profissional tem se mostrado como um importante campo de investigação no qual as teorias de Norbert Elias podem ser de grande valia.

Por exemplo (hipoteticamente): um professor em formação chega em uma unidade escolar para observar aulas e compreender a dinâmica do ambiente no qual está se inserindo. O professor titular, detentor de maior poder, decide deixar a aula nas mãos do futuro professor. Desse modo, o futuro professor possui dois caminhos: (I) irá denunciar o fato a pessoas hierarquicamente superiores a ambos; (II) irá buscar “dar o seu melhor” e estreitar laços com o estabelecido. ^{Elias e Scotson (2000)} destacam que os estabelecidos possuem maior controle social sobre os outsiders. Esse mecanismo possibilita a amplificação de influências mais profundas sobre os futuros professores, forçando-os a sujeitar-se às imposições dominantes.

No que concerne à formação de professores, percebemos que novas configurações devem ser estabelecidas, como: (I) maior orientação aos futuros professores em seu processo formativo; (II) maior aproximação dos futuros professores com os aspectos político-pedagógicos da escola; (III) ampliação do tempo de vivência pedagógica do futuro professor; (IV) fomento de formações continuadas a professores responsáveis pelas aulas nas escolas. Esses mecanismos operacionais podem dirimir o distanciamento entre os futuros professores e a prática docente.

^{Silva Júnior e Oliveira (2018)} reforçam a ideia de que a universidade e a escola são vistas como espaços em que se estabelecem teias complexas de relações interdependentes e de poder. Todavia, esses espaços devem aproximar as relações entre os aspectos que fazem parte da formação dos professores, isto é, criar novas teias de interdependência. Nesse sentido, políticas públicas devem ser estabelecidas e fomentadas, tendo em vista o desenvolvimento de novas configurações que sejam mais assertivas com a realidade da atuação docente contemporânea.

No mesmo sentido, ^{Silva Júnior et al. (2019)} destacam que, dependendo da forma de exercício do poder no estabelecimento das configurações, os futuros professores podem ter sua formação potencializada ou inibida. Cada ação realizada tem impacto em outros elementos e consequentemente na realização dos processos que envolvem a formação de professores. Desse modo, o processo formativo deve ser analisado e avaliado de forma contínua. Esses elementos são indispensáveis para a manutenção da qualidade educacional.

^{Rufino e Souza Neto (2021)} destacam que os processos de interdependência entre os indivíduos e a sociedade provocam um encadeamento de tensões que estão ancoradas aos interesses dos grupos que se sobressaem nas relações de poder. Os autores apontam que os processos de formação de professores requerem novas configurações que aproximem os segmentos que envolvem a educação básica e a educação superior. Nesse ínterim, para a teoria configuracional de Norbert Elias, nas sociedades modernas, os processos de interdependência se tornam cada vez mais evidentes.

Percebemos que as relações de poder podem direcionar a formação docente. A maneira como essas relações são desenvolvidas pode impactar a qualidade da formação docente. Por conseguinte, uma relação de poder coercitiva pode vir a inibir a autonomia do indivíduo em formação, dificultando sua intervenção e criatividade, sujeitando-o a cumprir estritamente as solicitações de grupos dominantes, muitas vezes alinhados ao desenvolvimento de demandas pautadas em processos burocratizados pelo sistema educacional.

Para compreendermos as reverberações do campo formativo, destacamos que Norbert ^{Elias (1994)} assevera que os processos individuais e sociais não devem ser compreendidos como pressupostos antagônicos. Seu imbricamento desencadeia uma força motriz que impacta o desenvolvimento comportamental do ser humano, fomentando novas configurações sociais que acontecem de forma contínua e heterogênea.

^{Elias (1994)} destaca que as transformações no quadro social aconteceram a longo prazo, a partir de um processo civilizador que refinou os padrões de comportamento dos indivíduos e modificou suas estruturas comportamentais. Desse modo, as “[...] estruturas de personalidade e da sociedade evoluem em uma inter-relação indissolúvel”, em que mudanças “[...] nas estruturas de personalidade é um aspecto específico do desenvolvimento de estruturas sociais” (^{Elias, 1994}, p. 221).

Ao passo que as dinâmicas relacionadas ao indivíduo e à sociedade transformam-se a partir do seu imbricamento, os laços sociais tornam-se mais estreitos, como podemos ver na passagem:

Nós dependemos dos outros; os outros dependem de nós. Na medida em que dependemos de outros mais do que eles de nós, em que somos comandados por outros, mais do que eles por nós, eles exercem poder sobre nós, quer tenhamos nos tornado dependentes pelo uso que eles fazem da força bruta, ou pela nossa necessidade de ser amado, de dinheiro, cura, status, ascensão profissional ou simplesmente por emoção (^{Elias, 1978}, p. 93).

A compreensão de processo civilizador (ou civilizatório) ganha bastante destaque e pode ser apresentado como um dos legados mais importantes da teorização de Elias para o campo da formação docente. Nesse sentido, podemos compreender que o processo civilizatório avança e amplia a sensibilidade dos indivíduos em relação à violência física e estreita as relações sociais, todavia o poder é inerente a estas relações (^{Leão; Landini, 2022}). Ao considerarmos o campo formativo, devemos compreender os professores “[...] não como seres abstratos, ou essencialmente intelectuais, mas como seres essencialmente sociais, com suas identidades pessoais e profissionais, imersos numa vida grupal na qual partilham uma cultura, derivando seus conhecimentos, valores e atitudes dessas relações” (^{Gatti, 2003}, p. 196).

^{Sobrinho, Kautsky e Pantaleão (2018)} atribuem relevância para a formação docente como uma ferramenta importante no que concerne ao desenvolvimento de políticas educacionais. Para os autores, a qualidade da formação ofertada, a partir do diálogo coletivo, e a sistematização dos processos formativo-educativos estimulam os docentes em formação a problematizarem as condições objetivas e subjetivas que marcam a realização do trabalho docente. Com reforço, os autores destacam que a formação docente deve preceder à adoção de uma abordagem teórico-metodológica que considere os rostos e as vozes humanas, delineando as relações sociais reais sem perder de vista a dinâmica histórica e constitutiva das emoções individuais e coletivas.

^{Fávero e Pagliarin (2018)}, por sua vez, salientam que estamos vivenciando novas relações entre indivíduos, novas formas de comunicação, de aprendizagem e de trabalho. Os indivíduos estão inseridos em um processo de transformações profundas e permanentes na sociedade. Acompanhar essas transformações faz parte do indivíduo inserido na sociedade.

Desse modo, os novos processos de interdependência que ocorrem em diferentes tempos e espaços, com diferentes sujeitos, diferentes grupos sociais, nas relações com diversos indivíduos, impactam a maneira como cada indivíduo constrói as suas aprendizagens (aprendizagens individuais). Essa construção só é consolidada a partir de sua inserção e interação nos grupos sociais (aprendizagens coletivas).

Nesse ínterim, os autores apontam que a formação de professores está ancorada no desenvolvimento de inter-relações entre indivíduo e indivíduo e entre indivíduo e sociedade. Essa percepção vai ao encontro das discussões de Norbert Elias, em que as teorias desse autor buscam romper a dualidade dicotômica entre indivíduo e sociedade. Elias compreende que os indivíduos estão inseridos em uma cadeia de interdependência que possibilita o estreitamento das relações sociais, algo central ao campo da formação de professores.

5 Considerações finais

O presente estudo objetivou analisar a produção acadêmica brasileira sobre a utilização das teorias de Norbert Elias no campo da formação de professores, buscando compreender seus principais impactos e reverberações. Constatamos que a produção existente, embora relativamente recente e ainda incipiente em termos de quantidade e aprofundamento, aponta que a formação de professores possui processos de interdependência entre os docentes em formação e os docentes estabelecidos. Caso essa relação de poder seja coercitiva, o docente em formação pode ter seu processo formativo impactado negativamente, como a inibição de sua autonomia e criatividade. Destacamos que as relações de interdependência não se estabelecem apenas entre indivíduo e indivíduo, mas também entre os sistemas educacionais e indivíduos. A forma como a formação de professores é preconizada, como política educacional, pode ampliar os desequilíbrios de poder, mecanizando o docente em formação.

Os resultados também nos permitem tecer considerações sobre a relação entre estabelecidos e outsiders como arcabouço teórico para discutir a relação entre os futuros professores e os professores das unidades escolares. Considerando-se a importância do estágio supervisionado para a formação docente, essa etapa formativa deve propiciar ao futuro professor múltiplas vivências do campo educacional. Entretanto, quando as relações coercitivas de poder emergem nesse contexto, o futuro professor é compreendido, muitas vezes, como um sujeito inferior (outsider), nesse sentido, o futuro professor fica preso às dinâmicas que o professor regente e a escola impõem, como ministrar aulas sem observá-las e cumprir exclusivamente demandas burocráticas, em vez de experienciar o campo escolar de maneira ampla.

Salientamos que a produção existente compreende a formação de professores como um processo essencial para a ampliação da qualidade do ensino, contudo deve haver um reequilíbrio de poder, ampliando a autonomia do docente em formação, possibilitando que ele experimente situações pedagógicas e reflita criticamente sobre elas. Desse modo, os mecanismos operacionais do campo educacional brasileiro devem dirimir a hierarquização coercitiva do poder, a fim de propiciar ações formativas concretas que diminuam as tensões desencadeadas nesse campo.

Percebemos que existe uma busca para aproximar as ideias de Norbert Elias aos processos educacionais relacionados à formação de professores, o que pode contribuir para as discussões no campo acadêmico. No entanto, é fundamental que sejam fomentados novos trabalhos, estudos e produções científicas que possam dar suporte a essas análises e contribuir com a constituição desse campo, haja vista seu potencial, que ainda precisa ser mais bem explorado na literatura acadêmica brasileira. Desse modo, é preciso ampliar as discussões, fomentando pesquisas que compreendam como as relações de interdependência podem ser ampliadas e o desequilíbrio de poder entre indivíduo X indivíduo X sociedade pode ser diminuído, trazendo visões sociológicas à luz da teoria configuracional para o seio das relações sociais que acontecem ao longo dos processos formativos no campo educativo.