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Educação & Formação

versión On-line ISSN 2448-3583

Educ. Form. vol.8  Fortaleza  2023  Epub 06-Abr-2024

https://doi.org/10.25053/redufor.v8.e11205 

Artigos

Ritos como processo formativo e pedagógico: desafio de educação na Guiné-Bissau

Los ritos como proceso formativo y pedagógico: reto educativo en Guinea-Bisáu

Décio Otto Carlos Gomes

Mestrando em Educação na linha de pesquisa Estudos Comparados em Educação (ECOE), vinculada ao PPGE da Faculdade de Educação da UnB, campus universitário Darcy Ribeiro. Graduado em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro- -Brasileira (Unilab, 2017). Licenciado em Pedagogia pela Unilab (2023).

, Conceitualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, administração de projetos.1 
http://orcid.org/0000-0003-1884-8803; lattes: 7490089220676187

Carolina Maria Costa Bernardo

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE, 2008), mestrado em Educação pela UECE (2010) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC, 2016), com estágio doutoral sanduíche em Lisboa, Portugal, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia (ULusófona, 2014/2015). Atualmente é professora do magistério superior da Unilab.

, Supervisão, validação, redação, revisão e edição.2 
http://orcid.org/0009-0005-0550-6654; lattes: 8864993400359600

1Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

2Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, CE, Brasil


Resumo

Os ritos são os principais articuladores dos valores que moldam o comportamento dos povos africanos, guineenses em específico. Portanto, na Guiné-Bissau, não se deve construir currículo escolar sem se apoiar nessa herança educacional deixada pelos ancestrais. Como forma de contribuir para melhor compreensão da realidade educacional dos guineenses, para a construção do currículo escolar que dialogue com a diversidade educacional dos guineenses, desenvolveu-se esta pesquisa com o objetivo de analisar e refletir sobre a importância dos ritos no processo formativo e pedagógico na Guiné-Bissau. Assim, valeu-se das contribuições de trabalhos que se debruçaram sobre o assunto em reflexão. Partindo duma abordagem qualitativa, utilizando a pesquisa do tipo bibliográfico, refletiu-se sobre a necessidade de um currículo que leve em conta a realidade social dos guineenses. Os resultados apontaram que a pedagogia do rito constitui um espelho para a sociedade guineense, devendo ser inserida nos currículos escolares do país.

Palavras-chave ritos; educação; currículo; Guiné-Bissau.

Resumen

Los ritos son los principales articuladores de los valores que configuran el comportamiento de los africanos, en particular de los guineanos. Por lo tanto, en Guinea-Bisáu no se debe elaborar un plan de estudios escolar sin basarse en esta herencia educativa dejada por los antepasados. Como una forma de contribuir a una mejor comprensión de la realidad educativa de los guineanos, para la construcción de un currículo escolar que dialoge con la diversidad educativa de los guineanos, esta investigación se desarrolló con el objetivo de analizar y reflexionar sobre la importancia de los ritos en el proceso formativo y pedagógico en Guinea-Bisáu. Así, se aprovecharon los aportes de trabajos que se centraron en el tema en consideración. Partiendo de un enfoque cualitativo, utilizando una investigación bibliográfica, se reflexionó sobre la necesidad de un currículo que tenga en cuenta la realidad social de los guineanos. Los resultados mostraron que la pedagogía del rito constituye un espejo de la sociedad guineana y debería incluirse en los planes de estudios escolares del país.

Palabras clave ritos; educación; plan de estudios; Guinea Bisáu.

Abstract

Rites are the main articulators of the values that shape the behavior of African people, Bissau-Guineans in particular. Therefore, in Guinea-Bissau, one should not build a school curriculum without relying on this educational heritage left by ancestors. As a way of contributing to a better understanding of the Bissau-Guineans’ educational reality, for the construction of a school curriculum that dialogues with the Bissau-Guineans’ educational diversity, this research was developed with the objective of analyzing and reflecting on the importance of rites in the formative and pedagogical process in Guinea Bissau. Thus, it took advantage of the contributions of works that focused on the subject under consideration. Starting from a qualitative approach, using bibliographical research, we reflected on the need for a curriculum that considers the Bissau-Guineans’ social reality. The results showed that the pedagogy of the rite constitutes a mirror for Bissau-Guineans society and should be included in the country's school curricula.

Keywords rites; education; curriculum; Guinea-Bissau.

1 Introdução

Na costa oeste do continente africano, encontra-se um pequeno país chamado Guiné-Bissau, com uma área geográfica de 36.125 km2. Neste país, destaca-se a diversidade cultural de um povo que preservou inúmeros costumes e valores sociais. Neste trabalho, analisamos uma das práticas pedagógicas mais fascinantes desse povo: os ritos.

Por que os ritos? Durante minha trajetória no curso de Pedagogia, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), uma das frases que mais me marcaram em sala de aula foi: “O currículo escolar tem que ser pensado de acordo com as realidades dos alunos”. Depois das disciplinas de estágios, comecei a perceber a problemática da frase a partir do seguinte relato: “A teoria é uma coisa e a prática é outra”. Assim, pensando no currículo escolar na Guiné-Bissau, levanto algumas questões, pois acredito que não podemos construir o currículo escolar para os guineenses sem levar em consideração a realidade nacional.

De acordo com Duarte Júnior (1984), a palavra “realidade” é usada rotineiramente nos mais diferentes contextos e áreas de atuação, mas quase nunca paramos para pensar no seu significado, visto que, à primeira vista, o conceito nos parece tão óbvio que consideramos desnecessário qualquer questionamento a seu respeito. Não obstante, o óbvio é o mais difícil de ser percebido, argumenta o autor.

Não podemos deixar de concordar com o argumento do autor, uma vez que, ao tentarmos esboçar a realidade guineense, devemos compreendê-la no plural, visto que a Guiné-Bissau é um país multicultural, tendo mais de 27 grupos étnicos, cada um com sua cultura, língua e sistema educacional. Vale sublinhar que o sistema educacional aqui mencionado diz respeito ao sistema de ensino endógeno vinculado à tradição cultural do povo guineense, que difere do sistema oficial de ensino escolar desenvolvido pelo Estado; esta última é cooptada pelos valores e costumes estranhos à visão do povo guineense, uma vez que é baseada nos pressupostos metodológicos e epistemológicos ocidentais com os conteúdos, os métodos e os objetivos que são opostos aos da realidade do país, visto que nega tudo o que seja representação mais autêntica da forma de ser dos guineenses: a sua história, a sua cultura e a sua língua. Além disso, ela vincula a história guineense à chegada dos colonizadores, com sua presença “civilizatória”, porque se consideram mais “evoluídos, civilizados e adiantados”.

A definição da realidade educacional dos guineenses é uma tarefa extremamente difícil, uma vez que merece reflexões profundas. De acordo com Duarte Júnior (1984, p. 12), “[...] trabalhar com o real é questionar o sentido da vida humana, vida que, dotada de uma consciência reflexiva, construiu seus conceitos de realidade, a partir dos quais se exerce no mundo e se multiplica”. Ainda segundo esse pesquisador, a realidade não é algo dado, que está aí se oferecendo aos olhos humanos, olhos que simplesmente a registram feito um espelho ou câmera fotográfica, pois o ser humano não é um ser passivo, que apenas grava aquilo que se apresenta aos seus sentidos. Pelo contrário, o ser humano é o construtor do mundo, o edificador da realidade. A partir dessas considerações, pode-se perceber que as realidades são elementos da cultura impressas no cotidiano dos seres humanos; são coisas que se veem, que se tocam, que se sentem; a realidade é um conceito muito amplo que pode ser visto e interpretado de diversas maneiras.

No tocante à dinâmica social e educacional da vida, a realidade guineense envolve inúmeros hábitos e comportamentos que definem os valores morais, éticos e costumes que moldam o comportamento do seu povo. Diante dessas realidades, é necessário problematizar um currículo escolar que esteja integrado às diversidades educacionais impressas no cotidiano dos grupos étnicos que compõem a Guiné-Bissau. Portanto, antes de chegar ao problema do currículo, devemos perguntar antes: como os guineenses concebem a educação? Quais são as características comuns do sistema educativo dos grupos étnicos guineenses?

Para responder às questões acima, é necessário entender a arquitetura do sistema educativo guineense, paradigma particularmente importante, uma vez que nos permite entrar na “caixa-preta” do projeto pedagógico deixado pelos nossos ancestrais, ou seja, a matriz educacional do povo guineense. Desse modo, objetivamos esboçar as características comuns do sistema educacional dos grupos étnicos guineenses, seus métodos e mecanismos de funcionamento, de modo a nos oferecer pistas para mostrar como são definidos os valores, costumes e conhecimentos que moldam o comportamento do povo guineense.

Nesse ensejo, valemo-nos da contribuição de Djaló (2012), em sua obra intitulada O mestiço e o poder: identidades, dominações e resistências na Guiné, na qual o autor dedicou o primeiro capítulo à reflexão sobre a sociedade tradicional guineense, analisando detalhadamente a organização dos grupos étnicos guineenses e suas principais formas de socialização. Vejamos como o autor sintetizou a organização da sociedade tradicional guineense:

Na sua globalidade, a sociedade tradicional guineense é uma sociedade estruturada e integrada num sistema de valores e de comportamento muito rígidos, baseada na tradição e na ordem social estabelecida. A integração do indivíduo numa tal sociedade faz-se através da família, do clã, do grupo étnico, do grupo etário e da classe social, considerados como normas que explicam a ausência de individualismo, porque cada indivíduo é obrigado a agir e a conformar-se com as normas sociais, com o sistema de valores e com a disciplina do grupo (Djaló, 2012, p. 24).

As formas de organização expostas acima acontecem em função da classe e da idade. De acordo com Djaló (2012), elas correspondem às diferentes fases de socialização do indivíduo, uma vez que estabelecem com precisão os direitos e deveres de cada indivíduo na sua comunidade. Segundo o autor, a passagem de uma fase para a outra é objeto de certos rituais de iniciação e de passagem, em que a pessoa é submetida a testes que provam a sua maturidade para a transição. Djaló (2012, p. 30) ainda completa:

Estes mecanismos de socialização atribuem a cada membro da comunidade os seus direitos e as suas obrigações, a sua posição social, definem as obrigações e a aprendizagem dos hábitos, dos costumes e da tradição. Eles reforçam assim, em cada membro da coletividade, o sentimento de coesão e dever de solidariedade, de assistência mútua e excluindo qualquer forma de individualismo.

A análise do autor serviu de farol, porque permite visualizar a arquitetura do sistema educativo endógeno com mais evidência. Na leitura da obra, percebemos que os ritos estão presentes em todos os grupos étnicos da Guiné-Bissau. Assim sendo, podemos dizer que rito é o rizoma do sistema educativo endógeno guineense, visto que ele está presente em todo grupo étnico e em toda camada social. Percebemos também que os ritos desempenham papel significativo na organização da sociedade guineense, imprimindo códigos e valores que moldam o comportamento do povo guineense. Diante dessas constatações, apresenta-se aqui a seguinte questão de pesquisa: quais os papéis dos ritos na organização da sociedade guineense?

Sabe-se que na Guiné-Bissau os ritos constituem uma das principais manifestações culturais, carregadas de tradição e costumes destinados a formar e inserir os jovens na sociedade. Assim, pensando no sistema educacional do país, não podemos renunciar à importância dos ritos no processo formativo do povo guineense, visto que é a teia que liga no plano mais amplo a unidade desse povo, articulando entre si grupos étnicos separados no espaço, isolados uns dos outros por causa das dificuldades de contato. De acordo com Wilson (apudTurner, 2013, p. 23):

Os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo [...] os homens expressam nos rituais aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de expressão convencional e obrigatória, os valores do grupo é que são revelados. Vejo no estudo dos ritos a chave para compreender a constituição essencial das sociedades humanas.

O exposto acima ilustra a preocupação desta pesquisa em compreender melhor a realidade sociocultural e educacional da Guiné-Bissau através dos ritos. Portanto, o presente estudo tem como objetivo analisar e refletir sobre a importância dos ritos no processo formativo e pedagógico na sociedade guineense.

2 Percurso metodológico

Para a construção deste trabalho, utilizamos uma abordagem qualitativa, valendo da pesquisa do cunho bibliográfico, consultando trabalhos ligados à nossa temática. Uma vez definido o tema e problema de pesquisa, foi feito o levantamento bibliográfico para a construção do estado da arte. O cumprimento desta etapa permitiu a orientação na rota de pesquisa, identificando como está sendo discutido o objeto de estudo em nível nacional. O levantamento realizado também identificou os aspectos que ainda não foram investigados, permitindo conectar nossas considerações com o debate da comunidade científica sobre a temática, com o intuito de contribuir com ele.

De acordo com as pesquisadoras Romanowski e Ens (2006), o estado da arte é uma contribuição importante na construção do campo teórico de uma área de conhecimento, uma vez que procura orientar o pesquisador sobre o campo em que se move a pesquisa, suas lacunas de disseminação, permitindo identificar experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de soluções para os problemas pesquisados e reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de proposta na área de estudo. Para elas, o estado da arte não se restringe a identificar a produção, mas analisá-la, categorizá-la e revelar os múltiplos enfoques e perspectivas.

A partir dessas ponderações, foi realizada a busca em dois bancos de dados: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDBTD) e Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal. Escolhemos esses dois bancos/sites por dois motivos. Primeiro, por serem representativos de produções dos países lusófonos. Segundo, pela facilidade de leitura, visto que as produções estão em língua portuguesa. Vale sublinhar que a tentativa de apagamento da memória e história dos povos colonizados dificulta o acesso dos materiais para a construção de trabalhos como este. Sendo assim, a nossa primeira busca com a combinação dos descritores: “ritos; educação e Guiné-Bissau” e “ritos, formação e Guiné-Bissau”, na BDBTD e no Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal, não gerou resultados. Vale ainda ressaltar que não usamos recorte temporal para restringir a busca.

A ausência dos resultados com os descritores citados acima confirmou a nossa intuição de pesquisador imerso neste campo epistemológico do saber acadêmico ocidental que coloca a epistemologia dos povos colonizados à margem da cientificidade. Ela nos forja a reproduzir a lógica colonial de dominação que ajuda a legitimar a colonialidade de saber a partir da marginalização dos saberes endógenos dos países colonizados. Woodson (2018), em sua obra clássica intitulada A deseducação dos negros, diz-nos que os arquitetos da nossa educação não querem que saíamos do círculo de controle. Concordamos com o historiador estadunidense quando ele sustenta que:

Se você consegue controlar o pensamento de um homem, não precisa se preocupar com a ação dele. Quando você determina o que um homem deve pensar, você não precisa se preocupar com o que ele fará se você faz um homem sentir que ele é inferior, você não precisa obrigá-lo a aceitar um status inferior, pois ele mesmo o buscará. Se você faz um homem pensar que ele é justamente um pária, você não precisa mandá-lo para a porta dos fundos. Ele irá sem ser mandado; e se não houver porta dos fundos, sua própria natureza exigirá uma (Woodson, 2018, p. 89).

A arquitetura do sistema de produção acadêmica tende a nos orientar a seguir para a porta dos fundos. No entanto, para escapar do círculo do controle, precisamos quebrar o paradigma. Não pretendemos quebrar o paradigma como um simples ato de teimosia, mas construir uma nova referência. Sendo assim, o nosso interesse é aproximar as teorias educacionais do povo guineense, de suas práticas educacionais, reconhecendo que a crise da ciência é a fase fundamental para o desenvolvimento de uma ciência mais amadurecida (Kuhn, 1978). Assim, optamos por usar as combinações dos seguintes descritores: ritos, educação e África; ritos, formação e África; ritos e Educação, nos mesmos bancos de dados já citados. Na busca, encontramos números significativos de trabalhos sobre ritos na educação. Tendo em conta o volume de investigações identificadas, optamos por restringir a busca para o período de 2007 a 2022. No primeiro mapeamento, percebemos trabalhos em diversas áreas de estudo: Antropologia, Ciências Humanas, Teologia, Ciências Sociais Aplicadas, Educação, dentre outras. A diversidade de áreas ressalta a relevância do tema.

Tendo em conta o grande número de trabalhos publicados, adotamos como primeiro critério de exclusão a análise dos títulos, assim procuramos temas que estabelecem relação com os ritos e educação/formação com enfoque nos países africanos. Com isso, selecionamos 11 trabalhos, todos desenvolvidos no Brasil. Os trabalhos ilustram que há uma preocupação de pesquisadores sobre a importância dos ritos no processo formativo do indivíduo dentro da sociedade, em especial as comunidades negras africanas.

3 Análise e discussão dos dados encontrados: ritos e educação na Guiné-Bissau: desafio e perspectiva

Quadro 1 Resultados do estado da arte 

Ano Título do trabalho Autor(es)
2022 Práticas culturais e escolarização de mulheres em Moçambique: um caminho para ressignificação dos ritos de iniciação Aida Duarte Binze
2006 Educação autóctone tradicional e a educação oficial moderna: efeitos dos ritos de iniciação autóctone sobre o rendimento escolar dos alunos iniciados Candido Josse Canda
2015 Pedagogias do ritual do lava-pés: pressupostos culturais dos saberes produzidos na umbanda Luiz Osmar Mendes
2008 Educação pelos ritos de iniciação: contribuição da tradição cultural ma-sena ao currículo formal das escolas em Moçambique António Domingos Braço
2009 Educação por outros olhares: aprendizagem e experiência cultural entre os índios Kiriri do sertão baiano Sílvia Michele Macêdo
2013 Corpo negro em Cachoeira/BA/Brasil: ritos e percursos no âmbito educativo da cidade Lilian Quelle Santos de Queiroz
2019 O cerimonial universitário como preservação da memória institucional da Universidade Federal do Ceará Cláudia Maria de Albuquerque Lordão
2013 A finalidade do rito no espaço escolar: uma abordagem simbólica do primeiro dia de aula Jailson da Silva
2013 O declínio dos ritos de passagem e suas consequências para os jovens nas sociedades contemporâneas Paulo Rogério Borges
2015 Ritos de iniciação como espaçostempos de produção de conhecimentos: narrativas e diálogos em Nampula-Moçambique Roberto da Costa Joaquim Chaua
2017 O papel dos ritos de iniciação na comunidade Yaawo: caso da cidade de Lichinga-Moçambique Óscar Morais Fernando Namuholopa

Fonte: Autoria própria (2023).

A seção anterior apresenta o percurso mitológico trilhado na construção do trabalho, começando desde o critério de busca até o levantamento e resultado. Esta seção tem como foco a análise dessas investigações, identificando enfoques de interesse para a nossa pesquisa, considerando as questões de pesquisa anteriormente apresentadas.

Os trabalhos apresentados no Quadro 1, em especial os de Binze (2022), Braço (2008), Canda (2006), Chaua (2015) e Namuholopa (2017), foram determinantes para construir nosso estudo. Estes trabalhos permitiram perceber como a pedagogia dos ritos é uma importante articuladora da identidade dos povos africanos, visto que ela conserva o patrimônio cultural e educacional dos povos africanos. Ajudaram-nos a perceber também que os ritos guardam a herança cultural africana fundada em princípios educativos, formativos, epistemológicos, éticos, culturais, filosóficos, morais, formadora da identidade sociocultural dos povos africanos. Com efeito, percebemos que somos herdeiros dessa longa tradição e que faz parte da missão conservá-las, pois elas carregam as nossas memórias e histórias.

De acordo com Braço (2008), na sociedade africana, por ser predominantemente de tradição oral, a educação acontece de forma mais intensa e formal pelos ritos de iniciação, uma vez que eles moldam a vida cotidiana, organizam sistemas educacionais nas culturas e traçam caminhos que orientam as novas gerações.

Canda (2006), por sua vez, complementa que os ritos sempre foram uma excelente escola, porque educam a sociedade não só transmitindo-lhe os conhecimentos técnicos práticos requeridos pela vida, mas também estruturando a vida social do indivíduo. Para o autor, o rito não se encontra apenas na vida religiosa, mas está diluído na vida social, em diversas categorias, como: agrárias, funerárias, mágicas, comunais ou de associação, de expiação, de passagem, de iniciação, de procriação, entre outras, porque existem no seio da sociedade. No que diz respeito à função social dos ritos, ele afirma que:

Os ritos, embora sejam sujeitos aquilo que se denomina convencionalmente, têm como função conservar e integrar a cultura, ligando o presente às experiências do passado, fazendo reviver acontecimentos e sentimentos cujo significado seria esquecido ou modificado em absoluto, se não existisse essa maneira de repetição rigorosamente uniforme. Neste sentido, pode dizer-se que o rito constitui um conjunto de formas de procedimentos culturais e sociais com funções multifacetadas, e cada uma delas corresponderá a um conjunto de valores morais, crenças, sentimentos, papéis sociais e relações no interior de sistema cultural global da comunidade onde se desenvolve o rito (Canda, 2006, p. 38-39).

A partir do exposto, percebe-se que celebrar o rito é valorizar a comunidade, porque o “eu sou porque tu és” se torna também um elemento desencadeador de forças capazes de nos apoderar, ou de nos perceber como comunidade pelas relações que tecemos a partir dos ritos (Chaua, 2015).

As duas ponderações permitem-nos compreender que o rito organiza a vida individual e coletiva. Esse conceito ainda é defendido por Silva (2013), que preserva a ideia de que o rito é portador de teor simbólico do comportamento individual e coletivo, uma vez que segue certas regras destinadas a serem repetidas, a partir de um esquema previamente determinado, para organizar a vida através de normas preestabelecidas pelo grupo, no sentido de manter viva a memória, a cultura, a tradição, unindo toda a diversidade humana a partir de uma estrutura do que é verdadeiro, significativo e importante para o grupo.

As reflexões apresentadas acima nos fazem perceber que a educação pelos ritos harmoniza a diversidade educacional e cultural dos grupos étnicos guineenses, concebendo a unidade de toda a sua diversidade. Nesse sentido, consideramos indispensáveis os estudos dos ritos para a compreensão da sociedade guineense. Além disso, estudar a pedagogia dos ritos na Guiné-Bissau é uma das belas formas de conhecer o rico patrimônio cultural e educacional dos guineenses, uma vez que na Guiné-Bissau o processo educativo é marcado pela presença dos rituais de diversas ordens, pois é através deles que os indivíduos são preparados para assumir o seu papel ativo na sociedade.

Sendo assim, pode-se dizer que as pedagogias dos ritos são dispositivos através dos quais a sociedade guineense produz os conhecimentos necessários para a sua sobrevivência, transmitindo-o de geração a geração, instruindo os jovens. Este projeto pedagógico endógeno se desenrola de ensino organizado, nos lugares onde as estruturas são concebidas especificamente para a orientação dos jovens, geralmente acontecem nos espaços sagrados. De acordo com Namuholopa (2017), os espaços para esses tipos de rituais geralmente ficam nos lugares isolados, para evitar o contato com os membros restantes da comunidade. A medida do isolamento busca criar um ambiente de tranquilidade, tanto para comunidade como para os próprios iniciados, por causa de sons e canções. Segundo o autor, o espaço deve ficar perto de alguma fonte de água, para facilitar o aproveitamento desse recurso para vários fins necessários. Com os espaços definidos, os jovens são levados para receber formação. Durante o processo, os jovens são preparados para adquirirem os conhecimentos e competências necessários, tanto para preservarem e defenderem as instituições e os valores fundamentais da sociedade quanto para se adaptarem em função da evolução das circunstâncias e do surgimento de novos desafios.

Na formação, os jovens aprendem aspectos fundamentais para a sua vida positiva na sociedade em que estão inseridos, o seu papel e deveres como membros da comunidade. Dentre as principais aprendizagens, podemos destacar higiene pessoal e coletiva, cuidado com a natureza, formas de produções agrícolas, caça, conhecimento de plantas medicinais, pesca, aritmética, códigos e princípios éticos da comunidade, regras do trabalho, segredos da arte, da religião, do artesanato, entre outros. Segundo Braço (2008), essas formas de inserção ajudam o indivíduo a integrar a vida humana nas suas mais diversas variedades, uma vez que enchem de sentido e significado a existência da pessoa como membro de uma sociedade.

As formações ressaltadas acima são seguradas pelos sistemas educacionais dos grupos étnicos guineenses, de acordo com a filosofia da vida de cada grupo. Portanto, a ideia de que os portugueses encontravam os povos sem cultura, sem civilização e sem história não é só equivocada, como também falsa, pois a forma de educação na Guiné-Bissau desdobra-se através da socialização no interior da família extensa ou dos ritos de passagens, em que os adultos explicam às crianças como elas deveriam comportar-se em determinadas circunstâncias. Cabe aqui a reflexão sobre a palavra “circunstância”. Conforme Somé (2007), no Ocidente, as pessoas tendem a padronizar tudo, portanto, quando descrevem um ritual, as pessoas acham que ele se aplica a todas as situações da mesma forma. Segundo a autora, no ritual, a padronização não funciona, uma vez que o ritual tem de ser específico para as pessoas envolvidas.

Assim, na Guiné-Bissau, a educação pelos ritos na sociedade guineense é atrelada à vida e por meio da vida, haja vista que as crianças se educam tomando parte nas funções da coletividade. A especificidade da pedagogia dos ritos apresentada aqui é atrelada à visão pedagógica dos povos tradicionais. De acordo com Canda (2006), o adestramento, a avaliação e a reeducação nessas sociedades se processam ao longo da vida inteira e duram toda a vida. Na mesma ordem de ideia, Brandão (2007, p. 10-11) explicita:

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar - às vezes a ocultar, às vezes a inculcar - de geração em geração, a necessidade da existência de sua ordem.

Vale ressaltar que a pedagogia dos ritos se processa por via oral e através de contatos primários, face a face, pela rotina da vida diária, na qual todos podem aprender algo em qualquer tipo de relação social. Por exemplo, na Guiné-Bissau, não temos placas que dizem que as pessoas mais novas devem ceder as cadeiras, cumprimentar ou ajudar os mais velhos com pequenos gestos. Porém, todas as crianças sabem que é desrespeitoso não oferecer o lugar aos mais velhos para que eles sentem; também sabem que é desrespeitoso passar pelas pessoas adultas da comunidade sem cumprimentá-las. Esses pequenos gestos ilustram a pertinência dos ritos no cotidiano dos guineenses. A práxis é a principal característica que fundamenta a filosofia educacional da pedagogia dos ritos. Para apoiar nossa reflexão, recorremos às palavras de Cá (2005, p. 25), que afirma o seguinte:

Com relação à educação, não havia pessoas que ensinassem na sociedade africana tradicional um ensino formalizado como na sociedade ocidental, nem lugar privilegiado para a transmissão do conhecimento. A forma de educação baseava-se no exemplo do comportamento e do trabalho de cada aprendiz. Cada adulto era, de certa forma, um professor. A educação não se separava em campo e especialização de atividade humana. Ninguém se educava apenas por um determinado período, aprendia-se com a vida e com os conhecimentos ao longo do tempo.

A reflexão de Cá (2005) indica que a sociedade guineense possui uma concepção e visão do mundo fortemente atrelada às suas culturas e tradições. À vista disso, ao fazer uma análise da educação na Guiné-Bissau, é importante que não se perca de vista as referidas formas de socialização, uma vez que na pedagogia dos ritos as aprendizagens são ligadas às circunstâncias da vida. Para ser mais específico, recorremos ao exemplo da Somé (2007, p. 57), que, embora não abordasse assunto sobre o contexto guineense, ilustra bem as circunstâncias de educação pelos ritos ressaltados neste trabalho:

Lembro-me de, quando era criança, como uma de minhas avós nos envolviam nos rituais. Ela montava situações nas quais tínhamos de criar um ritual apropriado. Ela nunca interferia em nossa criatividade. Tudo que fazia era garantir que avançássemos. Assim como uma mãe que ensina uma criança a andar, ela nos guiava um pouquinho e, quando caímos, estimulava-nos para que seguíssemos tentando.

Para Hampaté Bâ (2010), o modelo pode parecer caótico, mas, na verdade, é prático e muito vivo, porque a lição dada na ocasião de certo acontecimento ou experiência fica profundamente gravada na memória da criança. As observações de Hampaté Bâ (2010) explicam como a pedagogia dos ritos sobreviveu até os dias atuais. A forma de transmissão desse documento oral evidencia a peculiaridade do sistema educativo guineense, pois, na pedagogia dos ritos, o ensino e aprendizagem não se excluem, mas se complementam e se prendem nos valores e costumes que moldam a visão do mundo dos guineenses.

Para ilustrar melhor a importância da pedagogia dos ritos na organização da sociedade guineense, valemo-nos mais uma vez da contribuição de Djaló (2012, p. 30-31, grifos do autor), que sintetizou a organização da sociedade guineense e seus processos ritualísticos em cinco classes:

a) A classe infantil: A primeira fase vai desde o nascimento até o final do aleitamento, coincidindo em geral com o batismo, ou seja, até a idade de cinco anos (com exceção das ilhas da Caravela, Uno e Canhabeque, para quem a imposição do nome se faz no oitavo dia). Esta fase corresponde a um período precário da vida, razão pela qual os indivíduos nesta categoria não podem ter nomes próprios nos Manjacos e/ou nos Mancanhas. b) A classe impúbere: A segunda fase inclui indivíduos que se aproximam do segundo período da infância. Ela vai do batismo (imposição do nome) até a puberdade, coincidindo com os rituais de passagem da classe anterior a esta e correspondendo ao final do aleitamento. Durante esta fase, a criança recebe uma educação preliminar no seio da família. c) A classe de adolescente: A terceira fase corresponde à dos jovens, que atravessaram a segunda infância e se prepararam para os rituais da maioridade dos quais a maior é a do Fanado (circuncisão). Trata-se de uma classe em que os jovens aprendem a trabalhar, a divertir-se e a integrar os princípios da vida comunitária. Juntos, eles preparam-se para receber os rituais da sua integração na vida social. d) A classe adulta: A quarta fase encontra-se entre o fanado e o término da maturidade, passando, é claro, pelo matrimônio. É a fase da realização, que permite que a pessoa desfrute de todos estes direitos. e) A classe dos anciãos: a quinta e última fase corresponde ao prolongamento da maturidade e termina com a morte. A pessoa adquire, então, o estatuto de Homem grande (o sábio) e mulher grande (para as mulheres). Eles têm assento no conselho das Anciãs, uma espécie de assembleia responsável por dirigir assuntos da comunidade.

A classificação de Djaló (2012) ilustra a relevância da pedagogia dos ritos na organização da sociedade guineense, pois evidencia como os guineenses imprimem as ideias pedagógicas fundamentais para construir uma visão do mundo. Na classificação, nota-se que as crianças começam desde cedo a conviver com os rituais. Esta forma de inserção da criança na comunidade é semelhante à do povo Matswa de Moçambique. Segundo Canda (2006), o povo Matswa insere a criança muito cedo a conviver com rituais tradicionais como forma de fazer com que ela se identifique com o grupo ou coletivo que a espera a partir do dia do seu nascimento. Essa ideia foi desenvolvida também por Somé (2007), que diz que as crianças aprendem sobre intimidade e rituais desde o nascimento, para quando amadurecerem tornarem-se fundamentais na existência delas, desenvolvendo uma compreensão profunda dessas questões. De acordo com a autora, nos rituais, os anciãos orientam os jovens sobre intimidade, sexualidade e ritual, para que saibam o que lhes espera no futuro, evitando que os jovens entrem para a classe adulta de forma despreparada.

Na classificação de Djaló (2012), nota-se que a educação pelos ritos se processa pelas etapas que formam o indivíduo para ocupar diferentes lugares na sociedade. Essas etapas são acompanhadas por atos oficiais, com processos formativos que habilitam a pessoa a assumir papel ativo na sociedade; as etapas são regulamentadas e vigiadas a fim de a sociedade geral não sofrer nenhum constrangimento ou danos. De acordo com Gennep (1978, p. 26):

É o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma sociedade especial a outra e de uma situação social outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade social, casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação, morte.

Vale observar que a organização da sociedade guineense também é dividida pelo sexo como em outras sociedades. Conforme Braço (2008), a divisão social do trabalho baseado no gênero é a variável principal na diferenciação do processo de educação que justifica a existência de rituais específicos para homens e mulheres. Segundo Somé (2007), a divisão por sexo existe não para promover o sexismo nem para tornar homens e mulheres iguais, mas para criar um ambiente de respeito, porque homens e mulheres têm seus mistérios.

A partir do exposto até aqui, percebe-se que a pedagogia dos ritos remonta a séculos passados, a qual sobreviveu até nossos dias graças ao papel relevante da oralidade. Para legitimar o nosso argumento, recorremos às palavras do grande mestre da tradição oral africana, Hampâte Bâ (2010, p. 167), que afirma o seguinte:

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer que são a memória viva da África.

A especificidade com que Hampâté Bâ (2010) descreve a oralidade iluminou nosso pensamento, visto que o autor manifesta uma das mais belas contribuições pedagógicas dos povos africanos para a pedagogia mundial. Com efeito, as reflexões do autor colaboram para a construção do seguinte questionamento: se os ritos constituem um dos principais meios de produção dos conhecimentos dos povos guineenses, por que não estão presentes no currículo oficial dos aparelhos públicos de educação do Estado?

A resposta para a questão acima foi respondida pelo historiador afro-trinidaiano Cyril Lionel Robert James (1938, apudFalola, 2007, p. 19), afirmando que:

Por muitas centenas de anos, na verdade desde pouco tempo depois dos primeiros contatos entre a civilização ocidental e a África, foi prática quase universal tratar as realizações, descobertas e criações africanas como se a civilização ocidental fosse a norma e os africanos gastassem seu tempo imitando ou tentando alcançar o mundo ocidental ou, o que é ainda pior, passando se necessário pelos seus remotos estágios primitivos.

O argumento é revelador, pois, depois do processo de colonização, passamos a ver e refletir as nossas realidades a partir da lente europeia, porque a forma de ver o mundo por parte dos europeus disponibilizou nas escolas um eficaz mecanismo de controle sobre corpos e mentes de povos colonizados. Portanto, a implantação da escola é uma das maiores realizações europeias para a manutenção da colonialidade, uma vez que educou povos africanos a lerem o mundo a partir de fontes externas à África.

Brandão (1982, p. 15) defende que “[...] a escola não tem as armas de dissuasão que o quartel tem, mas a seu modo tem outras mais pertinentes. Ela possui as armas de persuasão que o sistema usa para preservar-se como ideia e realidade”. À vista disso, a escola foi utilizada para construir um sistema no qual os portugueses pudessem se apoiar para promover o domínio colonial na Guiné-Bissau.

Nobles (2009), ao examinar o povo africano na diáspora, argumenta que o nosso opressor tentou esvaziar de nossa mente o significado de ser africano, mas ele não conseguiu destruir o africano dentro de nós. Por isso, alterou a percepção do nosso senso de africanidade. Segundo o autor, esse senso alterado de consciência é o problema fundamental dos africanos, afro-brasileiros e diaspóricos.

As reflexões de Hampâté Bâ (2010) e James (1938) nos servem de vacina contra o sistema colonial, pois nos fazem perceber que o sentido da descolonização habita no olhar interno, a partir da legitimação dos legados educacionais deixados por nossos ancestrais. Então, começamos a olhar para a nossa realidade com brilho nos olhos. Vale observar que percebemos o efeito da vacina com a leitura da célebre obra de Somé (2007), intitulada O espírito da intimidade, já citada. Na obra, a autora apresenta práticas pedagógicas produzidas pelo povo Dagara do Oeste Africano. Na exposição, escreveu sobre a sabedoria do seu povo, apoiada no cotidiano da vida de sua aldeia, ressaltando a importância dos ritos na organização das sociedades africanas.

No prefácio da obra, Julia e Weller enunciam que ler as palavras Somé (2007) é testemunhar verdades profundas; é acordar parte de nós que há muito foi anestesiada. Na verdade, as palavras da autora nos fazem lembrar que as nossas formas de olhar, comunicar, vestir, comportar e ler o mundo são legados das práticas pedagógicas deixadas por nossos ancestrais. Assim, ela nos oferece uma visão pedagógica africana a partir dos ritos e nos convida a sermos mais nós mesmos, porque os elementos dos rituais nos permitem estabelecer conexão com o próprio ser, com a comunidade e com as forças da natureza. Segundo Somé (2007), entramos no ritual para chamar o espírito para nos mostrar os obstáculos que não somos capazes de ver, por causa de nossas limitações como seres humanos, porque os rituais nos ajudam a remover obstáculos entre nós e o nosso verdadeiro espírito e outros espíritos.

4 Considerações finais

Na introdução deste trabalho, apontamos que a frase “o currículo escolar tem que ser pensado de acordo com a realidade dos alunos” inspirou esta investigação, em busca de entender o processo educativo dos guineenses. Para isso, procuramos entender a arquitetura do sistema educativo guineense a partir de matriz cultural e educacional deixada por nossos ancestrais, ou seja, a pedagogia dos ritos. Acreditamos que, após esta empreitada, levantamos questões pertinentes sobre a diversidade do sistema educativo do povo guineense. Defendemos também que respondemos à nossa questão de pesquisa de forma satisfatória. Durante a análise, mostramos que a pedagogia dos ritos carrega os valores e costumes que moldam a visão de mundo dos povos guineenses. Sendo assim, não podemos construir o currículo escolar de acordo com a realidade dos guineenses sem pensarmos na importância dos ritos na integração dos indivíduos na sociedade. Cremos que a integração dos currículos escolares a partir da visão do mundo dos guineenses tornará uma realidade só a partir do momento em que assumirmos a responsabilidade de trabalhar com valores e princípios impressos no cotidiano da vida dos guineenses; esta memória viva está no rito.

Portanto, é fundamental que enfrentemos os desafios que estão colocados diante de nós. Na análise, foi mostrada também que a pedagogia dos ritos carrega uma das antigas civilizações mais brilhantes dos povos africanos, guineenses em específico, harmonizando patrimônio cultural dos diferentes grupos étnicos no espaço e no tempo, a partir dos valores e visões do mundo que fundam a identidade do povo guineense. Com isso, podemos afirmar que os ritos imprimem valores e costumes que nos fazem ver e reconhecer a nossa própria imagem como guineenses.

Dessa maneira, ao pensar na educação guineense, não podemos perder de vista que a educação pelo rito visa uniformidade de comportamentos, que não excluem gradações pessoais relevantes dessa ordem social herdada. Ademais, os ritos acompanham hábitos motores, em atividades sociais rotineiras presentes no horizonte cultural pelas tradições que fornecem aos guineenses não só as normas de ação, mas também os quadros de consciência da situação e de afirmação da identidade nacional guineense. Os ritos conservam a mais rica contribuição pedagógica dos povos guineenses para a pedagogia mundial. A pedagogia dos ritos não trata apenas de mitos, ilusões e ideologias, trata de princípios que operam ao nível da estrutura da sociedade guineense.

Se as observações apresentadas neste trabalho estão em consonância com a visão do mundo dos guineenses, é inadiável o debate sobre a importância dos ritos na construção dos currículos escolares guineenses, porque a pedagogia dos ritos nos oferece uma compreensão precisa e detalhada do nosso patrimônio sociocultural e educacional e de suas contribuições no progresso educativo do povo guineense.

Cabe observar que a educação pelos ritos desenvolvidos neste trabalho não se restringe a ritos “radicais”, considerados “tabus”, desenvolvidos de tempo em tempo nos espaços “sagrados” e isolados, visto que nem todos os guineenses passaram por esse processo, porém todos os guineenses carregam os efeitos desses ritos, uma vez que eles estão no cotidiano dos guineenses definindo as regras, valores e costumes que moldam a leitura de mundo dos guineenses, diferenciando-os de outras sociedades.

Assim, finalizamos esta empreitada com a sensação de que há um longo caminho para se fazer ainda se quisermos construir um currículo escolar inclusivo, que respeite toda a diversidade: cultural, educacional e epistemológica impressas no cotidiano dos grupos étnicos que compõem a Guiné-Bissau. Assim, fechamos este ciclo felizes, por termos percebido que a pedagogia do rito é como espelho, no qual os guineenses olham para reflexos da sua vida e podem dizer aquilo que é de original e sincero para si mesmos.

Cómo citar este artículo (ABNT)GOMES, Décio Otto Carlos; SILVA, Edileuza Fernandes da. Ritos como processo formativo e pedagógico: desafio de educação na Guiné-Bissau. Educação & Formação, Fortaleza, v. 8, e11205, 2023. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/redufor/article/view/e11205

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Recebido: 03 de Agosto de 2023; Aceito: 20 de Novembro de 2023; Publicado: 28 de Dezembro de 2023

Editora responsável: Lia Machado Fiuza Fialho

Pareceristas ad hoc: Telmo Marcon e Bernardino Galdino de Sena Neto

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