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Educação & Formação

versión On-line ISSN 2448-3583

Educ. Form. vol.8  Fortaleza  2023  Epub 23-Feb-2024

https://doi.org/10.25053/redufor.v8.e11498 

Artigos

A formação interdisciplinar da bibliotecária e educadora Zila da Costa Mamede (1928-1985)

La formación interdisciplinaria de la bibliotecaria y educadora Zila da Costa Mamede (1928-1985)

Marta Maria de Araújo1  i
http://orcid.org/0000-0001-5820-9462; lattes: 6905794496420579

Tércia Maria Souza de Moura Marques2  ii
http://orcid.org/0000-0002-0988-6552; lattes: 2329493928006531

Ana Luiza Medeiros Pires Praxedes3  iii
http://orcid.org/0000-0001-7150-9822; lattes: 0620212925661701

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

2Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

3Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil


Resumo

Defende-se, neste artigo, a tese de que a educação desempenha uma função pedagógica no processo formativo do indivíduo. A partir dessa afirmação e, ainda, em consonância com o corpus da pesquisa (entrevistas, cartas, etc.), procura-se delinear - à luz dos escritos de Nobert Elias Sobre o tempo e A sociedade dos indivíduos, observando a contingência da dimensão temporal - as experiências interdisciplinares formativas, o exercício especializado da Biblioteconomia e da docência em suas intersecções institucionais e, igualmente, as redes de sociabilidade da intelectual Zila Mamede no curso de sua vida. Confirmada a proposição à partida, consolida-se a prova da eminência das experiências formativas interdisciplinares, que são interdependentes em relação à sociedade, às redes de sociabilidade do indivíduo e às temporalidades.

Palavras-chave experiências formativas; educação universitária; redes de sociabilidade; temporalidades.

Resumen

Este artículo defiende la tesis de que la educación desempeña un notable papel pedagógico en el proceso formativo del individuo. A partir de esta afirmación y también en consonancia con el corpus de la investigación (entrevistas, cartas, etc.), se pretende esbozar - à la luz de los escritos de Nobert Elias Sobre el tiempo y La sociedad de los individuos, observando la contingencia de la dimensión temporal - las experiencias interdisciplinar de formación, el ejercicio especializado de la Bibliotecología y la enseñanza en sus intersecciones institucionales y también las redes de sociabilidad de la intelectual Zila Mamede en el transcurso de su vida. Confirmada la proposición al principio, se consolida la evidencia de la eminencia de las experiencias formativas, que son interdependientes en relación con la sociedad, las redes de sociabilidad del individuo y las temporalidades.

Palabras clave experiencias formativas; Educación universitaria; Redes de sociabilidad; temporalidades.

Abstract

This article defends the thesis that education plays a remarkable pedagogical role in the individual’s formation process. Based on this statement, and also in line with the research corpus (interviews, letters, etc.), we try to delineate - in the light of the writings of Nobert Elias About time and The society of individuals, observing the contingency of the temporal dimension - interdisciplinary the formative experiences of formation, the specialized exercise of Librarianship and teaching in their institutional intersections and, also, the networks of sociability of the intellectual Zila Mamede in the course of her life. Confirmed the proposition at the beginning, it consolidates the evidence of the eminence of formative experiences, which are interdependent in relation to society, the individual’s sociability networks and temporalities.

Keywords formative experiences; university education; networks of sociability; temporalities.

1 Introdução

Sinto-me tremendamente feliz em ser mulher. Sempre desejei ser menina de circo, trapezista ou filha de ciganos (Mamede, 1975a).

No livro Sobre o tempo, o sociólogo Nobert Elias (1998) reflete sobre o desenvolvimento do patrimônio comum dos saberes culturais nas sociedades ocidentais, que se reveste de preponderância para a humanidade e, precisamente, por isso, merece maior atenção. No plano particular, o indivíduo deve perceber que seus roteiros “[...] não são inseparáveis da direção seguidas das transformações das formas da vida comunitária e das pessoas que lhes estão ligadas [...]” (Elias, 1998, p. 29), ou mesmo das experiências formativas.

Haveria, para Elias (1998, p. 58), uma sucessão de acontecimentos na vida de cada pessoa, no curso do tempo vivido, “[...] que pouco é independente dos saberes de que dispõe, nem tampouco inseparável de sua experiência da vida em geral”. É evidente que a educação desempenha uma função pedagógica notável no processo formativo de cada indivíduo, que é interdependente em relação ao universo social onde ele se insere. Essa é a tese que aqui se defende.

Todavia pode-se, com base em Elias (1994), fazer a seguinte pergunta: no quadro de referências da dimensão temporal individual, social e grupal, quais, dentre essas referências, fizeram-se precípuas no caso de uma mulher poeta, professora, bibliotecária, pesquisadora, biógrafa, jornalista e escritora - a intelectual Zila Mamede - em conformidade com a teia das experiências formativas e com o exercício especializado da Biblioteconomia e da docência, em suas intersecções com as instituições formadoras, a função de dirigente e a inserção em redes de sociabilidade?

Em outras palavras, procura-se, ainda em consonância com o pensamento de Elias (1998), abordar, pela contingência da dimensão temporal, as experiências interdisciplinares formativas, as atividades profissionais e, igualmente, as redes de sociabilidade da intelectual Zila Mamede. Para esse desígnio, o corpus documental da pesquisa compreende o material advindo do arquivo pessoal de Zila Mamede (entrevistas gravadas, cartas, curriculum vitae, etc.), sob a guarda da Biblioteca Central “Zila Mamede”, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Metodologicamente, faz-se uso da concepção de tempo de Elias, especialmente por se considerar a amplitude das referências dos acontecimentos, o devir das experiências formativas, humanas, sociais e pedagógicas e do plano das ideias. Nas palavras desse pensador, encontra-se uma explicação plausível para tal escolha:

A determinação do tempo repousa na capacidade humana de relacionar duas ou mais sequências diferentes de mudanças, uma delas servindo de escala de medição do tempo para a outra ou as outras. Esse tipo de síntese intelectual representa um feito que está longe de ser elementar, uma vez que a sequência de referência pode ser profundamente diferente daquela para a qual serve de escala de medida (Elias, 1994, p. 60).

Para Elias (1994, p. 11), a dimensão do tempo traduz, à vista disso, os esforços individuais envidados para que se situem no interior do fluxo continuum relativo “[...] à aquisição de saberes, das experiências humanas, estruturalmente interdependentes e, em maior ou menor grau, correlacionados uns aos outros na cadeia da interdependência social”. Nesse fluxo, a sociedade não apenas produz os diferenciados e os semelhantes, mas também o indivíduo singular.

Este artigo é um dos produtos do projeto de pesquisa “A educação de mulheres ao longo dos séculos XIX e XX”, do grupo de pesquisa interinstitucional “Educação de mulheres nos séculos XIX e XX”. Ele está organizado mediante a proeminência da dimensão temporal na amplitude das experiências formativas, das atividades profissionais e, igualmente, das redes de sociabilidade da intelectual Zila Mamede, compreendendo as seguintes seções: Tempos principiantes (1928-1949), Tempos de transitoriedades (1951-1959), Entretempos (1960-1979) e Tempos epílogos (1980-1984).

2 Tempos principiantes (1928-1949)

A poeta, bibliotecária, professora, pesquisadora, biógrafa, jornalista, escritora e intelectual Zila da Costa Mamede é a nona filha de Josafá Gomes da Costa Mamede (mecânico, marceneiro e outras atividades) e de Elydia Bezerra de Medeiros (dona de casa e primeira mestra de seus filhos). Ela nasceu em 15 de setembro de 1928, no então povoado de Nova Palmeira, pertencente ao estado da Paraíba. No programa Memória Viva, da Televisão Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ela apresentou suas referências do povoado de nascimento, assim se pronunciando:

Nova Palmeira é o chão onde nasci, e eu gostaria que fosse no Rio Grande do Norte, exatamente por me sentir tão norte-rio-grandense que tenho susto quando olho a minha certidão de nascimento e a carteira de identidade por ser da Paraíba e não do Rio Grande do Norte. Nisso não há nenhum preconceito contra a Paraíba. Apenas fui transplantada muito pequena, a tempo de me sentir enraizada aqui [...] (Mamede, 1987).

Zila Mamede residiu em Nova Palmeira até os 7 anos de idade. Nas férias da Escola Primária Rudimentar Mista (onde foi aluna da professora Josefa Emília de Medeiros), ela e seus/as irmãos/ãs costumavam ir para o sítio O Alto, pertencente a seu avô materno e padrinho - Francisco Bezerra de Medeiros -, que lhes ensinou, como se professor fosse, os nomes das árvores do sertão ali existentes, para que se referissem a elas pelo nome próprio: imburana, pereiro, jitirana, jurema e urtiga. Nas palavras de Zila Mamede (1987): “Esses nomes e essas árvores eu as distingo em qualquer lugar onde as encontre e bem sei exatamente o que cada uma é”. Teria sido por meio desse seu avô materno que ela ouviu as primeiras leituras de folhetos populares. Na recordação desse tempo, Zila faz o seguinte registro:

Os primeiros personagens da literatura de cordel que conheci foram Carlos Magno e os doze pares da França e Roberto do diabo. Muitas vezes, ouvi e chorei com a leitura de A donzela Teodora, A princesa Magalone e a Imperatriz Porcina. Mas a minha emoção era com a leitura de O pavão misterioso. Todo mundo que nasce e cresce no sertão conhece essa literatura popular, pelo menos de oitiva (Mamede, [1982], p. 4, grifos nossos).

A família mudou-se para a cidade de Currais Novos quando Zila tinha 7 anos de idade, em 1935, município pertencente à região do Seridó do Rio Grande do Norte, por convite de fazendeiros produtores de algodão. Nessa cidade, à época - segundo Barros (2015) -, ganhavam projeção os postos da Inspetoria do Serviço de Plantas Têxteis e do Fomento de Classificação de Algodão, pela qualidade distintiva do algodão ali produzido.

Nessa região, haviam nascido os avôs materno e paterno de Zila, além do seu pai. À semelhança de homens e mulheres do sertão do Rio Grande do Norte à época, eles foram morar no sertão paraibano, especialmente em Nova Palmeira (avô materno) e em Picuí (avô paterno).

Embora não tivessem estudos escolares, segundo Zila, todos foram bons mecânicos, marceneiros e ferreiros. Quanto ao seu pai, além dessas profissões, também dominava os saberes de cálculos aritméticos. Provavelmente, por abrangência desses conhecimentos práticos e teóricos, esteve à frente da construção de pontes e açudes no estado da Paraíba, a cargo do Departamento Nacional de Obras contra as Secas.

Na cidade de Currais Novos, a menina Zila foi matriculada por seus pais no grupo escolar Capitão-Mor Galvão (criado pelo Decreto nº 256, de 25 de novembro de 1911), onde estudou até a 6ª série do curso primário (1936-1941), com as mestras Dinorah Fonseca, Ezilda Elita de Nascimento, Elça Sant’Ana, Filomena Herôncio de Melo, Maria Antônia Pinheiro, Maria do Carmo da Cunha e Rosa Cunha. Essa fase da vida de Zila é assim descrita por ela: “A mais livre de minha segunda infância e da primeira adolescência dos 8 aos 12 anos”. Nessa cidade sertaneja, foi incentivada pela musicista Suetônia Batista, que, além de tocar bandolim, violão, acordeom, dentre outros instrumentos musicais, era atenta compradora de discos e livros, os quais costumava emprestar a Zila para que esta pudesse deleitar-se com as boas e instrutivas leituras. Ela assim relembra desse tempo:

Currais Novos [onde me tornei uma sertaneja incurável] não dispunha de bibliotecas. Portanto, dos 8 aos 12 anos, eu li Almanaque Capivarol, o Tico-Tico, Alterosas, Eu Sei Tudo, Vida Doméstica, todos os romances de M. Delly e Monteiro Lobato, todos os contos infantis e juvenis que caíram nas minhas mãos (Mamede, [1982]).

Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), teve início a construção da Base Aérea localizada no município norte-rio-grandense de Parnamirim. Segundo Mamede (1987), em razão desse acontecimento mundial, a oficina mecânica de seu pai foi arrendada pelos americanos para que se integrasse à construção da Base Aérea de Parnamirim. Assim, a família Mamede mudou-se para a capital, Natal, em dezembro de 1942.

No ano de 1943, morou, por alguns meses, na cidade de João Pessoa (Paraíba), na casa de seu padrinho de batismo, o médico Francisco Medeiros Dantas. Era um homem culto e marxista, que passou a orientar suas leituras nessa época. Mandava-a ler os livros de literatura de sua biblioteca, como o romance O castelo do homem sem alma (de autoria de Archibald Joseph Cronin). Na partida da afilhada, de volta a Natal, ele a aconselhou: “Desde agora, comece a ler, a ler tudo que passe pelas suas mãos, e depois escolha o que for importante” (Mamede, 1987).

Em Natal (1944), Zila foi matriculada por seus pais no curso ginasial da Escola Técnica de Comércio Imaculada Conceição, pertencente ao Colégio Imaculada Conceição da Congregação das Irmãs de Santa Doroteia, que lhe concedeu o diploma de auxiliar de escritório pelos estudos concluídos em 1946. Nessa mesma Escola Imaculada Conceição, ela fez o curso técnico de Contabilidade, de 1947 a 1949.

Seja pelas leituras na fase da infância e no começo da adolescência, seja pelas leituras dos livros da biblioteca do seu padrinho de batismo, ou ainda pelas sociabilidades despertadas, o curso acadêmico em que gostaria de haver ingressado era o colegial clássico, que, talvez, dificultasse um emprego imediato. Vislumbrando tal probabilidade, ela explica sua decisão: “O meu pai, já naquela época, teve a sabedoria de que literatura não dava emprego e me mandou estudar contabilidade [...]” (Mamede, 1987).

Mulher culta, poeta, bibliotecária, professora, pesquisadora, biógrafa, jornalista, escritora, com todas as deferências de suas experiências interdisciplinares formativas, um dos seus entrevistadores no programa Memória Viva (professor Alvamar Furtado) perguntou-lhe sobre as circunstâncias de tempo e de lugar de sua maestria para escrever, ao que ela respondeu:

No Colégio Imaculada Conceição, eu tive uma professora de português, madre Esmeralda. Foi a pessoa com quem aprendi português, o português que eu sei escrever e faço uso até hoje. Ela era uma professora de português extremamente bem preparada e exigentíssima, que não perdoava uma vírgula (Mamede, 1987).

Quanto à palavra escrita, assim a definiu para seus entrevistadores:

A palavra escrita é para mim muito mais do que uma coisa escrita por possuir uma carga imensa de significado do que é vivido, visto e sentido. Eu aproveitei palavras fortes e comuns que se somaram ao meu vocabulário, ainda muito incipiente, para escrever o livro Arado, que é um retrato sentimental do sítio do meu avô materno. Ele é todo, praticamente, escrito de palavras sertanejas, que são palavras fortes (Mamede, 1987).

3 Tempos de transitoriedades (1951-1959)

A despeito do curso comercial ginasial e do técnico, que ajudaram Zila a conseguir os seus primeiros empregos de contadora na firma industrial “Sérgio Severo” (de março a outubro de 1951) e no Serviço Social da Indústria (de novembro de 1951 a outubro de 1953), a palavra escrita, pelos empréstimos das leituras dos livros que ela abraçou para ler ou que a abraçaram para ela ler, concorreria, quiçá, para seu pendor poético, para ela escrever seu livro inaugural, de título Rosa de pedra (1953). Para seu entrevistador (Carlos Lyra), Zila fez uma confissão quase psicanalítica: “Esse primeiro livro foi absolutamente intuitivo”.

À semelhança de Cecília Meireles, que escrevia na coluna Comentário do Diário de Notícias do Rio de Janeiro (1930-1933), Zila - segundo Sobral e Dantas (2019) - estreou como jornalista nas colunas da “Tribuna Social” (1951) e da “Revista da Cidade”, do jornal Tribuna do Norte, de 10 de janeiro a 8 de fevereiro de 1952, onde trabalhou com o pseudônimo Maiana. À luz das publicações da coluna “Revista da Cidade”, naquele tempo, Sobral e Dantas (2019, p. 51), os estudiosos de Zila - a jornalista -, afirmaram:

Há uma voz clara e autoral da jovem jornalista Zila, aos 24 anos de idade, uma poeta à procura da sua voz e uma profissional à procura do seu destino. Zila busca corresponder ao propósito de uma coluna social, mas o faz de forma autoral e extremamente provocadora [...] ampliando o repertório para a seara cultural, visto que era poeta e convivia com a intelectualidade da cidade, talvez, por isso, tenha se vestido sob pseudônimo.

Para esses estudiosos, a jornalista Zila exercitava um “jornalismo híbrido”, em razão do gênero de suas publicações: crônicas, artigos, coluna social, comentário de filmes, reportagens e divulgação de seus poemas.

O livro Exercício da palavra (1975b) Zila dedicou ao governador Sylvio Piza Pedroza (1951-1956), por lhe dever seu primeiro emprego público e a profissão de bibliotecária, exercido na direção da Biblioteca do Instituto de Educação, que foi inaugurada no dia 4 de março de 1954. Conforme seu curriculum vitae (Mamede, 1965, 1975), por autorização desse governador, ela representou o estado no 1º Congresso de Biblioteconomia (em julho de 1954), realizado na cidade de Recife (Pernambuco), e participou do Curso Intensivo de Biblioteconomia voltado à Assistência Técnica às Bibliotecas Brasileiras (de setembro a novembro de 1954), promovido pelo Instituto Nacional do Livro (INL).

Vale registrar o fato de que, somente seis anos após a conclusão do curso técnico de Contabilidade, Zila foi aprovada para o curso superior de Biblioteconomia, promovido pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1955-1956). Antes dessa temporada acadêmica, social e cultural na capital da República, além da rede de sociabilidade formadora de uma elite intelectual, não obstante, a escritora e a leitora eram inseparáveis, como se pode constatar por seu próprio testemunho:

Eu comecei a ler tudo que passava nas minhas mãos, o que era possível ler: geração de 45, modernistas, jornal de letras, e tomando conhecimento da existência de poetas célebres, até que cheguei a Manuel Bandeira pelos livros antigos dele e aos livros mais modernos (Mamede, 1987).

Com admiração intelectual que tinha por Manuel Bandeira - a pessoa, o erudito e a celebridade de seus escritos literários -, Zila não hesitou em visitá-lo no Rio de Janeiro. Aos seus entrevistadores, enalteceu o mestre que a obrigou a estudar os autores clássicos, como revela em seu breve enunciado:

Ele interferiu para que uma bolsa de estudo saísse logo para mim da Biblioteca Nacional. [...] E fez mais: ele me obrigou a estudar. Inclusive, em cartas dele para mim, ele me obrigava a estudar latim e a conhecer os clássicos, que sem lê-los ninguém era poeta. Digo que ele me obrigou a levar a sério a poesia (Mamede, 1987).

Era notória a determinação de Zila de “conhecer os clássicos” quando do seu retorno para Natal em 1957. Em um plano literário, as leituras dos livros de poesias e prosas de Manuel Bandeira estenderam-se para as obras clássicas de Marcel Proust (Em busca do tempo perdido) e Camilo Castelo Branco (Amor de perdição) e para as cartas de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade.

No quadro das referências da dimensão temporal nasce a coleção das obras poéticas dessa norte-rio-grandense, já conhecida e reconhecida no meio intelectual brasileiro: Rosa de pedra (1953), Salinas (1958), O arado (1959), Exercício da palavra (1975b), Navegos (1978) e A herança (1984). Em Bosi (1996, p. 32), encontra-se a defesa de que a dimensão temporal representada por uma com-posição de recorrências e analogias “[...] é, geralmente, (in)satisfatória para compreender as esferas simultâneas da existência humana e da existência social”.

No plano temporal da Biblioteconomia, Zila reassumiu a direção da Biblioteca do Instituto de Educação, permanecendo no cargo pelo tempo de dois anos (1957-1959). Em 1959, foi designada pelo governador Dinarte de Medeiros Mariz (1956-1961) para reorganizar a Biblioteca do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e para ministrar um curso intensivo de Biblioteconomia para os funcionários da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Natal (de 12 de maio a 12 de junho de 1959). Pioneira da Biblioteconomia no estado, Zila era ciosa da tênue fronteira entre a cultura livresca e a cultura literária, a bibliográfica, a patrimonial, a documental, a catalogação de acervos, dos padrões biblioteconômicos, além das redes de sociabilidade próprias do universo da instituição biblioteca.

Não teria sido por menos que ela aceitou a designação do professor Onofre Lopes da Silva - nomeado pelo governador (em 6 de fevereiro de 1959) para reitor da recém-criada Universidade do Rio Grande do Norte - para diretora do Serviço Central de Bibliotecas (criado pela Resolução nº 14 - Conselho Universitário, de 2 de maio de 1959), com o encargo de efetivar a estruturação e a organicidade das bibliotecas setoriais, além da aquisição de obras acadêmicas. No correr do tempo de oito meses nessa diretoria, o presidente Juscelino Kubitschek sancionou a Lei nº 3.848, de 18 de dezembro de 1960, que transformava aquela universidade estadual na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Naquela altura do ano de 1959, o universo da instituição biblioteca equivalia, no entendimento de Zila ([1959-1979]), p. 1), a um “[...] laboratório intelectual comum a toda a população leitora [...]”, principalmente.

No plano institucional, Zila integraria, como faz pensar Elias (1994), a distribuição das decisões da educação universitária. No plano integrativo, as atribuições de diretora do Serviço Central de Bibliotecas a remetiam para coordenar e sistematizar as atividades técnicas e biblioteconômicas das bibliotecas setoriais, a aquisição centralizada de materiais bibliográficos, especialmente livros e revistas, em todas as áreas do conhecimento humano, e a respectiva catalogação e classificação, bem como interceder nos convênios com instituições públicas brasileiras e mediar intercâmbios de publicações no Brasil e no exterior, principalmente com os Estados Unidos.

De acordo com as pesquisas de Marques e Araújo (2020), a diretora desse serviço decidiu, juntamente com auxiliares do reitor Onofre Lopes, sua instalação no edifício da Reitoria, em Natal, onde permaneceu por 14 anos (1959-1973). Posteriormente, pronunciou-se favoravelmente à sua transferência para o edifício da Escola Industrial de Natal, onde permaneceu por um ano (1973-1974), indo depois para o prédio da Biblioteca Central do campus universitário da UFRN em adiantada construção.

É bem verdade que aquele tempo presente de diretora do Serviço Central de Bibliotecas elevava-se como de imediatas instruções biblioteconômicas pelos padrões universais para os auxiliares daquelas sete bibliotecas setoriais, com um acervo de, aproximadamente, 20.000 volumes (livros e revistas) e uma média de 500 leitores/mês. Conforme o curriculum vitae de Zila (1975a), na condição de diretora daquele Serviço, ela ministrou um curso intensivo de Biblioteconomia (em outubro de 1959) para todos os auxiliares das bibliotecas setoriais, articuladamente com o INL.

Aquele tempo sobressaía pelas sucessivas atualizações da bibliografia da área da Biblioteconomia com conceitos ampliados de biblioteca, de convenções, de empréstimos e de circulação de livros nas comunidades de estudos, de pesquisas e de produção acadêmica de professores e de estudantes, além de protocolos de estágios, de convênios e de intercâmbios nacionais e internacionais. Como preconiza Chartier (2010, p. 57), “[...] para que [tudo isso] se fizesse referências em um tempo e em um lugar concretos” [...]” - como, por exemplo, na recém-criada UFRN.

4 Entretempos (1960-1979)

O filósofo Kant (2001, p. 96-97), em sua Crítica da razão pura, reportando-se ao domínio do tempo, afirmava que “[...] somente nele é possível toda a realidade dos fenômenos”. Sendo assim, o tempo é dado a priori.

No período compreendido entre 1960 e 1969, a Biblioteconomia reluzia de possibilidades de transcendências das experiências interdisciplinares teóricas e técnicas formativas. Nesse tempo de diretora do Serviço Central, “estudando inglês seriamente”, Zila foi contemplada pela Embaixada Americana, com sede no Rio de Janeiro, com uma bolsa de estudo do governo americano para cumprir um programa de estágio na Biblioteca da Universidade americana de Syracuse (de 6 a 16 de abril de 1961). Sobre esse estágio, ela anotou, no seu diário de viagem (1961): “Tive uma aula de administração. Realmente, até agora não houve nada de novo, para mim”.

Nesse interregno nos Estados Unidos, Zila esteve na Biblioteca Estadual de Cleveland e na Universidade Nacional da Colômbia, quando, nesta última, por sua decisão, foi levado a efeito um convênio de intercâmbios de publicações com a UFRN.

Ainda nesse ano, ela foi uma das convidadas estrangeiras da 80ª Conferência Anual da Associação Americana de Bibliotecas, realizada na cidade de Cleveland (de 9 a 16 de julho de 1961), bem como foi convidada para conhecer a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Em face desse desempenho de Zila, cabe ressaltar a hipótese de Elias (1998, p. 18) de que, no interior de grupos constituídos a que pertence, “[...] o indivíduo comumente dispõe de uma certa margem de autonomia, tem uma certa latitude em seu poder de decisão”. Decerto, em maior ou menor grau, a bibliotecária Zila exercia esse atributo pessoal e institucional.

Para Elias (1994, p. 51), a margem individual de autonomia e de decisão é “[...] bastante variável em sua natureza e extensão, dependendo do alcance do poder pessoal [...]” - acrescentamos: e dos encargos institucionais. Isso parece evidente nesta carta de Zila para as amigas Luíza e Fernanda [Leite Ribeiro], escrita em 9 de dezembro de 1963:

Há tantas coisas para agradecer: as fotografias, os livros... [...]. Não sei o que sucederia, mas sei de uma coisa, Fernanda: não ficarei em Natal, definitivamente. É quase definitiva a [minha] decisão de ir para Brasília fazer o Master’s [...]. Gostaria de ter notícias do curso prometido por p. Lídio, para a UFRN, de orientação bibliográfica. Vou escrever oficialmente (Mamede, 1963, fl. 1-2).

À primeira vista, afigurava-se sua pertinaz obstinação em ultrapassar a cotidianidade do tempo presente para adiantar-se noutro: o do estágio de aperfeiçoamento do seu trabalho especializado de Biblioteconomia. Tal como havia prenunciado Elias (1994, p. 44):

Quanto mais a divisão social do trabalho avança numa sociedade é maior o intercâmbio entre as pessoas, mais estreitamente elas estão interligadas pelo fato de cada uma só poder sustentar a sua existência social em conjunto com muitas outras.

De fato, graças à criação, na Universidade de Brasília (UnB), do mestrado em Biblioteconomia (1964) na área de Bibliografia Brasileira, com fins de integração e capacitação de bibliotecários, a bibliotecária Zila foi uma das três pós-graduandas aprovadas, iniciando o curso em 24 de março de 1964. As outras duas seriam Fernanda Leite Ribeiro (diretora do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação) e Gilda Maria Whitaker Verri (bibliotecária da Universidade Federal de Pernambuco).

Conforme o curriculum vitae (1975a) de Zila, essa primeira turma de mestrado em Biblioteconomia cumpriu um programa de estudos teóricos nos dois primeiros anos do curso (1964-1965), com as disciplinas: Bibliografia Brasiliana (professor Rubens Borba de Moraes), Bibliografia I (professora Pérola Cardoso Raulino), Bibliografia II (professor Edson Nery da Fonseca), Novos Métodos e Técnicas de Difusão dos Conhecimentos (professor Edson Nery da Fonseca), entre outras.

Na condição de pós-graduanda bolsista, Zila assumiu a docência no curso de graduação de Biblioteconomia da UnB, ministrando as seguintes disciplinas: Introdução à Biblioteconomia, Técnicas Bibliográficas e Bibliografia I, além de ter sido tradutora de conferências e de catálogos de classificação de livros e documentos.

Não obstante, sucedeu que, com a deflagração do golpe civil-militar em 31 de março de 1964, por intervenção executiva das Forças Armadas com atuação norte- -americana, a UnB sofreu severas crises de ordem política e institucional. Segundo Borges (2013), essas crises resultaram no cancelamento brusco do curso de mestrado em Biblioteconomia e no afastamento das três primeiras mestrandas.

Em razão desse tempo de regime ditatorial, Zila não concluiu o curso de mestrado em Biblioteconomia na UnB, previsto para mais ou menos três anos. Ainda assim, o trabalho de mestrado idealizado foi levado a efeito e publicado com o título Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, 1918-1968: bibliografia anotada (Mamede, 1970b).

No decurso de quatro anos (1970-1974) - conforme documentos da Biblioteca -, Zila levou adiante o plano de aprimoramento do sistema de bibliotecas da UFRN conjugado com a criação de mais bibliotecas setoriais (Faculdade de Educação e do Serviço de Psicologia Aplicada, por exemplo), o aumento do material bibliográfico (40.225 livros e 3.138 periódicos, em 1970, e 57.856 livros e 3.936 periódicos, em 1974), além dos convênios com o INL e organismos internacionais (Organização dos Estados Americanos e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Ademais, por força dos novos conhecimentos teórico-conceituais da Biblioteconomia, Zila, por outro lado, decidiu por um plano de formação das/dos bibliotecárias/os da UFRN nos cursos de bacharelado em Biblioteconomia e de aperfeiçoamento em documentação científica nas Universidades de Brasília, de Minas Gerais, do Maranhão e da Paraíba, além do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação no Rio de Janeiro (atual Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - Ibict).

Para além, ela elaborou outro plano referente à institucionalização da Biblioteca Central da UFRN, em lugar do então limitado Serviço Central de Bibliotecas. Tal plano foi aprovado pela Resolução nº 140/74-Consepe, de 14 de novembro de 1974, na gestão do reitor Genário Alves da Fonseca (1971-1975).

Decerto, as notáveis decisões institucionais e interdependentes de Zila perfaziam o que Elias (1994, p. 48) denomina estágios dos encargos, que se diferenciam e se singularizam na teia das relações interpessoais e recíprocas e, à vista disso, “[...] se abrem possibilidades para as decisões individuais [...]” e, ao mesmo tempo, de reconhecimento nas redes de sociabilidade de dirigentes de instituições nacionais e de organismos internacionais. Uma menção que pode revelar-se nas redes de sociabilidade que entreteciam a teia de relações interpessoais de Zila faz sobressaírem as suas profícuas correspondências por meio de cartas.

A princípio, Zila escreveu uma carta para a bibliotecária e escritora Maria Alice Giudice Barroso Soares - diretora do INL de 1970 a 1974 (datada de 24 de dezembro de 1970) -, ressaltando o convite recebido pelo então reitor da Universidade Federal do Maranhão.

Atendendo a um convite, deverei seguir para o Maranhão em 3 de janeiro próximo, para supervisionar o estágio da 1ª turma concluinte da Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Maranhão [...]. Mas tanto o trabalho me interessa, profissionalmente, quanto o reitor Onofre Lopes está interessado em que eu atenda à solicitação do reitor Cônego José de Ribamar Carvalho. Desta cidade do Natal que eu adoro, renovo e asseguro a minha grande admiração por você e por sua atividade intelectual (Mamede, 1970a, fl. 1-2).

No período de 8 a 17 de fevereiro de 1971, como docente dessa universidade, Zila dedicou-se à supervisão do estágio “puxado” das/os concluintes do curso de Biblioteconomia. A despeito de todo esse esforço, ela mencionava, em outra carta (datada de 17 de março de 1971) dirigida a Maria Alice Barroso, as “excelentes amizades” acrescidas - diga-se, nas redes de sociabilidade que se vinculavam. Mas, contrariada com a carência de alguns serviços de Biblioteconomia a quaisquer das bibliotecas dessa instituição, apresentou plano de convênio:

[Na Universidade] de São Luís não há setor de publicação de periódicos montado, em nenhuma das bibliotecas. Não tiveram condições, ainda, de montar um Serviço de Intercâmbio Nacional e Internacional. Com esses dois serviços aqui funcionando muito bem com a funcionária Gildete - propus então um convênio institucional: a ida dela para cursar Biblioteconomia nessa Universidade em troca de uma bolsa de trabalho paga pela Biblioteca Central onde ela montaria os serviços acima (Mamede, 1971a, fl. 2, grifos nossos).

Certamente, em virtude das especialidades semelhantes (bibliotecárias e escritoras), da estima pessoal e intelectual e das redes de sociabilidade comuns e reiteradas desde o tempo da graduação em Biblioteconomia no Rio de Janeiro, Zila foi surpreendida por um convite de Maria Alice Barroso para a direção da Biblioteca Nacional. Mesmo com a amabilidade do convite de Maria Alice, Zila hesitou em abraçar o cargo. Em carta datada de 16 de setembro de 1971, valeu-se do ensejo de diretora da Biblioteca Central da UFRN para disponibilizar quaisquer assistências técnicas do INL nas regiões Nordeste e Norte. Em sua resposta, assim escreve:

Você é uma sereia que vem cantando aos meus ouvidos o canto das bibliotecas pelo todo imenso do Brasil, pois sabe que esse sonho me encanta. Mas, minha querida amiga, vou ficando por aqui nesse mundo nordestino. [...] Tenho nas mãos outro sonho: a Biblioteca Central no Campus Universitário. Meu mundo é esse território intelectual de Natal, do Rio Grande do Norte, mas também do Brasil [...]. Estou à disposição do INL para qualquer eventual assistência técnica aqui pelo Nordeste e Norte do Brasil [...] (Mamede, 1971b, fl. 1-2).

Apesar disso, pareceu-lhe notável concordar com Maria Alice Barroso para a laboriosa função de assessora do livro literário (Portaria INL - nº 50, de 27 de março de 1972, respaldada pelo Ofício nº 158, de 29 de março de 1972, do reitor Genário Alves da Fonseca), nela mantendo-se no tempo de dois anos. No primeiro ano da direção do escritor e jornalista Herberto Sales (1974-1985) no INL, Zila, certamente em vista das singularidades de cada diretoria no seu tempo, enunciava, por meio de uma carta, o antes e o vir a ser nessa instituição:

Iniciando a nossa atividade profissional neste Instituto, a partir de 1º de abril de 1972, exercemos pela função de Assessora do Livro Literário e respondemos pela Coordenação do Livro Literário. Vimos, pois, pelo presente, colocar à disposição de V. S.ª as funções pelas quais respondemos neste Instituto. Atenciosamente (Mamede, 1974, fl. 1).

Por seu turno, a densa rede de sociabilidades entretecia, ao longo do tempo, as teias das relações interpessoais e recíprocas da bibliotecária e escritora Zila Mamede. Esse prisma transparece na carta dela datada de 23 de janeiro de 1979 para o doutor Almir de Campos Brunetti, professor da Universidade de Tulane, de New Orleans.

Tenho a honra de acusar o recebimento de sua carta na qual V. S.ª me formula o convite para apresentar conferências na Tulane University, na cidade de New Orleans, no período de 12 a 16 de março próximo vindouro. Agradecendo a honraria, confirmo a minha presença no período mencionado. Estou enviando cópias xerox do esboço das conferências que devo apresentar sobre a poesia publicada de Cecília Meireles e a pesquisa bibliográfica que estou realizando sobre a obra poética de João Cabral de Melo Neto. Igualmente, anexo, um exemplar do meu livro Navegos, a fim de que V. S.ª possa duplicar em tempo hábil e todos os textos que considere de interesse para discussão e debates [...] (Mamede, 1979, fl. 1, grifo da autora).

Essa carta de Zila pode ser vista, e até utilizada, como epígrafe de um trabalho de história da educação, articuladamente com a história do livro e com a história da leitura num tempo social do século XX - acaso, não é todo um devir de experiências humanas intelectuais e de redes de sociabilidade e de intercâmbio de conhecimentos? É por isso que se pode dizer, com Elias (1998, p. 17), que equivale ao reconhecimento das “[...] imbricações mútuas e da interdependência entre sociedade, indivíduo e temporalidade”.

Afinal, como evidencia Nunes (1992, p. 133), “[...] o indivíduo é radicalmente temporal e, portanto, também, as suas tomadas de decisões”. A propósito, vale rever o texto de Zila na orelha do seu livro Exercício da palavra:

De 1972 a 1974, na Coordenação do livro literário do INL, vivi e convivi com a literatura brasileira, com os autores, com os editores, com os distribuidores e pude aprender de perto o que significa a luta literária no Brasil, no sentido de produção e consumo. O que mais desejo é o dia da aposentadoria: libertação burocrática, relógio parado, dona de cada uma das horas da minha vida. Quero ver o sol nascer, ler tudo aquilo que ainda não li, andar de bicicleta, nadar, conversar com os amigos. Haverá sempre poesia e poetas. Eu ainda escolheria uma casa de campo com meus amigos, meus livros, meus discos [...] (Mamede, 1975b, grifo nosso).

5 Tempos epílogos (1980-1984)

Em coerência com as firmes decisões de Zila, no dia 28 de março de 1980, o Diário Oficial da República Federativa do Brasil publicou a aposentadoria dessa ocupante do cargo de bibliotecária, com o tempo de 21 anos (1959-1980) como servidora pública na UFRN.

Chamam a atenção Machado e Fialho (2013) para o fato de que o desejo quanto à sua “libertação burocrática” ela não o levou às últimas consequências. Três anos após a aposentadoria (1983), ela aceitou o convite do então governador do estado, José Agripino Maia (1983-1986), para coordenar a Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo. Em 1984, por meio de convênio entre a Fundação José Augusto, de Natal, e o INL, implantou o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, além de, segundo a bibliotecária Rejane Monteiro (2021), instituir e coordenar o projeto Caixas Estantes, com o conceito de biblioteca itinerante, visando à socialização de livros e ao incentivo pela leitura para os moradores de bairros periféricos do município de Natal.

O destino, no entanto, interrompe o curso da vida dessa notável intelectual ainda em plena laboração. Em 13 de dezembro de 1985, com 57 anos de idade, Zila falece, praticando uma de suas atividades prediletas: nadar na praia do Forte, em Natal (uma praia próxima ao Forte dos Reis Magos).

6 Conclusão

Elias (1994, p. 45), na obra A sociedade dos indivíduos, assim se posiciona: “A história é sempre a história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de indivíduos [...], que se ligam uns aos outros numa pluralidade, isto é, de uma dada sociedade”. Ainda nessa mesma obra, Elias pondera sobre o fato de que o curso das experiências formativas individuais, que singulariza e diferencia uma pessoa das demais, em reciprocidade com as redes de sociabilidade, é, ao mesmo tempo, permeado por “[...] entrelaçamentos contínuos de necessidades, num desejo de realizações constantes e da alternância de dar e receber mediante a interação com os outros” (Elias, 1994, p. 36).

Por sua vez, o filósofo inglês Peters (1979) sentencia que tudo aquilo que o indivíduo crescentemente deseja e/ou mesmo efetiva é, em grande parte, decorrência de sua iniciação na educação formativa. Para esse filósofo, é raro o indivíduo educado/escolarizado revelar haver chegado ao destino ambicionado; antes, a simultaneidade dos tempos existenciais e culturais instiga-o a conviver com uma perspectiva de vida diferenciada. Já a vida, de antemão, não tem finalidades exclusivas:

É o indivíduo que lhe assinala as finalidades. Ela apresenta poucos problemas ordenados [...]. É, pois, a educação que fornece aquele toque de eternidade, fazendo com a resignação se transforme numa aceitação dignificada, mas a contragosto, e o prazer animal numa virtude da vida [finita] (Peters, 1979, p. 130).

De modo inequívoco, em Zila (1975b), a educação como formação presumia uma vasta transmissão dos valores humanos universais, sendo a expressão da palavra seu modo comum de promover o seu engajamento existencial: “Com as palavras consigo verbalizar toda a minha paixão, a minha angústia e a minha perplexidade diante do amor, da vida e da morte, da fome, das guerras múltiplas, das agressões”.

Deveras, para Zila, a educação, como formação e interlocução interdisciplinar, transcendia a própria existência individual. Em vista disso, coloca-se como intermediária entre a dignidade humana, a emancipação, a autonomia, a liberdade e a audácia da linguagem literária.

É bem verdade que as temporalidades vividas em ritmos, espessuras e redes de sociabilidade transnacionais em que ela se integrou fluíram para deixar virem vir à baila, neste trabalho, quiçá, a vasta gama e a eminência das experiências formativas de tangentes interdisciplinares, o exercício especializado da Biblioteconomia e da docência em suas intersecções institucionais, o alargamento de uma elite de mulheres com capitais culturais diversificados e de diferenças interindividuais, o que, aparentemente, ela nada desperdiçou intelectualmente. Tudo isso é interdependente em relação à sociedade, às redes de sociabilidade do indivíduo e às temporalidades.

Aí reside o fascínio do domínio da educação no processo formativo de cada indivíduo. Ocorre que, como se verá em Nunes (1992, p. 133), para cada indivíduo existem os rituais particulares de inelutáveis determinações temporais, “[...] que são amiúde finitos, condição de finitude do ser humano, no sentido do presente ou do passado ou do futuro”.

No correr do tempo veloz do passado para o presente com suas distâncias e familiaridades, o alcance do poder pessoal/institucional de Zila no domínio relativo da educação universitária (ensino, pesquisa, extensão, pós-graduação) traz, pois, elementos de pesquisa elucidativos para a reflexão no que concerne ao estudo de mulheres empoderadas, notoriamente à luz da teia das experiências interdisciplinares formativas, essencialmente nas interações coletivas e/ou colegiadas.

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Recebido: 25 de Julho de 2023; Aceito: 31 de Outubro de 2023; Publicado: 29 de Novembro de 2023

Marta Maria de Araújo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Programa de Pós- -Graduação em Educação

ihttps://orcid.org/0000-0001-5820-9462

Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pesquisadora e orientadora de trabalhos de mestrado, doutorado e pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação na área de História da Educação, especialmente sobre a educação de mulheres, e líder do grupo pesquisa Educação de Mulheres ao Longo dos Séculos XIX e XX, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Contribuição de autoria: Conceitualização, metodologia, análise formal e redação final do manuscrito.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6905794496420579

E-mail: martaujo@uol.com.br

Tércia Maria Souza de Moura Marques, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Programa de Pós-Graduação em Educação

iihttps://orcid.org/0000-0002-0988-6552

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN, na linha de pesquisa Educação e Estudos Sócio-Históricos e Filosóficos.

Contribuição de autoria: Administração do projeto, curadoria de dados, investigação, supervisão e revisão final.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2329493928006531

E-mail: tercia.marques@ufrn.br

Ana Luiza Medeiros Pires Praxedes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Programa de Pós-Graduação em Educação

iiihttps://orcid.org/0000-0001-7150-9822

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN, na linha de pesquisa Educação e Estudos Sócio-Históricos e Filosóficos.

Contribuição de autoria: Curadoria de dados, investigação, supervisão e revisão final.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0620212925661701

E-mail: ana.praxedes@ufrn.br

Editora responsável: Lia Machado Fiuza Fialho

Pareceristas ad hoc: Décio Gatti Júnior, Elizabeth Figueiredo de Sá e Franselma Fernandes de Figueirêdo

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