INTRODUÇÃO
Quando o historiador italiano, Carlo Ginzburg, se interessou por investigar os processos inquisitoriais que tratavam, particularmente, das práticas de feitiçaria na Europa da Baixa Idade Média, ele “confessou” posteriormente que, frequentemente, se autocompreendia como um observador que, por sobre os ombros dos inquisidores, seguia seus passos cuja expectativa era que seus réus falassem o quanto pudessem sobre suas crenças, mesmo que com isso, corressem o risco de serem condenados por tais informações. Certamente, este exercício de perscrutação tornou necessário a análise intensiva das fontes, na tópica denominada por Ginzburg (1986)para paradigma indiciário, na qual a alteridade da documentação traz consigo provocações ao historiador para uma interação dialógica com suas fontes.
Como perceberão, privilegiei um conjunto diverso de fontes composto por mensagens, regulamentos, instruções e normas administrativas que orientaram a construção de edifícios escolares, notadamente aqueles destinados para o funcionamento de escolas primárias no estado do Paraná (Brasil), entre os anos de 1903 a 1938. A escolha desse recorte temporal se deu por ter sido um período marcado por uma série de reformas de ensino que se tornaram fundamentais para compreender o contexto histórico educacional paranaense.
Para auxiliar minha abordagem, necessitei localizar mais testemunhas. Mas antecipo aos leitores, desde já, que não pretendo instalar um tribunal à procura de pareceres judiciais, pois, reconheço as limitações dessa documentação que, certamente, fragilizaram o talento de “investigador criminal” ou de “psicanalista” na tópica adotada por Ginzburg (1980). Dentre estas testemunhas, estão as fontes oriundas da imprensa paranaense (jornais e revistas), repleta de elaborações discursivas que, muitas vezes, serviram para fortalecer os argumentos que encontrei na documentação governamental. Com elas, a companhia de tratados, manuais e catálogos arquitetônicos que deixaram escapar sobre minha mesa, a multiplicidade de cenas “escondidas” que não foram apresentadas pela documentação administrativa.
De posse de toda essa informação, era preciso estabelecer uma forma, um método de interpretação que me alertasse dos riscos do abismo anacrônico. E refletindo sobre esta necessidade, recordei-me da importância dos quatro níveis de interpretação, utilizados pelos sábios judeus do século XIII, para estudar os textos da tradição judaica, conhecido pelo acróstico PaRDeS (פַּרְדֵ״ס). O primeiro nível, P´shat(פְּשָׁט), “significado literal”, se preocupa com o que está na superfície do enunciado na forma de uma explicação geral; o segundo nível -Remez(רֶמֶז): “dicas”, responsável por desenvolver o estudo das fontes, para além do seu significado literal; já o terceiro nível, Derash (דְּרַשׁ), “interpretação”, extrai os significados, analisando as palavras, sua colocação e, também, ocorrências semelhantes em outros contextos. E, por fim, o quarto nível, Sod(סוֹד), trata dos “segredos” de um conhecimento escondido nas fontes.
Portanto, selecionei essa metodologia como ferramenta para as análises da multiplicidade de significados presentes na superfície das fontes e, com isso, melhor interpretar a estrutura de suas narrativas. Em especial, as contradições textuais (p´shat) presentes na superfície da documentação administrativa com pistas (remez) que me levaram para outros níveis de interpretação (derashesod).
Com o início do exercício de acareação das fontes, associei-me ao conceito de paradigma indiciário proposto por Ginzburg, acercando-o do método PaRDeS (פַּרְדֵ״ס), que também possui em sua base, a necessária leitura dialógica para a elaboração de significados adicionais que me acompanharam na compreensão dos contextos de enunciação de toda a documentação selecionada. Dessa maneira, a partir desta cuidadosa aproximação, ela em si, responsável por definir minhas estratégias interpretativas, procurei desenvolver os quatro níveis do PaRDeS (פַּרְדֵ״ס), principalmente naquilo que diz respeito a organização do meu inquérito, com perguntas que alimentaram todo processo interpretativo que se desdobravam de diferentes modos, conforme os seus respectivos níveis de conhecimento.
INDÍCIOS POR SOBRE A ESCRIVANINHA: A PROPÓSITO DE UMA INVESTIGAÇÃO
It is a capital mistake to theorize before one has data. Insensibly one begins to twist facts to suit theories instead of theories to suit facts. (Sherlock Holmes)2
Ao direcionar meu olhar para o recorte temporal de minha pesquisa e suas fontes, ainda embaralhadas sobre minha escrivaninha, aquela que despertou a minha curiosidade preliminar foi o Regulamento para a Ensino Público do Paraná de 1901, o primeiro publicado no século XX daquele estado (PARANÁ, 1901).3 Entrementes, após a leitura desse amplo e extenso Regulamento, minha frustação foi não ter encontrado pegadas significativas que tratassem da construção e manutenção dos edifícios destinados a escola primária paranaense.4 As poucas evidências que obtive estavam na superfície do Art. 36º do Capítulo V (Das Escolas), Título III (Do Ensino Primário), interpelados por colocações superficiais, como a que segue: “As escolas deverão funcionar nos lugares mais próprios ao aproveitamento e à frequência dos alunos ...” (PARANÁ: 1901, p. 6).
Esta pista não tinha nenhum impacto contundente, visto que tal informação eu já tinha coletado do próprio presidente Francisco Xavier da Silva, manifesta no discurso que proferiu diante dos deputados estaduais, poucas semanas antes da assinatura do Regimento. Ocasião que afirmou que “as escolas funcionam em casas alugadas pelo Estado, que com esse serviço despende quantia relativamente avultada, e carecem de mobília”. (PARANÁ, 1901a, p.5)
A existência de regras para uma gramática arquitetônica específica para o universo escolar público não estava apagada de outros documentos administrativos do Estado e, muito menos, foram esquecidas ou levadas ao desconhecimento por essas autoridades.5 Portanto, algo já existia, e naquele momento que remexia por mais dicas e rastros que me explicassem os motivos do silêncio dessa fonte, o segundo nível de conhecimento do método PaRDeS, Remez (רֶמֶז), ajudou-me a conjecturar que ainda permanecia como viável para aquelas autoridades republicanas, a aplicação do modelo de construção de escolas adotado nas determinações publicadas, ainda no regime monárquico, consubstanciado no Ato nº 287, de 14 de outubro de 1884, que regulamentava a Construção das Casas Escolares.6
Por um lado, cabe aqui destacar o Art. 4º do Regulamento de 1884, pois, trata de modo particular das condições das casas escolares, mas que, por outro lado, não específica como deveriam ser os arranjos arquitetônicos e espaciais dessas instituições.
Art. 4º - Guardar-se-ão nas construções de casas escolares os seguintes preceitos:
§ 1º. Quanto à localização deve ser preferido:
o centro da circunscrição escolar, e neste: o local mais acondicionado as exigências de higiene, e neste: o terreno com capacidade de isolamento para o edifício e ajardinamento circular.
§ 2º. Quanto à distribuição do edifício, poderá conter:
um vestíbulo;
dias saletas anteriores, uma servindo de locutório para o professor, e outra de vestuário, para os alunos;
a classe;
o ginásio, ou avarandado coberto;
uma privada ou duas, nas escolas promíscuas;
o pátio ou fundo;
o jardim em roda.
§ 3º. Para a classe exige-se:
capacidade superficial correspondente pelo menos a 1m.9,20 ms. por aluno, se o móvel for de um lugar, ou a 1m.9 se o móvel for de dois lugares;
capacidade cúbica nunca inferior à 5,5 ms.
forma retangular, guardando o comprimento e largura entre si a proporção de 11/2:1 mais ou menos;
luz direta unilateral pela esquerda, ou bilateral, sendo mais intrusa pela esquerda;
aparelhos de ventilação.
§ 4º. O exterior guardará o mais possível os elementos de distribuição interna. (DEZENOVE DE DEZEMBRO, 22 e 31 de outubro de 1884, p. 1)
Com esta suspeita e de posse destes primeiros vestígios deixados da tese de Franciele Ferreira França (2019), obtive segurança para compreender que as normas construtivas para os edifícios escolares não se modificaram com a mesma rapidez que se deu a mudança do regime monárquico para o republicano, em 1889. Em vista disso, a adoção de regras técnicas para a construção de edifícios escolares adotou, muito paulatinamente, novos formatos arquitetônicos e espaciais, conforme se estruturava a reorganização do ensino primário público no estado.
Certamente, estas fingersprints (digitais) forneceram alguns indícios, mas não em quantidade suficiente para afirmar quais os motivos das normatizações técnicas estarem desatualizadas, desde 1884. O que de imediato me chamou atenção nesta cena, foi a agenda do governo que propunha reformas que reorganizassem o ensino primário no Paraná, mas que, em contrapartida, não estava alinhada à pauta de reconfiguração da arquitetura que organizasse o próprio espaço escolar.
Várias das considerações de integrantes da gestão de governo, defendiam o que parecia ser bastante notório e que sequer eles conseguiam dimensionar, minimamente, as particularidades desse tipo de gramática arquitetônica. Como aquelas que constam no Regimento Interno das Escolas Públicas do Estado do Paraná de 1903:
Art. 8º. Cada escola funcionará em prédio público ou particular, em local determinado pelo Inspetor Escolar do distrito e pelo diretor Geral, na Capital, com sala espaçosa, limpa, bem arejada e bem iluminada.
(...)
Art. 55º Nas escolas públicas deverão ser observadas, entre outras, as seguintes prescrições higiênicas:
1º - As salas de aula devem ser espaçosas, bem arejadas, evitando-se as correntes diretas de ar, e bem iluminadas, incidindo a luz de preferência da esquerda para a direita. (PARANÁ, s.d. (a), p. 93 e 98)
Ao longo dos anos que se seguiram, foram divulgados posicionamentos de diferentes Diretores Gerais da Instrução Pública que me despertaram interesse. Começando com Victor Ferreira do Amaral e Silva que, em 1902, cobrou do próprio Estado a falta de prédios apropriados (PARANÁ, 1903, p. 38); Arthur Pedreira de Cerqueira, em 1906, insistia que fossem construídas casas escolares iluminadas, espaçosas e arejadas, conforme o clima da região onde quer que fossem edificadas (PARANÁ, 1907a); Jayme Dormund dos Reis, em 1910, reivindicava um prédio próprio nos moldes indicados pela ciência (PARANÁ, 1910, p. 5). Já, Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, em 1914, foi mais generoso em seu parecer ao anunciar que as casas escolares, em regra geral, eram de belo estilo arquitetônico, bem areadas e iluminadas (PARANÁ, 1915, p. 3)
Também consegui distinguir entre os Inspetores de Ensino, o descompasso entre o discurso da escola moderna e a falta de clareza quanto aos procedimentos para construção de edifícios adequados ao exercício civilizacional que deveria ser capitaneado pela educação. Isto notei em diversas alegações, dentre elas, a do renomado professor Sebastião Paraná que, na condição de Inspetor Escolar de Curitiba (capital do Estado do Paraná), denunciava, em 1907, que quase todas as escolas “(...) funcionam em salas particulares, de pequenas dimensões, falta de ar e de luz, onde mestres e discípulos não encontraram o necessário conforto durante a afanosa labuta escolar.” (PARANÁ, 1908, p. 53)
Antes de ser chamado a atenção por uma cobrança exagerada na sondagem destes testemunhos, admito que relatórios anuais de atividades de diretor geral de instrução pública, assim como relatórios de inspetores, não tinham a obrigação por apresentar um conjunto de preceitos como deveriam ser construídos prédios escolares. E, por conta e risco, isentei os signatários de minhas queixas.
Mas, por outro lado, muito por razão de não ter alcançado sinais das informações sobre o planejamento preciso do espaço escolar, vou insistir que o modus operandi destas autoridades enxergarem a realidade educacional que os cercavam, não os desendividariam de seu comprometimento com a matéria da arquitetura das escolas.
E com esta premissa, desentranhei na verossimilhança das alegações de parte da imprensa paranaense, a cobrança por posturas mais eficazes que modificassem o cenário político educacional. Um primeiro aspecto encontrei na revista A Escola,7 órgão do grêmio dos professores do Estado do Paraná, que não economizou comentários desfavoráveis a gestão pública:
As nossas escolas, infelizmente, com raras exceções, funcionam em salas particulares, quase todas de pequenas dimensões, falta de luz, de ar e de outros elementos necessários ao local. (A ESCOLA, 1906, p. 62)
Outra queixa foi subsequente ao contexto dos debates políticos adjacentes ao Regulamento da Instrução Pública de 1907 (PARANÁ, 1907), ocasião que os irônicos redatores da revista O Olho da Rua8 não pouparam alfinetadas à comissão encarregada por sistematizar o que consideravam verdadeiro retrocesso do ensino no estado.
Até que enfim já terminou a publicação do célebre regulamento elaborado à custa de tanto suor e tantas noites de insônia pela conhecida e, também, célebre trempe. Um verdadeiro horror, um tremendo labirinto, uma vergonha para o Paraná, que quer ter a honra de rivalizar com outros departamentos nacionais, em matéria de ensino público! Sob o ponto de vista da pedagogia moderna o tal monstro nos parece como indefectível, defeituoso em suas múltiplas arestas de ignorância incomensurável. (O OLHO DA RUA, 18 de janeiro de 1908)
Mas, contrapondo-se a tais posicionamentos, o jornal A República, órgão do Partido Republicano do Paraná, saiu em defesa das ações do governo:
Ao governo do Estado foi entregue ontem, pelo respectivo empreiteiro da construção, o prédio recém concluído para o novo Jardim de Infância, desta capital. Este fato, junto ao de estarem em construção em todo o Estado mais 10 elegantes e confortáveis 183 prédios para as escolas públicas, é muito eloquente em abono do carinho que o benemérito paranaense dr. Xavier da Silva, atual presidente, merece a instrução pública primária, cujo maior entrave ao seu aperfeiçoamento estava justamente na falta de edifícios apropriados aos trabalhos escolares e que respondessem a todos os requisitos de higiene e conforto. A construção, portanto, das casas escolares concorre com valioso elemento para o progresso do ensino e extingue de vez a causa de constantes reclamações contra a deficiente ou má instalação das escolas. (A REPÚBLICA, 25 de agosto de 1910)
Apesar do expressivo impacto que estas vozes provocaram em minha análise, não desisti de (re)buscar algo de novo no discurso de meus interlocutores. E não tive outra opção, senão regressar às minhas leituras na Diretoria de Instrução Pública e vasculhar o Regulamento Orgânico do Ensino Público do Estado de 1909 (PARANÁ, 1909), e o Regulamento da Instrução Pública do Estado de 1912. (PARANÁ, 1913)
E, novamente, me vi cercado por centenas de artigos, parágrafos e incisos, à procura de informações sobre a morfologia do espaço e da arquitetura do edifício escolar e, diga-se de passagem, eles não traziam nenhuma grande novidade a investigação, mesmo se tratando de documentos que foram produzidos por governos que se opunham politicamente! Mas, meditava e pensava que se quisesse encontrar uma fonte escondida, o melhor local era a pilha de documentos administrativos que tinha posto sobre minha mesa.
E alguns indícios que, seguramente, contribuíram para desembaçar a minha lupa e visualizar com melhor nitidez o contexto político administrativo da discussão desses dois regulamentos, foram os escritos acadêmicos de Sidmar dos Santos Meurer (2019) ao decifrar que não havia muita diferença entre eles, e de Diogo Rodrigues Puchta que percebeu que o regulamento de 1912 tinha o propósito de reorganizar o ensino primário público paranaense na trilha da experiência dos preceitos da então denominada pedagogia moderna (PUCHTA, 2007, p. 70). Entre as poucas inovações, uma que estava no Regulamento de 1909, determinava ao delegado de ensino examinar as condições higiênicas do prédio escolar e ao professor, zelar pela conservação do edifício.
Fui examinar a fala de Secretário de Interior, Justiça e Instrução Pública, Claudino Rogoberto Ferreira dos Santos, em especial, quando autorizou a publicação da Portaria nº 52, de 23 de outubro de 1914, e nela estava prescrita determinação semelhante a do Regulamento de 1909, para que inspetores, diretores e professores tivessem especial atenção aos edifícios escolares e suas condições de capacidade e higiene para atender as crianças; as condições de areação e iluminação; a existência de água potável, esgotos, latrinas e se a sua localização estava bem situada na cidade para atender a população escolar de seu entorno. (PARANÁ, 1915)
Com estas informações, não podia deixar de reconhecer que as autoridades de ensino estavam empenhadas na elaboração de reformas para o ensino público, pois, não deixaram de sancionar atos, decretos, leis, notas, portarias e regulamentos educacionais nesse período. Alguns, certamente, mais contundentes que outros. Com isso, eles deram provas de uma moderada atenção à realidade precária de suas casas escolares e as condições de seus professore(a)s, aluno(a)s e matrículas.
Mas, sem quere correr o risco de esmorecimento com estas vozes da Secretaria do Interior, Justiça e Instrução Pública, fui persuadido por uma de suas fontes a coordenar uma diligência à pasta de documentos da Secretaria de Estado dos Negócios e Obras Públicas, Terras e Viação, pois, seguramente, lá teria maiores chances de encontrar outras fingers prints que me auxiliassem a entender a política de investimento do Estado para a construção de edifícios escolares. E a anotação do cabeçalho do meu bloco de notas, não me deixava esquecer que nesta visita deveria estar prevenido quanto aos procedimentos investigativos do Remez (רֶמֶז).
E lá encontrei o Relatório do Secretário de Negócios e Obras Públicas de Marins Alves de Camargo, apresentado ao Presidente do Estado, que afirmava:
Para cada ordem de grupo escolar foram estudados 2 ou 3 tipos. Assim temos: grupos escolares modelos, com 8 salas de aula, um grande salão para aulas em comum, gabinete para a Diretoria, professores, porteiro, etc., variando o custo desses prédios 60 a 80:000$000; grupos com 4 salas de cidade e de vila, variando o seu custo entre 12 e 16:000$000 se é de madeira ou entre 30 e 40:000$000 se é de alvenaria; grupos com duas salas tipo de vila e povoado, variando o respectivo custo entre 15 e 20:000$000 se é de alvenaria e entre 5 e 8:000$000 se a construção é de madeira. (PARANÁ, 1913a, p. 116)
O meu desapontamento com esta pista era o fato que seria fácil averiguar que edifícios escolares de diferentes dimensões de alvenaria tinham custos maiores que edifícios escolares de madeira. Como diria o personagem Sherlock Homes, não há nada mais enganoso que um fato óbvio.9 E, cismado, fui levado a lembrar, mesmo a contragosto, que o Estado procurou investir com mais zelo nos espaços de maior visibilidade na cena urbana, exemplo dos grupos escolares modelos da capital.10
Minimizou a minha aparente sensação de frustação, alguns poucos artigos do Códigos de Ensino do Paraná (Decreto nº 710, de 18 de outubro de 1915), contidos em seu Título III (Do Ensino Primário), Capítulo IX (Dos prédios e móveis Escolares; Higiene Escolar). Ali, finalmente, descobri uma raríssima atualização do regramento sistemático para a construção de edifícios escolares no estado do Paraná que, desde 1884, não sofria grandes modificações em seus estatutos. À vista disso, mirei minha atenção nos artigos 172º e 173º, pois, eram averiguações que estava à procura, se não me engano, desde última leitura que fiz dos documentos da Secretária de Obras.
CAPÍTULO IX
Dos prédios e moveis escolares; higiene escolar
Art. 172º - À medida que os recursos financeiros do Estado o permitirem, construir-se-ão casas escolares nas cidades, vilas e importantes povoações que ainda não tiverem sido dotadas desses melhoramentos.
§ único - Onde não houver casas escolares ou onde estas forem insuficientes para todas as escolas, funcionarão elas ou algumas delas em casas particulares nas melhores condições possíveis de higiene, sendo para o respectivo aluguel os professores auxiliados pelo Estado, de acordo com a tabela em vigor.
Art. 173º - Cada prédio escolar do Estado terá os seguintes:
I requisitos externos:
ser, quanto possível, central relativamente à população que é destinada a servir;
ter a casa no centro do terreno a ela destinado, o qual limitado por muro ou gradil, terá área suficiente para conter os pátios de ginástica e recreio. lavabos, privadas, jardins, etc;
ser de acesso fácil e seguro;
não ser vizinho de fábricas ou outros estabelecimentos onde grandes ruídos sejam inevitáveis, nem de lugares insalubres;
ter o solo perfeitamente drenado, de modo que as águas tenham fácil escoamento.
II requisitos internos:
a) ter cada sala de aula em forma retangular com a superfície calculada à razão de 1m.20 por aluno;
ter a casa um porão de altura nunca inferior a 1m.50 entre a superfície do solo e o soalho.
ter cada sala janelas retangulares, largas, altas e numerosas de sorte que a superfície vítrea seja igual, ao menos a um quarto da superfície do soalho da sala;
ter as privadas convenientemente isoladas das salas, providas de água e de aparelhos de ventilação, construídas em condições de se poderem facilmente manter no máximo asseio;
ter vestíbulo e entrada especial para cada sala de aula;
haver, entre as diversas salas comunicações interiores;
ter compartimento especial para um pequeno museu escolar e para o acondicionamento dos trabalhos manuais e materiais respectivos;
haver em todos os compartimentos conveniente ventilação sendo o ar recebido diretamente do exterior;
ter, enfim, todas as condições recomendáveis pela pedagogia e pela higiene. (PARANÁ, 1915a, p. 36-37)
Quando encerrei a leitura desta fonte, restou algo déjà vu e, imediatamente, lembrei que havia guardado alguns regulamentos europeus, desde as missões de estudos que realizei na França e Espanha. E comparando-os, posso afirmar com segurança que as recomendações singularizadas no capítulo IX do Código de Ensino de 1915,11 muito possivelmente, tratava-se de apropriações de outros estatutos que orientaram a enunciação da legislação paranaense, a começar pelos tratados europeus. Não que este procedimento fosse despropositado, afinal, a circulação de saberes foi uma das formas das autoridades de ensino se manterem sintonizados com o discurso do moderno. Os tópicos que discutem os prédios escolares confirmam a presença das ideias do movimento higienista, primordialmente àquelas que configuravam gramáticas arquitetônicas sanitárias em seus aspectos de salubridade.
Recordei do caso espanhol, por exemplo, o marco que foi a publicação, em 1905, de uma rigorosa normativa higienista (Instrucción Técnico-Higiénica relativa a la construcción de Escuelas),12 cujo objeto era condensar as opiniões mais autorizadas e aceitas por pedagogos e higienistas acerca dos múltiplos pontos relacionados a escola primária espanhola, em especial, a temas relacionados construção de novos edifícios escolares. Nela, encontrei a semelhança do que afirma o Art. 173º do Código de 1915, que não recomendava a localização dos edifícios escolares próxima à fábricas, lugares barulhentos e insalubres (PARANÁ, 1915a).
Localização - as escolas deverão situar-se em local alto, seco, ensolarado, de fácil acesso e isolado de outras edificações; se possível próximos a jardins, praças ou ruas amplas de pouco trânsito, e se evitará a proximidade de cemitérios, hospitais, quarteis, centro de espetáculos e de reunião pública, trabalhos isalubres, tabernas e, em geral, de toda causa que crie mefitismo do ar e exponha aos escolares obstáculos de que é necessário afastá-los. (ESPAÑA, 1912, p. 35)
A riqueza das ideias que circulou no entorno dessa documentação fez emergir de sua superfície, inúmeros rastros que certificaram a presença de várias outras cautelas necessárias à saúde dos escolares, como por exemplo, areação, iluminação, localização, materiais e mobiliário. Mas, certamente, tanto a discussão brasileira como a espanhola foram tardias se comparadas as leis e regulamentos franceses, visto que, desde a segunda metade do século XIX, intensificaram suas preocupações com o universo infantil escolar.
Para fortalecer minha interpretação que houve apropriação e circulação dessas ideias entre europeus, com repercussão e adaptação ao contexto brasileiro, recorro as informações da Circular de 30 de julho de 1858. Nela estão publicados os pré-requisitos de escolha do terreno onde funcionaria uma escola na França oitocentista, e já tinha atenção com a localização do edifício escolar ao determinar seu afastamento de quaisquer estabelecimentos barulhentos, insalubres e perigosos, em uma distância mínima de 100 metros. Posteriormente, com a publicação da Circular de 18 de janeiro de 1887, essa distância aumentou para 400 metros, no mínimo (FRANCE, 1935). Não obstante, segundo Anne-Marie Châtelet, o principal regulamento para a arquitetura escolar francesa do século XIX foi a Circular de 17 de junho de 1880, assinada pelo Ministro da Instrução Pública, Jules Ferry, a partir das conclusões de uma comissão composta por arquitetos e educadores (CHÂTELET, 1999). E nela pude conferir que outras apropriações da legislação francesa podem ser verificadas nos Códigos de Ensino de 1915 e 1917, e no Regulamento do Serviço Sanitário do Estado Paraná de 1918,13que concentrou em seu capítulo II recomendações para as escolas. (PARANÁ, 1918)14
À medida que avançava minhas hipóteses e suspeitas, fazia sentido o conjunto que todos esses códigos provocavam a minha compreensão do universo político educacional, me auxiliando a ver e observar informações e detalhes desta trama, por mais óbvias que elas fossem.
E uma nova testemunha que adentrou à cena foi o Inspetor Geral do Ensino do Paraná,15 César Prieto Martinez, um dos protagonistas da Reforma do Ensino de 1920, que dedicou especial atenção à construção de novos edifícios para a escola pública primária.
Logo de imediato, percebi que César Prieto Martinez era um crítico destemido das condições de higiene dos prédios que foram alocados à escola primária pública paranaense, assim como das diretrizes que orientaram os projetos arquitetônicos de seus edifícios escolares. Segundo essa testemunha:
Tais preceitos da arquitetura escolar, facilmente observáveis, foram olvidados nas nossas construções, tornando-as defeituosas sob todos os pontos de vista e inadaptadas para os fins a que se destinam. Pecam quase todas por tamanho, formato e disposição das salas, pela distribuição inconveniente da luz, pela falta de comunicação interna. (PARANÁ, 1924, p. 42)
Estas são críticas similares àquelas já divulgadas anteriormente! Confesso que não consegui disfarçar todo o meu tédio ao verificar o mesmo parecer déjà vu, com outras fingers prints, que insistiam regressar ao meu cenário de investigação. O reconhecimento destas autoridades de ensino e gestores públicos que algo deveria ser feito foi utilizado como subterfúgio, cujo propósito era ocultar a incompatibilidade entre a realidade dos edifícios escolares da escola primária com o discurso da pedagogia moderna, o que comprova a letargia que ainda permanecia nas ações desses senhores.
Pelo depoimento que se segue, preciso reconhecer que a adesão de César Pietro Martinez aos preceitos da higiene moderna, facilitou que algumas das atividades da Inspetoria Geral de Ensino valorizasse a qualidade da arquitetura escolar como política construtiva inovadora, pautada na experiência do Estado de São Paulo.
As obras de maior vulto, dessa natureza, foram feitas em S. Paulo, sob a orientação do Dr. Ramos de Azevedo, autoridade renomada. Nestes últimos anos, um outro engenheiro não menos ilustre, o Dr. Mauro Álvaro, diretor da Engenharia Sanitária do Estado, imprimiu nova orientação à vultuosa construção de edifícios para grupos escolares e escolas rurais, levados a termo nos beneméritos governos e Rodrigues Alves e Altino Arantes. (PARANÁ, 1924, p. 45)
A citação à Mauro Camargo, enaltecida na mensagem der César Prieto Martinez, diz respeito, em especial, ao manual “Projetos de Grupos, Escolas Reunidas e Ruraes”, publicado, em 1920 (CAMARGO, 1920). Tratava-se de um manual que, segundo Ana Paula Pupo Correia, conforme declara o próprio Mauro Camargo, tinha o propósito de apresentar os principais componentes que serviram como modelo na organização dos projetos escolares. Além de várias propostas de edifícios para grupos escolares que foram executadas no Estado de São Paulo, a publicação trouxe outros exemplos de programas escolares de autoria de higienistas e arquitetos de outros países. (CORREIA, 2013). Não custa nada lembrar que a escola graduada foi paulatinamente adotada como modelo para o ensino primário brasileiro, desde os anos iniciais de instalação da República. E no Paraná, o compasso de consolidação dos grupos escolares, demandou um conjunto de ajustes prescritos em inúmeras propostas pedagógicas que influíram na divulgação e na defesa da renovação dos processos de organização do ensino primário (SOUZA, 2004).16
Por considerar sua importância neste panorama, fui à procura de higienistas. Dentre os quais, elegi a manifestação de três testemunhas da área médica.
A primeira do médico sanitarista, Eurico Branco Ribeiro,17 cobrava, em 1929, soluções para as condições sanitárias inadequadas que verificou nos edifícios escolares da cidade de Guarapuava, localizada na região centro sul do Paraná. Eu me recordo que já tinha sido alertado por outros depoentes dessa mesma precariedade. Mesmo assim, decidi considerar o depoimento do Dr. Eurico Ribeiro, que apresentou suas queixas sobre o descaso com as normas de higiene. Vejamos e observemos o que disse:
Em edifícios adequados, com favorável iluminação, material escolar conveniente, instalações sanitárias de boa qualidade e em desembaraçado funcionamento - em tais condições de local pode-se obrigar as crianças a seguir um programa compatível com a sua idade e capacidade intelectual e forçá-las a praticar atos higiênicos com os quais se familiarizem para bem da saúde e normal desenvolvimento de seu organismo. (RIBEIRO, 1929, p. 100)
De modo semelhante, em 1932, o Dr. Mário Gomes, que já tinha sido inspetor-médico escolar18 à época que César Prieto Martinez estava na Inspetoria Geral de Ensino do Paraná, manifestou seu ponto de vista na Revista Médica do Paraná sobre os edifícios escolares:
Na construção e organização dessas Escolas devem ser aplicados todos os preceitos conhecidos e recomendados pela higiene escolar, desde o local seco, de solo poroso, onde haverá gramados e arvoredo, até as salas arejadas, com as paredes decoradas com motivos apropriados à idade juvenil, móveis proporcionados à idade e estatura das crianças, salas para vestiário e repouso, lavabos e instalações sanitárias especiais, tudo isso sob a direção carinhosa de uma mestra, com auxiliares possuindo vocação e curso especializado para esse mister. (REVISTA, 1932, p. 123)
Por fim, em 1933, o Dr. Milton de Macedo Munhoz, um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação Médica do Paraná (AMP) e do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), não divergirá da opinião de seus colegas sanitaristas, ao considerar:
O edifício onde funciona deve ser construído de acordo com a engenharia sanitária, o material escolar adequado, as instalações sanitárias suficientes e mantidas em rigoroso asseio o ambiente escolar, em suma, deve ser perfeitamente higienizado. (REVISTA, 1933, p. 15)
Agradeço os depoimentos destas três autoridades médicas, mas para o proveito de minhas observações, sou levado a rastrear outras pegadas que me levem adentrar mais à frente na década de 1930. De modo antecipado, já sabia que se tratava de um período de intensas mudanças da cena política nacional e internacional, de avanços e retrocessos do desenvolvimento econômico brasileiro, mas, também, de circunstâncias conspiratórias que levaram a instalação de um regime ditatorial, capitaneado pelo senhor Getúlio Vargas, que escolheu o gaúcho Manuel Ribas para ser o 3º interventor do Estado do Paraná.
As informações que obtive de minhas fontes confirmam que o Interventor Manuel Ribas, em sua longeva permanência no poder (1932-1945), apadrinhou o fomento da arquitetura escolar, conforme consta no seu plano geral de construção de grupos escolares modernos, o qual determinava, além do erguimento de novos prédios, a revitalização de vários edifícios escolares que, segundo ele, estavam deixando a desejar por falta de acomodações necessárias aos alunos e que não mais satisfaziam as necessidades de ensino ( PARANÁ, 1935). Assim, se tornou urgente revigorar ou instalar onde não havia, parques e bibliotecas infantis, museus, laboratórios, refeitórios, pátios para a práticas de educação física, nos termos prescritos no Regimento Interno e Programa para Grupos Escolares de 1932 (PARANÁ, 1932), assim como nos comprometimentos que anunciava em suas mensagens de governo.19 Eis, um exemplo:
A modernização do plano de construções escolares, com a adoção de novas plantas, confeccionadas segundo as exigências mais rigorosas da pedagogia, da arquitetura e da higiene modernas, trazidas de São Paulo e Rio de Janeiro e adaptadas às condições gerais de nosso ambiente. (PARANÁ, 1937, p. 31)
Já não me causava estranheza a fascinação dos governantes paranaenses e suas autoridades de ensino pela arquitetura escolar paulista e, com menos intensidade, a carioca. Esta vinculação continuava sendo fonte de sedução discursiva, principalmente quando o intuito era associar enunciações da pedagogia moderna paranaense com aquelas que circulavam no contexto paulista.
Para fortalecer meu argumento, tomo como exemplo, a experiência do município de São Paulo com o Código de Obras de Arthur Saboya,20 Lei 3.427, de 19 de novembro de 1929 (SÃO PAULO, 1929), que muito provavelmente tenha sido uma das inspirações da equipe de arquitetos de Manoel Ribas. Nesta publicação, consta na Parte II (Das Construções para fins especiais) do capítulo VI (Escolas), informações sobre revestimentos (Art. 405º), iluminação das salas (Art. 406º), ventilação (Art. 407º), escadas (Art. 408º), dimensão da sala de aula (Art. 409º), altura das janelas (Art. 410º), altura do pé direito das salas (Art. 411º), instalação de latrinas e lavabos (Art. 412º). Ao fim e ao cabo, avalio que em termos práticos arquitetônicos, o Código de Obras de Arthur Saboya, não trazia grandes novidades ao cenário das normas de construção de edifícios que vinham sendo aplicadas para as escolas primárias paranaenses.
E pouco antes de finalizar minhas espiadas por cima dos ombros dos interlocutores que contribuíram para as minhas observações, mais uma testemunha chegou a tempo de colaborar em minha pesquisa: o Regulamento Sanitário do Estado do Paraná de 1938 (PARANÁ, 1938). Foi ele, a minha última prova, apesar de admitir que deixei do lado de fora da minha oficina de pesquisa, outros tantos personagens e fontes que mesmo querendo testemunhar e participar com suas falas, não havia tempo para atendê-los, pois precisava encerrar minhas apurações sobre esse caso.
O Regulamento Sanitário de 1938 trouxe consigo algumas poucas advertências categóricas aos construtores de edifícios escolares, particularmente àquelas para que não se descuidassem que as salas tivessem um pé-direito alto, fossem bem iluminadas por janelas que permitissem a entrada da luz solar e que comportassem no limite 40 crianças. Que houvesse quantidade suficiente de lavatórios, bebedouros e banheiros, conforme a população estudantil e, por fim, outra prescrição já anunciada em regulamentos precedentes, a instalação pátios de recreios, parcialmente cobertos, proporcionais à superfície das classes.21 Em suma, o que pude observar do Artigo 214º do Regulamento Sanitário, é que foram dadas orientações que não divergiam daquelas recomendações já previstas anteriormente.
Ao atingir o entardecer dessa minha investigação, me deparo com limites de tempo e laudas que me impedem de ir além do que me comprometi no alvorecer desta caminhada. E chegou o momento de tecer o meu parecer e conferir os resultados de meu inquérito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Avalio que se consegui alcançar algum nível de interpretação razoável, ele só foi possível graças à interação indiciária que procurei manter com os vários depoimentos colhidos, cujas evidências revelaram pontos de vista que me ajudaram a entender questões acerca da sintaxe da arquitetura e do espaço projetados para escola primária pública paranaense. Quanto mais eu avançava em minhas indagações, foi imprescindível ter ao meu lado os níveis de interpretação do método PaRDes (פַּרְדֵ״ס), como um aliado semelhante ao papel do personagem John Watson fora para Sherlock Holmes, deixando-me em alerta constante para não construir teorias apressadas, utilizando apenas significados literais (P´shat - פְּשָׁט). Ao remover da superfície das evidências das fontes, imagino que fui beneficiado pelas dicas (Remez - רֶמֶז) extraídas dos detalhes que a documentação e testemunhas trouxeram consigo, o que me deu segurança para alcançar o terceiro nível de interpretação (Derash - דְּרַשׁ) e, desse modo, desenvolver sentidos e interpretações acerca da temática.
Ao verificar e revisar a documentação administrativa que organizei para realizar esta pesquisa, asseguro que, entre os anos de 1901 a 1938, não foi possível localizar um repositório consistente no formato de manual ou catálogo que tenha sido publicado pelo Estado do Paraná, voltado especificamente para a construção de edifícios escolares. A minha suspeita ao longo da investigação que, ao final, se tornou convicção, é que normas e recomendações para arquitetura escolar publicadas em mensagens, relatórios, leis, decretos e atos da administração pública paranaense, foi uma apropriação deliberada das orientações bem sucedidas que estavam acontecendo no Estado de São Paulo que, por sua vez, se beneficiou da circulação de saberes que chegavam ao Brasil, em especial, aqueles originárias da experiência da arquitetura escolar da Europa ocidental.
Todo o esforço de inquirir minhas fontes facilitou entender que o núcleo duro do jogo de escalas discursivas estava triangulado nas narrativas dos seguintes depoimentos: o Regimento Interno das Escolas Públicas do Estado do Paraná de 1903, o Código de Ensino de 1915 e o Regulamento Sanitário de 1938. Com certeza, foram estas documentações administrativas, desde a publicação do Ato nº 287, de 14 de outubro de 1884, que regulamentava a construção das casas escolares, as que melhor definiram a morfologia arquitetônica para o universo da escola primária pública no Estado do Paraná. As demais testemunhas juntadas ao processo investigativo participaram, efetivamente, na elaboração de outras narrativas, algumas até tensionando as arestas desse triângulo discursivo, mas, todas, sem exceção, inclusive o plano geral de construção de grupos escolares modernos do início do governo de Manuel Ribas, não divergiram das proposições anunciadas nestes três documentos.
Mas isso não foi suficiente para desvendar pontos cegos que encontrei em minhas arguições, o que parcialmente dificultou minha tentativa de elucidar questões que me incomodavam. Dentre elas, tinha conhecimento dos inúmeros exemplos de edifícios de grupos escolares construídos nesse período que adotaram gramáticas arquitetônicas monumentais e suntuosas. Também sabia que a maioria adotou o estilo eclético como linguagem plástica para suas fachadas e, a partir de 1930, como menos intensidade, o Art déco.
Sim! em seus respectivos contextos, os arquitetos e engenheiros do Departamento de Obras e Viação Pública, os projetaram baseados no Regimento de 1903, no Código de 1915 e no Regulamento de 1938, afinal era notória as determinações que tratavam da construção de edifícios escolares que deveriam ser seguidas pelos construtores. Mas, seguramente, esta documentação segmentada não foi suficiente para orientá-los em todos os requisitos necessários para formular uma morfologia arquitetônica. e deduzo que outras fontes de informação foram utilizadas.
Dentre elas, seguramente, tratados, manuais e livros de arquitetura que circulavam na Europa e na América foram fundamentais para a consulta e motivação da equipe do Departamento de Obras do Paraná, lembrando que estas obras compunham parte das bibliotecas de formação de engenheiros e arquitetos no Brasil. Como por exemplo: Traité d’architecture théorique et pratique (TUBEUF, 1890), Traité de constructions civiles (BARBEROT, 1895), Éléments et théorie de l’architecture (GUADET, 1900), Traité d´architecture: éléments de l´architecture, types d´édifices, esthétique, composition et pratique de l´architecture (CLOQUET, 1900), Les constructions scolaires en Suisse (BAUDIN, 1907) e School Architecture or contributions to the improvement of school-houses in United States (BARNARD, 1842). Também é plausível afirmar que, a partir da década de 1920, o manual paulista Projetos de Grupos, Escolas Reunidas e Ruraes, de autoria de Mauro Camargo, e o Código de Obras de Arthur Saboya, de 1929, foram amplamente utilizados pelo departamento, muito por conta da adaptação que fizeram dos tratados estrangeiros para a realidade brasileira, assim como pela facilidade da sua publicação ocorrer na língua portuguesa.
Nesse momento de finalização, não saberia medir até que ponto minhas persecuções por sentidos me afastaram do quarto e último nível de interpretação (Sod - סוֹד), aquele que trata dos significados mais profundos escondidos nas fontes. Em minha revisão, constato que preservei significados literais nas inúmeras citações que utilizei ao longo da minha argumentação. O fiz com propósito de utilizá-los como recurso que me levasse a pistas escondidas na aparência discursiva da documentação. E aquela que considero mais preponderante, diz respeito a admiração que as autoridades de ensino e gestores públicos do Paraná nutriam pela experiência arquitetônica escolar que acontecia no Estado de São Paulo. Por um lado, a intensidade desta sedução ofuscou a originalidade de morfologias próprias para os edifícios escolares paranaenses e, por outro, os acomodou na elaboração de manuais, códigos e regulamentos inovadores. Pondero, talvez, não fosse de seu interesse, até pela facilidade de algo já dado, bastando apenas adaptá-lo a realidade do Paraná. Assim, os artigos, poucos por sinal, que foram publicados nos regulamentos paranaenses, estavam condizentes com a cena arquitetônica, com a aceitação espontânea e declarada de gramáticas e modelos de ampla circulação no Brasil, cuja inspiração foi, dominantemente, estrangeira.