1 Introdução
A violência sexual (VS) contra crianças e adolescentes no Brasil, definida pela Lei nº 13.431/2017 (BRASIL, 2017), abrange diversas formas de constrangimento, incluindo a exposição do corpo em fotos ou vídeos eletrônicos. Alarmantemente, a cada 15 minutos, uma criança ou adolescente enfrenta esse tipo de violência, sendo 77% dos agressores pertencentes ao círculo familiar ou conhecidos da vítima. Entre 2011 e 2017, as notificações de VS aumentaram em 83%, chegando a 184.524 casos, sendo mais de 50% contra crianças menores de 5 anos. O estupro é o tipo de violência mais relatado em crianças de 0 a 13 anos, representando 70% das notificações (IPEA, 2019).
O contexto da pandemia de Covid-19 exacerbou ainda mais essa situação, com o fechamento de instituições educacionais e o isolamento social, contribuindo para um aumento de 45% nos abusos sexuais contra crianças e adolescentes no primeiro mês de pandemia em 2020 no Brasil. Apesar disso, as denúncias subsequentes diminuíram, evidenciando uma preocupante subnotificação. Diante desse cenário dramático, a prevenção da VS contra crianças e adolescentes é apontada como crucial. Pesquisas indicam que a criação de ambientes comunitários seguros e o papel fundamental da escola na promoção de prevenção e conhecimento sobre abuso são estratégias eficazes para enfrentar esse grave problema (OMS, 2014a; Roca et al., 2020). Programas internacionais nas últimas três décadas têm contribuído para o desenvolvimento de autoproteção e conscientização das crianças sobre a VS, especialmente nas escolas, desde a primeira infância até o Ensino médio (Roca et al., 2020).
O debate sobre a inserção da Educação sexual nas escolas brasileiras tem gerado controvérsias e manifestações de negacionismo, indo na contramão do visualizado internacionalmente, visto que diversos países incluem o tema em escolas sem enfrentarem grandes resistências como no Brasil. O negacionismo nesse contexto muitas vezes se manifesta por meio de resistência à implementação de programas de Educação sexual abrangentes e baseados em evidências, além da disseminação de desinformação sobre o tema. Alguns argumentos utilizados pelos opositores incluem questões morais, receios de uma vida sexual precoce, responsabilização da família como única fonte de informação sobre o assunto, além de tabus culturais, religiosos e ideológicos.
O que foi vivido no Brasil nos últimos anos da década de 2010 e início dos 2020 nos faz entender que o papel do governo é crucial na implementação de políticas de Educação sexual nas escolas. Quando as ações governamentais desencorajam ou impedem tais iniciativas, isso pode criar um ambiente hostil ao desenvolvimento de programas educativos abrangentes. Isso pode ser agravado quando há mudanças nas lideranças políticas e ideologias que desfavorecem a inclusão da Educação sexual no currículo escolar.
O receio de que a Educação sexual possa incentivar uma vida sexual precoce foi discurso comum nas redes sociais do país, inclusive entre educadores e pais, mas estudos internacionais indicam que a Educação sexual adequada deve abordar a ideia de consentimento, a prevenção de abuso e o que são relacionamentos saudáveis, além de orientação sexual. Superar a resistência demanda diálogo aberto, esclarecimento sobre o propósito da Educação sexual e parcerias entre escolas e famílias, numa perspectiva comunitária. O desafio consiste em superar barreiras culturais e ideológicas para uma Educação sexual acessível, respeitosa e eficaz (Roca et al., 2020).
Cabe a elaboradores de políticas educacionais, a gestores e a educadores questionarem-se sobre qual tipo de abordagem e de programas tem sido bem sucedidos na prevenção de VS contra crianças e adolescentes. Ao buscarem tais parâmetros, tais agentes estarão evitando cometer equívocos importantes, que não apenas comprometem investimentos em algo sem resultados esperados, mas, também e, sobretudo, comprometem a vida de bilhões de crianças e adolescentes colocando-as em situação de revitimização ou de continuidade de violência.
O presente artigo tem o objetivo de encontrar, por meio de uma revisão quasi-sistemática de literatura nacional e internacional, ações preventivas que escolas brasileiras e estrangeiras vêm desenvolvendo no combate a VS contra crianças e adolescentes. Desta maneira, investiga-se nesta revisão a seguinte questão: Na prevenção de VS contra crianças e adolescentes, há programas e ações que tem sido bem sucedidos e que, portanto, poderiam ser estendidos a diferentes escolas? Ao buscar responder a essas questões, procuramos contribuir para ultrapassar o âmbito opinativo, traçando-se um percurso de maior segurança para as principais vítimas e beneficiários do tema: as crianças e os adolescentes.
2 Metodologia
Para o desenvolvimento do estudo, realizamos uma revisão quase-sistemática de literatura (Prezenszky; Mello, 2019; Salvador, 1986) em bases nacionais e internacionais, buscando textos que abordassem programas ou ações escolares preventivas à VS contra crianças e adolescentes, sem delimitação de data das publicações (Creswell, 2007).
Para a localização dos textos, utilizamos os descritores em português e inglês: “prevenção”, “AND violência”, “AND infância” “OR criança”, “AND sexual” e “AND escola”. As buscas foram realizadas em plataformas que difundem pesquisas científicas: SciELO, Scopus, Google Scholar, Educational Resources Information Centre (Eric), Web of Science e PubMed Central (PMC).
Como critério de inclusão, consideramos em cada base: (a) estar incluído nas categorias artigo, artigos de revisão e anais de evento; (b) constar no título pelo menos uma das palavras-chave: violência, prevenção, infância, criança, sexual e escola; (c) selecionar em ordem de mais citados – por isto expressar que eles têm sido utilizados como referências para outros artigos –; (d) selecionar artigos com recorte temporal de publicação entre 1995 e 2020; e (e) selecionar no máximo 45 artigos para o total da pesquisa, para permitir uma análise qualitativa acurada. Como critério de exclusão, consideramos: (a) artigos de opinião – pela baixa demonstração de evidência científica.
Todos os artigos analisados estão referenciados no Apêndice. No Quadro 1, é possível a visualização geral dos resultados encontrados em cada base, por descritor, e o número final de artigos selecionados em cada uma.
Descritores | Bases | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
SciELO | Google Scholar | Scopus | Eric | Web of Science | PubMed | ||
Violência | 9.515 | 18.700 | 1.414 | 17.623 | 26.794 | 115.846 | |
AND prevenção | 574 | 1.000 | 178 | 3.790 | 3.979 | 35.861 | |
AND infância OR criança | 574 | 122 | 76 | 288 | 1.231 | 13.863 | |
AND sexual | 125 | 45 | 52 | 41 | 431 | 4.079 | |
AND escola | 18 | 16 | 36 | 17 | 90 | 1.993 | |
Artigos selecionados | Nacionais | 11 | 10 | 5 | 0 | 0 | 0 |
Internacionais | 0 | 3 | 3 | 4 | 7 | 2 | |
Total | 11 | 13 | 8 | 4 | 7 | 2 |
Fonte: Elaboração dos autores (2022)
Durante a busca nas bases de dados, não utilizamos o descritor “adolescentes”, porém, incluímos essa faixa etária na discussão deste artigo, devido as menções e discussões feitas pelos artigos analisados.
Na revisão de literatura, as categorias emergiram da leitura dos textos, ao invés de categorias pré-definidas, desta maneira, foi possível identificar as categorias de acordo com a frequência que foram mencionadas (Creswell, 2007; Page et al., 2021). Para a análise, foi realizada a sistematização dos textos em quadros de fichamento (Gómez et al., 2006) e foram feitas a análise e a interpretação dos materiais, identificando-se: o tipo de pesquisa realizada; o objetivo do texto; área de estudo do texto (Educação, saúde, psicologia); a população-alvo dessas ações; as ações preventivas à VS realizadas ou propostas no texto; metodologia de pesquisa; resultados obtidos; aspectos indicados que contribuem para a superação da VS (dimensão transformadora) e aspectos identificados como barreiras a essa superação (dimensão excludente), conforme propõe a Metodologia Comunicativa (Gómez et al., 2006).
O uso da Metodologia Comunicativa possibilita contribuir para a transformação social, ao organizar as análises identificando as barreiras que impedem a transformação em um determinado fenômeno social, ou seja, as dimensões excludentes das práticas sociais, e as vias que permitem superá-las, ou seja, as dimensões transformadoras da realidade (Gómez et al., 2006). No caso do estudo aqui apresentado, a análise buscou identificar por meio dos artigos analisados, ações no contexto escolar que contribuem para a prevenção da VS contra crianças e adolescentes (dimensão transformadora), e ações que impedem que tal prevenção seja realizada (dimensão excludente).
Além disso, a análise também está embasada pelos conceitos de denúncia e anúncio, que são por nós entendidos com base em Freire (2000), como partes do compromisso de transformação do mundo, numa perspectiva metódica, que supere a elaboração de projetos e ações com base em suposição, ou opinião, constituindo por meio da pesquisa um projeto de transformação.
Sendo assim, neste estudo, as produções que se encontram em “denúncia”, assumem a perspectiva da crítica à ausência de práticas ou políticas para prevenção da VS infantil. Em outras palavras, elas apontam e destacam somente a falta de medidas ou ações preventivas no contexto analisado, sem indicar o que poderia ser feito com base na ciência para melhoramento da situação discutida. Quando encontradas em “denúncia e anúncio”, além de apontar as deficiências na prevenção da VS infantil, essas pesquisas também propõem ações. Essas ações são fundamentadas nas evidências encontradas durante a investigação em questão ou em outros estudos que demonstram a eficácia de certas práticas ou políticas na prevenção do abuso infantil, especialmente no ambiente escolar.
A análise dos dados se deu por meio de uma descrição dos artigos analisados e, por quantificação (frequência e porcentagem) de elementos percebidos nos artigos. Por fim, os textos foram analisados qualitativamente, por meio de uma matriz de análise evidenciando os elementos excludentes e transformadores.
3 Resultados e Discussão
Houve diferenças entre artigos nacionais e internacionais, notadas desde a primeira organização dos dados, até o aprofundamento da análise do material. Como se pode visualizar nos Quadros 2 e 3, dos 45 artigos captados a partir das palavras-chave, os 26 artigos nacionais (58%) foram localizados via as bases SciELO, Scopus e Google Scholar. Dos 26, foram captados 13 artigos (50%) da área de saúde; 8 (31%) da área de Educação, três (11%) de psicologia, 1 (4%) de Educação e saúde e 1 (4%) de psicopedagogia. Cinco (19%) foram publicados na primeira década do século XXI e os demais (81%) na segunda década. Catorze (54%) assumem uma perspectiva de denúncia da situação encontrada no país, e 12 (46%) trazem, além da denúncia, algo que anuncia a mudança da realidade.
No Quadro 2, podem ser verificadas as características gerais dos textos nacionais captados.
Base | Número de Referência | Área | Revista | Ano | Natureza: Denúncia (D) Anúncio (A) Denúncia e Anúncio (DeA) |
---|---|---|---|---|---|
SciELO | 1 | Saúde | Texto e Contexto Enfermagem | 2020 | DeA |
SciELO | 2 | Saúde | Ciência e Saúde Coletiva | 2019 | D |
SciELO | 3 | Saúde | Cadernos de Saúde Pública | 2017 | D |
SciELO | 4 | Saúde | Cadernos de Saúde Pública | 2013 | D |
SciELO | 5 | Saúde | Epidemiologia e Serviços de Saúde | 2018 | DeA |
SciELO | 6 | Saúde e Educação | Interface Comunicação, Saúde, Educação | 2014 | DeA |
SciELO | 7 | Saúde | Cadernos de Saúde Pública | 2004 | D |
SciELO | 8 | Saúde | Ciência e Saúde Coletiva | 2015 | DeA |
SciELO | 9 | Educação | Cadernos de Pesquisa | 2013 | DeA |
SciELO | 10 | Educação | Cadernos de Pesquisa | 2018 | DeA |
SciELO | 11 | Educação | Revista Brasileira de Educação | 2017 | D |
Scopus | 12 | Saúde | Ciência e Saúde Coletiva | 2014 | D |
Scopus | 13 | Saúde | Revista da Associação Médica Brasileira | 2010 | D |
Scopus | 14 | Saúde | Cadernos de Saúde Pública | 2009 | D |
Scopus | 15 | Saúde | Ciência e Saúde Coletiva | 2019 | DeA |
Scopus | 16 | Saúde | Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil | 2012 | D |
Google Scholar | 17 | Psicologia | Temas em Psicologia | 2010 | DeA |
Google Scholar | 18 | Saúde | Revista Eletrônica Acervo Saúde | 2020 | D |
Google Scholar | 19 | Educação | V Simpósio Internacional em Educação Sexual | 2017 | D |
Google Scholar | 20 | Psicologia | Revista Brasileira de Terapias Cognitivas | 2010 | DeA |
Google Scholar | 21 | Psicologia | Estudos de Psicologia | 2008 | DeA |
Google Scholar | 22 | Psicopedagogia | Revista Psicopedagogia | 2015 | D |
Google Scholar | 23 | Educação | Revista de Divulgação Interdisciplinar do Núcleo das Licenciaturas | 2013 | D |
Google Scholar | 24 | Educação | III Simpósio Internacional de Educação Sexual | 2013 | D |
Google Scholar | 25 | Educação | Educação e Realidade | 2008 | DeA |
Google Scholar | 26 | Educação | Fazendo Gênero | 2012 | DeA |
Fonte: Elaboração dos autores (2022)
No Quadro 3, pode-se observar que as bases Scopus, Google Scholar, Eric, Web of Science e PubMed foram as de captação dos artigos internacionais. Nelas, encontramos 19 artigos, dos quais 6 (32%) são da área de saúde e 13 (68%) da área de Educação. Dos artigos captados, 2 (11%) foram publicados na década de 1990, 4 (21%) foram publicados na primeira década do século XXI e os demais (68%) na segunda década deste século. Nove (47,5%) assumem uma perspectiva de denúncia da situação, e outros 9 (47,5%) trazem, com a denúncia, algo que anuncia a mudança da realidade. Um deles (5%) traz diretamente o anúncio do que pode ser feito.
Base | Número de Referência | Área | Revista | Ano | Natureza (Denúncia - D) (Anúncio - A) (Denúncia e Anúncio - DeA) |
---|---|---|---|---|---|
Scopus | 27 | Saúde | Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine | 1999 | DeA |
Scopus | 28 | Saúde | Journal of the American Medical Association | 2001 | D |
Scopus | 29 | Saúde | Journal of the American Medical Association | 2001 | D |
Google Scholar | 30 | Educação | Child Abuse & Neglect | 2007 | D |
Google Scholar | 31 | Educação | Child Abuse & Neglect | 1997 | D |
Google Scholar | 32 | Educação | Child Abuse & Neglect | 2001 | D |
Eric | 33 | Educação | Leadership and Research in Education: The Journal of the Ohio Council of Professors of Educational Administration (OCPEA) | 2020 | DeA |
Eric | 34 | Educação | International Journal of the Whole Child | 2019 | D |
Eric | 35 | Educação | Journal of Applied Research on Children: Informing Policy for Children at Risk | 2013 | D |
Eric | 36 | Educação | Child Abuse and Neglect | 2015 | DeA |
Web of Science | 37 | Saúde | Children and Youth Services Review | 2015 | D |
Web of Science | 38 | Educação | Received in Revised Form | 2020 | DeA |
Web of Science | 39 | Educação | Sustainability | 2020 | DeA |
Web of Science | 40 | Saúde | Iran J Public Health | 2020 | DeA |
Web of Science | 41 | Educação | Journal of Interpersonal Violence | 2019 | DeA |
Web of Science | 42 | Educação | Child Abuse & Neglect | 2019 | D |
Web of Science | 43 | Saúde | Belitung Nursing Journal | 2018 | A |
PubMed | 44 | Educação | Journal of Child Sexual Abuse | 2019 | DeA |
PubMed | 45 | Educação | Journal of Child Sexual Abuse | 2019 | DeA |
Fonte: Elaboração dos autores (2022)
A análise comparativa entre dados de periódicos nacionais e internacionais sobre a prevenção da VS contra crianças e adolescentes revela discrepâncias significativas nas ênfases das publicações. No contexto brasileiro, mais de metade dos artigos (54%) concentra-se na perspectiva de denúncia, apontando deficiências ou práticas inadequadas, enquanto o âmbito internacional apresenta uma porcentagem ligeiramente inferior, com 47,5% de conteúdo nesse sentido. Em contrapartida, ao abordar a interseção entre denúncia e anúncio, indicando práticas bem-sucedidas, os resultados se invertem: a literatura internacional destaca-se com pouco mais da metade (52,5%) de artigos nessa categoria, enquanto no cenário nacional 46% dos textos incorporam denúncia e anúncio. Conclui-se que, predominantemente, as produções sobre prevenção de VS no Brasil concentram-se na denúncia, com uma proporção menor envolvendo também anúncios. A literatura internacional, apesar de representar uma fração menor, evidencia uma discussão mais abrangente sobre o tema, indicando lacunas na proposição de ações preventivas em escolas brasileiras no combate à VS.
No Quadro 4 é importante esclarecer que “formação” diz respeito ao preparo sistemático dos agentes e agências para prevenir e para lidar com a VS contra crianças e adolescentes, e que “denúncia” diz respeito à criação de mecanismos para apresentação de denúncias de casos constatados ou em suspeita.
Categorias | Dimensão excludente | Dimensão transformadora | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Agência | Agente | Tipo de Ação | Número de artigos que indicam esses elementos | Número de artigos que indicam esses elementos | ||||||
Nacionais | Internacionais | Nacionais | Internacionais | |||||||
F | % | F | % | F | % | F | % | |||
Escola | Profissionais escolares | Formação | 10 | 38% | 5 | 26% | 7 | 27% | 9 | 47% |
Denúncia | 12 | 46% | 4 | 21% | 8 | 31% | 2 | 10% | ||
Relação entre pares | Formação | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 | 10% | |
Denúncia | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 3 | 16% | ||
Família | Familiares | Formação | 2 | 8% | 2 | 10% | 3 | 11% | 4 | 21% |
Denúncia | 11 | 42% | 2 | 10% | 3 | 11% | 3 | 16% | ||
Políticas públicas | Programas preventivos | Formação | 1 | 4% | 1 | 5% | 4 | 15% | 12 | 63% |
Denúncia | 2 | 8% | 0 | 0 | 7 | 27% | 3 | 16% | ||
Órgãos e documentos de proteção à criança e ao adolescente | Formação | 3 | 11% | 0 | 0 | 3 | 11% | 0 | 0 | |
Denúncia | 5 | 19% | 0 | 0 | 8 | 31% | 0 | 0 |
Fonte: Elaboração dos autores (2022)
Como se pode notar a partir do Quadro 4, quanto à agência e aos agentes, nas produções brasileiras, destaca-se que o número mais elevado de dados se refere aos profissionais escolares. Em elementos excludentes, a ausência de atuações docentes frente à prevenção de VS foi apontada em 12 estudos (46%), enquanto essa ausência foi citada em apenas 4 artigos internacionais (21%). No campo da formação, 10 artigos brasileiros (38%) e 5 internacionais (26%) criticaram a falta de formação do professorado. Concomitantemente, no campo da formação, a docência foi apontada em 7 artigos nacionais (27%) e 9 estrangeiros (47%) como fundamental na dimensão transformadora, e 8 estudos nacionais (31%) e 2 internacionais (10%) indicaram a necessidade de formação continuada para estes agentes.
Em seguida, os familiares foram apontados em 11 pesquisas brasileiras (42%) e 2 internacionais (10%) no campo da denúncia, o que foi classificado como elementos excludentes; em 2 investigações brasileiras (8%) e 2 internacionais (10%) no critério de formação, por meio de críticas à família por ser, na maioria das ocorrências, perpetradora de violência e pela falta de conhecimento sobre VS. Além disso, quando se trata de dimensão transformadora, os familiares foram citados em 3 artigos nacionais (11%) e 4 estrangeiros (21%) indicando a eficácia da prevenção de violência quando a escola inclui a família nas ações; em 3 pesquisas no Brasil (11%), e igualmente em 3 internacionais (16%), foi sugerido que projetos formem familiares para atuarem em conjunto com as escolas na prevenção da VS.
Nas produções internacionais, os programas preventivos apareceram em maior quantidade em comparação às demais categorias. Na dimensão excludente, há 1 estudo brasileiro (4%) e 1 internacional (5%) na perspectiva de formação; em denúncia, emergiram 2 pesquisas brasileiras (8%) com críticas à carência destes programas, e nenhum estudo estrangeiro neste sentido. Ainda nesta categoria, na dimensão transformadora, na perspectiva de formação, 4 estudos brasileiros (15%) expõem a implementação de programas preventivos em escolas, enquanto 12 estudos estrangeiros (63%) relatam o desenvolvimento destes programas em escolas de outros países; em denúncia, 7 pesquisas no Brasil (27%) e 3 internacionais (16%) apontam para a importância de estabelecer tais programas no ambiente escolar.
A categoria brasileira que se diferenciou da literatura internacional foi a de órgãos e documentos de proteção à criança e ao adolescente. Na dimensão excludente, esta categoria foi citada em 3 investigações no âmbito da formação (11%) e 5 vezes no campo da denúncia (19%), indicando que tais órgãos e documentos – como o Conselho Tutelar e o ECA – precisam estar presentes na escola. Na dimensão transformadora, 8 artigos (31%) indicam, por meio da denúncia, a eficácia destes órgãos e documentos na prevenção e no enfrentamento à VS; e 3 estudos (11%) pontuam, na perspectiva de formação, resultados positivos quando são reconhecidos pelas escolas.
Como categoria exclusiva da literatura internacional analisada, a relação entre pares emergiu na dimensão transformadora; 2 artigos apontaram para esta categoria no sentido de formação (10%) e 3 (16%) no campo da denúncia dissertam sobre a necessidade do conhecimento sobre VS para prevenção entre pares na escola.
4 No caso das publicações brasileiras
Em relação aos projetos e programas preventivos realizados em escolas, que objetivam combater o abuso e a VS, a literatura mencionou o Projeto Escola que 1Protege (Santos, Rodrigues, Monteiro, 2018), que tem o objetivo de capacitar profissionais ligados à Rede de Proteção e Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes.
O Programa Saúde na Escola (Santos, Rodrigues, Monteiro, 2018) foi citado por visar à integração e à articulação permanente da Educação e da saúde, por meio de ações de promoção, prevenção e atenção à saúde. O Guia Escolar para a Identificação de Sinais de Abuso e Exploração Sexual se apresentou como símbolo do compromisso da política educacional de enfrentamento da VS com objetivo de capacitar educadores e educadoras no tema de VS (Santos, 2011).
O Projeto Escola que Protege, o Programa Saúde na Escola e o Guia Escolar para a Identificação de Sinais de Abuso e Exploração Sexual são iniciativas do Ministério da Educação no Brasil e podem ser incorporados ao trabalho pelas escolas de todos os estados brasileiros, no entanto, não foi encontrado, nas bases pesquisadas, uma gama de publicações considerável sobre a execução e eficácia desses programas.
5 No caso das publicações estrangeiras
Destacou-se a pesquisa feita por Roca et al. (2020), que evidenciou seis ações baseadas em evidências científicas que foram transformadoras para prevenir VS contra crianças e adolescentes, durante o isolamento social em função da Covid-19. Tal pesquisa foi denominada como “abrir portas” das escolas, de maneira online e implementou ações preventivas em nove escolas (Ensino primário, pré-primário, médio e Educação especial) das comunidades autônomas de Valência e Múrcia, na Espanha. Ademais, essas ações deram sentido comunitário à prevenção de violência, tal como indica a Organização Mundial de Saúde – OMS (2014b) e também corroboram para manter relacionamentos de apoio nas escolas durante o confinamento, como indica o Center on the Developing Child Harvard University (Anderson, 2020). A seguir, a descrição de cada uma das seis ações que promovem a prevenção de VS infantil.
Os (1) Espaços de Trabalho Dialógico com docentes, estudantes e voluntariado são momentos por videoconferência que transformam o que normalmente seria um espaço privado onde cada criança faz os deveres individualmente em casa, em um espaço aberto com colegas de classe e a presença de uma pessoa adulta de referência que ajuda o grupo a trabalhar junto em um ambiente de apoio e confiança.
As (2) Tertúlias Dialógicas acontecem uma vez na semana, com duração de uma hora e baseiam-se no diálogo e interpretação das melhores criações da humanidade em diferentes domínios: literatura, ciência, música e outras artes. Neste sentido, a Tertúlia pode ser literária, científica, musical, artística, dentre outras, mas com o mesmo objetivo de criar um ambiente de confiança no qual as crianças sintam que podem compartilhar experiências e reflexões, relacionando muitas vezes, a obra com o contexto atual que vivenciam, bem como expor seus sentimentos e emoções.
As (3) Assembleias ou Mentorias são reuniões online que possuem o objetivo de trabalhar com estudantes temas relacionados à coesão social, prevenção de abusos e violência e promoção do diálogo entre estudantes.
As (4) Tertúlias Pedagógicas Dialógicas promovem um espaço onde docentes lêem em conjunto livros relevantes sobre teorias da Educação e da aprendizagem; autores como Vygotsky, Freire e Bruner, bem como artigos publicados em revistas de grande impacto científico. Dentre os tópicos estão os programas escolares para prevenir o abuso sexual infantil e a violência.
Os (5) Comitês Mistos e Redes Comunitárias são momentos em que a família e comunidade colaboram diretamente com o professorado na organização da escola por meio de comissões mistas e além disso, promovem redes de solidariedade que aproximam escola e comunidade, identificando famílias em situação de vulnerabilidade e promovendo ações para ajuda-las.
Por fim, (6) a Dinamização das Redes Sociais com Mensagens Preventivas e Criação de Sentido de Comunidade é uma ação que mantém a escola ativa nas redes sociais na emissão de mensagens de apoio, como “Estamos conectados! Se precisar de alguma coisa, podemos te ajudar!”; “As amizades são nosso farol nessa jornada!”; “O que está te preocupando”; “Não estamos sozinhos”; dentre outras mensagens que buscam fortalecer os vínculos entre comunidade e escola.
Outro destaque realizado nos estudos internacionais foi a relação entre pares – que contexto escolar se dá entre estudantes – como fator transformador e, portanto, protetivo (Fitriana; Suryawati; Zubaidah, 2018; Silverman et al., 2001). Em uma delas (Fitriana; Suryawati; Zubaidah, 2018), realizada em Grabag, regência de Magelang, Indonésia. sobre o efeito da Educação por pares em relação à prevenção da VS, evidenciou-se que intervenções educacionais por pares podem melhorar o conhecimento e a autoeficácia da prevenção entre estudantes.
Ainda em outra pesquisa (Silverman et al., 2001), realizada em Massachusetts (EUA), com o objetivo de avaliar a prevalência de VS durante o namoro entre adolescentes, constatou-se, por meio de pesquisas de comportamento, que as relações entre pares são úteis na prevenção de VS em relacionamentos afetivo-sexuais.
A literatura internacional se destacou na implementação exitosa de programas preventivos em escolas estrangeiras, evidenciando, por meio dos dados coletados, contribuições positivas destes programas no enfrentamento e na prevenção de VS contra crianças e adolescentes, evidências estas que podem orientar o desenvolvimento de ações e programas em escolas brasileiras sobre prevenção de VS.
6 Conclusões
Voltando aqui às perguntas que guiaram nossa pesquisa – há programas e ações que tem sido bem-sucedidos e que, portanto, poderiam ser estendidos a diferentes escolas? –, verificamos que em âmbito internacional há estudos sobre iniciativas escolares que tem tido sucesso na prevenção de VS – inclusive durante o isolamento social em função da pandemia de Covid-19 – e que merecem ser conhecidas e estudadas nos processos de formação de docentes no Brasil.
Destaca-se o êxito das seis ações implementadas na Espanha (Roca et al., 2020) para prevenção de VS contra crianças e adolescentes e nessa perspectiva, este artigo traz como principal contribuição a indicativa da implementação das seguintes ações escolares explicadas anteriormente: Espaços de trabalho dialógico com docentes, Tertúlias Dialógicas, Assembleias ou Mentorias, Tertúlias Pedagógicas Dialógicas, Comitês Mistos e Redes Comunitárias e Dinamização das redes sociais com mensagens preventivas e Criação de Sentido de comunidade.
Poucas publicações e informações foram encontradas sobre os programas preventivos nas escolas brasileiras, impossibilitando-nos de mensurar e discutir com profundidade seu desenvolvimento, aplicabilidade e efetividade nas escolas. Neste sentido, foi possível, ainda, constatar que as escolas brasileiras têm sido pouco exitosas no desenvolvimento de ações preventivas à VS infantil, devido à falta de instrumentalização e formação continuada de profissionais, bem como de ações comunitárias que articulem familiares, estudantes e profissionais da Educação. Além disso, no Brasil, na busca realizada, nenhuma ação escolar foi identificada na prevenção de VS contra crianças e adolescentes, durante o distanciamento social.
Em relação as contribuições deste artigo, os estudos dedicados à prevenção da VS infantil têm desempenhado uma função preponderante nos domínios social, acadêmico e científico. No contexto social, a divulgação de pesquisas tem contribuído para ampliar a conscientização pública acerca da extensão do problema e dos seus desdobramentos. Paralelamente, a influência desses estudos se reflete na elaboração de políticas públicas mais eficazes, promovendo iniciativas governamentais e não governamentais mais robustas. Em termos acadêmicos, a produção de conhecimento tem sido essencial na identificação de fatores de risco associados à VS, fornecendo bases sólidas e científicas para estratégias preventivas. Além disso, a academia exerce um papel fundamental no treinamento de profissionais, capacitando-os para lidar com casos de VS infantil e engajando-os na disseminação de práticas preventivas.
No âmbito científico, a pesquisa empírica tem sido conduzida para coletar dados sobre a incidência e as consequências da violência, enquanto inovações tecnológicas são exploradas para aprimorar a detecção e prevenção com base na ciência. A avaliação sistemática de intervenções destaca-se como contribuição científica relevante, permitindo a identificação das abordagens mais eficazes na prevenção desse fenômeno. Coletivamente, essas contribuições convergem para um impacto positivo, elevando a qualidade de vida das vítimas e fomentando sociedades mais seguras para jovens e crianças.
Tendo em vista os limites da pesquisa aqui apresentada, tanto pela sua abrangência (número de artigos analisados), como por sua natureza (bibliográfica), considera-se que ela possa ser um ponto de partida para o desenvolvimento de novos estudos científicos sobre a prevenção da VS contra crianças e adolescentes, por meio de projetos e ações baseadas em evidências científicas, que possibilitem novas práticas no ambiente escolar, e que possam se expandir para outros ambientes comunitários.