1 INTRODUÇÃO
Desde os primeiros trabalhos acadêmicos sobre superdotação, permanece a seguinte questão: Existe relação entre superdotação e depressão? A pergunta admite duas respostas conflitantes. Para Francis et al. (2016) e Guénolé et al. (2015), o superdotado seria capaz de uma maior compreensão de si mesmo e dos outros devido a sua capacidade cognitiva, o que o protegeria da depressão. Já Neihart (1999) aponta que esse indivíduo seria mais sensível aos conflitos interpessoais e estresse do que seus pares como resultado de sua capacidade cognitiva.
Mesmo não havendo consenso, concorda-se que alunos superdotados têm características que os tornam diferentes dos demais. Além de terem capacidade de compreender e de explicar conceitos complexos em uma variedade de tópicos ou de desenvolver expertise em uma área ou um tópico específico (Nielsen, 2002), esses indivíduos podem experimentar uma sensação de frustração quando sua capacidade de lidar com as demandas fica abaixo das expectativas (Neihart, 2002). Como não estão acostumados ao fracasso, o sentimento de frustração pode causar distúrbios psicológicos, como a depressão, a ansiedade e o estresse (Bakar & Ishak, 2014). O potencial e a singularidade das habilidades de crianças superdotadas podem levá-las a sentir medo, ansiedade existencial e sofrimento pessoal, de modo que elas podem não ser capazes de tirar proveito de suas capacidades (Seely, 2004).
Quanto à relação entre superdotação e depressão, os resultados da pesquisa de Terman (1925) sugeriram que indivíduos superdotados exibiam menor incidência de doenças mentais e problemas de adaptação do que a média. Contudo, o suicídio, em 1981, de um estudante, desencadeou uma série de pesquisas sobre suicídio, delinquência, ansiedade e depressão em populações superdotadas (Neihart, 1999). A partir dos anos de 1990, as pesquisas caminharam em uma ou em outra direção: do ajustamento ou do desajustamento social. Postulava-se que os adolescentes demonstravam comportamentos social e emocionalmente atípicos por serem altamente motivados, inconformados e independentes (Csikszentmihalyi et al., 1993).
No final dos anos de 1990, um novo episódio de suicídio reascendeu a discussão sobre o desajustamento (Hyatt, 2010). Nesse caso, como em outros (Juvonen & Grahan, 2014), o bullying potencializou a depressão, que culminou com o suicídio. Na literatura, o bullying está associado de forma recorrente ao indivíduo superdotado, seja na condição de agressor, vítima ou testemunha (Dalosto & Alencar, 2013; González-Cabrera et al., 2019). Mais recentemente, eles passaram a experimentar uma nova situação: o cyberbullying. As ferramentas tecnológicas do século XXI tornaram-se um recurso bastante útil para alunos superdotados, porém funcionaram como catalisador para a perpetuação assíncrona do desenvolvimento desses indivíduos, assim como potencializaram a exposição à alienação pelos colegas e/ou a agressão pelos pares (Mueller & Winsor, 2018).
Costuma-se definir humor como emoção ou sentimento difuso e persistente que influencia o comportamento de uma pessoa e colore sua percepção de ser no mundo. Os transtornos de humor, também chamados de transtornos afetivos, constituem uma categoria importante de doença psiquiátrica (Sadock, 2017). O termo “depressão” não se refere a uma patologia caracterizada obrigatoriamente pelo humor deprimido, mas a uma síndrome caracterizada por alterações de humor e de psicomotricidade, além de distúrbios somáticos e neurovegetativos (Assumpção Jr. & Kuczynski, 2012).
Em termos clínicos, define-se que todos os transtornos depressivos apresentam como características centrais a presença de anedonia e/ou humor triste, vazio ou irritável, somada a alterações somáticas e cognitivas que afetam a funcionalidade do indivíduo (American Psychological Association [APA], 2014). Assim sendo, o presente artigo foi elaborado com o objetivo de responder à seguinte pergunta: A superdotação intelectual em seres humanos, quando comparados à inteligência normal de indivíduos, está associada à experiência de depressão ou transtorno depressivo?
2 MÉTODO
A revisão sistemática foi realizada com base na Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses (PRISMA) para os itens mínimos relatados que devem ser abordados em uma revisão sistemática (Moher et al., 2009; Page et al., 2021). Como essa ferramenta foi projetada para a revisão de estudos clínicos, foram feitos ajustes, permitindo maior adaptação à presente questão. Para a definição dos termos de pesquisa, a questão foi delineada pelo processo “PECO” (Kung et al., 2010), em que “P” diz respeito à população = humanos com superdotação; “E”, exposição = depressão ou transtorno depressivo; “C”, controle = indivíduos com inteligência normal; “O”, outcome (em português, resultado) = associação à superdotação intelectual.
A revisão sistemática foi realizada em cinco bases de dados científicos: a PsycInfo, a Web of Science (WoS), a Scopus, acessada por meio da plataforma Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a Scientific Electronic Library Online (SciELO) e a US National Library of Medicine (PubMed). No PubMed, foram utilizados os termos booleanos: (gifted[All Fields] OR giftedness[All Fields]) AND ((“depressive disorder”[MeSH Terms] OR (“depressive”[All Fields] AND “disorder”[All Fields]) OR “depressive disorder”[All Fields] OR “depression”[All Fields] OR “depression”[MeSH Terms]). Nas demais bases, foram utilizados os seguintes termos: ((gifted OR giftedness) AND (depression OR depressive disorder)).
Todos os resultados foram avaliados quanto à elegibilidade por meio de critérios de inclusão e de exclusão. Os critérios de inclusão foram: (a) ser artigo científico, dissertação ou tese publicado em revista ou plataforma indexada em uma das bases de dados sem restrição de data; (b) tratar de superdotação e de depressão. Os critérios de exclusão adotados foram: (a) revisões; (b) biografias; (c) artigos escritos em quaisquer idiomas diferentes de português, inglês, espanhol ou francês; (d) artigos sobre superdotação não intelectual; (e) estudos de caso; (f) artigos sem grupo-controle; (g) artigos com grupo-controle diferente de indivíduos com inteligência normal; (h) cartas ao editor; (i) artigos nos quais um dos termos tinha significado diferente daquele de interesse; (j) artigos em que os termos, apesar de corretamente contextualizados, estavam desconectados; (k) artigos que envolviam também outros transtornos; (l) erratas; (m) dissertações ou teses não disponíveis; e (n) obras de ficção ou não ficção sobre os temas da pesquisa. Após a seleção dos estudos elegíveis, foi construído um quadro contendo dados extraídos de estudos, a saber: (a) questão predominante; (b) autor/ano de publicação; (c) número de participantes; (d) local da pesquisa; (e) idade/escolaridade; (f) desfecho. Tais dados permitiram produzir uma síntese descritiva e uma avaliação qualitativa com discussão dos principais resultados dos estudos selecionados.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A pesquisa nas cinco bases foi realizada entre os dias 16 e 18 de abril de 2022. Ao convergir os dados das bases no programa Mendeley e retirados das duplicatas, restaram 390 artigos. A Figura 1, a seguir, apresenta o fluxograma, segundo o PRISMA (Moher et al., 2009; Page et al., 2021), para a busca realizada. Dos 390 resultados, não foram encontradas 32 dissertações ou teses. Dos 358 artigos encontrados, foram excluídos 332 artigos, segundo os critérios descritos na Figura 1, restando 26 artigos a serem analisados.
O Quadro 1 resume os dados extraídos dos artigos incluídos. Observa-se que 18 trabalhos apresentam um número de participantes, entre superdotados e grupo-controle maior ou igual a 100 indivíduos, assim como se nota que 13 trabalhos foram realizados nos Estados Unidos da América (EUA).
Autor (ano) | Questão predominante |
N | Participantes (SD/GC) |
Local | Idade / Escolaridade |
Desfecho principal |
---|---|---|---|---|---|---|
Baker (1995) | Ideação suicida | 146 | 58/56a | EUA | 7th - 12th grades5 | Não foram encontradas diferenças significativas no sofrimento. |
Bartell & Reynolds (1986) | Autoestima | 145 | 110/35 | EUA | 4th - 5th grades | Não foram encontradas diferenças significativas nas características afetivas. |
Bénony et al. (2007) | Autoestima | 46 | 23/23 | França | ≈ 11,3 anos | SD têm menor autoestima acadêmica e geral, além de maiores escores de depressão. |
Blumen & Lanao (2006) | Fatores de proteção/risco | 55 | 27/28 | Peru | 9 - 12 anos | SD têm mais dificuldade em lidar com estresse, mas demonstram maior destreza em situações cotidianas. |
Bracken & Brown (2006) | Ajustamento emocional | 90 | 45/45 | EUA | 5 - 18 anos | SD exibem ajuste comportamental melhor. |
Brody & Benbow (1986) | Autoestima | 411 | 300/111b | EUA | ≈ 13,7 anos | SD percebem-se como menos populares, porém têm maior locus de controle interno. |
Eklund et al. (2015) | Ajustamento emocional | 1206 | 168/1038 | EUA | 5 - 12 anos | Pais e professores avaliaram que meninos do GC têm maior risco emocional e comportamental. |
Eren et al. (2018) | Ajustamento emocional | 105 | 49/56 | Turquia | 9 - 18 anos | SD descreveram-se como mais desatentas, animadas e com funcionalidade social mais baixa. Meninos SD têm mais sintomas depressivos do que meninas SD. |
Field et al. (1998) | Autoestima | 224 | 62/162 | EUA | ≈ 14,5 anos | SD são mais íntimos dos amigos e podem ser socialmente precoces. SD sentem-se iguais ou melhores em relação a habilidades acadêmicas e sociais. Professores avaliaram SD como menos felizes. |
Fouladchang et al. (2010) | Estresse | 670 | 284/386 | Irã | ≈ 16,1 anos | SD apresentaram menor nível de satisfação com a vida e ansiedade, porém maior nível de estresse. |
González-Cabrera et al. (2022) | Estresse | 1398 | 448/950 | Espanha | 9 - 15 anos | SD são mais propensos a serem vítimas, assim como vítimas SD têm mais estresse do que vítimas do GC. |
Guignard-Perret et al. (2020) | Estresse | 58 | 33/25 | França | 5 - 15 anos | SD têm mais sono REM e menos sono no estágio 1, porém mais queixas de insônia e sono. |
Johnston (1996) | Fatores de proteção/risco | 178 | 92/86 | Canadá | 4th - 6th grades | Não houve diferença significativa quanto ao afeto negativo ou estilo explicativo. |
Merrell et al. (1996) | Comportamentos internalizantes | 130 | 65/65 | EUA | 3th - 6th grades | SD relataram menos sintomas de internalização. |
Metha & McWhirter (1997) | Ideação suicida | 72 | 34/38 | EUA | 7th - 8th grades | SD relataram experimentar menos eventos de mudança de vida. |
Mueller (2009) | Fatores de proteção/risco | 1524 | 762/762 | EUA | 12 - 19 anos | SD são menos deprimidos. Os fatores de proteção moderam a depressão em ambos os grupos. |
Parker et al. (2001) | Perfeccionismo | 219 | 142/77 | República Tcheca | ND | Perfeccionismo foi mais problemático no GC. Enxaqueca negativamente relacionada à busca por altos padrões. |
Plominski & Burns (2018) | Ajustamento emocional | 1027 | 641/386 | EUA | ≈ 21 anos | Associação entre SD e maiores níveis de bem-estar psicológico, bem como menores níveis de afeto distímico. |
Rice & Taber (2018) | Perfeccionismo | 658 | 290/368 | EUA | ≈ 20 anos | SD têm forte associação entre preocupações perfeccionistas e estresse. |
Richards et al. (2003) | Ajustamento emocional | 58 | 33/25 | Austrália | ≈ 14,47 anos | Avaliações dos pais indicam que SD têm níveis mais baixos de problemas comportamentais. Os autorrelatos não mostram nenhuma diferença em medida global de ajuste emocional. |
Robinson et al. (2002) | Fatores de proteção/risco | 5400 | 162/5238 | EUA | ≈ 8,7 anos | SD prosperaram mais em termos sociais e acadêmicos. |
Roy (2016) | Comportamentos internalizantes | 60 | 20/20c | Índia | 6 - 18 anos | Meninos SD são menos ansiosos, porém têm mais comportamentos externalizantes. |
Shahzad & Begume (2010) | Fatores de proteção/risco | 197 | 93/104 | Paquistão | 9 - 12 anos | SD têm um nível relativamente baixo de depressão. |
Turakitwanakan et al. (2010) | Estresse | 80 | 40/40 | Tailândia | 9 - 12 anos | Depressão e nível de cortisol salivar foi maior em SD, contudo a correlação foi inversa. |
Wilson (2015) | Ajustamento emocional | 1190 | 650/540 | EUA | ≈ 4 anos | Pais e professores têm diferentes padrões de observação das características sociais e emocionais. |
Yi & Gentry (2021) | Perfeccionismo | 443 | 134/309 | Coreia do Sul | 10th - 11th grades | Em SD de alto desempenho, a autorregulação perfeccionista foi benéfica, porém apresentaram maior risco de depressão. |
Nota: SD: superdotados; GC: grupo-controle; DI: deficiência intelectual; REM: rapid eyes movement; ND: não definido.
a Neste estudo, há ainda um grupo de 32 alunos excepcionalmente superdotados (com escore maior que 900 no Scholastic Aptitude Test -SAT).
b Embora o GC pudesse ser considerado superdotado, uma vez que havia se qualificado como tal em teste psicométrico aplicado, ele obteve pontuação menor do que 540 na combinação do SAT. De todo modo, seu nível de habilidade é muito mais baixo do que o dos outros alunos neste estudo (Brody & Benbow, 1986).
c Neste estudo, há ainda um grupo de 20 indivíduos denominados mildly retarded (com Quociente de Inteligência (QI) entre 70 e 80).
Apesar da diversidade de encaminhamento dos artigos selecionados, foi possível relacionar a depressão às seguintes questões: (a) autoestima; (b) comportamentos internalizantes; (c) estresse; (d) fatores de proteção e/ou risco; (e) ideação suicida; (f) perfeccionismo; (g) ajustamento emocional. Ao fazer-se uma análise qualitativa desses artigos agrupados de acordo com a proximidade de cada uma dessas questões, o objetivo foi esmiuçar a investigação, considerando o contexto, os limites e as condições de contorno de cada trabalho.
3.1 A AUTOESTIMA
Desde a década de 1970, diversos pesquisadores têm se debruçado sobre a discussão entre autoestima e autoconceito em superdotados (Foley-Nicpon et al., 2012). A autoestima pode ser definida como a avaliação que uma pessoa faz e costuma manter em relação a si mesma, ou seja, a autoestima é o julgamento de valor que é expresso pelas atitudes que ela mantém em relação a si mesma (Coopersmith, 1981). Entre os principais fatores que afetam o desenvolvimento da autoestima estão a família e a escola (Topçu & Leana-Taşcilar, 2016).
Brody e Benbow (1986), quanto à autoestima, observaram uma diferença significativa (p < 0,01) entre os grupos com superdotação matemática e superdotação verbal. Segundo Field et al. (1998), em todos os itens de habilidades acadêmicas e sociais percebidos, os alunos superdotados classificaram-se como iguais ou melhores do que seus colegas de desempenho acadêmico normal; contudo, as análises de tais habilidades não produziram diferenças significativas, considerando o autorrelato dos alunos e a observação de professores.
Já os resultados de Bartell e Reynolds (1986) demonstraram que as meninas superdotadas apresentaram maior autoestima do que os meninos superdotados, enquanto os meninos do grupo-controle tiveram escores maiores em autoestima do que as meninas do mesmo grupo (Bartell & Reynolds, 1986). Estudo realizado na França revelou que as pontuações para a autoestima acadêmica e a autoestima total foram significativamente menores (p < 0,006 e p = 0,03, respectivamente) do que as observadas no grupo de controle, e que os escores de depressão foram significativamente maiores (p = 0,021) nas crianças superdotadas. As análises de correlação revelaram que, quanto mais baixos os valores de autoestima total, maior a depressão, a hiperatividade, a psicopatologia total e os escores de agressão (Bénony et al., 2007). Especificamente, com relação à depressão, Brody e Benbow (1986) observaram que as meninas do grupo de superdotados e do grupo-controle eram significativamente mais deprimidas do que os meninos dos respectivos grupos (p < 0,01). Para Bartell e Reynolds (1986), meninos superdotados eram mais deprimidos do que as meninas superdotadas, mas as meninas do grupo-controle eram mais deprimidas do que os meninos do mesmo grupo.
3.2 OS COMPORTAMENTOS INTERNALIZANTES
A autorregulação é um termo amplo que se refere ao controle do próprio comportamento e emoção. As habilidades de função executiva são descritas como processos neurocognitivos que fundamentam aspectos da autorregulação (Hum & Lewis, 2012). Esses processos incluem flexibilidade cognitiva, memória de trabalho e controle inibitório (Miyake et al., 2000). Deficiências na função executiva têm sido associadas a problemas de autorregulação e ao desenvolvimento de problemas de comportamento disruptivo (Ogilvie et al., 2011). É comum que crianças intelectualmente superdotadas sejam encaminhadas para clínicas pediátricas ou de neuropsiquiatria infantil por problemas socioemocionais e/ou insucesso escolar ou desajuste (Guénolé et al., 2013). Além disso, crianças com problemas de comportamento, como distúrbios internalizantes ou externalizantes, correm maior risco de piorar a saúde física na idade adulta (Slopen et al., 2013).
Roy (2016) verificou que, entre superdotados, a faixa etária de 10 a 18 anos era vulnerável a problemas comportamentais. Segundo Merrel et al. (1996) e Roy (2016), as crianças superdotadas apresentaram maior percentagem de problemas de comportamento de externalização, sobretudo entre os meninos, do que em problemas de comportamento de internalização. Roy (2016) também observou que meninos superdotados eram menos ansiosos que os demais, e meninas superdotadas tinham menos problemas somáticos. Entretanto, a pontuação para comportamentos externalizantes foi significativamente maior (p < 0,01) entre crianças superdotadas do que crianças com inteligência normal.
De acordo com Merrel et al. (1996), os alunos superdotados diferiam mais substancialmente de seus colegas não superdotados nos itens que se relacionam à autoeficácia e à autoimportância percebida, o que corrobora a hipótese de que esses indivíduos podem estar “protegidos”, visto que sua presença positiva em crianças poderia atuar como um fator de “proteção” ou de “isolamento” quanto a insultos à seu funcionamento socioemocional e ao desenvolvimento de formas internalizantes de psicopatologia.
3.3 O ESTRESSE
Postula-se que existam três fontes de estresse para alunos talentosos: situacionais, autoimpostas e existenciais (Swiatek, 1995). O estresse situacional é o conflito entre os próprios valores e os valores dos outros. O estresse autoimposto é o cenário de expectativas excessivamente altas, o medo do fracasso ou medo do sucesso, as crenças avaliativas perturbadoras, a preocupação intensa e a comunicação intrapessoal negativa. Estresses existenciais estão relacionados a preocupações globais, idealismo, isolamento e necessidade de significado e propósito (Shaunessy & Suldo, 2010).
Partindo da hipótese de que o estresse esteja associado a elevados níveis de cortisol, Turakitwanakan et al. (2010) comparam a depressão entre crianças superdotadas e crianças de desempenho normal, medindo o nível de cortisol da saliva. Apesar de os resultados isoladamente ratificarem a proposição de que indivíduos superdotados são mais suscetíveis à depressão e à proposição de que seus níveis de cortisol são maiores, observou-se correlação inversa entre a pontuação do Children Depression Inventory (CDI) e o nível de cortisol salivar. Ademais, o resultado não foi estatisticamente significativo (p > 0,05).
Estudo realizado por Fouladchang et al. (2010) teve como objetivo investigar a relação entre depressão, ansiedade, estresse e satisfação com a vida entre alunos superdotados e alunos de desempenho normal. Os resultados demonstraram que as meninas tiveram melhor satisfação com a vida do que os meninos, e os alunos do grupo-controle revelaram maior nível de satisfação com a vida do que os superdotados. No entanto, as meninas apresentaram escores mais elevados nos índices de ansiedade e de estresse do que os meninos.
3.4 A IDEAÇÃO SUICIDA
O comportamento suicida resulta da interação entre um meio ambiente estressante e o ego da criança, em outras palavras, o nível de desenvolvimento autocentrado da criança presta-se ao suicídio como solução para interromper a ação de agentes estressores (Farrell, 1989). As funções do ego de crianças suicidas incluem déficits como baixa tolerância à frustração, desconfiança do mundo, incapacidade de atrasar imediatamente a gratificação e a labilidade de afeto (Pfeiffer, 1982). Em relação aos superdotados, podem-se distinguir alguns fatores estressantes em particular: percepção de reprovação e/ou cobrança excessiva (Whitmore, 1980); expectativas sociais colocadas sobre os superdotados (Delisle, 1986); assincronia no desenvolvimento cognitivo, emocional e social (Alencar, 2007).
A partir da utilização de testes para mensurar a depressão e a ideação suicida, Baker (1995) demonstrou que as meninas relataram mais depressão do que os meninos em todos os grupos, porém não foram encontradas diferenças significativas (p = 0,90). De acordo com o estudo de Metha e McWhirter (1997), baseado nos resultados de testes de medida de estresse, de inventário de depressão e de ideação suicida, foi observado que alunos superdotados experimentaram, significativamente, menos eventos de mudança de vida (p = 0,037). O estresse percebido dos eventos de mudança de vida, os níveis de depressão e a ideação suicida foram semelhantes entre participantes superdotados e não dotados. A ideação suicida em toda a amostra foi significativa e positivamente correlacionada (p < 0,01), tanto com o nível de depressão quanto com os níveis de estresse passado e recente.
3.5 O PERFECCIONISMO
Pode-se classificar o perfeccionismo em duas dimensões: os esforços perfeccionistas e as preocupações perfeccionistas. Esforços perfeccionistas referem-se a estabelecer padrões elevados - geralmente têm associação positiva com resultados adaptativos. Já as preocupações perfeccionistas referem-se às discrepâncias entre desempenho real e padrões ideais, preocupações sobre erros e dúvidas sobre o desempenho (Stoeber & Otto, 2006). O fenômeno pode ainda ser observado considerando outras duas dimensões: o perfeccionismo socialmente prescrito e o auto-orientado. O socialmente prescrito é a expectativa internalizada de perfeição proveniente de “outras” pessoas; o auto-orientado, por sua vez, é caracterizado por definir altos padrões perfeccionistas para si mesmo. Este pode compelir um indivíduo a níveis mais elevados de esforço e de realização (Christopher & Shewmaker, 2010).
Considerando a hipótese de que a estrutura de perfeccionismo encontrada em estudantes norte-americanos pudesse ser generalizada para uma população europeia, Parker et al. (2001) examinaram o perfeccionismo entre alunos tchecos com superdotação em matemática. As análises de variância produziram diferenças estatisticamente significativas (p = 0,000, p = 0,008 e p = 0,02, respectivamente) por grupo para preocupação com erros, organização e crítica parental, sendo maiores no grupo neurotípico, enquanto os padrões pessoais foram maiores para as mulheres. Enquanto os indivíduos não perfeccionistas foram encontrados de forma desproporcional entre os talentosos, os perfeccionistas desadaptativos estavam sobrerrepresentados entre os alunos do grupo-controle (Parker et al., 2001).
O trabalho de Rice e Taber (2018) buscou evidências que apoiassem conceituações de perfeccionismo, como a construção multidimensional representada por dois fatores: esforços perfeccionistas e preocupações perfeccionistas. As diferenças médias, para as diferentes medidas, entre o grupo de superdotados e o grupo-controle, não foram estatisticamente significativas (p = 0,38). Quando os participantes foram divididos, observou-se um grupo com altos padrões, baixa discrepância e baixo estresse (presumido adaptativo); outro com altos padrões, discrepância e estresse (presumido desadaptativo); e um terceiro com padrões baixos e discrepância de faixa média (presumidos não perfeccionistas). Nenhum grupo de alunos foi desproporcionalmente representado; contudo, os autores demostraram preocupação com o fato de que aproximadamente 8% dos alunos pareceram estar em risco de dificuldades relativas a combinações problemáticas de esforços e de preocupações perfeccionistas (Rice & Taber, 2018).
3.6 O AJUSTAMENTO EMOCIONAL
O ajustamento refere-se ao processo de resposta às exigências ambientais, e as pessoas que se adaptam positivamente às novas circunstâncias são capazes de lidar eficazmente com as exigências da vida (Neihart, 2007). O ajuste social refere-se à capacidade de formar relacionamentos satisfatórios com outras pessoas, e o ajuste emocional envolve a aceitação pessoal das circunstâncias, o que pode incluir a adaptação de atitudes e de emoções (Schuur et al., 2021).
Compreender as experiências sociais e emocionais dos indivíduos superdotados requer identificar seu desenvolvimento cognitivo no que se refere aos conceitos e aos modelos mais gerais dos campos de desenvolvimento e de ajuste psicológico (Sowa & May, 1997). São definidos como mecanismos de ajuste os processos que as pessoas usam para responder às demandas ambientais. Mecanismos de ajuste bem-sucedidos permitem que as pessoas atendam às demandas, mudem o ambiente para atender às suas necessidades ou aos seus gostos, regulem seu comportamento para produzir efeitos desejados, acreditem em suas habilidades para alcançar resultados pretendidos, além de interpretar experiências para a resolução de problemas, entre outros (Rathus & Nevid, 1992).
Segundo Richards et al. (2003), na avaliação dos pais, os adolescentes superdotados demostraram níveis mais baixos de comportamento problemático e de ansiedade do que seus pares do grupo-controle, além de menos problemas de atenção do que os adolescentes com desempenho normal. Ainda que as avaliações dos professores não indicassem diferenças significativas entre os grupos, os autorrelatos dos adolescentes corroboraram a avaliação dos pais. O trabalho de Eklund et al. (2015) também demonstra haver, na avaliação de pais e de professores, maior risco emocional e comportamental em crianças de desempenho normal. Ademais, os alunos superdotados demonstraram desempenho acadêmico mais alto, independentemente do nível de risco, sugerindo que as habilidades cognitivas mais altas podem constituir um fator de proteção para atenuar o desenvolvimento de outras preocupações sociais, emocionais ou comportamentais (Eklund et al., 2015). Ainda tomando como referência o relato de pais e professores, Wilson (2015) apontou que a concentração dos superdotados foi positivamente relacionada à empatia e negativamente relacionada ao comportamento socialmente desadaptado. Empatia e amizade também foram negativamente relacionadas ao comportamento socialmente desadaptado, segundo pais e professores.
Considerando o autorrelato, o trabalho de Eren et al. (2018) revelou que crianças superdotadas se descreviam como mais desatentas, com funcionalidade social baixa e com pior percepção do seu estado de saúde física. Em contrapartida, segundo avaliação realizada por Bracken e Brown (2006), alunos superdotados obtiveram resultados significativamente melhores em competência e função executiva (p < 0,05 em ambos). Além disso, os alunos superdotados tiveram resultados mais baixos em algumas escalas, dentre as quais se destacaram: ansiedade, depressão e déficit de atenção. Ainda sob a perspectiva do autorrelato, alunos considerados superdotados, de acordo com os critérios do estudo de Plominski e Burns (2018), exibiram valores médios maiores do que aqueles apresentados pelos alunos do grupo-controle. Ademais, alunos do grupo-controle relataram níveis significativamente mais baixos de satisfação geral com a vida, satisfação pessoal e autoeficácia acadêmica (p = 0,01 em todos os casos).
3.7 OS FATORES DE PROTEÇÃO E FATORES DE RISCO
Se, por um lado, há trabalhos que apontam no sentido de identificar a superdotação como fator de proteção para experiências de depressão; por outro, há autores que, partindo do pressuposto de que a inteligência seja uma característica fixa, estudam os fatores de risco e de proteção por meio de comparações entre alunos superdotados e não superdotados na expectativa de obterem uma imagem mais clara das influências ambientais (Kitano & Lewis, 2005). Em revisão sistemática que investigou evidências empíricas sobre a associação entre superdotação e psicopatologia, os resultados apoiaram a visão de que a superdotação seria um fator protetor contra dificuldades internalizantes e externalizantes para crianças e adolescentes (Francis et al., 2016).
Partindo da seleção de pouco mais de 1.500 alunos, pareados com base na idade, no sexo, no nível de renda familiar e na etnia, Mueller (2009) aferiu que os alunos superdotados são significativamente menos deprimidos do que os indivíduos do grupo-controle, e todos os fatores de proteção moderaram a depressão em ambos os grupos. Todos os três fatores de proteção (autoconceito, ligação entre pais e família e pertencimento à escola) foram preditores negativos de depressão para os adolescentes superdotados. Partindo também da seleção de participantes em um espaço amostral maior, Robinson et al. (2002) observaram que mais famílias de superdotados se enquadraram na categoria de famílias com mais recursos (pais com Ensino Superior e com emprego), brancas/não hispânicas e com o inglês como idioma principal. Segundo o relato dos pais e dos professores, as crianças com alto desempenho estavam prosperando tanto social quanto academicamente e, embora, segundo autorrelato, não fossem apaixonadas pela escola, demonstravam estar menos insatisfeitas. Os professores perceberam significativamente (p < 0,001) mais atitudes parentais positivas nos alunos com alto desempenho, incentivando mais fortemente o progresso dos filhos (Robinson et al., 2002).
Enquanto Blumen e Lanao (2006) fizeram a opção por trabalhar com crianças em situação de risco, Shahzad e Begume (2010) investigaram as diferenças em termos de depressão, entre crianças com superdotação pertencentes ao nível socioeconômico médio e superior e recrutadas em diferentes escolas secundárias do setor privado do Paquistão. Como resultado, Blumen e Lanao (2006) observaram que, quanto ao número de respostas, o grupo talentoso obteve mediana maior do que o grupo-controle. Essa elevação foi interpretada como indicador de potencial intelectual e capacidade produtiva. O grupo talentoso exibiu diferenças no controle intelectual e no processamento das emoções. Em relação ao controle de estresse e de tolerância, observou-se que os talentosos apresentaram valores menores do que os do grupo-controle, indicando uma maior tendência à tensão; todavia, simultaneamente, mostraram maiores valores de “ajustamento”, revelando maior habilidade para lidar com situações cotidianas (Blumen & Lanao, 2006). De acordo com Shahzad e Begume (2010), os alunos superdotados apresentaram clara propensão a relatar sentimentos e pensamentos positivos substancialmente mais fortes com baixo nível de afeto negativo e baixo nível de autoavaliação negativa.
Além da hipótese de que indivíduos superdotados em situação de vulnerabilidade podem ser mais suscetíveis ao risco do que os demais, considera-se, também, a hipótese de que superdotados que experimentam mais eventos estressantes têm maior probabilidade de ficarem deprimidos. Os resultados do trabalho de Johnston (1996) revelaram que ambos os alunos relataram níveis mais baixos de afeto negativo do que mostrado na literatura (ver Kovacs, 1981). Os alunos superdotados pontuaram mais baixo nessa medida, mas esses resultados não foram significativos (p = 0,10). Ademais, os meninos apresentaram afeto negativo levemente mais baixos do que as meninas (Johnston, 1996).
4 CONCLUSÕES
O ajustamento emocional demonstrou ser o preditor de maior interesse quanto à depressão nos superdotados. Quanto à temporalidade, o interesse pela relação entre depressão e superdotação aumenta e diminui, de forma cíclica, tendo como período de maior interesse o intervalo entre os anos 2006 e 2010. A heterogeneidade dos critérios adotados por cada estudo para caracterização da superdotação, ou mesmo dos testes psicométricos utilizados, restringe a possibilidade de conclusão. Ainda que a metade dos estudos (n = 13) tenha sido conduzida nos EUA, deve-se ressaltar que a diversidade cultural também limitou as conclusões. De todo modo, é possível, em termos qualitativos, observar alguns pontos de convergência entre um ou outro estudo.
Considerando particularmente a experiência de depressão em superdotados, quando comparados a indivíduos de desempenho normal, dada a pergunta de investigação do artigo, observou-se, em três estudos, que os superdotados eram menos deprimidos que os indivíduos do grupo-controle (Bracken & Brown, 2006; Mueller, 2009; Richards et al., 2003), enquanto um artigo revelou o contrário (Turakitwanakan et al., 2010). Os resultados de Bartell e Reynolds (1986) ratificam a proposição de que meninas são mais deprimidas do que meninos na mesma condição, especialmente no grupo-controle. Contudo, dois artigos apontam para o fato de, entre os superdotados, os meninos são mais deprimidos do que as meninas (Bartell & Reynolds, 1986; Eren et al., 2018). Considerando tais resultados, postula-se que uma futura metanálise seja realizada a fim de mensurar a significância e o tamanho do efeito de cada resultado.